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A TENDÊNCIA À ATUALIZAÇÃO: Uma revisão da literatura Elizabeth Freire 1. A psicoterapia centrada na pessoa A psicoterapia centrada na pessoa 1 , desenvolvida pelo psicólogo americano Carl Rogers, apoia-se fundamentalmente no pressuposto da tendência à atualização. O terapeuta centrado na pessoa confia na tendência do indivíduo para crescer, desenvolver-se e atualizar-se, e sua única função é criar um clima interpessoal que promova a liberação desta tendência (Bozarth, 1998; Bozarth & Brodley, 1991). Rogers (1959) afirma que a psicoterapia centrada na pessoa consiste na liberação de uma capacidade já existente num indivíduo potencialmente competente e não na manipulação por um expert de uma personalidade mais ou menos passiva: “A hipótese central da abordagem centrada na pessoa é a de que o indivíduo possui dentro de si mesmo vastos recursos para a auto- compreensão e para alterar o seu auto-conceito, suas atitudes básicas e seu comportamento auto-dirigido, e estes recursos podem ser liberados se um clima definido de atitudes psicológicas facilitadoras puder ser oferecido” (Rogers, 1980, p.115). 2. As origens da psicoterapia centrada na pessoa Carl Rogers iniciou seu trabalho como psicólogo em 1928, no Rochester Society for the Prevention of Cruelty to Children, uma instituição pública que atendia crianças sem recursos e suas famílias, encaminhadas pelos tribunais ou pelo serviço social do Estado. Nessa instituição, Rogers trabalhou durante doze anos com psicoterapia, psicodiagnóstico e orientação familiar. Devido ao seu espírito muito pragmático e crítico, 1 Também chamada de “Terapia Centrada no Cliente”. 2 Rogers constantemente se questionava se o que ele fazia estava realmente ajudando aquelas crianças e suas famílias. Em conseqüência desse intenso questionamento, ele foi desenvolvendo uma abordagem em psicoterapia distinta da que lhe havia sido ensinada em sua formação, basicamente psicanalítica. Em 1940, a Universidade de Ohio contratou-o para ser professor-residente e supervisor de psicólogos em formação clínica. Como supervisor clínico, Rogers introduziu a inovadora metodologia de gravação das sessões terapêuticas. Ele foi o primeiro psicoterapeuta a fazer gravações sonoras de sessões de terapia e a torná-las disponíveis para a comunidade profissional (Bozarth, 1998). A aparelhagem utilizada naquela época envolvia enormes gravadores de rolo e discos de vidro que precisavam ser instalados numa sala anexa à sala de atendimento. Com esta atitude pioneira, Rogers contribuiu para a desmistificação da psicoterapia, atravessando o labirinto de mistério que rodeava o trabalho dos psicoterapeutas em geral (Raskin, 1948). Como resultado desta intensa experiência clínica e de pesquisa, Rogers (1946) descobriu que no interior do indivíduo residiam forças construtivas que, até então, eram subestimadas e cujo poder não era reconhecido pelos psiquiatras e psicanalistas de sua época. Rogers constatou que quando havia uma atmosfera de aceitação e liberdade na relação terapêutica, livre de orientações, críticas ou aprovações, o cliente era capaz de reconhecer e expressar aspectos “ocultos” do seu eu, incluindo as suas facetas mais negativas. Após reconhecer e expressar estas facetas negativas, o cliente, invariavelmente, descobria dentro de si impulsos e características extremamente positivas, saudáveis e maduras. O cliente era capaz de reorganizar suas atitudes e redirecionar seu comportamento numa direção construtiva e esta expressão dos impulsos positivos que promovem a maturidade era um dos aspectos mais certos e previsíveis do processo terapêutico. O que mais impressionou Rogers, nesta descoberta, foi o fato do processo de crescimento ocorrer sem o terapeuta guiar ou conduzir o cliente, isto é, quando o terapeuta tinha, no relacionamento com o cliente, uma função apenas “catalizadora”. Esta função que Rogers qualificou de “catalizadora” consistia em criar uma atmosfera calorosa e permissiva na qual o indivíduo fosse livre para expressar qualquer atitude e sentimento, por mais anticonvencional, absurdo ou contraditório que pudesse ser, e na qual o terapeuta 3 utilizasse somente procedimentos e técnicas que transmitissem sua compreensão e aceitação profunda das atitudes expressas pelo cliente. Essa impressionante capacidade do indivíduo para descobrir e perceber, espontaneamente, as inter-relações entre suas próprias atitudes e seu relacionamento