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Pensando como um advogado, de Frederick Schauer. Trechos selecionados (pp. 24-29; 157-167 da edição original). O livro foi traduzido para o português e será publicado pela Editoria Marcial Pons do Brasil. Favor não circular ou citar. 2.3 A generalidade das regras Embora a aplicação das regras jurídicas ao mundo seja caracterizada pelos casos fáceis, a adjudicação é dominada, pelas razões já examinadas, pelos casos difíceis. Esses casos difíceis, porém, aparecem de formas variadas. Há o caso na fronteira nebulosa de uma regra, o qual Stewart v. Dutra Barge Company é um exemplo típico. Um tipo bem diferente de caso difícil, entretanto, parece mais com o cenário do limite de velocidade do que o caso do Super Scoop. Quando você está argumentando para o policial que não estava de fato dirigindo de forma pouco segura, você não está afirmando que a regra não é clara nessa aplicação, como estaria fazendo caso tivesse sido parado por não ter seus faróis acesos depois de escurecer, dirigindo após o sol se pôr, ou se tivesse sido parado em Montana na vigência do regime do limite de velocidade “razoável e prudente”. Inversamente, a tentativa típica de um motorista para escapar de uma multa envolve o reconhecimento de que a regra, de acordo com seus termos literais, seria plenamente aplicável a ele – ele estava realmente a 70 em uma zona de 55 quilômetros por hora – contudo, ele alega que a aplicação dos termos da regra a esse caso não serviria às justificações subjacentes à regra. Ele admite que estava indo a mais de 55, mas ele certamente não estava dirigindo de forma pouco segura. Ou pelo menos é o que alega o motorista. Tais conflitos entre o resultado que os termos de uma regra indicam e o resultado indicado pela razão de ser dessa mesma regra são ubíquos. A Sétima Emenda à Constituição prevê o direito a um julgamento por júri em qualquer caso civil de common law em um tribunal federal sempre que o valor da causa seja “vinte dólares,” por exemplo, e é óbvio que o propósito por trás do mínimo de vinte dólares era limitar os julgamentos por júri a casos envolvendo somas substanciais. Mas, embora vinte dólares fosse uma quantia substancial em 1791, quando a Sétima Emenda foi adotada, dificilmente poderia sê-lo hoje em dia. O mesmo pode ser dito sobre a exigência, prevista no Artigo II da Constituição, de que o Presidente tenha alcançado a “Idade de trinta e cinco Anos,” criada quando a expectativa de vida ao nascer para um homem (ninguém àquela época contemplara que mulheres poderiam sequer votar, quanto mais ser Presidente) era abaixo de quarenta anos, comparada com a atual expectativa de vida, para homens e mulheres americanos, de mais de setenta e cinco anos. 1 Mas, assim como o efeito da inflação sobre o limiar de vinte dólares para julgamentos por júri, o fato de que o significado literal da regra de “idade de trinta e cinco anos” falha em servir o propósito subjacente dessa mesma regra não muda o significado da regra em si, um significado que se mantém amarrado ao significado dos termos nas quais a regra foi escrita. Se você tiver apenas trinta e dois anos de idade, você não pode ser Presidente, e beira o fantástico imaginar circunstâncias nas quais isso não deveria ser verdade, independentemente da 1 Muitas crianças morreram em uma idade precoce pela doença no século XVIII, por isso os números brutos podem ser um pouco enganadores, porque a maioria dos homens adultos de fato viveram até seus anos cinquenta e sessenta. Mas mesmo para aqueles que chegaram à idade adulta, as diferenças entre 1787 e agora ainda são substanciais. Pensando como um advogado, de Frederick Schauer. Trechos selecionados (pp. 24-29; 157-167 da edição original). O livro foi traduzido para o português e será publicado pela Editoria Marcial Pons do Brasil. Favor não circular ou citar. razão de ser por trás da regra. 2 O mesmo ocorre com uma exigência mais controversa, também prevista no Artigo II, de que o presidente seja um “cidadão nato”. Essa regra, que impediu Secretários de Estado como Madeline Albright e Henry Kissinger e governadores como Arnold Schwarzenegger e Jennifer Granholm de seriamente contemplarem uma candidatura à Presidência, é quase certamente uma personificação pobre da justificação subjacente original de se garantir lealdade e comprometimento com o país. Ainda assim, os termos da regra prevalecem. Embora os termos de uma regra triunfem sobre o seu propósito nessas e em várias outras instâncias, não é sempre assim. Um exemplo frequentemente citado de propósito prevalecendo sobre o significado literal é o do caso United States v. Church of the Holy Trinity. 3 Neste caso, uma igreja havia sido processada por violar uma lei federal que proibia qualquer empregador americano de pagar a passagem, de um país estrangeiro para os Estados Unidos, de um empregado estrangeiro com a finalidade de obtenção de emprego. A igreja ré havia feito exatamente isso. Pagamento havia sido parte de um processo de contratação de um novo pastor, e, assim a igreja violara literalmente da lei. Contudo, a Suprema Corte sustentou que a lei não deveria ser aplicada literalmente nesse caso. A lei, justificou o Ministro Breyer, tinha por alvo os empregadores que estavam importando grandes quantidades de trabalho estrangeiro barato para dentro dos Estados Unidos. E, porque o pagamento da Igreja da travessia oceânica de seu novo pastor estava bem distante do que a Corte considerava ser o propósito do Congresso ao aprovar a lei, concluiu-se que o significado literal dos termos do estatuto deveria ceder à razão subjacente do estatuto. Como resultado, a igreja foi julgada inocente de violação da regra. Ao atingir essa conclusão, o Ministro Breyer se apoiou em um caso anterior na mesma direção, United States v. Kirby. 