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www.educapsico.com.br PREFEITURA DE OSASCO – SP EDITAL Nº 001/2014 Parte I Junho/2014 – Reprodução Proibida – www.educapsico.com.br 2 Organizadores/Elaboradores: Rafael Trevizoli Neves e Tauane Paula Gehm. Elaboradores de outros materiais Educa Psico utilizados nesta apostila: Ana Carolina Naves Magalhães; Ana Lívia Babadopulos; Domitila Shizue Kawakami Gonzaga; Fabiana Rego Freitas; Fernanda Augustini Pezzato; Luciana Esgalha Carnier; Patrícia Ribeiro Martins; Rodrigo Pucci; Telma Luiza de Azevedo. Revisão e formatação: Flávia Aparecida Ferretti de Lima. Texto de apresentação do material: As apostilas específicas da Educa Psico abordam os conteúdos de Psicologia publicados no edital para o qual o material foi elaborado. A elaboração tem como base os conteúdos das apostilas (temáticas e específicas) da Educa Psico. Esses conteúdos são revisados por especialistas de cada área buscando a máxima adequação ao que é exigido no edital. Além disso, esses especialistas elaboram textos inéditos, caso haja necessidade pelas exigências do edital. A proposta deste material é auxiliá-lo na organização dos seus estudos, possibilitando que você se dedique aos principais conteúdos de psicologia que foram sugeridos no edital. Importante que você busque também outras fontes de estudo para que possa potencializar seu desempenho na prova. Bons estudos! Equipe Educa Psico. www.educapsico.com.br 3 Sumário Unidade I – História da Psicologia e Principais Vertentes Teóricas....................................4 1.1. Primeiras Palavras...........................................................................................................4 1.2. Psicologia como ciência: bases epistemológicas.........................................................4 1.3. Pioneiros da Psicologia Científica................................................................................19 1.4. Estruturação da psicologia no século XX: escolas psicológicas...............................25 1.5. Deficiência física e intelectual: desafios para a atuação do psicólogo.....................51 1.6. Referências.....................................................................................................................67 Unidade II – Avaliação Psicológica, Psicopatologia e Teorias e Técnicas Psicoterápicas......................................................................................................................69 2.1. Primeiras palavras.........................................................................................................69 2.2. Métodos e técnicas de avaliação psicológica..............................................................69 2.3. Modos de funcionamento normal e patológico do psiquismo humano.....................96 2.4. Teorias e técnicas psicoterápicas..............................................................................118 2.5. Referências...................................................................................................................165 www.educapsico.com.br 4 UNIDADE I – HISTÓRIA DA PSICOLOGIA E PRINCIPAIS VERTENTES TEÓRICAS1 1.1. Primeiras Palavras O tema desta unidade é a história da Psicologia como ciência, suas principais vertentes teóricas e alguns dos desafios enfrentados pelo psicólogo na atuação junto à pessoa com deficiência. Essas temáticas correspondem aos seguintes tópicos presentes no edital do concurso: Psicologia como ciência – bases epistemológicas; Pioneiros da psicologia científica; Estruturação da psicologia no século XX – escolas psicológicas; Deficiência física e intelectual – desafios para a atuação do psicólogo. Boa leitura! 1.2. Psicologia como ciência: bases epistemológicas2 A subjetividade humana e a explicação dos comportamentos não poderiam ficar de fora dos interesses da ciência, mas foi apenas a partir da segunda metade do século XIX que começaram a surgir os primeiros projetos de Psicologia como ciência independente. A criação de uma nova ciência autônoma em relação a outras áreas do saber é algo complexo, pois é necessária a existência de um objeto próprio e de métodos adequados para o estudo deste objeto. Para a Psicologia, esta tarefa foi algo ainda mais complicado, uma vez que toda a filosofia da Antiguidade incluía noções de conceitos relacionados ao domínio da ciência psicológica, como os de “espírito” ou “alma”. Posteriormente, na Idade Moderna, fisiologistas, anatomistas, médicos e filósofos procuraram explicar o comportamento humano voluntário e involuntário; além disso, começaram a se constituir, naquele momento, as ciências da sociedade, como a História, a Economia Política, a Antropologia, a Sociologia e a Linguística. Essas ciências também se propunham a estudar o comportamento humano, particularmente os mais importantes para a comunidade e suas condições históricas e culturais. Assim, os temas que poderiam ser estudados pela Psicologia encontravam-se dispersos em diversas ciências biológicas e sociais. O que restaria para a Psicologia como ciência independente? (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). Auguste Comte (1798-1857), filósofo francês do século XIX, defendia que nada cabia à Psicologia no seu sistema de ciências. Para ele, o que impedia a existência de uma ciência psicológica era seu objeto, a mente, que, não se tratando de algo observável, não se enquadraria no seu molde de ciência positivista. Entretanto, o próprio Comte admite, em dado momento, a possibilidade de uma ciência psicológica, desde que dependente de outras 1 Unidade organizada por Tauane Paula Gehm. 2 Fonte: Apostila História da Psicologia. Elaborado por Fernanda Augustini Pezzato e Telma Luiza de Azevedo. Adaptado por Tauane Paula Gehm. www.educapsico.com.br 5 ciências, como a Biologia e a Sociologia. Esta relação estreita com outras ciências é bem presente até hoje na Psicologia, que ainda tenta firmar-se como ciência, reivindicando um lugar à parte enquanto ciência e profissão (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). Para que isto ocorra é preciso respeitar as diferentes abordagens, mas considerar a Psicologia de maneira integrada. E, para tanto, é fundamental tentar compreender as origens e as implicações da existência desta disciplina. “Não resta dúvida que a emergência histórica de cada uma das ciências humanas se deu por ocasião de um problema, de uma exigência, de um obstáculo de ordem teórica e prática; certamente foram necessárias as novas normas que a sociedade industrial impôs aos indivíduos para que, lentamente, durante o século XIX, a psicologia se constituísse como ciência; não há dúvida também que foram necessárias as ameaças que desde a Revolução pesaram sobre os equilíbrios sociais, e sobre aquele particularmente que havia instaurado a burguesia, para que aparecesse uma reflexão de tipo sociológica.” (FOUCAULT, 2002, p. 476) 1.2.1 O Objeto de Estudo da Ciência Psicológica Para que existisse um interesse em conhecer cientificamente “o psicológico” eram necessárias a existência e a consciência da individualidade e subjetividade humana. Apesar de parecer-nos óbvio e “natural” a consciência e a existência de nossa subjetividade privatizada nos dias atuais, não foi sempre assim. Antropólogos e historiadores mostraram em suas pesquisas que essas formasde pensarmos e nos sentirmos não são universais. Nossa experiência privada com emoções, sentimentos e tomadas de decisões só se desenvolveu, se aprofundou e de difundiu em uma sociedade com determinadas características que permitiram: 1) uma experiência muito clara da subjetividade privatizada e, 2) a experiência da crise desta subjetividade (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). Mas, que características sociais foram essas? 1.2.2 Condições Socioculturais para o Surgimento da Psicologia como Ciência 1.2.2.1 A Experiência da Subjetividade Privatizada Ao longo do século XIX, o sentimento de identidade individual se fortalece. A transição de hierarquia feudal para a sociedade de classes burguesa favorece a adoção de uma nova www.educapsico.com.br 6 perspectiva na qual o tradicionalismo perde terreno para a nova ordem social emergente, agora urbana. O nome/sobrenome deixa de ser garantia de existência de patrimônio transmitido passando a ter cunho de posse do pequeno comerciante e das novas famílias. Ao longo de 1900, a circulação do correio contribuiu para a propagação e acúmulo de símbolos do eu e sinais de posses individuais. Neste período, até os animais de estimação ganham nomes (CORBIN, 1991). Aos poucos, contemplar a própria imagem deixa de ser um privilégio. O olhar para si permite a organização de uma nova identidade cultural. E, o que antes, entre os camponeses, era apenas percebido através do olhar do outro, com a difusão dos espelhos de corpo inteiro permite o afloramento da estética do belo (CORBIN, 1991). Outro fator importante para a afloração deste sentimento de identidade individual é a difusão social do retrato como um esforço da personalidade para afirmar-se e tomar consciência de si mesma. “Adquirir e afixar sua própria imagem desarma a angústia; é demonstrar sua existência, registrar sua lembrança”. O burguês através do retrato, ao contrário da aristocracia que queria firmar sua “linhagem” vê no retrato sua tomada de posição, inauguração de seu êxito pessoal, uma vez que é familiarizado com o papel de pioneiro e herói. “O retrato com o seu poder inovador de reproduzir o desejo da imagem de si é convertido ao mesmo tempo em mercadoria e em instrumento de poder” (CORBIN, 1991, p. 425). A democratização do retrato se dará pela fotografia, que se tornará uma arte de alcance pelo homem do povo. A representação e posse de sua própria imagem democratizam