com a realidade e para reorganizar suas atitudes e comportamentos na direção de uma maior maturidade, sem ser guiado por fatores externos nem determinado por elementos prévios de sua experiência, só pode ser adequadamente explicada, segundo Rogers (1946), se for admitida a presença de uma força espontânea dentro do organismo que tem a capacidade de integração e redirecionamento. Diz Rogers (1986a): “Na terapia centrada no cliente, a pessoa é livre para escolher qualquer direção, mas, na realidade, ela seleciona caminhos positivos e construtivos. Eu só posso explicar isto em termos de uma tendência direcional inerente ao organismo humano – uma tendência para crescer, se desenvolver e realizar plenamente seu potencial” ( p.127). Esta tendência foi denominada, a partir da década de 50, de tendência à atualização (actualizing tendency) tornando-se o postulado fundamental da abordagem centrada na pessoa. 3. A tendência à atualização “The human organism is active, actualizing, and directional. This is the basis for all of my thinking” Rogers 3.1. Definição O conceito de tendência à atualização é o constructo fundamental da teoria da personalidade de Carl Rogers (Bozarth, 1998; Bozarth & Brodley, 1991; Brodley, 1999). Rogers definiu-o como “a tendência inerente ao organismo para desenvolver todas as suas capacidades em direções que sirvam para manter ou aperfeiçoar o organismo” (Rogers, 1959, p. 196). A atualização, na teoria da personalidade de Rogers, é a única e básica 4 motivação do ser humano, ou o substrato de toda motivação (Rogers, 1963). A tendência à atualização está presente em todo organismo vivo e, no ser humano, se manifesta como um fluxo direcional no sentido de um desenvolvimento mais completo e complexo: “Existe uma fonte central de energia no organismo humano ... talvez isto seja melhor conceitualizado como uma tendência na direção da satisfação, da realização, da manutenção e aperfeiçoamento do organismo” (Rogers, 1980, p.123). 3.2. Características da tendência à atualização Brodley (1999), ao analisar o conceito da tendência à atualização no contexto da teoria da personalidade de Rogers, distinguiu as seguintes características neste constructo: Individual e universal A tendência à atualização é ao mesmo tempo individual e universal (Rogers, 1980). A expressão desta tendência é sempre única para cada indivíduo, ao mesmo tempo, em que é a tendência motivadora de todos os organismos. Ubíqua e constante A tendência à atualização é ubíqua e constante (Rogers, 1963; Rogers & Sanford, 1984). É a motivação para todas as atividades, para todos os comportamentos, em todos os níveis de funcionamento do indivíduo, em todas as circunstâncias. A tendência à atualização opera tanto sob circunstâncias favoráveis quanto desfavoráveis para manter e enriquecer o indivíduo. É intrínseca às respostas do indivíduo aos estímulos e à manutenção de sua integridade. É a energia e direção de cada momento da vida da pessoa. Se a pessoa está viva, então a tendência à atualização estáoperando: “Isto é a verdadeira natureza do processo que chamamos vida. Esta tendência é operativa a todo momento, em todas os organismos. Na verdade, é somente a presença ou ausência deste processo direcional total que nos permite dizer se um determinado organismo está vivo ou morto” (Rogers, 1977, p. 239). 5 Processo direcional A tendência à atualização possui uma direção construtiva. É, portanto, um processo seletivo, pois não envolve o desenvolvimento de todas as potencialidades do organismo, como por exemplo, a capacidade para sentir náusea, ou a capacidade para a auto- destruição, mas somente das potencialidades que promovem a integridade, a preservação e o desenvolvimento do indivíduo. Autonomia A tendência à atualização opera na direção da autonomia e no sentido contrário à heteronomia (Rogers, 1963). “A pessoa se move inerentemente na direção da auto- regulação e auto-determinação” (Brodley, 1999, p. 111). Atualização do eu A “atualização do eu” (self-actualization), na teoria da personalidade de Rogers de 1959 1 , é definida como a expressão da tendência à atualização na porção da experiência do organismo que é simbolizada como “eu”. A tendência à “atualização do eu” é, portanto, um “sub-sistema” da tendência geral à atualização do organismo, constituindo um “sub- aspecto” da motivação (Rogers, 1959). “A atualização do eu se refere a uma ramificação da tendência à atualização que ocorre com o desenvolvimento do