4 Em Kirby, o réu era um policial de Kentucky que havia sido condenado com base em uma lei federal que torna crime interferir na entrega de correspondências. E havia sido exatamente isso o que Kirby fizera. Ele havia inquestionavelmente interferido na entrega da correspondência, mas o fizera no processo de embarque de um barco à vapor para prender um carteiro chamado Ferris que tinha sido validamente indiciado por homicídio por um tribunal de Kentucky. Assim como em Church of the Holy Trinity vinte e quatro anos depois, a Suprema Corte em Kirby alegou que os termos literais da lei não deveriam ser aplicados quando, como no caso, a sua aplicação dificilmente serviria ao propósito subjacente da lei. Nós iremos examinar outros exemplos de tensão entre linguagem e propósito no Capítulo Oito, quando enfrentarmos questões de interpretação legal. Por ora, porém, esses poucos exemplos são suficientes para ilustrar uma característica importante das 2 Não está claro qual idade em 2008 seria equivalente a 35 em 1787. Em uma época em que é possível - em virtude da televisão, da Internet, dos avanços tecnológicos na publicação, e das viagens aéreas, por exemplo - para aprender muito mais muito antes do que era possível anteriormente, pode-se argumentar que o objetivo por trás da regra dos 35 anos seria servido por redução da idade mínima. Mas, se os autores da Constituição queriam garantir que o presidente fosse escolhido dentro do segmento mais velhos e experiente da população, então talvez a lógica subjacente iria aconselhar agora uma idade limite substancialmente maior do que 35. 3 143 U.S. 457 (1892). 4 74 U.S. (7 Wall.) 482 (1868). Pensando como um advogado, de Frederick Schauer. Trechos selecionados (pp. 24-29; 157-167 da edição original). O livro foi traduzido para o português e será publicado pela Editoria Marcial Pons do Brasil. Favor não circular ou citar. regras – sua generalidade. Em contrastecom comandos específicos – você leve para fora esse saco de lixo agora – regras não falam meramente a um indivíduo engajado em um ato num dado momento. Ao invés, regras tipicamente são endereçadas a várias pessoas envolvidas em múltiplos atos durante um período estendido de tempo. O limite de velocidade se aplica a todos os motoristas em todos os dias e sob quaisquer circunstâncias, assim como a regra promulgada pela Agência de Segurança Ocupacional e Saúde (OSHA) [Occupational Safety and Health Administration] exigindo o uso de proteção auditiva para trabalhadores se aplica a todas as fábricas de um certo tipo e a todos os empregados daquelas fábricas. Regras são caracterizadas por serem gerais exatamente nesse sentido, mas, como a maioria das generalizações – mesmo as que possuem um mínimo fundamento estatístico – elas podem não acertar o tempo todo. É uma boa generalização a de que o queijo suíço tem buracos, mas alguns deles não têm. E poucas pessoas iriam discordar da generalização de que é frio em Chicago em Janeiro, mas se conhece casos de dias de Janeiro quentes em Chicago. E o mesmo acontece com as generalizações que são parte das regras. Mas, precisamente porque regras são gerais, existe sempre um risco de que a generalização que a regra incorpora não será aplicável a algum caso particular. Mesmo que seja verdade na maioria dos casos que motoristas não deveriam dirigir a mais do que 55 quilômetros por hora, existirão alguns casos nos quais a generalização de que dirigir a mais de 55 é perigoso não será aplicável, e, quando essa eventualidade surgir, pode-se dizer que a regra é sobre-inclusiva. A regra inclui ou abrange situações que a justificação subjacente à regra não abarcaria, como nos casos de Kirby e Church of the Holy Trinity, assim como com o motorista dirigindo de forma segura à 70, e como no caso de uma ambulância que pode cair dentro do escopo literal da regra de “É proibido veículos no parque”. Em tais casos, o alcance da regra é mais amplo do que o alcance de sua justificação subjacente e, assim, nós podemos dizer que a regra é sobre-inclusiva. Noutros momentos, a generalização da regra será sub-inclusiva, falhando em atingir situações que a direta aplicação da justificação subjacente iria abranger. Se o propósito da regra “É proibido veículos no parque” é prevenir o barulho, então ela será sobre-inclusiva em relação aos silenciosos carros elétricos (que certamente são veículos), mas será sob-inclusiva em relação aos instrumentos musicais, comícios políticos e rádios portáteis de alto volume – todos dos quais são barulhentos, mas nenhum dos quais é um veículo. O mesmo acontece com a regra em questão no caso Kirby, pois podemos imaginar todos os tipos de impedimentos para um serviço postal confiável que não iriam contar como uma “obstrução” às correspondências. Um exemplo moderno tanto de sobre-, quanto de sub-inclusividade pode ser visto nos esforços de um número crescente de estados de proibir dirigir enquanto se fala no telefone celular.5 A justificação para essas leis, que aparentemente se sustenta nas evidências disponíveis, é de que pessoas que estão falando em seus telefones celulares ao volante prestam menos atenção à direção do que se não estivessem ao telefone, e que essa 5 Ver, por exemplo, Cal. Stat. Ch. 290 (2006), Cal. Vehicle Code § 23123 (2006); N.J. Stat. Ann. 39:4-97.3 (West 2004); N.Y. Vehicle & Traffic Law § 1225-c (Consol. Cum. Supp. 2004). Pensando como um advogado, de Frederick Schauer. Trechos selecionados (pp. 24-29; 157-167 da edição original). O livro foi traduzido para o português e será publicado pela Editoria Marcial Pons do Brasil. Favor não circular ou citar. prática é uma causa significativa