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1 Química Farmacêutica Faculdade de Farmácia Universidade Federal de Minas Gerais ALVOS MOLECULARES DA AÇÃO DE FÁRMACOS Teoria Professora Thais Horta Álvares da Silva 1 INTRODUÇÃO 1.1 Como os fármacos funcionam? Se pudéssemos observar dentro do corpo através de um nível molecular, veríamos que para mantê-lo saudável e em funcionamento é necessário a realização de uma série de reações químicas. Sendo assim, os fármacos, para obterem o efeito desejado, interferem e participam dessas reações químicas. Porém para que o fármaco tenha um efeito específico ele deve agir em um determinado lugar do corpo humano. 1.2 Onde os fármacos atuam? A principal estrutura formadora do corpo humano é a célula. Portanto fica claro que os fármacos devem agir em tal estrutura. A célula humana (eucariota) é limitada pela membrana celular. Essa membrana é responsável pela estrutura da célula e é ela que controla a entrada e saída de várias substâncias importantes para a manutenção da vida celular. Ela é formada por uma camada dupla de moléculas de fosfoglicerídeos, tal como a fosfatidilcolina (lecitina). Cada fosfoglicerídeo consiste de uma pequena “cabeça” polar (hidrofílica) e duas longas cadeias apolares (hidrofóbicas). Existem certas proteínas que também compõe a membrana celular. Tais proteínas situam-se sob a superfície da membrana. Outras estão embebidas na membrana, com parte de sua estrutura exposta ou na superfície externa ou na superfície interna. Outras proteínas atravessam toda a membrana e têm parte de sua estrutura exposta em ambas as superfícies da mesma. Essa localização da proteína na membrana celular vai depender do tipo de aminoácido que compõe a proteína. A porção da proteína que está embebida na membrana celular tem um grande número de aminoácidos hidrofóbicos e a porção da proteína que está na superfície da membrana possui um grande número de aminoácidos hidrofílicos. Muitas proteínas, denominadas de glicoproteínas, têm cadeias de carboidratos ligados à elas. Esses segmentos de carboidratos são importantes para o reconhecimento da célula. Dentro da célula, envolvido pela membrana celular, encontra-se o citoplasma e nele encontram-se várias outras estruturas celulares tais como o núcleo, o complexo de Golgi, o retículo endoplasmático e a mitocôndria. Na célula, os principais alvos moleculares para a ação dos fármacos são: 1. Lípides; 2. Carboidratos; 3. Proteínas; 4. Ácidos nucléicos. 2 2 LÍPIDES COMO ALVO PARA OS FÁRMACOS Existe um número relativamente pequeno de fármacos que interagem com os lípides. Em geral eles agem pelo mesmo mecanismo – interrompendo a estrutura lipídica da membrana celular. Um exemplo deste tipo de fármaco é a anfotericina B (um antifúngico usado no tratamento do chamado “pé de atleta”). Esse fármaco interage com os lípides da membrana celular do fungo construindo “túneis” através da membrana e dessa maneira o conteúdo intracelular extravasa e a célula morre. A molécula de anfotericina B possui uma banda hidrofóbica e outra hidrofílica que possui vários grupos hidroxila. Várias moléculas de anfotericina agem de maneira que essas hidroxilas formam um túnel polar permitindo a passagem de todo material polar presente no interior da célula. 3 CARBOIDRATOS COMO ALVOS PARA OS FÁRMACOS Atualmente os carboidratos são pouco utilizados como alvo para os fármacos. Isso ocorre porque, geralmente, sua função era tida apenas como de armazenamento ou estrutural. Entretanto, os carboidratos têm importante papel em vários processos celulares como ligação entre as células, regulação, reconhecimento e crescimento celulares. As bactérias e os vírus reconhecem a célula hospedeira por meio de carboidratos. Portanto fármacos que se ligam a esses carboidratos podem evitar que bactérias e vírus invadam as células hospedeiras. Muitas vezes o reconhecimento de uma célula por um vírus ou bactéria se dá por meio de carboidratos ligados à proteína, as glicoproteínas, ou ligados a lípides, os glicolípides. Os glicoesfingolípides, por exemplo, atuam na regulação do crescimento celular e, conseqüentemente, têm uma relação direta com doenças tais como o 3 câncer. Eles também são importantes na