eu, com parte desta tendência dedicando-se à atualização da estrutura do eu” (Ford, 1991, p.104). A teoria do sub-sistema do “eu” explica porquê muitos comportamentos do indivíduo parecem contradizer a direcionalidade construtiva da tendência à atualização (ver tópico 3.3. “A cisão na tendência à atualização”) . Natureza pró-social do ser humano O comportamento social construtivo é uma direção básica da tendência à atualização (Rogers, 1982). Os aspectos pró-sociais da tendência à atualização, segundo 1 Ford (1991) demonstra que Rogers modificou o significado teórico do conceito de “atualização do eu” no seu “magnum opus” A Theory of Therapy, Personality, and Interpersonal Relationships, as Developed in the Client-Centered Framework publicado em 1959. Em escritos anteriores, Rogers não diferenciava o conceito de tendência à atualização do conceito de tendência à atualização do eu, estes eram utilizados indistintamente, como tendo o mesmo significado. “There is evidence that a number of psychologists, even scholars and critics 6 Brodley (1999) são: capacidade para identificação que leva a sentimentos de simpatia por outras pessoas, capacidade para empatia, tendência para afiliação, vinculação, comunicação, cooperação e colaboração social, capacidade para formação de regras morais e éticas e a tendência para se esforçar para viver de acordo com estas regras. Contudo, Brodley observa que, devido à complexidade da natureza social humana, a expressão desta tendência pró-social é inevitavelmente influenciada por contextos sociais e culturais. Rogers (1958) afirma que o ser humano, quando livre da defensividade, revela uma natureza socialmente construtiva: “[o homem], quando você o conhece profundamente, em seus piores e mais perturbados estados, não é mal nem demoníaco... Não precisamos perguntar quem irá socializá-lo, porque uma de suas necessidades mais profundas é a de afiliação e comunicação com outros. Quando somos capazes de libertar o indivíduo da defensividade, de forma que esteja aberto à larga extensão de suas próprias necessidades, bem como à larga extensão das demandas sociais e ambientais, pode-se confiar que suas reações serão positivas, dirigidas para a frente, construtivas” (p.28). 3.3. A cisão na tendência à atualização A tendência à atualização, segundo Rogers (1959), promove a atualização do organismo como um todo, mas à medida em que o eu se desenvolve, um sub-sistema da tendência à atualização também se desenvolve no sentido da atualização do eu. Entretanto, o “eu”, ou a “estrutura do eu” (também chamada de auto-conceito), pode se desenvolver num estado de incongruência em relação às experiências do organismo. A incongruência desenvolve-se devido à necessidade da criança de receber consideração positiva das pessoas significativas (significant others). A criança tende a valorar sua experiência não pelo grau em que a experiência mantém ou desenvolve o seu organismo, mas pela probabilidade de receber a consideração positiva das pessoas significativas. Desta forma, a of Rogerian theory, are unclear regarding the accurate meaning and implication of self-actualization in contemporary person-centered theory (p.101) 7 estrutura do eu se desenvolve de acordo com os valores introjetados das pessoas significativas, e não mais de acordo com o seu processo de valoração organísmico (organismic valuing process), conforme salienta Rogers (1959): “Quando uma experiência do eu é evitada (ou buscada) unicamente porque é menos (ou mais) digna de consideração do eu, diz-se que o indivíduo adquiriu uma condição de valor... isto significa que alguns comportamentos, que são considerados positivamente, não são experienciados pelo organismo como realmente satisfatórios. Outros comportamentos, que são considerados negativamente, não são experenciados como realmente insatisfatórios” (pp. 224-225). Conseqüentemente, quando as percepções do eu (ou estrutura do eu) tornam-se incongruentes com a experiência do organismo devido à introjeção de “condições de valor”, o sub-sistema da tendência à atualização do eu pode tomar uma direção antagônica à direção da tendência à atualização do organismo (Rogers, 1959). Rogers considera esta dissociação ou ruptura da tendência à atualização “uma canalização perversa de parte da tendência à atualização em comportamentos que não atualizam” (Rogers, 1963). 