de acidentes automobilísticos. Mas aqueles que se opuseram a tais leis dizem que elas são sobre-inclusivas em relação aos motoristas que estão falando ao telefone mas continuam prestando atenção. Portanto, os opositores da lei insistem que o alcance de uma regra “nada de telefone celular” é mais amplo do que a sua justificação “nada de distração”. Além disso, os críticos afirmam, as proibições propostas são sub-inclusivas em relação a outras fontes de distração ao volante, tais como comer ou ouvir a um empolgante evento esportivo no rádio. Essas objeções por vezes prevaleceram, às vezes não,6 mas é importante reconhecer a maneira pela qual, assim como ilustrado no exemplo relativamente incontroverso do limite de velocidade, ao menos algum grau de sobre- e sob-inclusividade é uma inevitável parte da tentativa de se reger o comportamento humano por meio de regras gerais. 7 O fato de que as regras podem produzir resultados ruins em casos particulares devido à sua intrínsieca generalidade foi noticiado por Aristóteles muito antes de existirem telefones celulares e muito antes da Suprema Corte ter decidido casos como Kirby e Church of the Holy Trinity. Ao explicar porque é necessário haver uma maneira de se evitar erras de sobre- e sob-inclusão, Aristóteles assinalou que “toda lei é universal”, e que “a lei considera o caso mais usual, se bem que não ignore a possibilidade de erro. E nem por isso tal modo de proceder deixa de ser correto, pois o erro não está na lei, nem no legislador, mas na natureza da própria coisa, já que os assuntos práticos são dessa espécie por natureza.8 A solução de Aristóteles para esse problema – equidade – irá ocupar parte de nossa atenção no Capítulo Seis. Por ora, é importante apenas que se entenda que regras são inevitavelmente gerais. Regras funcionam precisamente por causa de sua generalidade, e mesmo se fosse possível antecipar toda possível aplicação de uma regra e incorporar o resultado certo para toda aplicação à regra, tal regra seria complexa demais para fornecer o tipo de orientação que esperamos das regras. E, mesmo que estivéssemos dispostos a sacrificar a inteligibilidade e a orientação útil pela precisão, nós ainda seríamos incapazes de prever perfeitamente o futuro. Assim como não podemos culpar os autores originais das leis de patente por serem incapazes de antecipar, no início do século XVIII, que organismos vivos poderiam ser criados em laboratório,9 também devemos 6 Ver Note, The 411 on Cellular Phone Use: An Analysis of the Legislative Attempts to Regulate Cellular Phone Use By Drivers, 39 Suffolk U.L. Rev. 233 (2005); Note, Driving While Distracted: How Should Legislators Regulate Cell Phone Use Behind the Wheel, 28 J. Legis. 185 (2002). 7 Um exemplo ainda mais controverso vem dos esforços de algumas municipalidades de banir determinadas raças de cães – pit bulls, mais comumente – alegando que algumas delas tendem a ser mais agressivas e perigosas do que outras. Como a maioria dos pit bulls não é perigosa, entretanto, o banimento iria ser sobre-inclusiva, e como cachorros de outras raças podem ser perigosos, o banimento também seria sub- inclusivo. Em relação a isso, o banimento de pit bull é ligeiramente diferente das regras em geral, porque os oponentes do banimento de raças específicas tem tido considerável sucesso, muitas vezes pegando emprestado a linguagem dos direitos civis e recusando, por exemplo, o “racismo” [“breedism”] ou o “racismo canino”. Para uma discussão e análise mais ampla da controvérsia, ver Frederick Schauer, Profiles, Probabilities, and Stereotypes 55-78 (2003). 8 Aristóteles, Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores), p.96 9 Ver Diamond v. Chakrabarty, 447 U.S. 303 (1980). Pensando como um advogado, de Frederick Schauer. Trechos selecionados (pp. 24-29; 157-167 da edição original). O livro foi traduzido para o português e será publicado pela Editoria Marcial Pons do Brasil. Favor não circular ou citar. reconhecer que mesmo o maiscuidadoso dos legisladores não poderia possivelmente prever o que aconteceria no futuro, ou prever como nós iríamos querer lidar com aquele futuro quando chegássemos nele. É precisamente na inevitável generalidade das regras, portanto, que nós somos forçados a enfrentar a tensão entre o que a regra diz e o que poderia ser interpretado como o melhor a ser feito, uma tensão que permeia o uso de regras tanto no direito como fora dele. Quando vamos além dos casos fáceis, no entanto, a questão se torna mais complicada. Pois, nesse ponto, encontramos casos difíceis de duas variedades diferentes. Um tipo de caso fácil nasce da indeterminação lingüística. As palavras da lei não fornecem uma resposta determinada à disputa examinada pela corte, seja porque a linguagem é vaga, como é o caso de “proteção igual das leis”, “esforços razoáveis” ou “atraso indevido”, seja porque a linguagem, que é determinada para outras aplicações, é indeterminada quanto ao assunto em questão, como é o caso da relação entre bicicletas, carrinhos de bebê e skates e a regra que proíbe veículos no parque. Mas há outro tipo de caso difícil, que não depende em nada da indeterminação linguística. Trata-se do caso difícil que é difícil precisamente porque um resultado linguisticamente determinado – o monumento à guerra com um veículo, a obstrução do correio causada pela detenção legítima do carteiro em Kirby, o prazo perdido em Locke – é plausivelmente visto como um resultado legal que não é bom ou, pelo menos, não tão bom quanto outros resultados possíveis. Esses são casos difíceis, mas não porque a linguagem não oferece resposta. São difíceis precisamente porque a linguagem oferece uma resposta, mas a resposta que a linguagem dá parece ser a resposta errada. Como praticamente todos os casos de interpretação de lei que são litigados apresentam um desses dois tipos de dificuldade, será útil considerá-los separadamente. Olhemos primeiro para os casos que são difíceis em virtude da indeterminação linguística, e depois para aqueles que são difíceis em virtude de uma determinação linguística aparentemente errônea. 