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Stuart Clark Bruxaria e Religiao

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Sao tres os desvios da religiao, alem do exclusivo, que e 0 atefsmo e suas ramifica<;oes:
Heresias, Idolatria e Bruxaria; as Heresias, quando servimos ao verdadeiro Deus com uma
falsa adora<;ao;a Idolatria, quando adoramos falsos deuses supondo que sao verdadeiros; e a
bruxaria, quando adoramos falsos deuses sabendo que SaG perversos e falsos. Por isso vossa
Majestade observa muito bem que a Bruxaria e 0 cumulo da Idola tria.
Pode parecer perfeitamente perverso distinguir "religiao" como um tra~o sepa-
rado das cren~as em bruxaria europeias. Se a diabo da cristandade tradicional nao era
uma entidade religiosa, entao ele nao era nada. A demonologia, em todas as suas ma-
nifesta~iSes,nao estava simplesmente saturada de valores religiosos; ela era inconcebf-
vel sem eles. Eles estao na base de sua estrutura conceitual e, mais amplamente, nos
padriSesde pensamento e linguagem dos que escreveram sabre bruxaria. As a~iSesde-
monfacas eram definidas em contraste com as divinas, e as vfcios de bruxas (mulheres)
em contraste com as virtudes de seus contemporaneos devotos (homens). 0 demonis-
mo s6 era fisicamente possfvel gra~as a uma particular teologia da natureza, e acabou se
tornando fisicamente impossfvel par uma teologia diferente. Seu lugar na hist6ria - na
verdade, seu papel hist6rico - era determinado (assim se pensava) pela profecia bfblica
e revelado pela investiga~ao escato16gica. Na Parte V veremos tambem que a carater
da bruxaria como um crime, mesmo na esfera da justi~a secular, era fortemente in-
fluenciado par no~6es teocraticas da autoridade posta em a~ao contra ela.
No entanto, e igualmente 6bvio que "religiao" nao se esgota na metaffsica e
na etica de alto nfvel, au na sua influencia sabre a filosofia natural, hist6rica e poll-
tica. 0 espantoso nos livros sabre magia e bruxaria do infcio da era moderna e como
muitos deles eram produzidos par c1erigos au pelos que as treinavam au orientavam.
As perguntas que esses auto res faziam tinham muito a ver com problemas de piedade
e
554
surgidos da boa ou (mais frequentemente) ma fortuna pessoal dos paroquianos, onde
a ultima coisa que se precisava era de uma metaffsica ou filosofia complicada: como os
leigos podiam tentar impedir ou reagir a suas afli~6es, inclusive ao maleficiumj que
tipos de preven~6es ou remedios deviam usar e a quem deviam consultar para conhe-
ce-Ios; qual era a diferen~a entre praticas permitidas (devotas) ou proibidas (demo-
nfacas) nesta area; qual era a natureza dos pecados que podiam ser cometidos e como
deviam ser castigados? Esses textos visavam antes de mais nada, e principalmente, a
pratica clerical, e sua religiosidade era a religiosidade das igrejas. Seu tom era mais
homiletico e evangelico do que intelectual e te6rico, e suas inten~6es eram guiar os
esfor~os pastorais do clero e, por meio deles, os padr6es do comportamento leigo. Eles
corriam em paralelo, neste sentido, com as discuss6es de coisas como 0 comporta-
mento sexual e 0 controle familiar, a observancia do sabado, os males de beber e
dan~ar, e outras quest6es da moralidade laica.