3.4. A expressão da tendência à atualização sob condições desfavoráveis Brodley (1999) considera que o comportamento de uma pessoa possui outros determinantes além da tendência à atualização, como as características inatas e aprendidas e as circunstâncias de vida da pessoa. A interação dinâmica da tendência à atualização com estas outras causas podem ou não resultar em comportamentos organismicamente construtivos ou no que a sociedade considera como construtivos. Segundo a autora, as circunstâncias vividas por muitas pessoas, provavelmente pela maioria das pessoas, não são apropriadas para o desenvolvimento pleno de muitas de suas potencialidades. Mas a tendência à atualização persiste, e não é menos forte, menos presente, ou menos funcional, sob circunstâncias desfavoráveis. “A tendência à atualização pode, é claro, ser frustrada, mas não pode ser destruída sem que se destrua o organismo (Rogers, 1980, p.118)”. A expressão da tendência à atualização no processo do indivíduo, ou os resultados 8 deste processo, portanto, podem ser mais ou menos distorcidos ou tolhidos dependendo das circunstâncias desfavoráveis. Rogers (1977, 1980) utilizou uma imagem originada de suas lembranças da infância, a imagem de uma caixa de batatas que brotaram mesmo na escuridão gelada do porão de sua casa, como uma metáfora da maneira como a tendência à atualização se manifesta mesmo sob as condições mais desfavoráveis. Ele conta que, durante o inverno, havia uma latano porão, um metro abaixo de uma pequena janela, que armazenava o suprimento de batatas para o inverno. Apesar das condições serem desfavoráveis, as batatas brotavam e podiam crescer de 60 a 90 centímetros em direção à luz distante da janela. Mas seus brotos eram brancos, pálidos, espigados, bem diferentes dos brotos verdes saudáveis que exibiam quando plantadas no solo na primavera: “Em seu crescimento fútil, bizarro, eram uma espécie de expressão desesperada da tendência direcional que estou descrevendo. Nunca se tornariam uma planta, nunca amadureceriam, nunca preencheriam suas potencialidades reais. Entretanto, sob as mais adversas circunstâncias, lutavam para tornar-se. A vida não desistiria, mesmo se não pudesse florescer” (Rogers, 1977, p.8). Ao tratar indivíduos cujas vidas foram “terrivelmente emaranhadas”, homens e mulheres que foram abandonados em enfermarias de hospitais públicos, Rogers se lembrava destes brotos de batata. As condições em que estas pessoas se desenvolveram foram tão desfavoráveis, diz Rogers (1977), que “suas vidas muitas vezes parecem anormais, distorcidas, dificilmente humanas”: “Entretanto, deve-se confiar na tendência direcional que nelas existe. O indício para entender seu comportamento é de que estão se esforçando, do único modo que lhes é possível, para alcançar o crescimento, para tornar-se alguém. Para nós, os resultados podem parecer bizarros e fúteis, mas são tentativas desesperadas da vida para tornar-se ela mesma” ( p.8). 9 3.5. A sabedoria do organismo O constructo da tendência atualizante opõe-se à concepção dominante de que o ser humano é basicamente irracional e que, se seus impulsos não forem controlados, conduzir- lhe-ão à destruição dos outros e de si mesmo. Rogers (1962) afirma que, após vinte e cinco anos de experiência em psicoterapia, chegou à inevitável conclusão de que o comportamento humano é primorosamente racional, movendo-se com sutil e ordenada complexidade na direção dos objetivos que o organismo está se esforçando por alcançar: “A tragédia para a maioria de nós é que nossas defesas nos impedem de estarmos conscientes dessa racionalidade, de forma que conscientemente nos movemos em uma direção, enquanto que organismicamente nos movemos em outra (Rogers, 1962, p.30)”. O indivíduo sem defesas, aberto à experiência do seu organismo, apreende significados que constituem na indicação mais sábia, satisfatória e apropriada para o seu comportamento: “o homem é mais sábio que o seu intelecto”, diz Rogers (1963). A natureza básica do ser humano, quando funcionando livremente, sem barreiras, é construtiva e digna de confiança. A patologia psicológica e social ocorre, segundo Rogers (1959, 1963), devido à cisão na tendência à atualização, que leva à dissociação entre os comportamentos que são guiados por rígidos conceitos e constructos, e os comportamentos que são guiados por processos organísmicos. O modo mais eficiente e satisfatório de viver não envolve esta dissociação. A pessoa que é psicologicamente madura confia nas direções dos processos organísmicos internos que, em coordenação com os processos conscientes, conduzem-na na direção de um encontro total, unificado, integrado e adaptativo com a vida e seus desafios (Rogers, 1963). 