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O BIBLIOTECÁRIO, O LIVRO E A LEITURA: UMA MISTURA EXPLOSIVA PARA A ESCOLA? Stela Miller — Professora aposentada do departamento de Didática FFC — Unesp, Campus de Marília O livro A mídia inicia nos dias de hoje uma campanha para incentivar as pessoas a lerem para as mais diferentes finalidades: informar-se, divertir-se, viajar pelos caminhos da imaginação ... (Gianechini e Cléo Pires) e o livro é o meio utilizado para a realização dessa propaganda. De fato, em meio a tantos outros suportes materiais para leitura, o livro transformou-se em seu símbolo. E é por isso que vamos colocá-lo aqui como o foco de nossas reflexões. Com a chegada dos multimeios, da internet, das bibliotecas virtuais alguém poderia pensar que seria decretado finalmente o fim do livro tradicional: feito de papel, ilustrado ou não, pequeno ou grande, de papel jornal ou branco e de alta gramatura, liso ou rugoso, capa dura ou não; para adultos, jovens e crianças; informativo, científico, de passatempo, de puro prazer estético. Parece, entretanto, que nada consegue tomar o lugar desse objeto que, não importa como se apresenta, tem sempre um motivo para encantar o seu portador: um conteúdo interessante, uma ilustração chamativa, bem feita, um formato diferente, um papel reciclado de uma cor e uma textura diferentes do papel tradicional, formato e textura agradáveis ao tato, de fácil manuseio, ao alcance das mãos e dos olhos, enfim, há sempre um elo afetivo a unir o livro ao leitor. O livro é um objeto transformador, quase mágico: quem passa por ele nunca mais será o mesmo. 2 Manguel, em seu livro “Uma história da leitura” (2001) diz em um trecho no qual discorre sobre outro livro: “A história da leitura”: Tenho o livro aberto diante de mim, sobre minha mesa. É escrito de forma amistosa (tenho a sensação exata de seu tom), acessível e erudito ao mesmo tempo, informativo e, contudo, reflexivo. O autor, cujo rosto vi no belo frontispício, está sorrindo com satisfação(...) e sinto que estou em boas mãos. Sei que, à medida que avançar pelos capítulos, serei apresentado àquela antiga família de leitores (...) da qual faço parte. Aprenderei suas maneiras e as mudanças nessas maneiras, e as transformações que sofreram enquanto levaram consigo, como os magos de outrora, o poder de transformar signos mortos em memória viva. (...). E, no final, compreenderei melhor quem eu — o leitor — sou. (p.346) A leitura A leitura é um ato de compreensão. De compreensão do mundo ao nosso redor, de uma obra de arte, de um canto ouvido à distância, de um gesto, de um silêncio que se fez, de um burburinho, de uma conversa entre duas pessoas, de um outdoor visto do carro em movimento, de uma carta recebida, das notícias de um jornal, de uma revista, de um livro. Restringindo o conceito de leitura ao material escrito, qualquer que seja o suporte utilizado para sua fixação, podemos dizer que ler é compreender um texto, é o processo que permite ao leitor construir para ele texto/leitor uma significação, lançando mão de todos os indícios presentes no texto impresso e de todas as experiências já adquiridas como leitor. Ou, mais diretamente, como afirmam Jolibert e seus Col. (1994, vol I), “ler é atribuir diretamente um sentido a algo escrito” (p.15) sem passar pela decifração nem pela oralização. Ou ainda, de forma mais tocante, como nas palavras de Ítalo Calvino, citado por Manguel (2001) “Ler significa aproximar-se de algo que acaba de ganhar existência.” (p.39) A todas essas palavras alheias não podemos ficar alheios. Pensemos nelas, sobre elas reflitamos e chegaremos à conclusão de que a leitura é o caminho para a compreensão do ser no mundo. Daí sua importância, daí sua necessidade, sua imprescindibilidade para a formação do cidadão consciente de seu papel no mundo em que vive. 3 Na escola: o bibliotecário, a leitura e o livro — uma mistura explosiva? Um profissional da educação, ao realizar o seu trabalho, pode agir, pelo menos, de três maneiras. Uma delas é pela competição com outro, disputando espaços, atenções, realizando trabalho solitário, sem diálogo com os demais colegas de sua profissão, sem dar a conhecer o seu trabalho e sem permitir que o outro também conheça o seu. Um trabalho assim realizado, por melhor que seja, pouco pode contribuir para o crescimento