o desejo do atestado social. A percepção da estética do belo, o gestual, a encenação e a utilização das mãos dão outras perspectivas à existência deste homem. A foto também renova a nostalgia, a partir dela se tem a possibilidade de rememorar parentes ausentes, antepassados desconhecidos ou momentos antigos. Consolida-se um processo de mudança de referência da memória familiar, uma vez que a posse de um símbolo que remete a um antepassado possibilita a valorização da percepção visual em detrimento da relação orgânica (CORBIN, 1991). A busca do reconhecimento social, de registrar a sua própria existência faz com que pessoas cometam até atrocidades em busca de um reconhecimento, uma notoriedade heroica. O movimento de individualização da multidão crescente que habita as cidades, junto ao neokantianismo3 que inspira os dirigentes e aos avanços tecnológicos, como a descoberta 3 Retomada aos princípios de Immanuel Kant, considerado o último grande filósofo dos princípios da era moderna. Da escola iluminista, sua obra mais conhecida é a Crítica da razão pura, de 1781, porém, no caso da citação, refere-se à influência kantiana a partir de sua filosofia moral. www.educapsico.com.br 7 por Pasteur da existência do micróbio no campo da biológica, são empregados ao campo social com a necessidade de controle social (CORBIN, 1991). Durante muito tempo, quando se queria verificar os antecedentes de uma pessoa, sua idoneidade, se fazia uso de um certificado de boa conduta obtido, num primeiro momento, através do relato de outras pessoas. Esta prática, o boato, incita o desvendamento da vida privada, porém, como ela é dependente da ética e da fidedignidade de quem relata, a busca pelas singularidades individuais se tornou necessária. Como provar sua identidade? (CORBIN, 1991). Como até meados de 1880 a identidade é baseada apenas na memória visual, a facilidade de usurpar é muito grande. A administração do Estado continua à mercê de descrições imprecisas, mostrando assim sua ineficácia. No final do século, com o avanço tecnológico e a utilização da fotografia, tal impasse foi superado (CORBIN, 1991). Com o surgimento e a divulgação das marcas individuais, como as impressões digitais (descobertas pelos chineses e utilizadas em grande escala pela polícia europeia no início do século XX), somados a outros dados descritivos, como nome, sobrenome, data e local de nascimento, filiação, descrição e foto do indivíduo criou-se a carta de identidade antropométrica, que era uma documentação de porte obrigatório para criminosos, comerciantes e industriais estrangeiros, nômades e itinerantes. Essa nova ameaça de violação sobre o segredo da vida privada gerou polêmicas e grandes discordâncias entre os diversos grupos da sociedade. O desenvolvimento ético (noção de liberdade, individualidade, subjetividade, privacidade etc.) e a aceitação da necessidade de autonomia entre os indivíduos foram delineando e limitando as relações entre os, agora, indivíduos. Não se pode perder de vista que a noção de indivíduo, individualidade, privacidade etc., foram desenvolvidas durante a nova ordem social capitalista proveniente após a revolução burguesa. O desejo de decifrar a personalidade que se oculta e de intrometer-se na intimidade dos outros é responsável pela ascensão no voyeurismo do fim do século XIX (CORBIN, 1991). O século XIX, erudito, irá romper com o primado da alma. O ideal de alma-guia e do princípio vital da alma é abandonado. Há uma tentativa de unificar os campos da Medicina e da Fisiologia. O foco, agora, se dá no campo fisiológico e moral, ao vínculo entre vida orgânica, vida social e atividade mental. A gênese do quarto individual cheio de símbolos transforma-se no templo da vida privada, prova a autonomia. A intimidade, no campo, começa a se delimitar por meio de cortinas, partições e biombos que sinalizavam a privacidade. Em torno de 1900, com a difusão dos sanitários e, num segundo momento, os banheiros, os corpos nus estão livres de maiores intromissões (CORBIN, 1991). www.educapsico.com.br 8 No século XX, esta visão de homem privilegia os anseios do corpo. O acentuamento do narcisismo é marcado por esta busca do prazer físico (CORBIN, 1991). A vida privada também sofre progressos com as novas formas de higienização. A nova classe ascendente quer se diferenciar do proletariado, e os novos métodos de purificação sinalizam e contribuem para a nova condição de desejo sexual e repulsão. Porém, os cuidados com o olhar para si, principalmente a masturbação, criaram uma preocupação e a normatização desta nova prática. A relação entre água e esterilidade era muito difundida, todavia o progresso vai se firmando numa relação vertical, da grande burguesia às classes inferiores, embora se trate ainda de uma higiene fragmentada – se tratando de apenas algumas partes do corpo, como rosto, mãos etc. (CORBIN, 1991). A população rural, acostumada a banhos nos rios, fica à margem desta cultura, porém, apenas até meados da Primeira Guerra Mundial. Somente com a massificação das duchas e chuveiros, por volta do iníciodo século XX, é que a revolução higiênica ocorre realmente (CORBIN, 1991). Dentre as normas do público versus privado, tem-se a distinção do dentro e fora: o uso de camisolas cabia apenas ao aposento, e ninguém senão o amante poderia ver uma mulher com tal traje. O uso de cabelos soltos também só poderia ocorrer privadamente. No caso dos homens, havia também restrições em relação à vestimenta (CORBIN, 1991). Nas condutas privadas, a sofisticação das lingeries valoriza a nudez, a mulher já tem possibilidade de se vestir sozinha, causando mais nuances em suas manobras amorosas (CORBIN, 1991). Dentre os espaços privados surge também o toalete, que prepara a aparição da cena pública: perfumes, pinturas, cores, sedosidades, rendas que fazem parte do universo feminino, em oposição às vestimentas sóbrias dos homens, reservando a este o status de laboral. O homem do século XIX apenas se orgulhava de seus pêlos, haja vista a quantidade de modelos de bigode que eram difundidos nesta época (CORBIN, 1991). Enquanto tais costumes são difundidos pouco a pouco, da cidade para o campo, tem- se na mesma época a gênese da difusão das gravuras de moda. A grande existência de costureiras, de vendas por correspondência e outras formas mercantis aceleram esta difusão. A visão sobre os jovens começa um processo de modificação que desemboca na concepção moderna de adolescência (CORBIN, 1991). No ambiente de trabalho, era costume distinguir a ocupação do operário devido à vestimenta. A partir de 1860, o operário, nos feriados, utiliza os mesmos trajes da burguesia como forma de se mesclar a multidão, fazendo com que o repouso dominical se revista de um novo significado: mostrar-se sensível à moral da limpeza! (CORBIN, 1991). www.educapsico.com.br 9 Estas normas: do bem vestir, da higienização, da vestimenta remeter ao status socioeconômico, bem como do capitalismo emergente conduzem às práticas públicas e apontam para um novo hábito: o das compras (CORBIN, 1991). Em contrapartida, o pudor e a vergonha fazem com que seja instaurada a quebra do ritmo dos impulsos, como se fosse, assim, possível estancar as emoções a partir deste pensamento. Nesta tentativa de descorporificação tem-se a alusão a moças com faces de anjo, grandemente influenciada pelos pensamentos neoplatônicos. Marcando também esta época, tem-se a exaltação da virgindade e a ascensão do lirismo da castidade (CORBIN, 1991). A partir de 1850, com influência católica, a antologia angelical relativa à época romântica se propaga durante este “século em que se afirma o primado da palavra masculina, é através da retórica do corpo, da elevação do olhar e do fervor do gesto que se opera o discurso feminino” (CORBIN, 1991, p. 451). O pudor dos conventos abrange os lares: realizar o toalete na presença de outras pessoas, despir-se antes de deitar, práticas sexuais no quarto familiar tornaram-se práticas vergonhosas. Há a proliferação de quartos e leitos individuais, a instauração de internatos masculinos. A masturbação é vista de modo negativo. É nesta época que se passa a acreditar que os bebês nasciam dentro de couves e, gradativamente, a idade para o casamento vai aumentando (CORBIN, 1991). Por outro lado, em uma época em que se dá a elevação do indivíduo, em que se propicia a individualidade, tais medidas de contenção às práticas “solitárias” e às descobertas de novas possibilidades de prazer e satisfação seriam pouco eficazes e seriam o contrapeso a tamanhas medidas reguladoras e moralistas (CORBIN, 1991). Durante este período de regulamentação da vida, instaurou-se a divisão do dia em três partes de oito horas, na qual uma deveria ser dedicada ao sono, outra às atividades de estudo e de trabalho, e a terceira às práticas de lazer, à prática de esportes. O uso de diários era estimulado como forma de disciplinar a interiorização, porém esta busca retrospectiva do eu faz com que o diário, além de comportar angústias e arrependimentos, vislumbre aspirações e exercita o imaginário na construção de si mesmo (CORBIN, 1991). A literatura da época exarcebava a intimidade, propiciando a banalização das práticas introspectivas. As possibilidades do imaginário após 1830 foram ampliadas. Os idealismos sensoriais perdem terreno aos idealismos fabulosos em que se dá livre curso à imaginação, www.educapsico.com.br 10 remetendo a cenários exóticos, a aventuras em terras longínquas, despontando o que Flaubert4 chama de tentação da vida sonhada e não vivida (CORBIN, 1991). Nas primeiras décadas do século XIX, o estado onírico se torna objeto de estudo de filósofos: o estado noturno da alma. Várias vertentes de pensamento se formaram, uns filósofos acreditavam que