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O manifesto futurista no sistema literário brasileiro Aline Fogaça dos Santos Reis e Silva (UFSC/Capes) alinefogacareis@gmail.com Resumo: O manifesto de fundação do Futurismo é publicado em 05 de fevereiro de 1909 na Itália e em 20 de fevereiro do mesmo ano em Paris. Ainda em 1909, em junho e dezembro o Brasil conhece duas traduções, publicadas em Natal e Salvador. Apesar do imediato contato com os preceitos da vanguarda estética, a repercussão efetiva para os artistas brasileiros se dará no âmbito da década de 20 com o Modernismo. As tensões existentes entre esses dois movimentos são pensadas, principalmente, sob a perspectiva da Teoria dos Polissistemas, de Itamar Even-Zohar. Palavras-chave: Futurismo, Modernismo, tradução Abstract: The Futurism’s manifesto was published in February the 5th 1909 in Italy and the 20 February of the same year in Paris. Also in 1909, in June and December, Brazil knows two translations, published in Natal and Salvador. Despite the immediate contact with the avant-garde aesthetic precepts, the effective impact for Brazilian artists will happen in the context of the 20s with Modernism. The tensions between these two movements are thought mainly from the perspective of the Polysystem Theory of Itamar Even-Zohar. Key-words: Futurism, Modernism, translation O manifesto de fundação do Futurismo foi publicado em 05 de fevereiro de 1909 no jornal italiano Gazzetta dell’Emilia. Entretanto, o evento mais recorrente e conhecido é o da sua publicação no francês Le Figaro, em 20 de fevereiro de 1909. Talvez seja pelo fato de Paris, naquela época, despontar-se como o centro cultural do mundo que o texto de Marinetti ganhou conhecimento dos demais países, principalmente na Rússia e na França. Entre esses, o Brasil, pois, ainda no mesmo ano, são publicadas duas traduções. A primeira, parcial, em A República de Natal, em 05 de junho, com a provável autoria de Manuel Dantas, diretor do jornal. A segunda, integral, em Salvador, no Jornal de Notícias, em 30 de dezembro, por Almachio Diniz. A concepção de manifesto para o Futurismo é aquela de reunir o tom abusivo e propagandístico, para que os seus ecos ressoem de maneira global, anunciando a nova era da máquina e da tecnologia. A propagação da vanguarda italiana está contida propriamente em seu objetivo e, principalmente, nos ideais de seu maior precursor e idealizador, Filippo Tommaso Marinetti. O movimento acontecia no âmbito do 143 espetáculo, nos limites entre o bizarro e o picaresco. Parece-nos que o efeito foi atingido, pois até mesmo o Brasil, naquele momento, distante dos holofotes dos grandes centros artísticos, ocupando uma posição periférica na esfera literária e, sobretudo, mantendo uma arte ainda muito conservadora em relação ao conteúdo futurista, teve conhecimento do que de novo se fazia na Europa. A assimilação da vanguarda italiana pela brasileira surge-nos como um processo no qual são participantes fatores como o câmbio de informações, ideias e modelos através dos artistas e de suas obras. Esse câmbio nada mais é do que o modo de comparar e relacionar culturas, analisando suas proximidades e distanciamentos. Por vezes, a total diversidade nesse confronto pode gerar o estranhamento e, logo, a rejeição. Em primeiro lugar, a principal diferença entre ambas é a língua, e para tanto, a tradução é fundamental para que o inusitado se torne familiar. Nesse sentido, a tradução do primeiro manifesto pode ser vista como o início de intenso diálogo entre Futurismo e Modernismo. A tradução, mais do que simplesmente um ato de transpor palavras de uma língua à outra, é um trabalho muito mais complexo, que pode ser pensado e vem sido discutido para além do ato de traduzir. Nas palavras de Ricoeur, “sempre se traduziu” (2011, p. 35), isto é, contemplar a tradução como um ato de comunicação que engloba não somente a letra, mas o contexto, um meio pelo