Muitos desses textos se originaram como serm6es e retiveram esta forma quan-
do impressos. Outros foram compostos como dialogos para melhorar seu impacto di-
datico. Neste caso, a continuidade entre as discuss6es especializadas e uma literatura
mais geral era completa. Os que escolhiam concentrar-se neste tipo de demonologia
evangelica cercavam suas no~6es de "bruxaria", "magia", e "supersti~ao"l de uma
ortodoxia teol6gica a eles oferecida pela teologia dogmatic a religiosa, pela casufstica
e pelos comentarios bfblicos. Percebe-se uma fiel transposi~ao das ideias ensinadas
em inumeras faculdades de teologia nos escritos de seus alunos clericais. Inversamen-
te, os mesmos t6picos recebiam uma aten~ao constante dos pr6prios casufstas e dog-
maticos. Entre os seculos XV e XVIII, uma quantidade enorme de discuss6es dessas
transgress6es pode ser encontrada nos manuais de orienta~ao destinados a penitentes
e confessores, nos livros de preceitos escritos para inquisidores, em exposi~6es do
Decalogo, tanto nos textos catequeticos como nos guias sobre como se beneficiar
deles, e, e claro, em serm6es. Negligenciar essa literatura resulta, portanto, numa
falsa impressao da incidencia da demonologia no infcio da cultura moderna2• Aqui, a
rela~ao de mao dupla entre "demonologistas" e seus contemporaneos, que e 0 objeto
deste livro, ficou especialmente visfvel- simplesmente porque nao havia virtualmen-
te nenhuma distancia intelectual entre eles.
o que esses termos significavam nos debates religiosos do perfodo, ficara claro em capitulos posteriores.
Como, por exemplo, no caso da Hungria, onde a visao de que havia pouca demonologia hungara
repousa na negligencia dos comentarios bfblicos, catecismos, confissoes e sermoes em que os calvinistas,
especialmente, tratavam do tema; veja-se Ildik6 Krist6f, "Boszorkanytildozes Debrecenben es Bihar
varmegyeben a 16/18. szazadban (Cae,:a as bruxas no Condado de Debrecen e Bihar dos Seculos XVI a
XVIII)", tese de doutorado (Budapest, 1991). Sou grato ao autar par fomecer informae,:oes desta tese, na
forma de urn trabalho nao publicado, "Calvinist Demonology and Witch.Hunting in 16/17th-Century
Hungary". Para a mesma questao em relae,:ao ao Portugal cat6lico, veja·se, abaixo, 0 capitulo 31.
o
555
Em qual sentido religioso, afinal, as "demonologistas" seriam diferentes?3
William Perkins, nem seria precis a lembrar, foi a mais prolffico e influente dos "pu-
ritanos" da Inglaterra isabelina, e uma autoridade em virtualmente todos as aspectos
da teologia e da moralidade calvinistas. Seu equivalente luterano (e um de seus leito-
res) na Alemanha do norte, no comes;o do seculo XVII, foi Hermann Samson, cIeri-
go em Riga a partir de 1608 e superintendente-geral da Igreja livoniana a partir de
1622. Ele foi inspetor das escolas de Riga, e depois, professor de teologia no Gymna-
sium. Durante vinte anos, ordenou pastores, escreveu regulamentos de igreja e de
escola, manteve discuss6es, fez visitas e organizou sfnodos - alem de conduzir uma
acirrada polemica com as jesuftas locais, defendendo seus pr6prios deveres de ensino,
e escrevendo sabre um amplo espectro de temas4• A mesma consideras;ao poderia ser
feito sabre Johann Brenz (Wiirttemberg), Heinrich Bullinger (Zurique) au Abraham
Scultetus (Palatinado), todos eles figuras destacadas do protestantismo territorial; au
sabre Hemmingsen, um estudioso de Melanchthon de Wittenberg, cuja estatura na
faculdade de teologia de Copenhague (e como vice-reitor da universidade) the per-
mitiu influenciar toda uma geras;ao de cIerigos dinamarqueses; au sabre George Gi-
fford e Richard Bernard, ambos sinceros em sua defesa do tipo "mais quente" de
protestantismo ingles. Entre as pastores luteranos que escreveram sabre magia e bru-
xaria houve muitos que eram Hofprediger au superintendentes - Hermann Hamel-
mann (Gandersheim, em Brunswick), Arnold Mengering (Dresden, Altenburg, Hal-
le), Andreas Musculus (Frankfurt an der Oder, Brandenburg), Hinrich Rimphoff
(Verden) e Joachim Zehner (Henneberg). Esses homens foram, freqiientemente, as
criadores dos regulamentos da nova igreja e as realizadores de inspes;6es, bem como
as propagandistas gerais do protestantismo. Alguns foram escritores prolfficos sabre
um amplo leque de outras quest6es religiosas.