8.3 Quando o texto não fornece resposta Implícita no que foi dito sobre a interpretação de leis está a reiteração de uma tese central não apenas sobre a interpretação de leis, mas também sobre leis de maneira geral. Leis – a linguagem do próprio direito - são importantes não porque são evidência do que pensavam ou pretendiam os legisladores, mas por causa daquilo que são. Assim como Macbeth não é apenas evidência do que estava na cabeça de Shakespeare, e assim como a importância da Mona Lisa não deriva apenas do que ela nos diz a respeito de Leonardo da Vinci, uma lei é importante em si mesma. É um item jurídico primário – parte da substância do próprio direito – cujo status não depende do quanto é capaz de revelar sobre alguma outra coisa.10 10 Para uma visão contrária, ver Ronald Dworkin, Law’s Empire 42 (1986), afirmando que há uma regra “real”por trás da formulação de uma regra que podemos encontrar em lugares como o Código dos Estados Pensando como um advogado, de Frederick Schauer. Trechos selecionados (pp. 24-29; 157-167 da edição original). O livro foi traduzido para o português e será publicado pela Editoria Marcial Pons do Brasil. Favor não circular ou citar. Como uma lei é direito, e não apenas um indicador de onde é que podemos encontrar o direito, não surpreende que a sua linguagem tenha uma importância tão grande no raciocínio jurídico. O advogado que fala demais ou cedo demais sobre intenções e inferências e princípios mais amplos de justiça num caso envolvendo a interpretação de uma lei tende a ser censurado pelo juiz, que dirá “sim, mas o que é que a lei realmente diz, doutor?”. Como já vimos, a linguagem de uma lei pode não ser a única coisa a ser considerada num caso que envolve a aplicação de uma lei, e aquilo que a lei diz pode não ser a última palavra no assunto, mas ignorar que ela é a primeira palavra, o ponto de partida, é deixar de compreender algo muito importante acerca da natureza do direito. Embora as palavras de uma lei sejam quase sempre o ponto de partida, muitas vezes elas não fornecem uma resposta clara para uma questão particular. Às vezes, isso ocorre porque a lei usa palavras vagas, como “razoável”, “excessivo” ou “nas circunstâncias”, e, nesses casos, o juiz inevitavelmente deve olhar além da linguagem da lei. Em tais casos, é comum dizer que o juiz tem “discricionariedade”, embora o sentido preciso disso seja controvertido. De acordo com uma posição, aquela que Hart adotou quando ofereceu o exemplo dos veículos no parque, diante desse tipo de indeterminação lingüística o juiz age como se fosse um legislador, e pode levar em consideração toda espécie de consideração política [policy consideration] tipicamente usada na legislação para determinar como as indeterminações na lei deveriam tornar-se mais específicas e como uma disputa concreta deveria ser resolvida. Isso não significa que uma lei vaga não oferece nenhuma orientação. Embora a Lei Sherman tenha, na prática, autorizado os tribunais federais a criar um corpo de direito antitruste, tanto a linguagem da lei quanto a história legislativa que a acompanha deixavam claro que o objetivo do direito era oferecer práticas baseadas na colaboração, em vez de uma abordagem laissez faire inteiramente competitiva. Logo, embora os tribunais tivessem considerável liberdade para especificar os detalhes, esperava-se que fizessem isso com um objetivo particular em mente. É um tanto controvertida a relação entre o propósito da lei e a história legislativa – os registros daquilo que os legisladores explicitamente buscavam, tipicamente extraídos não da própria lei (o que explica por que essa história muitas vezes é chamada extrínseca), mas de relatórios de comitês, atas de audiências e debates legislativos. O debate sobre as ocasiões em que tais materiais deveriam ser usados é um debate vivo, e aqueles que defendem o uso desses materiais argumentam que as leis são projetadas para promover as intenções legislativas, de tal modo que qualquer evidência de tais intenções deveria ser utilizável, especialmente quando a linguagem oferece orientação insuficiente. Defensores do uso da história legislativa também argumentam que, em casos como os que estamos discutindo – casos em que a linguagem sozinha não fornece resposta –, seria Unidos [United States Code]. A teoria mais geral de Dworkin sobre a tomada de decisão judicial pode muito bem ser verdadeira, ou parcialmente verdadeira, mas a afirmação de que há um tipo de regra “real” que não é a regra que está nos códigos é mais misteriosa do que esclarecedora. Pensando como um advogado, de Frederick Schauer. Trechos selecionados (pp. 24-29; 157-167 da edição original). O livro foi traduzido para o português e será publicado pela Editoria Marcial Pons do Brasil. Favor não circular ou citar. tolo ignorar qualquer evidência disponível que pudesse ajudar na descoberta daquilo que o órgão legislativo gostaria que fosse feito precisamente nesse tipo de caso.11 Do outro lado do debate sobre o uso de evidências das reais intenções legislativas, aqueles que se opõem ao uso da história legislativa – às vezes chamados textualistas em virtude da sua relutância em ir além do texto legal – são céticos quanto ao valor que os registros legislativos têm como evidência. Muitas vezes os legisladores têm objetivos diferentes em mente, e não é tão claro, dizem, exatamente