a alma também dormia, outros que ela velava o sono, bem como tinha também aqueles que acreditavam que ela repousava. Para os românticos, o sono equivale à alma, a um estado de ressurreição. Durante muito tempo a explicação da influência do mundo físico sobre o mundo moral explicava cientificamente os mecanismos oníricos. Estudiosos franceses, durante 1845 a 1860, acreditavam que os sonhos se tratavam de mecanismos de “regressão e dissolução de formas superiores de psiquismo, ficando relegado à loucura, à patologia, com foco no sonambulismo, hipnotismo e outros estados imprecisos nos limiares de sono” (CORBIN, 1991). Em 1855, com a publicação de Moreau de Tours, intitulada Sobre a identidade do estado de sonho e a loucura, inaugura-se uma ciência do sonho, que regerá os estudos do sonho até a introdução da Psicanálise. Segundo Jean Bousquet, somente a partir de 1780 os homens começaram a sonhar com coisas estranhas, bizarras e incompreensíveis, que constituem a trama do onirismo contemporâneo. A atividade noturna acompanha os anseios e conflitos diurnos, desta forma, não é raro o relato de sonhos com grande teor sexual em um momento em que germina a Psicanálise (CORBIN, 1991). O conteúdo dos sonhos, segundo Bousquet, até o final do antigo Regime – Idade Média – consistia em imagem do éden, com referência a paraíso e inferno. Progressivamente, as imagens de éden dão lugar também a imagens de jardins e paisagens, as imagens infernais dão lugar aos subterrâneos das cidades, assim como os sonhos de angústia que apontam aos delírios estudados pela Psiquiatria (CORBIN, 1991). Os atos involuntários dos sonhos e os episódios de desdobramento da personalidade se convergem em meados de 1850. A estes são somados os episódios bizarros dos estudos contemporâneos sobre sonho. Este percurso é objeto de estudo da hipótese antifreudiana da historicidade do sonho (CORBIN, 1991). O final do século XIX, num cenário de aumento do número de pessoas agnósticas e de pensadores livres, é marcado por novos eventos da vida espiritual, ilustrando a moda espiritualista emergente. Novos hábitos são incorporados à nova família burguesa, que agora 4 Gustave Flaubert foi um importante autor realista francês, escreveu, em reação ao Romantismo do século XIX, Madame Bovary, livro que contesta os valores da burguesia. Flaubert criticava os valores burgueses e se dizia um estudioso da estupidez humana. www.educapsico.com.br 11 vela seus mortos e começa um processo de dimorfismo sexual, marcado pela conceituação da adolescência, juventude (CORBIN, 1991). O século XIX é a soma de dois períodos diferentes. Num deles, a sensibilidade barroca promove a exaltação da dor, grande apelo às iconografias e à literatura com forte influência neolamartiniana5, que exalta o sofrimento limítrofe ao sadismo(um grande exemplo é a massificação, neste período, da imagem de Jesus Cristo apontando o dedo para o seu tórax exposto); e o outro, por volta de 1850, em que há a distensão. Os temas da iconografia processualmente se transformam em formas de culto mais plástico, sinalizando uma nova fonte de emoção individual, o culto doméstico. A prece e o culto ensinado de mãe para os filhos aproximam ambos (CORBIN, 1991). No início de 1860, começa a se delinear uma nova religião com a Reforma Protestante6, com dogmas estreitos e moralizantes, vinculada ao capitalismo, que pregava a disciplina cotidiana em detrimento aos impulsos (CORBIN, 1991) As condutas de ternura se difundem e são aprofundadas, origina-se uma forma de interação entre homem e animal marcada pela dependência afetiva (CORBIN, 1991). Essas experiências construíram a noção de subjetividade privada, tal como a conhecemos hoje, e também as formas de pensamento da sociedade mercantil em fase de desenvolvimento nos séculos XVIII e XIX: a ideologia Liberal Iluminista e o Romantismo. De acordo com a ideologia Liberal, que embasou a Revolução Francesa, os homens são iguais em capacidades e devem ser iguais em direitos; sendo todos livres. Mas, para que esta liberdade exista e não se torne um caos, é preciso que todos sejam solidários uns com os outros. O Romantismo reconhece a diferença entre os homens e defende a liberdade de ser diferente, sendo necessário buscar uma união entre as diferenças por meio de intensos sentimentos (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). A importância da compreensão dos ideais iluministas e românticos se dá na busca de reduzir os inconvenientes da liberdade defendida por eles, que criaram condições para a instalação e aceitação de um sistema de docilização e domesticação dos indivíduos. Este sistema envolvia a elaboração e a aplicação de técnicas científicas de controle social e individual, chamado de Regime Disciplinar (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). O Regime Disciplinar impôs padrões fortes à conduta, à imaginação, aos sentimentos, aos desejos e às emoções individuais, o que contribuiu para reações de dissimular e 5 Influenciada pela poesia de Alphonse de Lamartine, autor e expoente romântico francês. 6 Reforma Protestante refere-se ao nome da revolução existente na França da época, em cada país o nome e a nova ordem religiosa foi peculiar, com outras e específicas denominações. Tais revoluções marcavam o fim da supremacia católica que, dentre outras coisas, condenava como pecado o acúmulo de dinheiro. www.educapsico.com.br 12 esconder-se, além de sentimentos de mal-estar e de suspeitas dos homens em relação a si mesmos (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). 1.2.2.2 A Crise da Subjetividade Privatizada As condições sociais propiciaram a experiência da subjetividade privatizada e os ideais iluministas e românticos a afirmaram como algo inquestionável. Entretanto, o Regime Disciplinar levou os homens do século XIX a descobrirem que a liberdade e as diferenças são, em grande medida, ilusões. Os interesses particulares desencadearam conflitos, levando também ao questionamento da crença na possibilidade da fraternidade (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). Interesses antagônicos levaram os operários a se organizarem em sindicatos para reivindicarem seus direitos e, para combater estes movimentos, pôr ordem na vida social e defender os interesses dos produtores de uma nação contra as outras, cresceram o Estado, a burocracia, as grandes indústrias e o consumo de massa. Os homens passaram a perceberem-se menos únicos e menos diferentes dos demais, constatando que não eram tão livres e singulares quanto imaginavam (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). Assim, surgem necessidades individuais de autoconhecimento (do porquê agimos de determinada maneira), ao mesmo tempo em que surge para o Estado a necessidade de recorrer a práticas de previsão e controle do comportamento: de como lidar com sujeitos individuais, educá-los de forma eficaz, treiná-los e selecioná-los para o trabalho. Ao Estado interessa também saber como é possível padronizar os indivíduos segundo uma disciplina, colocando-os a serviço da ordem social (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). Assim, o Estado, com seu Regime Disciplinar, exigiu a produção de conhecimentos psicológicos com a finalidade de tornar mais eficazes suas formas de controle e os homens e suas subjetividades submetidas a estes controles e influenciadas pelos ideais liberais e românticos sentiram-se atraídos pelos estudos psicológicos (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). Estão, então, dadas as condições para que, ao final do século XIX, fossem elaborados projetos de Psicologia como ciência independente e para o surgimento e a tentativa de definição do papel do psicólogo como profissional nas áreas da saúde, educação e trabalho (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). 1.2.3. A influência de diferentes saberes sobre a construção da Psicologia Tendo entendido as condições socioculturais para o surgimento da Psicologia, podemos avançar mais um passo na compreensão da construção da psicologia como ciência independente, estudando suas influências filosóficas. Ou seja, o que nos interessa agora é www.educapsico.com.br 13 saber o que se passava entre os cientistas e filósofos do século XIX que influenciaram seu aparecimento (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). Isto porque foram os diferentes paradigmas que estes cientistas e filósofos desenvolveram que constituíram a Psicologia tal como é, com suas diferentes abordagens. Ao longo da história da Psicologia, desenvolveram-se diferentes escolas de pensamento, sendo cada qual um protesto efetivo contra o que a precedia. Na Psicologia contemporânea, identifica-se a influência das escolas antigas, embora nenhuma versão de escola de pensamento possa ser considerada uma versão completa do fato científico. Não se pode perder de vista que tais escolas de pensamento são estágios temporários, porém, indispensáveis ao desenvolvimento da psicologia (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Muitas ideias científicas tiveram que se desenvolver dentro da ciência antes que a Psicologia pudesse existir, como a proposição de que a explicação de um evento deve ser procurada dentro do mesmo sistema em que o evento ocorreu, que a observação é imprescindível para o alcance do saber científico e que o homem é uma parte da natureza e não o centro dela (MARX; HILLIX, 1976). 