Entre as auto res sabre bruxaria cat6licos, Pierre Crespet foi sacerdote no Viva-
rais, um veterano ligueur, e finalmente prior da ordem dos celestinos em Paris. Ele
tambem publicou obras teol6gicas e devocionais sabre a imortalidade da alma, a Vir-
gem Maria, as santos e a vida de Santa Catarina, bem como uma Summa catholicar
fidei. Ilustre professor de teologia de Freiburg im Breisgau durante trinta e um anos,
Jodocus Lorichius foi um dos "mais importantes e produtivos te610gos cat6licos do
final do seculo XVI e infcio do XVII". Sua longa carreiracomo polemista se encerrou
com duas contribuis;6es mastodonticas a ortodoxia religiosa, um ABC das heresias e
desvios contemporaneos, com as correspondentes verdades cat6licas, e um tesouro
A questao esta implfcita no lembrete de Mandrou sobre os outros interesses intelectuais de "demo-
nologisras"; Magistrats et sorciers, 139-44, esp. 143-4 para os te610gos.
4 Allgemeine Deutsche Biographie, xxx. 312-15; C. A. Berkholz, M. Hermann Samson, Rigascher Ober-
pastor, Superintendent von Liv/and etc. (Riga, 1856), passim, e, sobre os serm6es sobre bruxaria de Sam-
son, 149-57.
6
556
enciclopedico de teologia e pratica cat6licas5• Friedrich Forner passou trinta e seis
anos como Domprediger de Bamberg, vinte deles como bispo sufraganeo. Serviu a
dois dos mais zelososprincipes-bispos da cidade, atuando como inspetor geral de igre-
jas, e teve nao menos de 411 de seus sermi5ese palestras impressos - 102 sobre os
salmos, 214 sobre a Paixao e a Ressurreit;:ao,34 sobre superstit;:ao,magia e bruxaria, 30
sobre devot;:i5esmarianas e 30 sobre anjos da guarda6• As faculdades e universidades
onde 0 jesuita Martin Del Rio passou uma vida de estudos estavam entre asmais ativas
e influentes da nova Europa cat6lica - 0 College de Clermont, Douai, Louvain, Sala-
manca e Oraz. 0 abade jansenista Thiers permaneceu como cure da zona rural por
toda a vida, mas ainda assim ocupou-se de escritos devocionais, tratados sobre festi-
vais, jogos e entretenimentos permisslveis numa cristandade purificada, e de contro-
versias sobre 0 uso apropriado de altares, cruzes e do p6rtico da catedral de Chartres.
Esses homens nao eram "demonologistas"; eram, e claro, reformadores reli-
giosos. A bruxaria lhes dizia respeito por sua relevancia para suas exigencias mais
amplas de novas piedades laicas e os problemas de fazer homens e mulheres comuns
adota-las - isto e, 0 tipo de "reforma" (mesmo de "cristianizat;:ao") que os historia-
dores da religiao moderna primitiva vem recentemente descrevend07• Nao havia nada
de fort;:adoou artificial nessa relat;:ao;certamente nao estamos tratando de sensacio-
nalismo, ou de associat;:aoarbitraria de coisas nao relacionadas, ou de mera racionali-
zat;:ao.Ao contrario, 0 que a bruxaria significava para eles era inseparavel de suas
ideias sobre a verdade doutrinal e de sua experiencia, pessoal ou vicarial, do campo
de trabalho evangelico; enquanto estas, por sua vez, eram informadas pelo modelo
particular de bruxa que vieram a elaborar. Nunca houve algo como "mera" bruxaria
na jovem Europa moderna - algum residuo essencial e nao modificado alem das ver-
Stephan Ehses, "Jodocus Lorichius, katholischer Theologer und Polemiker des 16. Jahrhunderts", in
__ (ed.), Festschrift zum elfbundertjahrigen ]ubilaum des deutschen Campo Santo in Rom (Freiburg
im Breisgau, 1897), 242-55, cita<;ao em 242. Lorichius lista seus pr6prios escritos em seu Thesaurus novus
utriusque theologiae, theoricae et practicae (2 vols.; Freiburg im Bresgau, 1609), que contem discussoes
tfpicas de daemones 0. 732-47), magia (ii. 1324-8), maleficium (ii. 1331-46), e superstitio (ii. 1866-7).