qual os homens podem compreender-se, comunicar-se. Assim como a literatura comparada, a tradução deve ser concebida como método de abordagem relacionado à Literatura. Desde Cícero e Horácio, questões como fidelidade, tradução literal, tradução do sentido vem sendo discutidas e neste âmbito várias teorias são elaboradas em busca, talvez, de respostas que as satisfaçam. Para os dias atuais, assim como para as teorias mais contemporâneas, notamos que a tradução passou a ser predominantemente vista como recontextualização, ou seja, parafraseando Ricoeur (2011), é necessário aceitar que sempre existirá a perda (seja no texto de partida ou no de chegada) e ter a consciência de que não há tradução perfeita. Logo, conhecer as diferentes abordagens e teorias desenvolvidas até os dias atuais facilita a compreensão das relações existentes entre as literaturas e o papel da tradução na interação entre elas. Os estudiosos contemporâneos, como Susan Bassnett (2005), entendem a crise do Comparativismo aliado aos Estudos da Tradução resultante do excessivo prescritivismo no confronto da tradução. Em outras palavras, a partir das teorias desenvolvidas com os estudos descritivos da tradução, dos quais é exemplo a Teoria dos Polissistemas de Itamar Even-Zohar (1990) configura-se a análise das estratégias que envolvem o ato de traduzir, englobando o seu todo, isto é, a sociedade e sua história, 144 assim como elementos relativos ao mercado editorial e os pré-requisitos para que uma obra seja traduzida. O objetivo final, portanto, não será emitir um grau de excelência para a obra traduzida, se esta atingiu as expectativas de reprodução do texto de partida, pois se deixou de avaliá-la como cópia de um original em outra língua. Quando mencionamos, no primeiro parágrafo, Literatura, nos referimos ao conceito de uma literatura mundial, ou como definia Goethe, Weltliteratur (apud GNISCI, 1999, p.189); polissistema, na definição de Itamar Even-Zohar; ou também à ideia de uma “república mundial das letras” i, como sustenta a pesquisadora francesa Pascale Casanova (2002). São acepções que atentam à necessidade de um olhar diferente à literatura e às tensões que se estabelecem entre esta e a economia, a sociedade e a política. Ao atentarmos para cada detalhe que compõe esse conglomerado, temos a possibilidade de maximizar-lhe o efeito no dinamismo e funcionamento de seu sistema. A tradução é, portanto, uma peça fundamental desta engrenagem. No estudo de Pascale Casanova, no qual ela constrói essa metáfora da literatura como uma república, ela cita Paul Valéry sobre a “economia literária” e nesse entremeio, emprega, mais uma vez palavras de Goethe, para dizer que a atividade da tradução “continua sendo uma das tarefas mais essenciais e dignas de estima do mercado de intercâmbio mundial universal” (CASANOVA, 2002, p. 29). E por que tão essencial? Se distinguirmos várias ‘literaturas’ dentro de uma grande ‘Literatura’, é ela a mediadora, o elo que propicia esse contato, o “intercâmbio mundial universal” (CASANOVA, 2002, p. 29). Utilizando outra metáfora de Jacques Derrida, a torre de Babel, Armando Gnisci discute o papel da tradução como patrimônio comum da humanidade, também se referindo à sua importância no complexo Literatura/literaturas: [...] “a literatura” tem a consistência de uma imagem que deveria corresponder à presença ideal de um patrimônio comum das diferentes civilizações. Uma espécie de biblioteca infinita e progressiva. Esta está reunida em torno do imenso campo de forças emanado pelo poder da palavra, oral e escrita, que inventa e vivifica mundos e que se deixa escutar justamente porque abre as inteligências para a complexa presença do mundo eda simultânea possibilidade de diversos mundos. Ao mesmo tempo – a barra posta entre literatura (e) literaturas o diz claramente – a literatura não existe senão nas concretas literaturas expressas em diferentes línguas; a sua diversidade babélica