do grupo como um todo. É um trabalho isolado e restrito. Outra opção é pelo trabalho colaborativo, ou seja, pela colaboração com o outro, realizando trabalho solidário, ajudando no que for possível para fazer funcionar o trabalho dos demais colegas. Neste caso, há um avanço, mas ainda o foco é o trabalho de cada um, enriquecido agora pela colaboração de outros profissionais. Porém o trabalho educativo em seu conjunto fica na dependência da vontade de cada um em dar sua parcela de contribuição para o bom funcionamento da instituição. O terceiro modo que tem o profissional de realizar o seu trabalho é o de reunir-se a todo o grupo pela cooperação, realizando um trabalho comunitário, levando adiante um projeto que não é seu tão-somente, nem é do outro com sua ajuda, ou seu com a ajuda do outro, mas é partilhado, comum, da responsabilidade de todos, coletivo, cooperativo, implicando co-operação, ou seja, operação com outro, em conjunto, visando ao desenvolvimento de toda a coletividade, de todo o grupo de uma dada instituição. É a opção mais difícil, mais trabalhosa, mais complexa, mais carregada de compromissos, mas é, de longe, a mais compensadora, a mais efetiva na conquista dos objetivos de uma educação de boa qualidade, que colabore na formação humanística das crianças, dos jovens e dos adultos que formam o conjunto dos alunos de uma instituição. 4 As escolas do Ensino Básico constituem local propício para a realização do trabalho cooperativo; nelas existe a possibilidade de o bibliotecário e demais educadores se encontrarem para realizar, em cooperação com os demais profissionais da escola, como os dos serviços gerais, os da merenda, e as pessoas da própria comunidade em que se insere a instituição, um projeto educacional que possa voltar-se para o desenvolvimento máximo dos alunos em termos da apropriação dos conhecimentos acumulados sócio-historicamente pela humanidade, de seu desenvolvimento cultural, científico, artístico, enfim, como pessoa que adquire maior conhecimento de si mesmo e do mundo a sua volta. Um dos meios privilegiados, disponibilizados para que isso possa acontecer, é o trabalho com a LEITURA. Todos sabemos que a capacidade para ler e também para escrever tem sido um grave empecilho para o exercício da cidadania; muitos são os excluídos da sociedade por não terem acesso a esse conhecimento e, conseqüentemente, ao domínio dos demais conhecimentos que se constroem a partir daí. O bibliotecário escolar tem tarefas importantes a desempenhar no espaço da biblioteca, como, por exemplo, organizar o acervo, catalogando, separando, classificando, dispondo os materiais de leitura, de consulta, de pesquisa, aos seus usuários, tarefas ligadas ao tratamento, organização administração e controle da informação. Além disso, e acima de tudo, pode desenvolver atividades de interação com o usuário da informação, para mim a mais importante das funções que pode exercer o bibliotecário escolar, uma função que eu poderia chamar de dinamizador cultural, responsável pela difusão da leitura no espaço específico da biblioteca e no espaço mais amplo da escola em sua totalidade. Então, pergunto: o que há na confluência do trabalho do bibliotecário escolar e os demais profissionais da educação que trabalham na escola? Como uma possibilidade, lembro que esses profissionais podem implementar projetos pedagógicos que tenham a leitura como foco,fazendo funcionar a biblioteca escolar como um ponto de referência importante para os alunos, professores e comunidade. Com isso, podem fazer da escola um local propício ao desenvolvimento de leitores, ávidos por novos 5 conhecimentos, que sabem buscar fontes de informações, que valorizam o saber como elemento fundamental do processo de desenvolvimento de capacidades, de habilidades, de atitudes, de formas mais complexas e mais eficazes de ver o mundo, nele situar-se e responder a seus apelos, nele atuando como seres conscientes de seu próprio valor como cidadãos que têm um papel a cumprir na construção de um mundo melhor, mais solidário, mais humano. Os livros, que constituem a maior parte do acervo das escolas, precisam circular entre os alunos e na comunidade por via do aluno que pode levá-los para casa e compartilhá-los com seus familiares, ampliando a ação da escola na disseminação da leitura. Tudo isso é possibilitado