6 Allgemeine Deutsche Biographie, vii 157-9.
o tipo de "reforma" que tenho em mente e a que emergiu desses estudos como: Burke, Popular
Culture, 207-43; Evans, Making of the Habsburg Monarchy, 383-91; Philip T. Hoffman, Church and
Community in the Diocese of Lyon, 1500-1789 (London, 1984), esp. 71-97; Lorna Jane Abray, The
People's Reformation: Magistrates, Clergy, and Commons in Strasbourg, 1500-1589 (Oxford, 1985),
esp. 186-223; Susan C. Karant-Nunn, Zwickau in Transition, 1500-1547: The Reformation as an Agent
of Change (London, 1987), 177-14; Po-Chia Hsia, Social Discipline, passim, esp. 151-62; Marc R. Fors-
ter, The Counter-Reformation in the Villages: Religion and Reform in the Bishopric of Speyer, 1560-
1720 (London, 1992), esp. 94-116; Gentilcore, From Bishop to Witch, passim; Nalle, God in La Man-
cha, passim; Henry Kamen, The Phoenix and the Flame: Catalonia and the Counter Reformation (London,
1993), passim.
6
557
s6es particulares dela e inteligfvel sem recorrer a elas. Como qualquer uso da lingua-
gem, a "bruxaria" s6 significou 0 que significou num determinado cemirio cultural -
"jogos de linguagem", por assim dizer - e em nenhum outro lugar isto e mais verda-
deiro em seu reflexo de significados religiosos e em sua capacidade de transmiti-Ios.
A rela<;ao tambem nao foi sem importancia, nem para a demonologia, nem
para 0 pensamento e a pratica reformistas, fossem eles protestantes ou cat6licos. Nos
pr6ximos capftulos veremos que bruxaria, magia e supersti<;aoestavam ligadas as mais
avan<;adaspreocupa<;6es teol6gicas da epoca - soberania divina, fe humana, terapias
religiosas, consciencia pura. Sua erradica<;ao era, pois, uma prioridade dos reforma-
dores. Isto refor<;aa versao da "tese da acultura<;ao", tao diferente eram 0 entendi-
mento clerical do infortunio e da reden<;ao daquelas do publico para 0 qual dirigiam
seus esfor<;os.Os anos que separam 0 livro de Pedro Ciruelo sobre supersti<;aodo de
Fridrich Balduin sobre a consciencia, viram, provavelmente, a mais contfnua tent a-
tiva dos clerigos padronizarem os habitos culturais dos simples. Os historiadores atuais
da religiao pensam nisto, como faziam os pr6prios clerigos, como uma missao tanto
"interna" como "interior" - analoga a obra de missionarios fora da Europa, e, ao
mesmo tempo, preocupados com a interioridade espiritual. A demonologia estava
tao integrada com essa revolu<;ao pretendida que nenhuma delas faz pleno sentido
quando considerada em separado da outra.
Na jovem Europa modern a (como, alias, em tempos mais recentes) a maioria
das pessoas comuns consideravam a bruxaria uma causa de padecimentos. 0 impor-
tante nela era 0 mal que lhes fazia, a seu sustento, a suas famflias e comunidades. A
bruxa era vista, primeiro e sobretudo, como alguem com 0 poder e a vontade maligna
de causar danos reais a suas vitimas. Ela (as vezes, ele) subvertia 0 tempo, prejudicava
colheitas e arruinava a produ<;ao de coisas como cerveja e manteiga. Homens e mu-
lheres, e seus filhos e animais, adoeciam e eram feridos ou mortos. Eles nao estavam,
por certo, indefesos contra este maleficium, mas os passos tomados para suportar a
bruxaria s6 fazem mostrar, mais uma vez, que ela era vivenciada como uma amea<;a
essencialmente fisica. A cultura popular do periodo era rica em medidas preventivas
para manter uma casa, uma viagem ou um casamento livres do maleficio de uma
bruxa - e, na verdade, para manter um equilibrio geral entre as for<;asda sorte e do
azar8•Uma vez afligidos, os individuos podiam eles mesmos diagnosticar 0 maleficium
ou consultar e se aconselhar com aqueles capacitados na contrabruxaria e nas outras
artes da "astucia". Os remedios tambem, ou eram escolhidos privadamente do fundo
e
558
de medidas disponfveis para todos, ou eram comprados de especialistas locais. Even-
tualmente, os endemoninhados e seus apoiadores podiam procurar os tribunais, em
busca do remedio da lei. Mas suas preocupac;5es ainda eram, compreensivelmente, os
males que haviam sofrido e um desejo de vinga-los.