identificação de células vermelhas sangüíneas e na determinação do grupo sangüíneo. Atualmente os carboidratos têm sido considerados melhores marcadores moleculares do que os peptídeos ou os ácidos nucléicos. Isto ocorre porque existem maiores possibilidades de variações em uma estrutura de carboidrato do que para aqueles outros dois tipos estruturais. Por exemplo, pode-se formar um único dipeptídeo entre duas moléculas de alanina, pois há uma única maneira pela qual elas podem ser ligadas. Entretanto, devido aos diferentes grupos hidroxila presentes nos carboidratos, existem onze dissarcarídeos possíveis que podem ser formados a partir de duas moléculas de glicose. Isso permite a criação de um número quase infinito de alvos moleculares baseados em diversos números e tipos de açúcares ligados. As partículas do HIV (vírus causador da AIDS) são envelopadas por uma camada lípidica dupla que contém o complexo glicoprotéico gp120 - gp141 que é necessário para a ligação dos virions às células alvo e subseqüente fusão das membranas viral e celular. Inicialmente, a gp120, por meio da sua região V3, carregada positivamente, liga-se ao sulfato de heparano, carboidrato constituinte da membrana da célula alvo do hospedeiro, carregado negativamente. Posteriormente, ocorre uma ligação mais específica entre gp120 e o CD4, que é o seu receptor nas células alvo. O corante bis-azóico FP21399 (Lexigen Pharmacuticals) de caráter aniônico se liga à região V3 da gp120 impedindo a ligação do HIV à célula alvo do hospedeiro, o linfócito T auxiliar. Modelo da glicoproteína gp120 do HIV e estrutura do corante bis-azóico FP21399 4 4 ÁCIDOS NUCLÉICOS COMO ALVOS PARA OS FÁRMACOS Existem vários exemplos fármacos importantes que atuam diretamente nos ácidos nucléicos (DNA e RNA) interrompendo a sua replicação, transcrição e tradução. Os agentes intercaladores são compostos capazes de se deslizarem entre as camadas de pares de bases do DNA, modificando a forma da dupla hélice. Esta modificação previne a replicação e a transcrição do DNA. O agente antitumoral adriamicina tem um sistema tetracíclico onde três dos anéis são planares e capazes de se ajustarem dentro da dupla hélice do DNA. O grupo carregado positivamente é importante para ajudar manter o fármaco na posição correta, uma vez que ele formar uma ligação iônica com os grupos fosfatos da cadeia lateral do DNA, carregados negativamente. 5 PROTEÍNAS COMO ALVOS PARA OS FÁRMACOS 5.1 Proteínas de transporte As proteínas de transporte estão localizadas nas membranas celulares e têm como função transportar os blocos de construção química (aminoácidos, açúcares e íons metálicos), obtidos na alimentação, para dentro das células para que possam ser utilizados. Como estas moléculas são polares, elas necessitam ser transportadas através das membranas apolares. As proteínas de transporte são especificas para as diferentes moléculas transportadas. O fármaco antidepressivo fluoxetina (Prozac) é um inibidor seletivo da proteína de transporte responsável pela recaptação de serotonina nos neurônios. F3C O N CH3 H FLUOXETINA 5 5.2 Proteínas estruturais A proteína tubulina é essencial para o processo de divisão celular. Vários fármacos anti-cancerígenos (paclitaxel, vincristina, vimblastina) agem ligando-se à tubulina prevenindo seu ciclo de polimerização/ despolarização e, portanto, inibindo a divisão celular e o crescimento do tumor. N CH2CH3 OCOCH3 NR OH O CH3O CH3O NH CH3 O N OH CH2CH3 Vimblastina R = CH3 Vincristina R = CHO O OH O H O O R2O OHOO O O OH NH O R1 5.3 Enzimas As enzimas são catalisadores das reações que ocorrem no organismo. O sítio ativo de uma enzima tem uma forma tridimensional definida, na qual o substrato se encaixa. Os aminoácidos presentes no sítio ativo têm dois papéis principais. Alguns resíduos de aminoácidos estão envolvidos na ligação do substrato ao sítio ativo, enquanto os outros estão envolvidos no mecanismo da reação. O conhecimento da reação é muito importante no planejamento e desenvolvimento de fármacos. A protease do HIV é uma enzima produzida pelo vírus que tem papel fundamental na sua maturação. O bloqueio da protease do HIV detém a produção de virions infecciosas. A clonagem e a expressão da