1.2.3.1. Influências Filosóficas sobre a Psicologia O século XVII na Europa foi marcado pelo “fascínio pela máquina”, as pessoas estavam deslumbradas pela máquina, que era considerada como auxiliar à ciência. O relógio era considerado a mãe das máquinas. A filosofia que alimentaria a Psicologia mais adiante era do mecanicismo, a imagem do universo como uma grande máquina: “todos os processos naturais são mecanicamente determinados e poderiam ser explicados pelas leis da física” – filosofia natural (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998 p. 34). Galileu e Newton eram os grandes expoentes filosóficos, e o pensamento da época condizia com a ideia de que o universo em sua perfeição era causa e efeito de Deus e sua grande máquina, e, a partir do conhecimento das leis do universo, era possível prever como ele iria se comportar futuramente (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Teóricos como o físico inglês Robert Boyle, o astrônomo alemão Johannes Kepler e o filósofo francês René Descartes compartilhavam este mesmo pensamento e consideravam o universo como um grande relógio: organizado, previsível, observável e mensurável. De acordo com eles, a harmonia e a ordem do universo poderiam ser explicadasem termos de regularidades, assim como os relógios (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Quando visto como um relógio, o universo funciona sem nenhuma interferência exterior. A metáfora do relógio sobressai à ideia de determinismo. O reducionismo consistia no método de análise que foi propagado nesta nova ciência; o funcionamento da máquina www.educapsico.com.br 14 poderia ser compreendido por meio da análise e redução dos seus componentes básicos, assim como também era possível estudar fenômenos físicos a partir dos átomos ou moléculas (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Assim, entre os séculos XVII e XIX, o funcionamento do relógio abriu caminho para o pensamento do ser humano como uma máquina. “As pessoas tornaram-se máquinas, o mundo moderno foi dominado pela perspectiva científica e todos os aspectos da vida passaram a ficar sujeitos a leis mecânicas” (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998 p. 36). René Descartes (1596-1650), em sua tentativa de resolver o problema da dualidade mente-corpo, trouxe grande progresso à Psicologia. Desde a época de Platão, a grande maioria dos pensadores assumiu a posição dualista: a mente e o corpo tinham naturezas diferentes. Segundo Descartes, a mente e o corpo interagiam no organismo humano (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Uma mudança relacionada a essa dualidade foi a nova condição existente proposta por Descartes, que enfocou a condição dual física/psicologia, o que passou a considerar não mais o estudo das almas, mas sim o estudo da mente e suas operações. Como resultado, os métodos de pesquisa abandonaram a posição metafísica e adotaram a observação objetiva (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Por considerar o corpo como um sistema mecânico, uma máquina, Descartes teorizou o conceito da undulatio reflexa, que se trata de um movimento não supervisionado nem determinado pela vontade de se mover. Graças a esta proposição, muitos o consideram como o teórico da teoria da ação-reflexa (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Descartes sugeriu que a mente dá origem a duas espécies de ideias: as ideias derivadas e as ideias inatas. As ideias derivadas são fruto das experiências sensoriais e as inatas independeriam da experiência sensorial, embora tais ideias pudessem ser manifestadas a partir de experiências apropriadas. Descartes identificou: o eu, Deus, os axiomas geométricos, a perfeição e o infinito, como exemplos de ideias inatas (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). A conceituação de ideia inata culmina na teoria nativista da percepção e na escola da psicologia da Gestalt. Assim como também promoveu discordâncias entre empiristas e associacionistas, como Helmholtz e Wundt (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). As grandes contribuições cartesianas são: o conceito mecânico do corpo, a concepção de ação reflexa, a teoria da interação mente-corpo, a localização das funções mentais no cérebro e a doutrina das ideias inatas (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). As ideias de Descartes foram fundamentais para o desenvolvimento da ciência moderna. O pensamento positivista do século XIX que toma conta de toda a ideologia www.educapsico.com.br 15 científica foi proveniente do filósofo francês Auguste Comte, que empreendia um levantamento sistemático de todo o conhecimento produzido. Segundo o positivismo, o fenômeno deve ser baseado exclusivamente na objetividade dos fatos observáveis e indiscutíveis, sendo que o que é especulativo, o que não se mensura e passa a ser inferencial ou metafísico é rejeitado como ilusório (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Os ideais materialistas no campo da Filosofia acreditavam que todas as coisas podiam ser descritas em termos físicos e compreendidas à luz das propriedades físicas da matéria. E os empiristas estavam voltados para o modelo como a mente adquire conhecimento. Todo conhecimento era, desta forma, derivado da experiência sensorial (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Neste período, a ideia inatista do conceito de mente afirmada por Descartes passa à concepção empirista de mente. Segundo o modelo empirista, a mente se desenvolve por meio do acúmulo progressivo de experiências sensoriais (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Os principais empiristas britânicos são: George Berkeley, John Locke, David Hume, David Hartley, James Mill e John Stuart Mill. A partir das ideias dos empiristas e associacionistas britânicos, o conhecimento passa a ser adquirido por intermédio da experiência (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). John Locke (1632-1704) estudou a aprendizagem ou como a mente adquire conhecimento. Ele nega o inatismo e, por conseguinte, a proposição cartesiana. Segundo Locke, o ser humano ao nascer não possui nenhuma forma de conhecimento. A ideia de Deus seria nos ensinada por adultos durante a infância, e o fato da impossibilidade de podermos nos lembrar da época em que tivemos consciência desta aprendizagem faria com que acreditássemos possuir alguma ideia a priori. O conhecimento era adquirido por meio da experiência, e todo conhecimento tem base empírica (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Outros nomes, como George Berkeley (1685-1753), sustentavam que todo conhecimento era uma função da pessoa que percebe ou passa pela experiência. Posição esta que foi mais tarde chamada de mentalismo, para denotar a ênfase em fenômenos puramente mentais. De acordo com a sua tese: sendo que tudo o que experienciamos é percebido, não podemos dar certeza à natureza física dos objetivos. Contamos apenas com a percepção que temos deles. Berkeley utilizou a teoria da associação para explicar o nosso conhecimento dos objetos do mundo real; esse conhecimento é uma composição de ideias simples unidas por associação, as ideias complexas são construídas associadas a ideias simples. Berkeley foi quem explicou pela primeira vez um fenômeno psicológico: o da percepção da profundidade, por termos de associação de percepções (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). www.educapsico.com.br 16 David Hume (1711-1776) avançou no desenvolvimento da teoria associacionista a partir das ideias de Berkeley e Locke. Para Hume, a mente só é observável por meio da percepção e se trata de um fluxo de ideias, lembranças e sensações. Hume criou uma distinção entre impressões e ideias: as impressões seriam os elementos básicos da vida mental com a terminologia parecida com a utilizada hoje em dia; e as ideias são as experiências mentais que temos na ausência de objetos estimulantes, o equivalente a ideias hoje em dia seria a imagem (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Hume propôs as leis da associação: semelhança ou similaridade e contiguidade no tempo e no espaço. Quanto mais semelhantes e contíguas forem as ideias, mais depressa elas se associam (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). David Hartley (1705-1757) explicou processos psicológicos em termos mecânicos e tentou também explicar os processos fisiológicos a partir do referencial mecanicista. Hartley foi o primeiro a aplicar a doutrina da associação para explicar todos os tipos de atividade mental. Sua teoria das vibrações7 foi um desenvolvimento das ideias newtonianas, que afirmavam que os impulsos do mundo físico têm natureza vibratória. Hartley empregou esta formulação para explicar as operações do cérebro e do sistema nervoso (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). James Mill (1773-1836) propôs que a mente era uma entidade passiva que sofre a ação de estímulos externos; desta forma, a pessoa responde a esses estímulos de modo automático e é incapaz de agir com espontaneidade. Para Mill, a mente não tem função criativa porque a associação é um processo passivo8 (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). John Stuart Mill (1806-1873), por outro lado, acreditava que a mente tinha um papel ativo na associaçãode ideias, diferentemente das ideias atomicistas e mecanicistas do seu pai, James Mill, e denominou sua abordagem associacionista de química mental9 (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). 1.2.3.2. Influências Fisiológicas e o Nascimento da Psicologia Era o ano de 1795. O astrônomo inglês Nevil Maskelyne advertiu seu assistente ao perceber que o tempo que uma estrela demorava para percorrer determinado percurso era 7 Os nervos, sólidos – em negação à ideia de ocos, que Descartes postulava – transmitem impulsos de uma parte a outra do corpo. Tais vibrações provocam vibrações de menor intensidade no cérebro, que “[...] Hartley considerava os equivalentes fisiológicos das ideias” (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998, p. 51). 