Ha uma rica etnografia na maneira como os detalhes dessas reac;5espopulares a
bruxaria - da prevenc;ao a reparac;ao - variaram por toda a Europa9• Tem sido muito
gratificante, tambem, a analise do que elas revelam sobre as relac;5es entre bruxas,
vftimas e castigadores, e como esses, por sua vez, indicam conflitos e mudanc;as nas
primeiras comunidades modemas. Nos proximos capftulos, tanto esta etnografia quanto
sua analise serao admitidas; importara aqui 0 predomfnio, entre as pessoas comuns,
da visao de que a bruxaria foi um meio de prejudica-las, juntamente com a existen-
cia, em sua cultura, de medidas praticas para lidar com ela. Costumava-se dizer que
uma das "func;5es" das crenc;as em bruxaria era explicar as aflic;5esnas comunidades
que nao tinham outra maneirade expressa-laslO.Mas parece estranho agora (porque
tautologicol!) falar de uma crenc;a sendo usada para explicar 0 que, de fato, consti-
tufa seu significado, bem como supor que ela nao teria significado absolutamente
nada se as pessoas a tivessem conhecido melhor. A bruxaria, para a pessoa media,
era, na verdade, uma explicac;ao para coisas que davam errado, e, considerando-se os
pressupostos correntes sobre causalidade e responsabilidade, uma explicac;ao perfeita-
mente adequada. Propomos, entao, pensa-la em termos totalmente nao-funcionalis-
tas, por assim dizer, um idioma numa linguagem muito popular - a linguagem da
desdita cotidiana.
Os autores sobre os quais me debruc;o, que viram as coisas de um ponto de vista
clerical, falaram de bruxaria e azar numa linguagem muito diferente, e apoiaram-se
em ideias muito diferentes de causalidade e responsabilidade. Para eles, 0 significado
real de acontecimentos atribufdos ao grau de maleficium envolvido, culpando so-
Ha um volume consideravel de informac;:aoem A. van Gennep, Manuel de folklore franc;ais contem-
porain (12 partes em 5 vols.; Paris, 1938-58). Para estudos mais recentes, veja-se esp. Thomas, Religion
and the Decline of Magic, 177-252; Macfarlane, Witchcraft, 103-14; Ginzburg, Night Battles, passim;
Muchembled, Popular Culture, 24-30, 61-93, 101-7; Scribner, "Ritual and Popular Religion", 47-77;
Gentilcore, From Bishop to Witch, 128-61, 210-25; Baumgarten, Hexenwahn und Hexenverfolgung,
366-96. Para um relata especialmente sensfvel das acusac;:5esde bruxaria e consultas no contexto do
"comportamento de busca da saude", veja-se Ronald C. Sawyer, '''Strangely Handled in all her
Lyms': Witchcraft and Healing in Jacobean England", J. Social Hist. 22 (1988-9), 461-85. Algumas das
melhores evocac;:5esdo que a bruxaria significava nas pequenas comunidades sao encontradas em Briggs,
Communities of Belief, 7-105.
10 Para a origem dessa ideia, veja-se E. E. Evans-Pritchard, Witchcraft, Oracles and Magic among the
Azande (Oxford, 1937), 63-83, 99-106; cf. Thomas, Religion and the Decline of Magic, 535-46.