se direciona para uma fluente reunião através da tradução; por sua vez a tradução é o patrimônio comum da humanidade formado pelas inumeráveis traduções que atravessam desde sempre todas as línguas e pelo poder que não se pode deter e futuro de transportar textos e mensagens entre os mundos. (GNISCI, 1999, p. X, tradução de Helena Meneghello) ii 145 A diversidade que nos traz a riqueza, o “capital literário” (CASANOVA, 2002, p. 29), segundo Valéry. Cada país tem o seu, formado pelos textos literários classificados como história nacional, podendo ser maior ou menor, de acordo com a tradição de cada literatura. Algumas delas mais fortes, melhor estabelecidas, em detrimento de literaturas mais periféricas que pelejam pelo reconhecimento, justamente suportadas pelas maiores. Nesse contexto, é explicada a razão dos novos escritores apoiarem-se em nomes consagrados do cânone. O que Gnisci aborda em seu texto é a estabilização da Literatura Comparada como ciência, disciplina investigativa das intra-relações e inter-relações na esfera da literatura maior, comum à civilização. Ou seja, trata-se de um discurso múltiplo do qual devemos fazer parte, pois é produzido por nós mesmos; uma rede díspar que encerra reciprocidades e diferenças. Para o autor, a literatura comparada e a tradução serão, assim, “os discursos entrelaçados que nos mantém juntos na complexidade de mundo- mundos-literatura/literaturas-nós-mundos-mundo” (GNISCI, 1999, p. XIV, tradução de Helena Meneghello). iii Esse estreito vínculo serve particularmente nesta análise, visto que nos permite aliar os interesses de percorrer o trajeto da tradução do manifesto futurista à sua influência na consolidação de um modelo literário novo. Isto é, indo além da preeminência de um país que emergia como potência iv dentro de uma literatura relativamente nova – a brasileira – e não detentora do mesmo grau de relevância neste espaço. Para tanto, baseamo-nos, essencialmente na Teoria dos Polissistemas de Itamar Even-Zohar, que, de uma maneira mais particular, corrobora os conceitos de Gnisci e de Casanova, bem como os de Goethe, mas conferindo às literaturas o status de sistemas. O todo é, portanto, o polissistema. Como tratamos acima, a tradução pode ser definida como elo, como a mediadora do diálogo entre culturas. Dentro dessa perspectiva, os estudos de Even-Zohar podem ser considerados referência. Ele remete-se à sociedade como um grande sistema no qual literatura e tradução literária estariam contidas. O estudioso desenvolve sua teoria e a utiliza, primeiramente, como um artifício que o auxiliará em seus estudos sobre a tradução da Literatura Hebraica; porém, podendo ser aplicada a outros sistemas. Ao refazer o percurso no qual elaborou e vem elaborando a sua teoria, Even-Zohar esclarece-a como intrínseca ao Formalismo Russo, distinguindo-a deste, porém, pelo fato de não considerar a literatura como um organismo isolado dos contextos social e histórico. O estudioso concebe todos esses contextos como micro sistemas que se intersectam, formando um sistema maior, o polissistema. A sua função é defendida através do fato de que o dinamismo e mesmo a estaticidade inerentes a cada um, no caso 146 específico o literário, são interdependentes, e que tal fato não pode ser ignorado como até então vinha ocorrendo nos estudos linguísticos. A teoria é ainda mais abrangente, visto que é aplicável a outras esferas, isto é, não se restringe ao cenário literário, mas abrange a cultura de um modo geral. Em outras palavras, por meio de seus procedimentos é possível analisar as intra-relações nas comunidades literárias e suas inter-relações com os demais sistemas. Isso ocorre por meio de hierarquias, considerado como princípio fundamental para que conceitos como heterogeneidade e funcionalidade sejam conciliáveis. Quando citamos a hierarquia estamos nos referindo aos procedimentos do polissistema, isto é, aspectos que envolvem cânone, repertório, texto