protease do HIV por bactérias permitiram sua produção em quantidades suficientes para a sua determinação estrutural por cristalografia de raios-X e para a realização de teste com potenciais inibidores. A co-cristalização com inibidores permitiu um melhor conhecimento do sítio ativo e o planejamento, auxiliados por computador, de melhores inibidores. Alguns inibidores (como o saquinavir) foram planejados para imitar o estado de transição da reação que ocorre com o substrato quando ele sofre a ação catalítica da enzima. Além disto, estes inibidores têm características de formato que permitem a ligação específica com o sítio ativo da protease. PACLITAXEL - R1 = Ph R2 = CH3CO 6 N H H O N H OH N H O CONH2 N H O N Saquinavir 1995 Protease do HIV 5.4 Receptores 5.4.1 O papel dos receptores no organismo As células são estruturas individuais, mas em um organismo tão complexo como o humano, elas têm que se comunicar umas com as outras por meio de sistemas de transmissão de mensagens. Se cada célula do coração contraísse em um tempo diferente, o coração não conseguiria exercer seu papel que é o de funcionar como uma bomba. A comunicação é essencial para assegurar que todas as células do músculo cardíaco contraiam ao mesmo tempo. O mesmo é verdade para todos os órgãos do corpo humano. A comunicação é essencial para o corpo humano funcionar de uma forma coordenada e controlada. O controle e a comunicação vêm primariamente do cérebro e da coluna vertebral (o sistema nervoso central-SNC) que recebe e envia mensagens via uma vasta rede de nervos. A mensagem é enviada sob forma de um pulso elétrico que viaja através do nervo em direção ao alvo, que pode ser uma célula muscular ou um outro nervo. Fica, portanto, difícil imaginar como as drogas afetam esse sistema de comunicação. Entretanto, há uma importante característica desse sistema que é crucial para entendimento sobre a ação dos fármacos. Os nervos não são conectados diretamente às suas células alvo. Há um pequeno espaço entre os dois (cerca de 100 Å), denominado fenda sináptica, que o impulso elétrico é incapaz de “pular”. Para a mensagem atravessar a fenda sináptica, um mensageiro químico (neurotransmissor) é liberado pela célula nervosa. Uma vez liberado este mensageiro químico difunde-se através da fenda sináptica e alcança a célula alvo onde liga-se e interage com proteínas especificas (receptores) embebidas na membrana celular. Este processo de ligação leva a uma cascata de efeitos secundários cujo resultado ou é um fluxo de íons que atravessa a membrana celular ou a ativação de enzimas dentro da célula alvo. Há então, como resultado, uma resposta biológica tal como, por exemplo, a contração de uma célula muscular ou a ativação do metabolismo de ácidos graxos nas células adiposas. Um receptor é uma molécula protéica embebida na membrana celular com parte de sua estrutura situada na superfície externa da célula. A superfície destas proteínas possui uma forma complicada contendo cavidades, ravinas e cristas e, em algum lugar nesta geografia complicada, há uma área com a forma correta para receber o encaixe do mensageiro. Quando o mensageiro químico se encaixa dentro deste sítio, ele “liga” a molécula receptora e uma mensagem é recebida. Entretanto, há uma importante diferença 7 entre enzimas e receptores: o mensageiro químico não sofre uma reação química. Ele se encaixa ao sítio de ligação da proteína receptora, passa uma mensagem e sai inalterado. Se não há reação, o que terá acontecido? Como o mensageiro químico passa para o receptor esta mensagem que é transmitida para a célula? Figura 1: Ligação de um mensageiro a um receptor O mensageiro liga-se ao receptor e induz uma mudança de conformação. Esta mudança subseqüentemente afeta outros componentes da membrana celular e leva ao efeito biológico. Os receptores podem ser canais iônicos, enzimas ligadas à membrana ou receptores que ativam um segundo mensageiro. 