quem é que teve suas intenções registradas. Mais ainda, às vezes o material é inserido na história legislativa por algum legisladorapenas para fazer uma observação, capturar a atenção dos jornalistas ou agradar ao eleitor, mesmo que esse material não reflita em nada as intenções coletivas do órgão legislativo como um todo (assumindo-se que um corpo coletivo é capaz de ter uma intenção). Talvez o mais importante para os textualistas, no entanto, seja o fato de que apenas o texto foi de fato votado pelo órgão legislativo. Tratar a história legislativa, que não foi objeto de voto, como parte da legislação, dizem eles, é profundamente antidemocrático.12 Os debates sobre a permissibilidade (ou a necessidade) do recurso à intenção legislativa em casos de leis obscuras não devem ser confundidos com argumentos sobre o propósito de uma lei. São os legisladores (ou seus equivalentes) quem têm intenções, mas leis podem ter propósitos, e muitas vezes é possível determinar o propósito de uma lei simplesmente a partir das suas palavras.13 Às vezes, obviamente, a lei dirá qual é o seu propósito, um fenômeno descrito (e aplaudido) por Llewellyn como uma razão cantante, seu termo para uma lei que não apenas tem um propósito, mas que também o anuncia claramente.14 Mas, mesmo quando o propósito de uma lei não é afirmado explicitamente 11 A prática tradicional britânica exclui a consideração de registros de debates parlamentares reais, mesmo quando um tribunal estiver tentando discernir as intenções do parlamento. Essa prática era justificada em parte pela tese de que apenas a lei é dotada de autoridade, ver Black-Clawson International v. Papierwerke Waldhof-Aschaffenburg, [1975] A.C. 591, em parte porque registros de debates legislativos eram vistos como guias pouco confiáveis para as verdadeiras intenções, ver Davis v. Johnson, [1979] A.C. 264 (H.L.), e em parte por causa da preocupação com o fato de que o incentivo ao apelo a registros legislativos pouco acessíveis aumentaria o custo dos processos. Ver William Twining & David Miers, How to Do Things with Rules 291 (4th ed. 1999). A exclusão de materiais legislativos foi parcialmente relaxada em Pepper v. Hart, [1993] A.C. 593 (H.L.), mas a prática britânica permanece hoje substancialmente menos aberta ao uso de tais materiais do que a prática americana. 12 O textualista contemporâneo mais influente é o Ministro Scalia. Além de Scalia, A Matter of Interpretation, nota 8 supra, veja, por exemplo, Johnson v. United States, 529 U.S. 694, 715 (2000) (Scalia, J., voto vencido); Holloway v. United States, 526 U.S. 1, 19 (1999) (Scalia, J., voto vencido); Bank One Chicago v. Midwest Bank & Trust Co., 516 U.S. 264 (1996) (Scalia, J., pela maioria); Green v. Bock Laudry Machine Co., 490 U.S. 504, 527 (1989) (Scalia, J., pela maioria). Veja também Frank H. Easterbrook, Textualism and the Dead Hand, 66 Geo. Wash. L. Rev. 1119 (1998); Frank H. Easterbrook, Statutes’ Domains, 50 U. Chi. L. Rev. 533 (1983); Manning, The Absurdity Doctrine, nota 8 supra; John F. Manning, Textualism and the Equity of the Statute, 101 Colum. L. Rev. 1 (2001). 13 Ver Felix Frankfurter, Some Remarks on the Reading of Statutes, 47 Colum. L. Rev. 527 (1947); Max Radin, Statutory Interpretation, 43 Harv. L. Rev. 863 (1930). Ver também Richards v. United States, 369 U.S. 1, 9 (1962). 14 Karl Llewellen, The Common Law Tradition: Deciding Appeals 183 (1960). Ver também Karl N. Llewellyn, The Bramble Bush: On Our Law and Its Study 189 (1931). Llewellyn também via a razão Pensando como um advogado, de Frederick Schauer. Trechos selecionados (pp. 24-29; 157-167 da edição original). O livro foi traduzido para o português e será publicado pela Editoria Marcial Pons do Brasil. Favor não circular ou citar. no próprio texto da lei, muitas vezes é possível inferi-lo com confiança considerável a partir da linguagem da lei e nada mais. Uma regra que proíbe veículos, instrumentos musicais, rádios e autofalantes de um parque quase certamente seria uma regra cujo propósito era evitar o barulho. E, portanto, essa regra talvez fosse aplicada para proibir um aerofone musical sobre rodas, mas não uma bicicleta ou um carrinho de bebê. Mas uma regra proibindo veículos e fogueiras poderia ser entendida, apenas com base na conjunção dessas duas proibições, como tendo o propósito de atenuar a poluição, de tal modo que alguns casos excepcionais de veículos que não poluem, tais como skates e bicicletas, talvez fossem permitidos, enquanto casos excepcionais poluentes, tais como barcos e aviões controlados por controle remoto e movidos a combustível, talvez fossem proibidos. Os debates sobre a permissibilidade do uso de fontes suplementares a leis indeterminadas são extensos. Demos uma rápida olhada nas considerações políticas (policy), na intenção do legislador e no propósito da lei como formas alternativas de suplementação, e poderíamos certamente somar um sentido geral de justiça à lista de instrumentos que um juiz usar para decidir o que fazer e onde buscar respostas quando as palavras de uma lei não as fornecerem claramente. E, para alguns filósofos do direito, notoriamente para Ronald Dworkin, em tais casos o juiz deve tentar interpretar a lei de modo que ela se “encaixe” da melhor maneira possível a outras leis, com a jurisprudência publicada [reported cases], com a Constituição, com princípios jurídicos gerais, com princípios políticos e morais igualmente gerais e com todos os demais componentes da rede perfeitamente coesa que é o direito. 