e, como mencionado anteriormente, a maneira como eles se relacionarão. É na tensão existente entre a interferência entre literaturas que reside a concepção do polissistema. Em suma, é um dos objetivos principais, e uma possibilidade viável para a teoria dos Polissistemas, lidar com as condições particulares em que uma certa literatura pode ser interferida por uma outra literatura, como resultado de quais propriedades são transferidas de um polissistema para outro. (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 25, tradução nossa)v Transpondo essa ideia de interferência como o diálogo entre culturas, foquemo- nos nos sistemas literários brasileiro e italiano. A proposta é verificar como esse diálogo ocorre através de dois movimentos importantes do século XX para ambas as literaturas. Na Itália, o Futurismo, e no Brasil, o Modernismo. Para citarmos a questão do cânone, esses períodos possuem um amplo repertório de textos e manifestações artísticas nas quais seus autores procuraram fixarem-se como modelos literários. Isso porque os cânones de determinada literatura estão sofrendo a todo momento a tentativa da literatura periférica de consolidação como literatura central. Fator esse que Even-Zohar denominará de Tipos Primário e Secundário. Segundo ele, existe sempre essa disputa em assumir a posição principal ou secundária dentro do sistema. O interessante é notar que, para o Tipo Primário a existência do Secundário é imprescindível para que possa reciclar-se e consolidar-se como dominante dentro de um repertório e, consequentemente, no sistema. Isso denotará, portanto, estabilidade e perpetuação. Quando um repertório é estabelecido e todos os modelos derivativos e relacionados a ele são construídos em plena conformidade com o que ele permite, confrontamo-nos com um repertório (e sistema) conservador. Cada produto individual (discurso, texto) será, então, 147 altamente previsível, e qualquer desvio será considerado ultrajante. (EVEN-ZOHAR, 1990, p.21, tradução nossa)vi O teórico expande essa tensão para o conflito inovação versus conservadorismo. De qualquer forma, um novo repertório que almeja o posto de primário, apesar de sua inovação, segue modelos regulados por aquele. Pensemos, assim, na experiência modernista no Brasil. Ainda que os seus artistas estivessem à procura de uma identidade nacional, não podiam se esquecer dos modelos do cânone. Obviamente, o “desvio”, como aponta Even-Zohar, causa e, neste caso, causou um estranhamento. Lembremo- nos de como fora a recepção por parte do público, ou até mesmo pelos literatos da época, de poemas como os de Paulicéia Desvairada, ou do próprio Manifesto Futurista, na Itália. Para citarmos novamente Even-Zohar, “nós não entendemos ou aceitamos algo novo, exceto no contexto do velho” (1990, p.04, tradução nossa)vii. O Modernismo Brasileiro retomou do “velho” a instrução para reformular os conceitos do “novo”. Como era de se esperar, a tentativa de impor o seu repertório dentro do cânone foi, em primeira instância, repudiada. A ideia do atual chocou-se com um repertório tradicional, acostumado ao tradicionalismo das letras e da arte. Entretanto, desse contínuo conflito resulta a mudança do cânone, gerando, por sua vez, a evolução do sistema para que esse não se petrifique. Portanto, é necessária essa subliteratura para impulsionar a sua vitalidade. Mas, o que se entende como subliteratura? O prefixo “sub”carrega uma significação negativa, inferior. Esse termo é curioso, pois ele é variável, isto é, no caso do Modernismo, este se apresentou como uma subliteraura para a época, mas atualmente, após a consolidação do seu modelo literário, essa visão foi diluída. Em outras palavras, atividades primárias e secundárias dependerão da posição que estas ocuparão dentro de dado sistema literário. Quando são primárias significam princípio de inovação, enquanto que como secundárias servirão para a manutenção do código