5.4.2 Os canais iônicos e o seu controle Alguns neurotransmissores operam por controle dos canais iônicos. Os canais iônicos exercem importante papel na membrana celular. A membrana celular é formada de uma bicamada de moléculas graxas e, portanto, o meio da membrana é hidrofóbico e funciona como uma barreira para dificultar que moléculas polares a atravessem. Por exemplo, o movimento de íons sódio e potássio através da membrana é essencial para o funcionamento dos nervos. A passagem dos íons através das membranas ocorre pelos canais iônicos. Os canais iônicos são proteínas complexas que atravessam a membrana celular e consistem de várias subunidades protéicas. O centro do complexo é uma cavidade que é constituída por aminoácidos polares que formam um poro hidrofílico. Figura 2: Estrutura do canal iônico protéico Otávio Realce 8 Os íons atravessam a barreira hidrofóbica da membrana celular movendo-se através destes canais ou túneis hidrofílicos. Entretanto este movimento é controlado por uma “fechadura” capaz de abrir ou fechar quando necessário. Essa fechadura é uma proteína receptora sensível a um mensageiro químico externo. No estado de repouso, o canal iônico está fechado, ou seja, a fechadura está fechada. Entretanto, quando um mensageiro químico liga-se ao sítio de ligação, a proteína receptora muda de conformação. Com isso a fechadura se abre permitindo a passagem dos íons pelo canal iônico. É importante enfatizar um importante ponto deste processo. Se o mensageiro é o responsável pela mudança de forma da proteína receptora, então o sítio de ligação não pode ser uma “imagem negativa” da molécula do mensageiro, caso contrário não haveria uma mudança de conformação. Entretanto, quando o sítio de ligação recebe o mensageiro, tal sítio é moldado dentro de uma forma correta para um encaixe ideal. A operação do canal iônico explica porque um número relativamente pequeno de moléculas de neurotransmissores liberadas por um nervo é capaz de ter um efeito biológico tão significativo na célula alvo. Pela abertura de poucos canais iônicos, milhares de íons são mobilizados por cada molécula de neurotransmissor envolvida. Figura 3: Mecanismo de fechadura para abertura do canal iônico 5.4.3 Enzimas ligadas á membrana O segundo caminho pelo qual o receptor pode passar uma mensagem de um mensageiro químico para a célula é funcionando também como enzima. Nesta situação, a proteína receptora está embebida na membrana celular, com parte de sua estrutura exposta na superfície externa da célula e a parte de sua estrutura exposta na superfície interna da membrana. A superfície externa contém um sítio de ligação de um mensageiro químico enquanto a superfície interna possui um sítio ativo que está fechado no estado de repouso. Quando um mensageiro químico liga-se ao receptor,isto causa uma mudança de conformação que abre o sítio ativo e leva a uma reação química dentro da célula. Enquanto o mensageiro está ligado, o sítio ativo permanece aberto e então uma única molécula de neurotransmissor pode amplificar este sinal pela ligação por tempo suficiente para que ocorram várias reações (Figura 4). 9 Figura 4: Ativação do receptor tipo enzima ligada à membrana Independente do mecanismo específico envolvido na ativação ou desativação de uma enzima, o resultado final é o mesmo. A mudança na conformação do receptor (ou estrutura terciária) leva à ativação (ou desativação) de enzimas. Desde que as enzimas podem catalisar as reações de um grande número de moléculas, há uma amplificação do sinal. Concluindo, o mecanismo pelo qual o neurotransmissor passa uma mensagem envolve apenas mudança na conformação molecular e não reações químicas. Estas mudanças na conformação definitivamente levam a algum tipo de reação química envolvendo enzimas. Como resultado temos a amplificação da mensagem original de modo que um número relativamente pequeno de moléculas de neurotransmissor pode levar um efeito biológico. 