11 Caso defendido em algumas observac;:5estipicamente astutas sobre este tema por Needham, Primor-
dial Characters, 32.
o
559
mente as bruxas por sua ocorrencia, era, no mfnimo, uma especie de hipocrisia, e,
provavelmente, de absoluto atefsmo. Subestimava a dimensao espiritual do azar como
uma retribui~ao e urn teste, e questionava a controle final de Deus sabre as coisas;
implicava inclusive a maniquefsmo, pais sugeria uma fonte do mal independente de
Deus. Em vez disso, a aten~ao devia ser transferida tanto da bruxa para Deus, como da
bruxa para sua vftima, atirando a peso da responsabilidade de volta para esta ultima.
A resposta apropriada para a azar era come~ar com reflexoes sabre fe e pecado, passar
para as terapias gemeas do arrependimento e da paciencia, e concluir com rogos para
a amparo divino e clerical. Somente entao poderiam ser aplicados as remedios ffsicos
que Deus havia colocado na natureza e (par exemplo) nas maos de medicos autoriza-
dos. Urn infortunio causado par bruxaria nao era, portanto, urn caso de azar; era urn
caso de consciencia - aquilo que as luteranos chamavam Gewissensfrage - e urn em
que a bem estar espiritual da popula~ao em geral estava em jogo.
As precau~oes e remedios populares, alem disso, eram condenados como id6la-
tras e supersticiosos. Desprezavam a necessidade de coisas como auto-exame, ora~ao e
arrependimento, bem como os beneffcios de "carregar a cruz", ofertar, na verdade,
uma terapia que rivalizava com as das igrejas. Ao mesmo tempo, as poderes em que as
pessoas comuns se apoiavam para protege-las do maleficium au para remediar seus
efeitos eram, eles pr6prios, e com muita freqiiencia, inteiramente ilus6rios. Basea-
vam-se na atribui~ao, a pessoas, lugares, tempos e coisas, de propriedades que nao
tinham nenhuma existencia na natureza e nenhum fundamento na pratica religiosa
ortodoxa; eram, segundo esta defini~ao, supersticiosas e magicas. Isto, para as cleri-
gos, tornava a contrabruxaria popular indistingufvel da bruxaria contra a qual se diri-
gia; ambas extraiam a eficicia que tivessem (au parecessem ter) do unico outro tipo
de fonte que restava - a a~ao de demonios. No final, muitos padres vieram a pensar
que 0 que era feito para evitar ou responder ao maleficium tinha implica~oes muito
mais serias do que a pr6pria bruxaria original. 0 que os preocupava, novamente, era
nada menos que 0 bem estar espiritual geral dos leigos. A esse respeito, disse um
deles, muitos homens e mulheres pareciam ter apenas "uma pequena parcela de
uma boa religiao"12.
E comum se expressar essas diferen~as de visao em termos de atitudes contras-
tantes com 0 demonfaco. As pessoas comuns, ja se disse, davam pouca aten~ao a
demonios, ou os viam simplesmente como uma das muitas for~as hostis contra as
quais se precisava ficar em guarda. Eles nao remontavam 0 maleficium a agencias
demonfacas, nem pensavam que a bruxa era uma serva de Sata, a menos que fosse
ensinada a fazer isto por outros. Os clerigos, juntamente com magistrados e com as
classes instrufdas em geral, associavam bruxaria com heresia e apostasia, concentra-
e
560
vam a aten<;:aono pacto, e modelavam acusa<;:6ese confiss6es ate produzir evidencias
de adora<;:aoao diabo. Havia, pois, duas "linguagens" da bruxaria, uma concentrada
na feiti<;:aria,outra no diabolismo, e elas expressavam dois conjuntos diferentes de
interesses13• Apesar de sua utilidade, esta e uma visao que tende a omitir 0 intercam-
bio entre as cren<;:asclericais e leigas e a sua concordancia, mesmo em fases posterio-
res dos julgamentos de bruxas. Em particular, subestima os elementos demono16gicos
nas tradi<;:6espopulares da bruxaria, que, em certas ocasi6es, forneceram vers6es fol-
cl6ricas mesmo do saba14. Por outro lado, qualquer que fosse 0 estado real da troca
cultural e do consenso nesses assuntos, ela era, no minimo, a percep<;ao por clerigos
de que nao havia uma simples diferen<;:ade opiniao entre eles e seus rebanhos, mas
um enorme cisma. Para eles, tambem, a questao era fazer os leigos compreenderem 0
papel do diabo em suas vidas e levarem-no mais a serio. Se foi isto que os levou a
escrever como fizeram, isto e algo a ser investigado. E 0 que procuro fazer nesses
capitulos sobre os elementos religiosos em demonologia.