estabelecido. No caso da tradução, o teórico israelense defende que esta não pode mais ser vista apenas como “tradução” ou como “obra traduzida”; antes, deve ser considerada como sistema literário também e com todas as implicações que este carrega. A literatura traduzida é, assim, parte integrante do polissistema e interage com todos os outros co- sistemas. A sua tarefa, a partir de tal afirmação é analisar quais tipos de relação serão obtidas. Quando essa assume uma posição primária, ela participa da modelização do centro do polissistema, ou seja, colabora para as inovações, garantindo, assim, uma maior semelhança com o texto de origem. Por sua vez, quando essa é secundária, tende a seguir modelos “ultrapassados” do centro, servindo, dessa forma, como uma maneira 148 de perpetuar, de tradicionalizar um gosto passado, enquanto a literatura central já se modificou. Baseado em seus estudos e observações, ele afirma que a literatura traduzida tende a ser sempre secundária. No tocante aos nossos estudos, nos seria permitido afirmar que as observações de Even-Zohar sobre a posição ocupada pela tradução tiveram a mesma constância? O manifesto de fundação do Futurismo permaneceu como atividade secundária na literatura brasileira? Essas questões não são tão simples de serem esclarecidas, pois requerem uma análise mais aprofundada, além de averiguar a condição de centro- periferia no confronto entre Itália e Brasil. Antes de discutirmos a circulação do Manifesto Futurista em terras brasileiras, é interessante recuperar a repercussão em 1909 na Itália e na França. Visto que a primeira publicação do manifesto de fundação é italiana, mas ganha respaldo no periódico parisiense Le Figaro, verificamos a condição periférica italiana no confronto com a francesa? Para responder a essa questão, devemos traçar um paralelo, primeiramente, entre as cidades onde foram publicados os respectivos periódicos. Fundado em 1860, o jornal político Gazzetta dell’Emilia era o mais antigo e difundido de Bolonha. Na época de sua fundação, a região conquistava a liberação do domínio da Igreja. O fato é que a Gazzetta foi um dos poucos periódicos italianos que se ocuparam da publicação do manifesto futurista, apresentando uma perspectiva positiva sobre a novidade. Isso porque elogia Marinetti na nota que antecede o manifesto, qualificando-o como “o mais dinâmico dos poetas italianos” (GAZZETTA DELL’EMILIA apud GRASSO, 2009, p. 33, tradução nossa), além de se referir ao combate do partido literário. Por outro lado, lançam um desafio à vanguarda quando escreve “vejamos se às premissas seguir-se-ão as ideias, os livros e os fatos” (GAZZETTA DELL’EMILIA apud GRASSO, 2009, p. 33, tradução nossa).viii Em Paris temos Le Fígaro, fundado em 1826, sendo publicado até os dias atuais. Por essa razão é um dos jornais parisienses mais antigos. Paris nesse momento já havia presenciado a Revolução Francesa, a construção de dois marcos famosos: o Arco do Triunfo e a Torre Eiffel, e vivenciara o Iluminismo e a Belle Époque. Em outras palavras, dentro do cenário europeu, detinha um maior glamour artístico em detrimento de Bolonha, e, por consequência, projetou os ideais futuristas em âmbito internacional. Retornando à questão posta no parágrafo anterior, apesar da Itália vir conquistando o seu espaço como potência literária – e esse era um dos objetivos de Marinetti, devemos ressaltar a importância de Paris não somente como cidade dotada do maior prestígio literário, mas como aquela que 149 combina de fato as propriedades a priori antitéticas, reunindo estranhamente todas as representações históricas da liberdade. Simboliza a Revolução, a derrubada da monarquia, a invenção dos direitos do homem – imagem que valerá à França sua grande reputação de tolerância com respeito aos estrangeiros e de terra de asilo para os refugiados políticos. Mas também é a capital das letras, das artes, do luxo e da moda. Paris é, portanto, a capital