15 Mas, mesmo quando somamos essas perspectivas à lista, esse resumo serve apenas para dar uma ideia dos tipos de assuntos que tendem a aparecer quando leis não são claras, e dos tipos de fontes a que os juízes podem recorrer em tais casos. O ponto é apenas que, intencional ou acidentalmente, as leis muitas vezes são linguisticamente obscuras, e que, embora haja amplos debates sobre as fontes a que os juízes deveriam apelar em tais casos, não há debates sobre a necessidade de que os juízes apelem a algo, pois, em tais casos, olhar para a linguagem indeterminada de uma lei vaga ou ambígua não levará a qualquer resposta na ausência de algum tipo de suplementação. Antes de abandonar o tópico da lei indeterminada, pode ser valioso distinguir entre dois tipos de indeterminação. Um tipo é uma consequência de uma lei vaga16 ou cantante como uma virtude de opiniões judiciais assim como de leis. Karl N. Llewellyn, The Status of the Rule of Judicial Precedent, 14 U. Cinc. L. Rev. 203, 217 (1940). 15 Ronald Dworkin, Freedom’s Law: The Moral Reading of the American Constitution (1996); Ronald Dworkin, Law’s Empire (1986); Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously (1977). De fato, Dworkin insiste que os juízes buscam e devem buscam esse tipo de ajuste mesmo quando a linguagem da lei mais imediata parecer clara, mas isso continua a ser motivo de controvérsia acadêmica. Ver Frederick Schauer, The Limited Domain of the Law, 70 Va. L. Rev. 1909 (2004); Frederick Schauer, Constitutional Invocations, 65 Ford. L. Rev. 1295 (1997). 16 Uma lei que não é clara em relação a alguma aplicação às vezes é descrita na literatura jurídica como “ambígua”, mas essa não é a palavra certa para o fenômeno em questão. Uma palavra é ambígua quando pode ter dois (ou mais) sentidos bastante distintos, como ocorre quando não sabemos se a palavra “banco” se refere ao móvel que nos serve de assento ou ao lugar onde guardamos nosso dinheiro, ou se “nave” é um Pensando como um advogado, de Frederick Schauer. Trechos selecionados (pp. 24-29; 157-167 da edição original). O livro foi traduzido para o português e será publicado pela Editoria Marcial Pons do Brasil. Favor não circular ou citar. imprecisa que, sozinha, não fornece praticamente nenhumaresposta. Uma lei que determina que, em disputas sobre a guarda de crianças, devem ser promovidos os “melhores interesses da criança”, como determinam muitas leis estaduais sobre relações familiares, é uma lei em que a vagueza da norma reguladora requer um exercício de discricionariedade judicial, ou pelo menos algum recurso ao propósito, intenção, justiça, equidade ou a alguma outra coisa. E, em virtude da ampla vagueza da norma reguladora, esse recurso a algo além das palavras será necessário em praticamente toda e qualquer disputa. O mesmo ocorre com leis regulando produtos “de risco” ou animais “perigosos”. Podemos estar bem certos de que serras elétricas oferecem risco e de que cascavéis são perigosas, mas, para a maioria das aplicações possíveis, as palavras precisarão de suplementação em virtude da imprecisão linguística das palavras efetivamente usadas na lei. Noutros momentos, no entanto, palavras que parecem precisas, e palavras que são precisas para a maioria das aplicações, irão se tornar imprecisas no contexto de alguma aplicação particular. Hart assumia que “veículo” era um termo razoavelmente preciso, tal que, na maioria das aplicações, seria relativamente fácil concluir se se tratava ou não de veículos. Seria apenas diante de uma aplicação incomum – patins, bicicletas ou carrinhos de brinquedo – que a vagueza latente de qualquer termo – sua textura aberta17 – se revelaria. Assim, embora a aplicação da Lei de Fraudes (exigindo um documento escrito para que um contrato seja válido) a transações relativas a terra pareça bastante precisa, e embora ela seja de fato precisa para a maioria das aplicações, haveria menos clareza caso o contrato versasse sobre a venda ou locação de direitos sobre o uso do ar ou o acesso à praia. Tais casos cairiam nas margens nebulosas do termo “terra”, e aqui, assim como ocorre com leis em grande medida indeterminadas, seria necessário recorrer a algo além das palavras para resolver a controvérsia. A indeterminação linguística de leis, portanto, depende de vagueza disseminada [pervasive] ou de casos que brotam nos limites vagos de leis que normalmente são precisas. Os dois fenômenos são diferentes, mas, em ambos os casos, o texto sozinho não dá conta do recado. Há disputas sobre aquilo a que se deve apelar em tais casos – por exemplo, intenção do legislador, propósito da lei, boas políticas [good policy], eficiência econômica, princípios morais, consistência com outras partes da mesma lei, consistência com outras leis, as particularidades do caso – mas essa variedade de interpretação é exigida pela simples incapacidade da linguagem de antecipar todos os cenários possíveis veículo ou a parte interior de uma igreja, mas isso raramente gera problemas para a interpretação de leis. [Os exemplos de Schauer – bank e vessel – não correspondem exatamente a “banco” e “nave”; a mudança foi necessária para que a explicação fizesse sentido em português (N. do T.).] Na interpretação de leis e outros textos legais, o problema é normalmente que as palavras não têm significado claro, em vez de um ou outro significado claro, e o termo correto para esse fenômeno é “vagueza”, e não “ambiguidade”. 17 O termo “textura aberta” era usado por Hart... [The term “open texture” was used by Hart in describing , and he gets it from], e ele o emprestou de Friedrich Waismann, Verifiability, em Logic and Language: First Series 117 (A.G.N. Flew ed., 1951). Vale enfatizar que “textura aberta” não equivale a vagueza, mas é antes a característica de qualquer língua, até da mais precisa, de tornar-se vaga diante de aplicações imprevistas. Textura aberta não é vagueza, mas a possibilidade onipresente de vagueza. Pensando como um advogado, de Frederick Schauer. Trechos selecionados (pp. 24-29; 157-167 da edição original). O livro foi traduzido para o português e será publicado pela Editoria Marcial Pons do Brasil. Favor não circular ou citar. num mundo muito mais complexo do que o instrumento embotado da linguagem do direito. 