pelo trabalho do bibliotecário. Rodas de leitura, semanas literárias, encontros literários, exposições de novas aquisições da biblioteca, visitas permanentes às salas de aula para divulgar às crianças o acervo da biblioteca, organizar as visitas periódicas das crianças a esse espaço, dentre outras tantas atividades, podem ser desenvolvidas por meio de um trabalho conjunto do bibliotecário e demais educadores da instituição escolar. Um trabalho pensado e executado dentro de um programa que supõe o compromisso de todos com a plena utilização do acervo e o envolvimento de todos, educadores e educandos, no trabalho com a leitura. Dificuldades existem: são precárias as condições em que vivem muitas escolas; há muitos problemas que afetam nossas instituições escolares públicas. Isso é fato. Não é uma tarefa fácil executar uma proposta como essa, mas nem por isso impossível. A vontade de fazer um trabalho transformador, fortalece nossa capacidade de lutar por aquilo que acreditamos ser o mais correto a fazer. E uma das formas de luta é a do trabalho pedagógico cooperativo, como já apontamos; um trabalho com base em um projeto pedagógico bem articulado, que leve em consideração o potencial de aprendizagem dos alunos, que aposte na força de um ensino bem planejado e executado pelo conjunto dos profissionais da instituição, que seja orientado para os objetivos de promover o desenvolvimento dos alunos em todos os planos: intelectual, afetivo-relacional, cultural, 6 artístico, etc. e a biblioteca e seu bibliotecário podem ser o centro irradiador dessas transformações. Não podemos nos esquecer de nossas tarefas reivindicatórias: o bibliotecário, como qualquer outra categoria profissional, deve estar organizado em seu sindicato, a fim de reivindicar seus direitos e ter, assim, a possibilidade de ver garantida sua efetiva participação no sistema escolar e em outras instâncias institucionais conforme as escolhas e possibilidades da categoria, em condições tais que permitam a manutenção da boa qualidade dos serviços prestados. O sindicato é uma instância importante para a discussão dos problemas de interesse da categoria, um fórum constante de debates em torno das políticas próprias de seu campo de atuação, que mantém alerta as consciências e, com isso, minimiza a alienação a que todos somos submetidos como classe trabalhadora dentro de uma sociedade de domínio capitalista como a nossa. Só a mudança das consciências pode trazer mudanças na sociedade; fora disso é manutenção do “status quo”, de todas as coisas como estão, sem alterações que poderiam fazer avançar o bem-estar da sociedade. O espaço escolar dá a medida dos problemas e das necessidades que afligem os profissionais que nela atuam; o espaço sindical fornece os meios pelos quais as soluções para esses problemas e o suprimento dessas necessidades podem ser buscados. E há muito que buscar, para fazer da escola o local privilegiado para a formação do aluno, com auto-estima elevada, que tem e sabe de seus conhecimentos, seus ideais, suas convicções, enfim, sabe de suas possibilidades para fazer o necessário enfrentamento dos problemas a que todos somos submetidos cotidianamente. Uma parte importante dessa tarefa cabe ao bibliotecário, que tem dentro da escola, como local de trabalho, o espaço vital para começar sua pequena grande empreitada: a disseminação da leitura entre todos os participantes da vida escolar, inclusive a comunidade que vive em seu entorno. Os ingredientes estão dados: que a mistura seja explosiva o suficiente para implodir os muros que cercam e aprisionam livros nas escolas, apartando-os de alunos, professores e demais participantes do processo educativo. Só assim o bibliotecário, unido aos demais educadores, conseguirá fazer valer a importância da escola na vida dos alunos, fazer valer a 7 importância da educação na transformação das consciências, fazer valer a importância de seu trabalho como agente imprescindível nesse processo, tornando evidente a toda sociedade a importância que tem, na vida de todos, um livro e sua leitura! Marília, 24 de outubro de 2005. Referências: JOLIBERT, Josette e col. Formando crianças leitoras. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. v.1. MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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