8 Ou seja, sensações ocorridas juntas numa certa ordem se reproduzem mecanicamente como ideias, e essas ideias acontecem na mesma ordem de suas sensações correspondentes. 9 Sob influência dos pesquisadores da área de química que, naquela época, estavam demonstrando o conceito de síntese. Segundo a química mental de Mill, “[...] as ideias complexas surgem de combinações de ideias simples e possuem características não encontradas nesses elementos” (SCHULTZ; SCHULTZ,1998, p. 54). www.educapsico.com.br 17 um intervalo maior do que o anotado por seu assistente. As advertências não geraram resultado e as diferenças continuaram a ocorrer. Com o passar do tempo, a distância entre as anotações aumentaram e, no final de alguns meses, a diferença entre as duas anotações era de oito décimos de segundo (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Vinte anos se passaram e, desta vez, um astrônomo alemão chamado Friedrick Wilhelm Bessel, muito interessado em erros de medida, suspeitou que tais erros de medidas fossem resultado de diferenças individuais, “[...] fatores pessoais que não se tem controle” (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998, p. 56). Ele testou sua hipótese e ela estava correta: então, haveria desacordos entre até mesmo os astrônomos mais experientes. Tal descoberta trouxe duas conclusões inexoráveis: a primeira é a de que deveria se levar em conta a natureza do observador humano, porque suas características pessoais influenciariam os relatos observados; e a segunda, referindo-se ao papel do observador, que também deveria ser relevante (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Assim, os cientistas passaram a investigar os mecanismos fisiológicos que nos possibilitam receber informações perceptuais e sensoriais do mundo que nos cerca (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). A pesquisa fisiológica que orientou o desenvolvimento da Psicologia como ciência foi proveniente do final do século XIX, derivada principalmente da produção acadêmica de Johannes Muller e sua teoria das energias específicas dos nervos10, e, mais precisamente, pela suada descoberta de áreas específicas do cérebro e o desenvolvimento de métodos de pesquisa. Porém, é instrutivo considerar os antecedentes (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Duas abordagens experimentais para o estudo do cérebro surgiram em meados do século XIX: o método clínico, desenvolvido em 1861, por Paul Broca, cirurgião de um hospício em Paris, que descobriu o centro da fala, mais tarde denominada área de Broca. E o uso de estímulos elétricos, introduzido em 1870, por Gustav Fritsch e Eduard Hitzig, que consistia em explorar o córtex cerebral com correntes elétricas fracas. Tais pesquisadores descobriram que a estimulação de determinadas áreas causava respostas motoras (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Como já foi dito, havia até então duas teorias referentes ao modo de transmissão da atividade nervosa no corpo: a teoria dos tubos nervosos, de Descartes, e a teoria das vibrações de Hartley (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). 10 Que nesta teoria propõe que a excitação de um nervo sempre produz uma sensação característica, uma vez que cada nervo sensorial possui energia específica. www.educapsico.com.br 18 No final do século XVIII, Luigi Galvani, um pesquisador italiano, propôs que a natureza dos impulsos nervosos fosse elétrica, ideia que foi desenvolvida por Giovani Aldini, seu sobrinho. As pesquisas se desenvolveram com tanta rapidez que, no final do século XIX, a natureza elétrica dos impulsos nervosos já era aceita como fato (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Nesta época já existiam técnicas para investigar o corpo. Essas técnicas começam a ser utilizadas para explicar os processos psicológicos superiores. A Psicologia Experimental estava pronta para começar. Quatro cientistas são os responsáveis pelas primeiras aplicações do método experimental ao objeto de estudo da Psicologia: Hermann von Helmholtz, Ernst Weber, Gustav Theodor Fechner e Wilhelm Wundt, que concordavam que as únicas forças ativas no organismo eram as forças físico-químicas. Foi dessa maneira que o cerne do estudo da fisiologia se desenvolveu no século XIX: o materialismo, o empirismo, a experimentação e a medição (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Helmholtz (1821-1894) contribuiu para a Psicologia com suas pesquisas e descobertas acerca da velocidade do impulso nervoso (experimento referente à estimulação do nervo motor e ao músculo correspondente da perna de uma rã), e sobre a visão e a audição (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Ernest Weber (1795-1878) possuía grande interesse e contribuições provenientes da fisiologia dos órgãos sensoriais. Weber estudou novos campos sensoriais como sensações cutâneas e musculares, suas grandes pesquisas tratavam do limiar de dois pontos de discriminação da pele e a diferença apenas perceptível detectada pelos músculos (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Gustav Theodor Fechner (1801-1887) demonstrou que a quantidade das sensações está ligada ao quanto se é estimulado. Assim, o autor propôs duas opções de se medir as sensações, sendo que uma delas é medindo se há ou não o estímulo e a outra é medir a intensidade do estímulo a partir do qual o sujeito relata a primeira sensação, denominado de limiar absoluto da sensibilidade (o ponto referente à intensidade do estímulo, abaixo do qual nenhuma sensação é relatada e acima do qual uma pessoa tem uma sensação) (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). As contribuições empiristas na história da Psicologia se deram a partir da ênfase empirista nos processos sensoriais, da análise da experiência consciente em seus elementos, da síntese de elementos para formar experiências mentais mais complexas por meio do processo da associação e da concentração nos processos conscientes. Os cientistas alemães, no mesmo período, estavam descrevendo como os sentidos funcionam. Na Alemanha, a Fisiologia Experimental estava firmemente estabelecida, já que a Alemanha, ao www.educapsico.com.br 19 contrário da França e da Inglaterra, acolheu a Biologia, que se utilizava da descrição e da categorização no estudo de objetos. O espírito positivista possibilitou que houvesse uma convergência destas duas linhas de pensamento; só faltava alguém que fundasse esta nova ciência emergente (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Wilhelm Wundt foi o fundador da Psicologia como disciplina acadêmica formal. Wundt, a primeira pessoa que foi considerada psicólogo, e ainda criou o primeiro laboratório, editou a primeira revista e deu início à Psicologia Experimental como ciência (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Por que Wundt e não Fechner? Segundo Boring (1950, p. 194 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998, p. 72),: “Quando todas as ideias centrais já nasceram, algum promotor se apossa delas e as organiza, acrescentando tudo o mais que lhe pareça essencial, publica-as e divulga-as, insiste nelas e, emresumo, funda uma escola”. 1.3. Pioneiros da Psicologia Científica11 1.3.1 Wundt O cientista alemão, Wilhelm Wundt (1832-1920) é considerado o pioneiro na formulação de um projeto de Psicologia Científica e criador dos primeiros institutos de pesquisa e formação profissional. Ele considerava que a Psicologia estava localizada no limiar entre as ciências da natureza e da cultura, sendo assim, sua obra compreende desde a Psicologia Experimental até a social (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). O ato de criar o primeiro laboratório de Psicologia necessitava que houvesse elevado grau de conhecimento em Fisiologia e em filosofias contemporâneas, além da capacidade de relacionar essas disciplinas de maneira eficaz. Para realizar seu objetivo de estabelecer uma nova ciência, Wundt se posicionou em rejeição ao passado não científico e eliminou a relação intelectual entre a nova Psicologia Científica e a velha filosofia mental (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Ao postular que o objeto de estudo da Psicologia consistia na experiência consciente e ainda que a Psicologia era uma ciência baseada na experiência, Wundt pôde evitar 11 Fonte: Apostila História da Psicologia. Elaborado por Fernanda Augustini Pezzato e Telma Luiza de Azevedo. Texto adaptado por Domitila Shizue Kawakami Gonzaga e Tauane Paula Gehm. www.educapsico.com.br 20 discussões a respeito da natureza da alma imortal e seu relacionamento com o corpo mortal. Para Wundt, a Psicologia não tratava desse assunto (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Assim, o objeto de estudo dessa nova Psicologia é a experiência imediata dos sujeitos; esta experiência é o que o sujeito vive antes mesmo de se pensar sobre ela, antes de poder falar sobre e para ela e tampouco de conhecê-la (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). Mas Wundt não apenas se propunha a descrever a experiência humana, queria ir além. Para tanto, ele: 1) utilizava o método experimental para pesquisar os processos elementares da vida mental, especialmente físicos e fisiológicos. Fazia pesquisas em laboratórios analisando elementos da experiência imediata e as formas mais simples de combinação destes elementos (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). 