3.6. A natureza humana é “boa”? A teoria da personalidade de Rogers tem sido criticada por apresentar uma visão “boa” e ingênua da natureza humana (May, 1982; Quinn, 1993; Walker, 1956). Esta crítica, segundo Brodley (1999), se baseia numa compreensão equivocada do conceito de tendência à atualização. A natureza “construtiva” da tendência à atualização não se refere a uma bondade ética ou moral das respostas do indivíduo às circunstâncias, mas a uma motivação no sentido da manutenção, integridade e atualização das potencialidades. 10 Rogers (1982) não atribuiu um valor moral ou ético à natureza “construtiva” da tendência à atualização: “Eu descobri que se você alcança o cerne do indivíduo, você encontra algo construtivo, não destrutivo. As pessoas dizem para mim, “Oh, então você acredita que o homem é bom”. Eu não gosto do termo bom. Isto é um julgamento moral... Nós olhamos para uma planta. Não decidimos se ela é [boa ou] má por natureza. Apenas supomos que, dadas as condições certas, ela crescerá, florescerá e produzirá uma vida normal. Não pensamos da mesma forma em relação a humanos... Eu certamente lidei com uma profusão de pessoas que estão fazendo coisas más, que estão fazendo coisas que são socialmente destrutivas. Mas... se você conseguir conhecer a pessoa por dentro, descobrirá que ela gostaria de viver em harmonia e é construtiva por natureza” (p.41). A destrutividade, para Rogers (Ford, 1994; Rogers, 1957b, 1962, 1982), não é inerente no ser humano: “Minha experiência não fornece nenhuma evidência para acreditar que se os elementos mais profundos da natureza humana fossem liberados nós teríamos um descontrolado e destrutivo id desatrelado no mundo” (Rogers, 1957b, p.201). Num ser humano hipoteticamente aberto a todos os seus impulsos, sua necessidade de ser amado por outros e sua tendência para dar afeto seriam tão fortes quanto seus impulsos para a auto-gratificação ou cobiça. Ele seria agressivo em situações na qual a agressividade fosse realisticamente apropriada, mas não teria uma necessidade descontrolada de agressão. Quando estivesse aberto a todas as suas experiências, o seu comportamento total, diz Rogers (1962), seria equilibrado e realista – um comportamento que seria apropriado à sobrevivência e aperfeiçoamento de um animal altamente social. 3.7. A tendência à atualização como um conceito heurístico Brodley (1999) considera que a tendência à atualização é um conceito heurístico, que pode ser utilizado como um guia fértil para a compreensão do comportamento humano. O 11 pressuposto da tendência à atualização é de que o indivíduo está necessariamente atualizando sua natureza da melhor forma que pode dentro das circunstâncias. Enquanto conceito heurístico, este pressuposto promove uma abordagem fenomenológica do comportamento humano, ao procurar alcançar o mundo subjetivo do indivíduo e as suas percepções dentro do seu contexto. Isto implica escutar a pessoa a fim de compreender seus objetivos, seus sentimentos e o significado pessoal que estão envolvidos em seu comportamento. Uma compreensão do comportamento humano baseada no pressuposto da tendência à atualização, ao focalizar a atenção na percepção que o indivíduo tem de sua situação, pode fornecer significados construtivos para comportamentos destrutivos. Uma investigação baseada no pressuposto da tendência à atualização, segundo Brodley (1999), faria as seguintes perguntas: - Como a motivação da pessoa para a atualização foi expressa neste comportamento destrutivo? - Quais são as realidades internas, subjetivas ou as circunstâncias externas que estão distorcendo os resultados da direção inerentemente construtiva e pró-social da pessoa? - Como o comportamento destrutivo está servindo para a manutenção, integração e satisfação da pessoa? As respostas a estas perguntas tendem a dar sentido a comportamentos destrutivos. Brodley (1999) considera que esta compreensão promove compaixão e geração de soluções criativas e humanas para os problemas humanos. O princípio da tendência à atualização, ao promover a compreensão dos significados construtivos de comportamentos socialmente destrutivos, faz emergir uma atitude de respeito pela pessoa e por sua capacidade inata de auto-determinação. 