5.4.4 Receptores acoplados à proteína-G Esse tipo de receptor não afeta diretamente os canais iônicos ou as enzimas. Ao invés disso, eles ativam uma proteína sinalizadora denominada proteína-G que então inicia uma cascata de sinais envolvendo diversas enzimas. Inicialmente, ocorre a ligação do neurotransmissor ou hormônio ao receptor. Em conseqüência disso o receptor muda de conformação e expõe um novo sítio de ligação na superfície interna da membrana celular. Esse novo sítio de ligação reconhece então, uma proteína-G especifica. Note que a estrutura da membrana celular é uma estrutura fluida e, portanto, é possível para diferentes proteínas “flutuar” através dela. O processo de ligação entre o receptor e a proteína-G causa uma mudança de conformação no complexo receptor- proteína G em torno do sítio de ligação do nucleotídeo guanidina. Isto enfraquece as forças de ligação intermoleculares que mantêm o GDP ligado e este é então liberado. Entretanto, a cavidade de ligação não fica vazia por muito tempo pois ela agora tem a forma correta para ligar-se ao GTP (trifosfato de guanosina). O GTP então se encaixa no lugar do GDP. Como resultado há uma outra mudança conformacional na proteína-G que enfraquece ligação entre as suas três subunidades protéicas, de modo que a subunidade α (que contém o GTP encaixado) desliga-se das subunidades β e γ. Ambas as subunidades (α e dímero β-γ) então se afastam do receptor. O complexo mensageiro receptor é capaz de ativar várias proteínas-G antes que o mensageiro se desligue do receptor. Com isso há uma amplificação no sinal. Ambas as subunidades (α e dímero β-γ) estão agora prontas para entrar no segundo estágio do mecanismo de sinalização. O primeiro estágio da transmissão do sinal é comum a todos os receptores acoplados à proteína G. Entretanto, estágios subseqüentes dependem do tipo de proteína-G que está envolvida e de qual subunidade α especifica é formada. Diferentes subunidades α (existem pelo menos 20 delas) têm diferentes alvos e diferentes 10 efeitos que podem ser a ativação de enzimas, com a síntese de um segundo mensageiro, a inibição de uma enzima ou a ativação de canais iônicos. Figura 5: Interação do receptor com a proteína G 6 PLANEJAMENTO DE FÁRMACOS COM AÇÃO EM RECEPTORES ESPECÍFICOS A molécula do mensageiro induz uma mudança forma do receptor por meio de uma interação especifica entre o mensageiro e o receptor. Essas interações são as mesmas que ocorrem na ligação enzima-substrato, ou seja, ligações de hidrogênio, interações de van der Waals, interações dipolo-dipolo e interações dipolo-dipolo induzido. Tanto o mensageiro quanto a proteína receptora possuem conformações ou formatos que maximizam as forças de ligação. Assim como na ligação enzima-substrato, há um fino balanço envolvendo a ligação mensageiro-receptor. As forças de ligação devem ser suficientes para mudar a forma do receptor num primeiro estágio, mas não tão fortes ao ponto do mensageiro ser incapaz de deixar o receptor. Muitos neurotransmissores ligam-se rapidamente a seus receptores, então eles mesmos se soltam dos receptores tão logo a mensagem é recebida pela célula. Como exemplo de várias forças de ligação envolvidas, vamos considerar o neurotransmissor e o receptor hipotéticos mostrados na figura 6. O neurotransmissor hipotético tem um anel aromático que pode formar interações de van der Waals, um grupo hidroxila (alcoólico) que pode formar interações do tipo ligação de hidrogênio e um centro nitrogenado que pode formar interações iônicas ou eletrostáticas. 11 Figura 6: Um neurotransmissor e um receptor hipotético A proteína receptora hipotética tem três grupos ligantes complementares e é parte de um canal iônico. Quando o neurotransmissor está ausente, o receptor está de tal forma que o canal iônico está fechado. Figura 7: Posicionamento da proteína receptora na membrana celular Como o sítio de ligação tem grupos ligantes complementares aos grupos descritos acima, o neurotransmissor hipotético pode encaixar-se dentro do sítio e ligar-se fortemente a ele. Mas como isto muda a forma do receptor? Primeiramente o encaixe não deve ser totalmente exato ou não haveria razões para que o receptor mudasse de forma. Neste exemplo, considera-se que a molécula mensageira encaixa-se ao sítio de ligação e que dois dos três possíveis grupos ligantes ficam bem ligados. O terceiro grupo ligante, entretanto (o que possui nitrogênio carregado), não está totalmente na posição correta. Ele está próximo suficiente para ter uma fraca interação, mas não próximo suficiente para obter uma interação ótima. A proteína receptora então é forçada a alterar sua conformação para obter a melhor interação de ligação. O grupo carboxilato do receptor é puxado para próximo do nitrogênio carregado positivamente da molécula do mensageiro e, como resultado, a fechadura é aberta e permanecerá aberta até que a molécula do mensageiro se libere do sítio de ligação, permitindo que o receptor retorne à sua forma original. 