2) analisava fenômenos culturais, como linguagem, mitos e religião. Segundo Wundt, esses fenômenos se manifestariam por meio de processos mentais superiores, como o pensamento e a imaginação, e assim poderiam ser estudados. Para estudá-los, não se utilizava do método experimental, mas de métodos comparativos da Antropologia e da Filologia (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). O objetivo das pesquisas para o autor era investigar como se originavam as coisas, uma vez que para ele a experiência imediata ultrapassava as coisas desorganizadas e também as combinações mecânicas dos elementos. De forma que a experiência imediata poderia ser considerada uma síntese criativa, na qual a subjetividade do processo poderia ser reconhecida como vontade e capacidade de criação (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). Wundt considerava que existiam dois tipos de causalidade, a física e a psíquica. Esta última, a vida mental, seria independente dos princípios que explicam o comportamento dos corpos físicos e fisiológicos. Ele não conseguia entender como no homem essas duas causalidades se ligavam e, por isso, acabou criando duas psicologias: a Fisiológica Experimental, na qual a causalidade psíquica é reconhecida, mas não é enfocada em profundidade, e a Psicologia Social ou “dos povos”, na qual a preocupação era a de estudar os processos criativos, nos quais a causalidade psíquica aparece com mais força (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). A grande dificuldade de Wundt residiu no momento de juntar os dois enfoques (fisiológico e cultural), de compreender o homem como uma unidade psicofísica. Em decorrência disso, seus discípulos, em sua maioria, desistiram de dar continuidade às suas pesquisas e procuraram por soluções menos complicadas, apesar de menos ricas (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). www.educapsico.com.br 21 1.3.2 Titchener Titchener (1867-1927) foi um dos mais famosos alunos de Wundt e um dos principais responsáveis pela divulgação de sua obra nos EUA. Titchener tentou colocar a Psicologia no campo apenas das ciências naturais, redefinindo o objeto de estudo (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). Para tanto, Titchener alterou o sistema de Wundt, propondo sua própria abordagem, à qual deu o nome de estruturalismo e afirmou que era um continuador dos trabalhos de Wundt. Contudo, os dois sistemas eram diferentes: descartou a ênfase wundtiana na apercepção e se concentrou nos elementos que compõem a estrutura da consciência, analisar a consciência em partes separadas e, assim, determinar sua estrutura (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Objeto de estudo: a experiência dependente de um sujeito, que é concebido como um organismo, como um sistema nervoso, ou seja, a experiência consciente. Assim, Titchener dizia ir além da experiência imediata do sujeito, buscando elucidá-la por meio de justificativas fisiológicas. Ele não negava a existência da mente, mas a destituía de autonomia, uma vez que dependia sempre e se explicava apenas em termos do sistema nervoso (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). Titchener descreve as experiências em termos psicológicos, mas as explica com termos emprestados das ciências naturais. Por um lado, a Psicologia perde sua independência como ciência (depende da fisiologia), mas, por outro, diminuem os problemas com a unidade psicofísica. Titchener defendia o chamado paralelismo psicofísico, em que os atos mentais ocorreriam lado a lado com os processos psicofisiológicos. Por andarem lado a lado, seria possível fazer uma ciência psicológica, utilizando-se apenas de métodos das ciências naturais: observação e experimentação (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). As três finalidades da Psicologia, segundo Titchener são: 1) reduzir os processos conscientes aos seus componentes mais simples ou básicos; 2) determinar as leis mediante as quais esses elementos se associam; 3) conectar esses elementos às suas condições fisiológicas (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Os métodos utilizados por Titchener foram, portanto, de auto-observação ou introspecção. Sujeitos experimentais eram treinados para observar detalhadamente e descrever objetivamente suas experiências subjetivas em situações controladas de laboratório (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). Ao comparar esses dois autores podemos observar que Wundt procura ser fiel à concepção de Psicologia como ciência intermediária, mas acabou encontrando grandes problemas metodológicos. Entretanto, a riqueza de sua teoria é inspiradora para os pesquisadores do futuro. Já Titchener, pelo contrário, ao subordinar a Psicologia às ciências www.educapsico.com.br 22 naturais, simplificou as questões metodológicas. Mas, por outro lado, tal simplificação reduziu o alcance e o interesse de suas propostas (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). 1.3.3 Dewey, Angel e Carr: A Psicologia Funcional A Psicologia Funcional de J. Dewey (1859-1952), J. Angel (1869-1949) e H. A. Carr (1873-1954) surgiu nos EUA e também se situava no campo das ciências naturais, mas se opunha à proposta titcheriana (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). O objeto de estudo desses autores eram os processos, as operações e os atos psíquicos, e, por considerarem a Psicologia como pertencentes à área das ciências biológicas, acreditavam que essas condições eram formas de interação adaptativa (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). A Psicologia Funcionalista foi baseada nos princípiosda biologia evolutiva, segundo a qual os seres vivos sobrevivem se têm suas características comportamentais adequadas à adaptação no ambiente. Dentre essas características comportamentais estariam também os fenômenos psíquicos, que seriam instrumentos de adaptação e se expressariam nos comportamentos adaptados (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). Os métodos de pesquisa utilizados por eles eram diversos; não excluíam a auto- observação, apesar de não aprovarem a introspecção experimental titcheriana, por considerá- la muito artificial. Consideravam também a introspecção pouco confiável, uma vez que é impossível conferir se uma auto-observação foi bem feita, tornando difícil alcançar um acordo fidedigno. Como alternativa, os funcionalistas que consideravam que os processos e as operações mentais se expressavam em comportamentos, propuseram o estudo indireto da mente a partir dos comportamentos observáveis (FIGUEIREDO; de SANTI, 2000). A teoria da evolução fez surgir a possibilidade de uma relação entre o desenvolvimento psicológico entre os homens e os animais inferiores. Antes de Darwin publicar sua teoria, não havia motivo para que os cientistas se interessassem pelos processos psicológicos dos animais, já que estes eram considerados “[...] desprovidos de mente, autômatos sem alma” (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998, p. 138). Se o homem tinha evoluído a partir de animais primitivos, existiriam então semelhanças no funcionamento psicológico dos homens e dos animais. O estudo do comportamento animal podia agora ser considerado vital para uma compreensão do comportamento humano. Outro fator relevante era a diferença individual, a evolução não poderia ocorrer se toda geração fosse idêntica à dos seus pais, portanto, a variação era um importante pilar da teoria evolutiva (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). www.educapsico.com.br 23 A precoce e vigorosa oposição ao estruturalismo fez com que o funcionalismo se tornasse parte da principal corrente da Psicologia americana. Como resultado, a pesquisa sobre o comportamento animal, que não fazia parte da abordagem estruturalista, tornou-se elemento fundamental da Psicologia (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). A Psicologia Funcionalista também comporta estudos de bebês, crianças e pessoas com necessidades especiais. E a agregação de métodos como a pesquisa fisiológica, os testes psicológicos, os questionários e as descrições objetivas do comportamento eram fontes de informação para a Psicologia Funcionalista em oposição ao estruturalismo, que repudiava tais métodos (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). As diferenças individuais foram muito estudadas por Francis Galton, que aplicou efetivamente o princípio da evolução à Psicologia com seu trabalho sobre os problemas da herança psicológica e das diferenças individuais na capacidade humana (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). 