3.8, As condições para a promoção da tendênciaà atualização “ the individual has the capacity to guide, regulate, and control himself, providing only that certain definable conditions exist.” Rogers Em 1959, Rogers postulou as condições que, em qualquer relacionamento interpessoal, promovem a “liberação” da tendência à atualização: “... esta tendência ... será 12 liberada em qualquer relacionamento interpessoal no qual a outra pessoa é congruente na relação, experencia consideração positiva incondicional e compreensão empática em relação ao indivíduo, e consegue comunicar parte destas atitudes ao indivíduo” (Rogers, 1959, p. 221). Congruência Ser congruente em uma relação significa ser uma pessoa integrada, com a sua experiência real acuradamente representada em sua consciência. A pessoa está congruente quando ela está sendo livre e profundamente ela mesma, quando está vivenciando abertamente os sentimentos e atitudes que estão fluindo de dentro dela. Ser congruente, portanto, significa ser real e genuíno (Rogers 1957a, 1959, 1977). Consideração positiva incondicional Ter uma experiência de consideração positiva incondicional em relação a outra pessoa significa aceitar calorosamente cada aspecto da experiência desta pessoa. Significa não colocar condições para a aceitação ou para a apreciação desta pessoa. A consideração positiva incondicional implica um cuidado não-possessivo, uma forma de apreciar o outro como uma pessoa individualizada a quem se permite ter os seus próprios sentimentos, suas próprias experiências (Rogers 1957a, 1959). Compreensão empática Compreender empaticamente significa perceber acuradamente o quadro interno de referência da outra pessoa como se fosse o seu próprio, com os seus significados e componentes emocionais, sem, contudo, perder a condição de “como se” (Rogers 1957a, 1959). Segundo Rogers (1977), estas condições promovem a atualização do indivíduo em qualquer relacionamento interpessoal, seja no relacionamento terapeuta e cliente, pai e filho, líder e grupo, professor e aluno, administrador e equipe, isto é, “em qualquer situação cujo objetivo seja o desenvolvimento da pessoa” (Rogers, 1977, p.9). 13 Contudo, em relação à psicoterapia, Rogers (1957a) formulou uma hipótese mais completa, postulando seis condições necessárias e suficientes para a mudança terapêutica da personalidade: “Para que uma mudança construtiva da personalidade ocorra, é necessário que as seguintes condições existam e persistam por um período de tempo: 1. Que duas pessoas estejam em contato psicológico; 2. Que a primeira, a quem chamaremos cliente, esteja num estado de incongruência, estando vulnerável ou ansiosa; 3. Que a segunda pessoa, a quem chamaremos de terapeuta esteja congruente ou integrada na relação; 4. Que o terapeuta experiencie uma consideração positiva incondicional pelo cliente; 5. Que o terapeuta experiencie uma compreensão empática do quadro interno de referência do cliente e se esforce por comunicar esta experiência ao cliente; 6. Que a comunicação ao cliente da compreensão empática do terapeuta e da consideração positiva incondicional seja efetivada, pelo menos num grau mínimo. Nenhuma outra condição é necessária. Se estas seis condições existirem e persistirem por um período de tempo, isto é suficiente. O processo de mudança construtiva da personalidade ocorrerá” (p.96). Estas condições tornaram-se um marco de referência não somente para a psicoterapia centrada na pessoa como para as relações de ajuda em geral (Bozarth, Zimring & Tausch, 2002). Denominadas de core conditions (ou “condições centrais”), elas impulsionaram a pesquisa em psicoterapia durante mais de três décadas e continuam sendo um tópico relevante e discutido no âmbito da psicoterapia (Bozarth, 1998; Bozarth, Zimring & Tausch, 2002; Patterson & Hidore, 1997; Sachse & Elliot, 2002; Stubbs & Bozarth, 1996). 14 Referências Bozarth, J. D. (1998). Person-centered therapy: A revolutionary paradigm. Ross-on-Wye, England: PCCS Books. Bozarth, J. D. & Brodley, B.T. (1991). Actualization: a functional concept in client- centered psychotherapy. Journal of Social Behavior and Personality, 6, 45-59. Bozarth, J. D. , Zimring, F, & Tausch, R. (2002). Client-centered therapy: Evolution of a revolution. Em D. Cain & J. Seeman (Orgs.), Humanistic psychotherapies: Handbook of research and practice. Washington DC: American Psychological Association. Brodley, B. T. (1999). The actualizing tendency concept in client-centered theory. The Person-Centered Journal, 6, 108-120. 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