12 Na realidade a mudança conformacional envolvendo a abertura de um canal iônico é complexa, e a “fechadura” está um pouco distante do sítio de ligação do receptor. Ainda assim, o mesmo principio permanece. A ligação do mensageiro químico induz uma mudança conformacional que leva a uma série de efeitos, resultando na abertura do canal iônico. Figura 8: A abertura da “fechadura” 6.1 Planejamento de agonistas Sabendo quais grupos ligantes estão presentes no sítio do receptor e como eles estão distribuídos, fármacos podem ser planejados para interagir com este receptor. Para que isso seja possível devem-se considerar os seguintes fatores que influenciam na interação do agonista com o receptor: - o fármaco deve ter os grupos ligantes corretos; - o fármaco deve ter os grupos ligantes posicionados corretamente; - o fármaco deve ter o tamanho correto para o sítio ligante. Considerando o nosso receptor hipotético e seu neurotransmissor natural, então pode-se predizer razoavelmente que uma série de moléculas poderão interagir com o receptor e outras não. Por exemplo, considerando as estruturas mostradas na figura 9. Elas são todas diferentes, mas todas elas contêm os grupos ligantes necessários para interagir com o receptor. Portanto, elas podem muito bem ser potenciais agonistas ou alternativas para o neurotransmissor natural. Figura 9- Agonistas possíveis Já observando as estruturas da figura 10, verifica-se que faltam um ou mais dos grupos ligantes requeridos e com isso é esperado que eles tenham pouca atividade. Éesperado que estas moléculas se movam para dentro do sítio do receptor, porém se desliguem rapidamente pois ligam-se fracamente ao receptor. Neste exemplo supõe-se que todos os três grupos ligantes são essenciais. Poder-se ia questionar que o composto II (fig. 10) poderia ser pouco efetivo embora falte um grupo 13 adequado para formar ligação de hidrogênio. Porque, por exemplo, ele não poderia ligar-se inicialmente por meio da força de van der Waals e então alterar a forma da proteína receptora via uma ligação iônica? De fato, isto parece pouco provável quando se considera que neurotransmissor liga-se ao receptor, passa sua mensagem e então deixa o sítio de ligação muito rapidamente. A fim de fazer isto, deve haver um fino balanço nas interações de ligação entre receptor e neurotransmissor. Deve haver força suficiente para uma ligação efetiva do neurotransmissor tal que o receptor mude de conformação. Entretanto, as interações de ligação não podem ser muito fortes, ou então o neurotransmissor não seria capaz de deixar o sítio receptor e este não retomaria a sua forma original. Deve-se considerar que o neurotransmissor precisa de todas estas interações de ligação para que seja efetivo. A falta de uma única destas interações levará a uma perda significativa da atividade. Figura 10: Estruturas que possuem grupos ligantes em número menor do que o requerido A molécula deve ter os grupos ligantes corretos, mas se eles estiverem na posição errada, não serão capazes de formar todas ligações ao mesmo tempo. Como resultado, as ligações serão fracas e a molécula se desligará muito rapidamente do receptor e com isso a molécula será inativa. Uma molécula tal como a mostrada na figura 11 obviamente tem seus grupos ligantes na posição errada e não se encaixará bem ao receptor. A imagem especular do neurotransmissor hipotético também não se encaixará ao receptor (fig 12) Essa molécula tem a mesma fórmula e a mesma reatividade química, mas não possui a mesma forma. Ela é uma imagem especular não superponível e não se encaixará ao sítio de ligação do receptor. 