1.3.3.1 A Herança do Funcionalismo: A Psicologia Aplicada Americana A Psicologia Americana sofreu influência principalmente das ideias de Darwin e Galton, em comparação com o trabalho de Wundt. Apesar de Wundt ter treinado boa parte da primeira geração de psicólogos dos Estados Unidos segundo seus referenciais teóricos, poucos elementos da teoria psicológica wundtiana foram utilizados por tais psicólogos (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). A cultura americana, por possuir uma orientação pragmática, tinha interesse em uma Psicologia utilitária. Os psicólogos aplicados conduziram sua Psicologia para as escolas, fábricas, agências de publicidade, tribunais, clínicas de orientação infantil e centros de saúde mental, e a tornaram funcional em termos de objeto de estudo e utilização prática. Passados cerca de mais de 20 anos do início da Psicologia na Europa, os psicólogos americanos assumiram a liderança incontestável do campo. A psicologia era matéria obrigatória na graduação e tinha um número crescente de alunos entre os cursos universitários (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). A Psicologia fez estreia nos Estados Unidos, em 1893, na Feira Mundial de Chicago, na qual psicólogos organizaram exibições de aparelhos de pesquisa e um laboratório de testes em que, mediante o pagamento de uma taxa, os visitantes podiam ter suas capacidades medidas. Em 1904, uma exibição mais ampla foi realizada na Exposição de Compras da Louisiana, este evento contou com a presença de psicólogos renomados, como E. B. Titchener, Cornell, Lloyd Morgan, Pierre Janet, G. Stanley Hall, e um novo Ph.D. chamado John B. Watson (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). www.educapsico.com.br 24 Os Estados Unidos propiciaram que a Psicologia se firmasse enquanto disciplina acadêmica e se popularizasse na vida cotidiana das pessoas (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). A Psicologia Aplicada americana teve cinco expoentes, sendo eles os que seguem. Granville Stanley Hall recebeu o primeiro grau de doutor em Psicologia da América, além de ser o primeiro aluno do primeiro ano do primeiro laboratório de Psicologia. Fundou a primeira revista americana de Psicologia. Conhecido por psicólogo genético, por causa de seus estudos sobre o desenvolvimento humano e animal, e pelos seus estudos relacionados à adaptação. Tem seu mérito ao modificar a natureza da psicologia americana ao aplicá-la à criança e à sala de aula (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). James McKeen Cattell aplicava a Psicologia à medição de aptidões mentais. Estudou os processos psicológicos em termos de sua utilidade para o organismo. Cattel influenciou a Psicologia principalmente com seu trabalho aplicado sobre as diferenças individuais e com o desenvolvimento e uso de testes psicológicos para medir essas diferenças (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Lightner Witmer, em 1896, substituiu Cattell na Universidade da Pensilvânia, foi ele quem abriu a primeira clínica de psicologia e fundou o que ele denominou de Psicologia Clínica. Foi um dos primeiros da abordagem funcionalista que acreditava que era dever da nova ciência ajudar as pessoas a resolverem seus problemas (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). É importante ressaltar que a Psicologia Clínica praticada por Witmer não era a mesma Psicologia Clínica conhecida por nós hoje em dia. O seu trabalho estava voltado para a avaliação e o tratamento de problemas comportamentais e de aprendizagem de crianças em idade escolar (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Walter Dill Scott aplicou esta nova ciência junto à publicidade e aos negócios. Dedicou- se aos estudos referentes ao mercado e ao ambiente de trabalho, bem como motivação e administração de pessoal. Scott descrevia como influenciar as pessoas, inclusive consumidores, públicos de palestras e trabalhadores (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Hugo Munsterberg, considerado o fundador da Psicologia Aplicada, foi professor da Universidade de Harvard, presidente da Associação Psicológica Americana e da Associação Filosófica Americana. Era um dos psicólogos mais populares de sua época, escreveu vários artigos em revistas populares e outros tantos livros. Munsterberg era requisitado como consultor por empresas e líderes governamentais, tendo entre suas amizades ricos, famosos, chefes de estados e intelectuais. E como particularidade também foi acusado de ser espião. Perto de sua morte foi alvo de escárnio e caricaturas em jornais. Quando morreu não houve elogios fúnebres para o homem que um dia fora considerado um gigante da Psicologia americana. Munsterberg foi muito influente na promoção de várias especialidades da www.educapsico.com.br 25 Psicologia Aplicada, influenciando a Psicologia Forense, a Psicologia Clínica e a Psicologia Organizacional (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). O desenvolvimento em direção ao funcionalismoera menos revolucionário que evolutivo, em decorrência disso, a passagem do estruturalismo ao funcionalismo não foi tão perceptível à época em que ocorreu (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). 1.4. Estruturação da psicologia no século XX: escolas psicológicas 1.4.1. Escola comportamental 1.4.1.1. Precedentes do Comportamentalismo de Watson Edward Lee Thorndike é um dos mais importantes pesquisadores no desenvolvimento da Psicologia animal, elaborou uma teoria objetiva e mecanicista da aprendizagem baseada no comportamento manifesto. Tinha como convicção que a Psicologia teria que estudar o comportamento e não elementos mentais ou experiências conscientes de qualquer espécie, fomentando a tendência a uma maior objetividade provinda dos funcionalistas. Thorndike interpretou a aprendizagem em termos de relações entre o estímulo e a resposta, e negou o subjetivismo, apesar de fazer referência em alguns estudos à consciência e aos processos mentais (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Thorndike desenvolveu a lei do efeito em 1898, na qual “[...] todo ato que, numa dada situação, produz satisfação fica associada com a sua situação, de maneira que, quando a situação se repete, o ato tem maior probabilidade de se repetir do que antes. Inversamente, todo ato que, numa dada situação produz desconforto, se torna dissociado dessa situação, de maneira que, quando a situação repete, o ato tem menos probabilidade de se repetir do que antes” (THORNDIKE, 1905 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998, p. 222). Outra lei formulada por ele foi a lei do exercício ou lei do uso e desuso, a qual estabelece que apenas a repetição de uma resposta em uma situação pode fortalecer essa resposta (THORNDIKE, 1905 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Também criou uma abordagem experimental em associação e deu o nome de conexionismo. Suas teorias tiveram amplo uso na educação, sua obra anunciou a ascensão da teoria da aprendizagem e foi um marco no associacionismo. A objetividade com que conduziu seus experimentos foi uma relevante contribuição ao comportamentalismo (THORNDIKE, 1905 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). www.educapsico.com.br 26 Thorndike projetou a caixa-problema, na qual o animal posto sob privação de comida na caixa deveria aprender a operar um trinco para escapar e, do lado de fora, lhe era oferecido alimento. Na primeira tentativa, o comportamento de abrir a caixa ocorria ao acaso e, subsequentemente, os comportamentos aleatórios apareciam com menor frequência, até se extinguirem. Depois disso, o animal se comportava em conformidade com o aprendido tão logo era colocado na caixa. Suas técnicas consistiam em registrar o número de comportamentos que não levavam o animal a sair da caixa e percebia que esses comportamentos diminuíam de frequência. Outra técnica consistia em registrar o tempo, a latência de tempo entre o animal ser posto na caixa e a resolução do problema para sua saída diminuíam com o passar das tentativas (THORNDIKE, 1905 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Ivan Petrovitch Pavlov trabalhou em três principais temas de pesquisa: o primeira diz respeito à função dos nervos cardíacos e o segundo era relacionado às glândulas digestivas primárias. Sua pesquisa sobre digestão lhe deu reconhecimento mundial em 1904, com o Prêmio Nobel. Sua terceira área de pesquisa é a que fez com que Pavlov ocupasse lugar de destaque na história da Psicologia, que consistia no estudo dos centros nervosos superiores do cérebro. Nas pesquisas referentes a este tópico realizou a técnica do condicionamento, sua maior realização científica (THORNDIKE, 1905 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). A teoria sobre reflexos condicionados12 surgiu ao acaso, quando Pavlov estava fazendo experimentos sobre as glândulas digestivas dos cães. Este experimento verificava a função da saliva, que era secretada involuntariamente sempre que se colocava comida na boca do cão. Pavlov observou que, em alguns casos, a saliva era secretada sem que fosse colocada comida na boca do animal. Os cães salivavam antes de ser oferecida a comida, ao ver o alimentador ou até mesmo ao ouvir os passos do tratador. Esses reflexos psíquicos, como nomeou Pavlov, eram eliciados no animal por estímulos que não o original (alimento). Segundo Pavlov, tal fenômeno acontecia porque outros estímulos eram associados ao ato de alimentar-se. Com o tempo, a salivação passou de uma resposta reflexa natural do sistema digestivo, a qual foi nomeada de reflexo não condicionado, para uma resposta que deve ser aprendida devido a uma associação entre a visão da comida e sua ingestão, ou, segundo Pavlov, reflexo condicionado (THORNDIKE, 1905 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). 12 Nos Estados Unidos, em 1904, Edwin Burket Twitmyer apresentou em sua dissertação de doutorado um comportamento semelhante aos reflexos condicionados ao estudar o reflexo patelar. Foi um caso de descoberta simultânea. www.educapsico.com.br 27 Pavlov descobriu que qualquer estímulo poderia ser associado à ingestão de alimento, desde que não produzissem raiva ou medo: sinetas, luzes, campainha, entre outros (THORNDIKE, 1905 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Um experimento típico de condicionamento consistia em apresentar um estímulo condicionado (luz) e imediatamente apresentando o alimento, o estímulo não condicionado. Após algumas apresentações, o cão salivava ao ser apresentada a luz. A consequência alimento é necessária para que a aprendizagem ocorra. O animal estaria então condicionado a responder ao estímulo condicionado; a luz torna-se um estímulo condicionado ao ser associada à comida (THORNDIKE, 1905 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Pavlov também desenvolveu experimentos referentes à extinção de resposta, generalização, recuperação espontânea, discriminação e condicionamento (THORNDIKE, 1905 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). 