o que deve ser ressaltado de inicio, porem, e que essa percep<;:aoclerical deriva-
va, nao da literalidade dos assuntos de bruxaria, mas de uma leitura avassaladoramen-
te espiritualizada do pecado. Mesmo admitindo que suas preocupa<;:6eseram com os
elementos demoniacos na bruxaria (e na magia e na supersti<;:aotambem), nao se
deve supor que todos os clerigos exageravam esses elementos recorrendo a exemplos
nos detalhes sombrios dos sabas de bruxas. Os textos que estamos prestes a considerar,
sejam eles protestantes ou cat6licos, ingleses ou continentais15, sao notaveis pelo
modo como internalizavam virtualmente todos os ingredientes tradicionais da bruxa-
ria, transformando-os em problemas espirituais. No caso da demonologia luterana,
isto foi, em grande medida, um produto das pr6prias cren<;:asem bruxaria de Lutero.
Mas John Gaule expressava um ponto de vista geral protestante quando disse que a
razao para trazer a "divindade" para a compreensao da bruxaria era "examinar a
consciencia pelas Regras da palavra, e os ditames da razao correta; e para discernir e
13 Muchembled, Sorcieres, justice et societe, 123-8, veja-se tambem 38-42. A distin<;;aoe estabelecida
historicamente em Kieckhefer, European Witcb Trials, 27-46 e passim, e no contexto da Nova Inglater-
ra do seculo XVII por Richard Weisman, Witcbcraft, Magic, and Religion in 17tb-Century Massacbu-
setts (Amherst, Mass., 1984),53-72. Veja-se tambem Briggs, Communities of Belief, 14-21, e, expres-
sando mais cautela, 68-9, 80-2.
14 Para esses diversos problemas, veja-se Holmes, "PopularCulture!", 85-111; E. William Monter,
Ritual, Mytb and Magic in Early Modem Europe (Brighton, 1983), 19-20; Robin Briggs, "Le Sabbat des
sorciers en Lorraine", in Nicole ]acques-Chaquin e Maxime Preaud (eds.), Le Sabbat des sorciers (XV'-
XVIII'siecles) (Grenoble, 1993), 155-63; Ginzburg, Mytbs, Emblems, Clues, 1-16; Midelfort, "Devil
and the German People", 103-4.
15 Menciono isto apenas porque a demonologia inglesa tern sido considerada, as vezes, substancialmente
diferente de suas contrapartes continentais, considerando que sua produ<;;aopor clerigos (principalmente)
e sua concentra<;;ao em quest6es espirituais a ligou estreitamente aos escritos clericais de outras partes.
o
561
declarar 0 quao absolutamente oposto 0 Pacto diab6lico e da Alians;:a da Gras;:a"16.
Assim, 0 diabo tornou-se urn inimigo evangelico, e a bruxaria, urn ramo da idolatria.
Havia, de fato, pouco interesse no saba e no maleficium enquanto tais, e poucos 0
imaginariam, na questao da punis;:aosecular. E possfvel que a responsabilidade cleri-
cal pela "cas;:aas bruxas" tenha sido exagerada. Acabaremos vendo que, para os cle-
rigos e te6logos academicos, 0 carater da bruxaria era determinado, sobretudo, par seu
lugar no Decalogo como uma violas;:aodo primeiro Mandamento. Mais do que urn
crime, era urn pecado - e, assim, urn assunto para 0 que tern sido chamado de "dis-
ciplina penitencial", onde a resposta das igrejas nao era, como ados estados seculares,
punitiva e expiat6ria, mas pastoral e salvadoral7•
16 Gaule, Cases of conscience, 100.
17 Para a conceito de "disciplina penitencial", veja-se Heinz Schilling, '''History of Crime' or
'History of Sin'? - Some Reflections on the Social History of Early Modem Church Discipline", in
Kouri e Scott (eds.), Politics and Society in Reformation Europe, 300.

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