8.4 Quando o texto fornece uma resposta ruim Embora muitos casos de interpretação surjam quando uma lei é indeterminada – de forma geral ou apenas no contexto de alguma aplicação particular em potencial -, há outra categoria que é diferente em um sentido relevante. Nessa categoria, as palavras dão uma reposta, mas a resposta parece inaceitável. No caso extremo, a resposta dada pelas palavras parecerá simplesmente absurda. Essa era a opinião de Fuller em relação aos exemplos do veículo usado como um monumento à guerra e do homem de negócios que adormeceu enquanto esperava o trem, era também a opinião de Pufendorf em relação ao cirurgião detido sob a aplicação literal de uma lei projetada para proibir duelos, e é o argumento principal dos críticos da decisão da Suprema Corte em Locke.18 É da essência do direito que ele seja razoável, diz o argumento, e, por essa razão, insistir na aplicação literal de uma lei que produz um resultado absurdo ou claramente insensato é outro absurdo. Não se deve considerar o texto como definitivo [taking the text as the be-all and end-all], diz-se, porque isso é profundamente inconsistente com a natureza fundamental do direito enquanto regulação razoável da conduta humana. Como mostra a decisão da Suprema Corte em Locke, no entanto, há um outro lado do debate. Esse outro lado argumenta, em parte, que deixar de lado as palavras, mesmo no caso de um resultado aparentemente absurdo, é tomar um rumo condenado ao fracasso, pois até mesmo o absurdo pode muitas vezes estar apenas nos olhos de quem vê.19 A pergunta, dessa perspectiva, não é se é absurdo negar a Locke seu pleito, processar o cirurgião de Pufendorf ou expulsar o homem de negócios da estação de Fuller. A pergunta é, na verdade, se qualquer pessoa – incluindo um juiz – deve ter o poder de decidir se e quando alguma aplicação é absurda ou não. A ideia do estado de direito (rule of law) recomenda que suspeitemos do governo realizado por pessoas - o governo das leis e não dos homens, como se dizia tradicionalmente – e, portanto, em última instância, a hesitação para confiar até mesmo num tribunal para determinar o que é o que não é absurdo sugere que talvez não seja uma ideia tão absurda assim aplicar as palavras de uma lei a qualquer custo.20 18 Ver Richard A. Posner, Legal Formalism, Legal Realism, and the Interpretation of Statutes and the Constitution, 37 Case West. Res. L. Rev. 179 (1986). 19 Ver, por exemplo, John L. Manning, The Absurdity Doctrine, 116 Harv. L. Rev. 2387 (2003); Frederick Schauer, The Practice and Problems of Plain Meaning, 45 Vand. L. Rev. 715 (1992). 20 Em um ensaio encantador e duradouro intitulado The Case of the Speluncean Explorers (62 Harv. L. Rev. 616 (1949)), Lon Fuller tinha demonstrado, alguns anos antes de se envolver no debate com Hart, que havia uma série de maneiras de se lidar com os resultados injustos ocasionalmente produzidos pela aplicação direta do direito. No exemplo de Fuller, um grupo de exploradores presos em uma caverna enfrenta um problema semelhante àquele dos verdadeiros náufragos em R. v. Dudley & Stephens, L.R. 14 Q.B.D. 273 (1994), e, da mesma maneira, decidem comer um dos seus para permitir que os demais sobrevivam. Processados por homicídio depois do seu resgate, os sobreviventes apresentam uma série de teses de defesa, cada uma das quais, na história de Fuller, é aceita por um dos membros da corte. O que é mais interessante é que Fuller reconhece que pode haver várias maneiras diferentes de evitar um resultado Pensando como um advogado, de Frederick Schauer. Trechos selecionados (pp. 24-29; 157-167 da edição original).O livro foi traduzido para o português e será publicado pela Editoria Marcial Pons do Brasil. Favor não circular ou citar. Embora seja plausível prender-se às palavras literais de uma lei mesmo em casos de óbvio absurdo, essa não é a abordagem predominante. No direito inglês, há menção frequente da “regra de ouro” da interpretação de leis, de acordo com a qual o sentido literal do texto prevalece em todos os casos à exceção dos casos de resultado absurdo.21 Também nos Estados Unidos, mesmo aqueles que estão mais comprometidos com o texto admitiriam, ainda que às vezes com má vontade, que o seu dito textualismo permite uma exceção em casos de óbvio absurdo ou erro aparente de redação.22 Colocando o absurdo de lado, os argumentos em favor de se tomar o texto como (quase) sempre preeminente não se restringem a argumentos derivados da desconfiança diante da discrionariedade dos tomadores de decisão, incluindo os juízes, que é um valor associado ao estado de direito. Talvez ainda mais importante, como observado brevemente acima, seja o argumento democrático. Quando o órgão legislativo aprova uma lei, ele aprova um conjunto de palavras, e não vota, em momento algum, num propósito, fim ou justificação de fundo que seja independente das palavras. E ele certamente não vota nas intenções expressas nos discursos ou escritos de legisladores individuais. De fato, às vezes legisladores diferentes podem muito bem ter intenções ou propósitos diferentes em mente, e as palavras promulgadas podem representam a solução conciliatória entre legisladores com fins diferentes e projetos políticos diferentes. Tomar o que disse o órgão legislativo como preeminente é simplesmente respeitar a origem democrática do órgão legislativo. Mas há coisas a serem ditas também do outro lado