1.4.1.2. Hans, o Cavalo Inteligente: História do cavalo mais famoso no campo da psicologia Hans, o cavalo prodígio, era muito famoso por volta de 1900, na Europa e nos Estados Unidos. Era certamente o quadrúpede mais inteligente que viveu. Na época, compuseram canções, escreveram peças teatrais sobre ele, além de livros e revistas. Era utilizado para vender produtos, enfim uma verdadeira celebridade (THORNDIKE, 1905 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998,). O cavalo somava, subtraía, usava frações e decimais, lia, soletrava, fornecia as horas, diferenciava as cores, identificava objetos e dava fenomenais demonstrações de memória. Ele respondia às questões virando a cabeça em direção ao objeto ou dando batidas com a pata numa determinada quantidade de vezes. Hans também pensava sozinho quando lhe perguntavam algo complexo, como, por exemplo, a quantidade de vértices de um círculo, ele balançava a cabeça de um lado para o outro dizendo que não havia nenhum (FERNALD, 1984 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998, p. 218) Seu dono era Wilhelm von Osten, um professor aposentado de matemática de Berlim, que passara vários anos ensinando Hans o que considerava o fundamento da inteligência humana. O senhor Wilhelm tinha finalidades científicas, queria provar que Darwin estava certo ao sugerir que os humanos e os animais têm processos e capacidades mentais semelhantes. E acreditava que os animais parecem menos inteligentes do que são devido à educação insuficiente (FERNALD, 1984 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). www.educapsico.com.br 28 Von Oslen não tirava proveito financeiro de Hans; nunca foram cobrados ingressos para as demonstrações que ocorriam no jardim de seu prédio e nuncase beneficiou da publicidade resultante (FERNALD, 1984 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Um comitê formado por um gerente de circo, um veterinário, treinadores de cavalos, um aristocrata, o diretor do zoológico de Berlim e o psicólogo Carl Stumpf, da Universidade de Berlim, foi criado para investigar o fenômeno e a ocorrência de fraudes. Em 1904, depois de uma extensa investigação, o comitê chegou à conclusão de que Hans não recebia sinais intencionais do proprietário, não havia fraudes nem enganos. Porém, Stumpf não ficou completamente satisfeito; ele estava interessado em saber como o cavalo respondia corretamente a um variado número de questões e nomeou um de seus alunos de pós- graduação, Oskar Pfungst, que “[...] abordou a tarefa com o meticuloso cuidado de psicólogo experimental” (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998, p. 217). Pfungst verificou, primeiramente, se Hans respondia corretamente sem a presença de seu dono. Pfungst formou dois grupos, um composto por pessoas que sabiam as respostas às perguntas feitas ao cavalo, e o outro de pessoas que não sabiam. Como resultado, Pfungst descobriu que Hans só sabia responder corretamente quando a pessoa que perguntava sabia a resposta. Hans recebia de algum modo informações das pessoas que lhe perguntavam, mesmo quando estas não eram conhecidas (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Após uma série de experimentos, Pfungst concluiu que Hans fora condicionado inintencionalmente a começar a bater a pata sempre que percebesse o mínimo movimento descendente da cabeça de Von Oslen. Quando o número correto de batidas era alcançado, Von Oslen levantava ligeiramente a cabeça e, desta forma, o cavalo parava. Pfungst demonstrou que até as pessoas que nunca haviam se aproximado de um cavalo faziam os mesmos movimentos de cabeça ligeiramente perceptíveis quando falavam com o cavalo (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Assim, Hans não tinha um vasto conhecimento. Ele apenas aprendeu a começar a bater a pata ou a inclinar a cabeça na direção do objeto, sempre que quem lhe fizesse a pergunta movesse a cabeça em determinado sentido, e também foi condicionado a parar de bater em resposta assim que a pessoa emitisse outro tipo de movimento (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Durante o treinamento, Von Oslen oferecia cenoura ou barras de açúcar todas as vezes em que o cavalo respondia corretamente; com o passar do treinamento, Van Oslen não precisava reforçar o comportamento do animal toda vez que o cavalo respondia corretamente e promovia a recompensa tanto parcial como intermitentemente (o que foi explicitado posteriormente por Skinner) (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). www.educapsico.com.br 29 Esse caso ilustrou o valor que pode ter a abordagem experimental para se estudar o comportamento animal e tornou os psicólogos descrentes quanto às afirmações de altos níveis de inteligência em animais; em contrapartida, ilustrou o entendimento de que os animais são capazes de aprender e podem ser condicionados a mudar seu comportamento (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). O relatório de Hans foi revisto por Watson e os resultados ali tratados influenciaram a promoção de uma Psicologia que tivesse como objeto o comportamento e não a consciência. Menos de 40 anos depois de sua fundação com Wundt, esta nova ciência, a Psicologia, já tinha sofrido drásticas revisões (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Os psicólogos não tinham um consenso em relação à introspecção que permeia as discussões da existência de elementos da mente e ainda sobre a necessidade de a Psicologia permanecer uma ciência pura (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). 1.4.1.3. O Comportamentalismo de Watson Em 1913, John B. Watson protagoniza um movimento de ruptura com as duas correntes vigentes no período: a funcionalista e a estruturalista. A esse novo movimento nomeou comportamentalismo (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Objeto de estudo: como Watson desejava uma Psicologia objetiva, delimitou como objeto os comportamentos observáveis, passíveis de descrição objetiva em termos de estímulo e resposta, sendo um ramo experimental puramente objetivo das ciências naturais. Tinha como interesse a aplicação em seres humanos de procedimentos e princípios experimentais da Psicologia animal. A Psicologia deveria prever e controlar o comportamento (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Para ser uma ciência objetiva, cabia à Psicologia não aceitar as concepções e terminologias mentalistas e, assim, tratar dos conceitos comportamentais de estímulo e resposta. Palavras como alma, mente e consciência13, herança da filosofia mentalista não tinham sentido para esta nova ciência (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Porém, as ideias que favoreceram o surgimento do comportamentalismo vinham sendo desenvolvidas na Psicologia e na Biologia há vários anos, uma vez que já vimos que fundar não é o mesmo que originar. Grande parte das novidades é novas combinações de antigos elementos, e o grau de novidade é uma questão de interpretação (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). 13 Segundo Watson, a consciência “[...] nunca foi sentida, nunca foi tocada, cheirada, provada ou movida. É uma simples suposição tão improvável quanto o velho conceito de mente” (WATSON; McDOUGALL, 1929, p. 14 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998, p. 210). www.educapsico.com.br 30 Três grandes tendências influenciaram a obra watsoniana: a tradição filosófica do objetivismo e do mecanicismo; a Psicologia animal; a Psicologia Funcional, com maior impacto e influência das duas últimas tendências (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). A busca por maior objetividade é proveniente desde as ideias de Descartes, com suas tentativas de explicar o funcionamento do corpo humano por meio do mecanicismo, e no iluminismo de Auguste Comte, fundador do positivismo14 (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Segundo Watson (1929 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998, p. 212), “O comportamentalismo é uma consequência direta de estudos sobre o comportamento animal feitos no decorrer da primeira década do século XX”. O método proposto por Watson era composto: 1- pela observação, com ou sem o uso de instrumentos; 2 – pelos métodos de teste; 3 – pelos métodos do relato verbal; 4 – pelo método do reflexo condicionado. A base necessária para todos os métodos é a observação. Para Watson, os testes mediam as respostas emitidas pelo sujeito mediante determinado estímulo, e não mensuravam nem a inteligência nem a personalidade, como determinadas teorias propunham (SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). Como Watson era contrário à introspecção por esta não ser passível de mensuração, declarou que as reações verbais, por serem objetivamente observáveis, são de extrema importância, assim como os demais comportamentos motores. “Dizer é fazer, isto é comportar-se” (WATSON, 1930 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998, p. 247). Porém, Watson, admitindo a inexatidão do relato verbal, propôs seu uso em ocasiões verificáveis, como, por exemplo, quando houvesse mudança de tons (WATSON, 1914 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998, p. 247). Seguindo a tradição atomicista e mecanicista dos empiristas britânicos, Watson acreditava que todos os comportamentos poderiam ser decompostos em unidades de estímulo-resposta (E–R). E era necessário que o comportamentalismo diferenciasse as respostas inatas das respostas aprendidas, e descobrisse leis gerais de aprendizagem para estas últimas (WATSON, 1914 apud SCHULTZ; SCHULTZ, 1998). A partir de 1925, Watson recusou o conceito de instinto, que definia como respostas socialmente condicionadas. Num segundo momento, refutou a existência de capacidades, temperamentos ou talentos herdados de qualquer espécie. Sua posição tendia a um
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