14 Figura 11: Molécula com grupos ligantes em posições incorretas Figura 12: Interação entre o neurotransmissor hipotético e sua imagem especular com o sítio Há somente duas diferenças detectáveis entre duas imagens especulares (ou enantiômeros) de um composto quiral. Eles desviam o plano da luz polarizada em direções opostas e eles interagem diferentemente com outros sistemas quirais tais como as enzimas e receptores. Isto tem uma conseqüência muito importante para indústria farmacêutica. Compostos farmacêuticos são normalmente sintetizados a partir de materiais iniciais simples usando reagentes químicos aquirais (simétricos). Estes reagentes são incapazes de distinguir entre as duas imagens especulares de um composto quiral. Como resultado, muitos fármacos quirais são sintetizados como uma mistura de ambas imagens especulares (um racemato). Entretanto, somente um desses enantiômeros interagirá com o receptor. Geralmente o outro enantiômero circula no organismo sem fazer nada. Às vezes, ele interage com o um receptor totalmente diferente e como resultado leva a um efeito colateral indesejado. Esta é a explicação para a tragédia da talidomida. Um dos enantiômeros da talidomida é um excelente sedativo. O outro tem ação teratogênica (i.e., induz anormalidades em embriões humanos). Mas se o enantiômero “errado” não causa qualquer dano, parece ser um grande desperdício de tempo, dinheiro e esforço sintetizar fármacos que são somente 50% eficientes. Uma das grandes áreas de pesquisa química nos anos atuais tem sido no campo de sínteses assimétricas – a síntese seletiva de um único enantiômero de um composto quiral. 15 A importância de se ter grupos ligantes na posição correta tem levado ao desenho de fármacos baseados no que é considerado ser o grupo farmacofórico da molécula do mensageiro. Dessa forma, pode-se dizer que a posição correta dos grupos ligantes é que decide se o fármaco agirá como um mensageiro ou não e que o restante da molécula serve somente para manter os grupos ligantes na posição correta. Portanto, a atividade de aparentemente várias estruturas em relação a determinado receptor pode ser explicada se essas estruturas contêm os grupos ligantes na posição correta. Estruturas ou armações moleculares que seguram esses grupos ligantes na posição correta podem ser desenhadas, levando a uma nova série de fármacos. É possível para um composto ter um os grupos ligantes corretos na posição correta e ainda assim falhar na interação efetiva se esse composto possui o tamanho ou a forma inadequada. Como exemplo considera-se a estrutura mostrada na figura 13, como possível candidato para o hipotético sistema receptor. Figura 13: Estrutura de um ligante contendo um grupo meta-metil A molécula tem um grupo meta-metila no anel aromático e uma cadeia alquila longa ligada ao átomo de nitrogênio. Considerando apenas o fator tamanho, já poderíamos concluir que essas duas características impediriam esta molécula de se ligar efetivamente ao receptor. O grupo meta-metila agirá como um pará-choque e impedirá a estrutura de se aprofundar o suficiente dentro do sítio de ligação para que haja uma ligação efetiva. Além disso, a longa cadeia alquila no átomo de nitrogênio fará com que parte da molécula fique muito distante do espaço necessário para que a ligação ocorra. Um completo conhecimento deste espaço no sítio de ligação é então necessário quando se pretende planejar estruturas análogas para se encaixar ao sítio. 6.2 Planejamento de Antagonistas Quando existe um excesso de neurotransmissor sendo liberado no organismo, devem se planejar fármacos que tenha atividade antagonista. Há várias estratégias, mas na teoria pode-se planejar um fármaco (um antagonista) que terá a forma correta para ligar-se ao sítio do receptor, porém ou ele não provocará a mudança de forma da proteína receptora ou provocará uma distorção muito grande desta proteína. O composto mostrado na figura 14 encaixa-se ao sítio de ligação perfeitamente e, como resultado, não causa qualquer mudança de forma. Por isso, não há efeito biológico e o 16 sítio de ligação está bloqueado para o neurotransmissor natural. Nesta situação, o antagonista compete com o agonista pelo receptor, mas freqüentemente o antagonista conseguirá sobressair mais porque ele se liga mais fortemente ao receptor. Se a forma pela qual ocorre a ligação ao receptor é conhecida, então é possível planejar fármacos que poderão agir como agonistas ou antagonistas. Infelizmente isto não é tão simples quanto parece. Encontrar o receptor e obter sua estrutura tridimensional não é tarefa