da questão, e é a isso que nos voltamos agora. O outro lado do debate, intimamente ligado à posição de Fuller no seu debate com Hart, vê leis como manifestações da razão, como expressões de intenções legislativas coletivas, como itens jurídicos que têm uma finalidade, ou um propósito. E embora razão, intenção e propósito sejam coisas diferentes, todas aglutinam-se em torno da tese de que é a função do juiz tentar dar sentido a uma lei, em vez de simplesmente seguir, resignadamente, o caminho ridículo indicado por suas palavras. Sim, o poder de dar sentido a uma lei é passível de abuso, concedem os defensores dessa tese, mas não devemos nos esquecer do aviso do Ministro Story em Martin v. Hunter’s Lessee: “É sempre duvidoso argumentar contra o uso ou a existência de um poder com base na possibilidade de que ele seja abusado.”23 Então, embora seja possível que haja alguns ambientes de tomada de decisão em que as consequências do resultado absurdo ocasional – permitir que Kirby seja processado ou negar a Locke seu pleito – serão menos graves do que as consequências de se dar poder aos juízes para determinar quais resultados são injusto . Um deles é interpretar a lei de maneira claramente inconsistente com os seus termos. Mas há outras, incluindo anunciar que o direito foi violado, mas impor uma pena mínima, anunciar que o direito foi violado, mas recusar-se a aplicá-lo, e impor uma pena e ao mesmo tempo rogar que o executivo perdoe os condenados. 21 Ver Grey v. Pearson, (1857) H.L. Cas. 61; William Twining & David Miers, How To Do Things With Rules 279-83 (4th ed. 1999); M.D.A. Freeman, The Modern English Approach to Statutory Construction, in Legislation and the Courts 2 (M.D.A. Freeman ed., 1997). 22 Às vezes descrito como “erro do escrivão”. Ver City of Chicago v. Environmental Defense Fund, 511 U.S. 328 337 n.3 (1994) (Scalia, J., pela maioria). 23 Martin v. Hunter’s Lessee, 14 U.S. (1 Wheat.) 304 (1816). Pensando como um advogado, de Frederick Schauer. Trechos selecionados (pp. 24-29; 157-167 da edição original). O livro foi traduzido para o português e será publicado pela Editoria Marcial Pons do Brasil. Favor não circular ou citar. absurdos e quais não são, pode haver ainda mais ambientes, segue o argumento, em que não há razão para se ter uma visão tão pessimista do poder judicial. Se esse é o caso, então pode haver muitos ambientes em que juízes podem e devem ser autorizados a interpretar leis com base na razão e a determinar quais interpretações são razoáveis e quais não são. Em tais ambientes, juízes não abusarão da sua autoridade quando tentarem adivinhar o que é que os legisladores teriam desejado que fosse feito nas circunstâncias relevantes, e quando tentarem entender, e assim promover, os propósitos da lei. Quando essa segunda visão prevalece, quando se permite que os juízes orientem- se pela a razão mesmo que ocasionalmente cometam erros, é melhor entender a aplicação literal de uma lei como derrotável, um termo que encontramos enquanto explorávamos os métodos do common law no Capítulo Seis. O termo, que apareceu originalmente na literatura sobre direitos de propriedade e hoje é encontrado com frequência em escritos filosóficos,24 sugere que há algumas circunstâncias em que uma regra, princípio ou resultado legalmente determinado pode ser derrotado. No contexto da interpretação de leis, portanto, a visão seria a de que a interpretação literal continua sendo o padrão, e continua sendo a abordagem a ser seguida na primeira instância. Contudo, não apenas quando a interpretação literal é absurda, mas também quando ela gera um resultado inconsistente com o bom senso, inconsistente com a provável intenção legislativa, ou inconsistente com o propósito legal, o juiz pode se desviar do sentido literal para produzir o resultado mais sensato. A mesma ideia pode ser expressa em termos de uma presunção. Juízes tipicamente começam pelo texto e presumem que aquilo que o texto diz é o que a lei significa.25 Mas essa presunção, como muitas outras, é refutável. A presunção altera o ônus da prova, por assim dizer, mas continua sendo possível argumentar que o texto não deve ser seguido quando isso for incompatível com o propósito da lei ou a intenção legislativa, ou quando produzir um resultado absurdo ou insensato. Tais argumentos raramente podem ser feitos com facilidade. Argumentar contra o sentido claro das palavras do texto (e vale recordar que estamos tratando aqui da situação na qual se assume que o texto tem um sentido literal) nunca é fácil. É como nadar contra a corrente. Mas, em muitos sistemas jurídicos, talvez especialmente no sistema jurídico dos Estados Unidos,26 tais argumentos são possíveis, e, na verdade, prevalecem com frequência. E embora seja um erro ignorar a frequência com que o sentido claro do texto legal é o fator dominante na interpretação de leis, também seria um erro negligenciar o fato importante de que o texto, mesmo sendo o ponto de partida, muitas vezes não é o ponto final, e que a determinação final do significado de uma lei nem sempre equivale ao significado das palavras, expressões ou frases que a lei contém. 24 Ver, por exemplo, D. Neil MacCormick, Defeasibility in Law and Logic, in Informatics and the Foundation of Legal Reasoning 99 (Zenon Bankowski, Ian White, & Ulrike Hahn, eds., 1995); Richard H.S. Tur, Defeasibilism, 21 Ox. J. Legal Stud. 355 (2001). 25 Ver, por exemplo, Crooks v. Harrelson, 282 U.S. 55, 60 (1930). Sobre presunções em geral, ver o Capítulo Doze. 26 Ver Patrick S. Atiyah & Robert S. Summers, Form and Substance in Anglo-American Law: A Comparative Study in Legal Reasoning, Legal Theory and Legal Institutions (1987).
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