fácil. Utilizando-se da modelagem molecular baseada em computadores e a estrutura cristalográfica obtida por raios-X, obtêm-se uma representação mais apurada das proteínas e de seus sítios de ligação e com isso é possível o planejamento racional de fármacos. Figura 14: Ligante agindo como um antagonista no sítio de ligação Nem sempre o conhecimento da estrutura do sítio de ligação, ajuda no planejamento de antagonistas. Há vários exemplos de antagonistas que não aparentam similaridade estrutural ao neurotransmissor natural e não possuem os requisitos requeridos pelo sítio de ligação. Tais antagonistas podem não ter qualquer área correspondente no sítio de ligação e ligam-se a uma região totalmente diferente do receptor. Este processo de ligação altera a forma da proteína receptora de tal forma que o sítio de ligação do neurotransmissor é distorcido e com isso torna-se incapaz de ser reconhecido pelo neurotransmissor natural. Com isso, a ligação entre o neurotransmissor e receptor será impedida e a mensagem seráperdida. Esta forma de antagonismo é não-competitiva uma vez que o antagonista não está competindo com o neurotransmissor pelo mesmo sítio de ligação. Considerando que a proteína receptora possui vários resíduos de aminoácidos que são capazes de interagir com uma molécula visitante e que há próximo ao sítio de ligação áreas que são capazes de formar interações do tipo van der Waals, iônicas, ou ligação de hidrogênio, estas áreas podem ser usadas por outras moléculas. Se estas moléculas ligam- se a essas áreas e estas áreas estão na parte de cima ou parcialmente de cima do sítio de ligação do neurotransmissor, então essas moléculas agirão como antagonistas e evitarão que o neurotransmissor alcance o sítio de ligação. Esta forma de antagonismo também tem sido denominada como efeito “quarda-chuva” e é uma forma de antagonismo competitivo uma vez que o sítio de ligação normal será afetado diretamente. 17 Figura 15: Antagonismo não competitivo 6.3 Planejamento de Agonistas Parciais. Freqüentemente um ligante que é descoberto não pode ser definido nem como um antagonista nem como um agonista puro. O composto age como um agonista e produz um efeito biológico, mas este efeito não é tão grande como o que seria obtido por um agonista puro. Este tipo de composto é denominado de agonista parcial. É certo que um agonista parcial deve ligar-se ao receptor para ter um efeito agonista. Entretanto, ele pode ligar-se de tal maneira que a indução de mudança conformacional não é ideal e os efeitos subseqüentes da ativação do receptor são menores. Em uma situação hipotética, poderíamos imaginar um agonista parcial como sendo uma molécula que tem um encaixe quase perfeito ao sítio de ligação, tal que essa ligação resulte em somente uma distorção muito pequena do receptor. Isto então, irá provocar somente uma abertura parcial do canal iônico. Outra explicação para o agonismo parcial é que a molécula em questão possa se ligar ao receptor de duas maneiras diferentes usando diferentes regiões do sítio de ligação. Um modo de ligação ativaria o receptor (efeito agonista), enquanto o outro não (efeito antagonista). O balanço entre agonismo e antagonismo, então, dependeria da proporção relativa de moléculas que se ligam de uma maneira ou de outra. Uma terceira explicação seria a de que o agonista parcial em questão seria capaz de distinguir entre tipos diferentes de receptores. Como vimos anteriormente, os receptores nos quais os mesmos mensageiros químicos se ligam não são todos iguais. Há vários tipos e subtipos de receptores. Um agonista parcial pode distinguir entre estes tipos e subtipos, agindo como agonista em um subtipo, mas como antagonista em outro. 18 Figura 16- Agonismo parcial BIBLIOGRAFIA DARNELL, J.; LODISH, H.; BALTIMORE, D. Molecular Cell Biology, 2 ed. Scientific American Books. 1105 p. GRAHAN, L. P. An Introduction to Medicinal Chemistry. 2ed. Oxford University Press, 2001. 646 p. FOYE, O. W. et al. Principles of Medicinal Chemistry. 4 ed. Wilians & Wilkins, 1995. 995 p. Esta apostila é parte do trabalho desenvolvido pelo bolsista MARCO TÚLIO MACHADO no Programa de Iniciação à Docência do PFA.
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