intelectual, árbitro do bom gosto, e local fundador da democracia política (ou reinterpretada como tal na narrativa mitológica que circulou pelo mundo inteiro), cidade idealizada onde pode ser proclamada a liberdade artística. (CASANOVA, 2002, p.41) Um cenário como este não poderia deixar de ser o local mais propício a abrigar uma vanguarda e proclamá-la no mais abusivo da sua propaganda e de suas propostas. O conteúdo do manifesto de Marinetti contém o mesmo apelo revolucionário e particular da capital que servia como o centro cultural do mundo naquele momento. E efetivamente propagou-se de lá o seu conhecimento para os demais países da Europa e também para os sistemas periféricos, como Brasil e América Latina, como observa Arnaldo Saraiva. Todavia, não podemos esquecer que Marinetti e os seus companheiros se preocuparam desde a primeira hora com a projeção internacional do seu movimento, que tinha um nome publicitariamente sedutor, e que ainda por cima não se contentavam com a produção e o lançamento de obras de criação ou de reflexão (em sentido restrito), antes se apoiavam num “manifesto” (tipo de texto programático, claro, rápido e agressivo) que, estrategicamente publicado num grande jornal parisiense, visava sem dúvida um numeroso público internacional, até por que ao tempo a cultura produzida ou publicitada em França despertava em todo o mundo mais ecos do que desperta hoje em dia, quando Paris já não é a única grande capital cultural. Eis porque não é para admirar que o primeiro manifesto de Marinetti tenha sido traduzido em português pouco tempo depois do seu aparecimento [...] (SARAIVA, 1986, p.160-1) Mesmo responsável por essa divulgação, a França não subtrai da Itália o mérito da vanguarda, ao contrário, visto que contribuiu para o enriquecimento de ambos os patrimônios literários. Isso porque o novo modelo italiano será absorvido pelo francês. A repercussão não se limita ao conhecimento da notícia do novo, é necessário experimentá-la. Como a receita de uma iguaria, é preciso prepará-la também, mas com o tempero próprio. E através desse exemplo, vemos o dinamismo do sistema e como acontecem as interferências entre um co-sistema e outro. Sem tais pontes, os diálogos e empréstimos se perderiam e o sistema estagnaria. Pelas observações de Saraiva, podemos nos questionar sobre dois pontos. O primeiro remete-nos à função do manifesto, precisamente a do Futurismo dentro do polissistema do qual teorizou Even-Zohar. O segundo compete ao reposicionamento de 150 Paris e da França no estabelecimento de hegemonias dentro deste mesmo polissistema. Refletir sobre esses dois pontos nos ajudará a englobar o Brasil no quadro de repercussão do Futurismo. Sendo assim, como pode ser visto o movimento italiano dentro do polissistema? As suas propostas colaboraram para a elaboração de um novo modelo literário dentro da literatura mundial? Em qualquer modo, como visto até então, a resposta eficaz é o sim, mas pela escassa recepção à vanguarda ou pelo mal-entendido gerado através de seus ideais, há a proposta de uma revisão. O que nos cabe é pensar no conceito de interferência, tambémproposto por Itamar Even-Zohar para melhor compreender a tendência inevitável dentro de um sistema literário, da qual se inicia o diálogo entre culturas. Parte essencial do diálogo é a literatura que, como afirma o teórico israelense, não pode vir destacada dos contextos histórico, social e cultural. Em toda a sua teoria, o estudioso é contundente nesse ponto. Sendo assim, a ideia de interferência é definida como uma relação entre literaturas, em que uma certa literatura A (a literatura de origem) pode se tornar uma fonte de empréstimos diretos ou indiretos para uma outra literatura B (a literatura de destino). Interferência pode ser unilateral ou bilateral, o que significa que pode funcionar para uma literatura ou para ambas. (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 54-5, tradução nossa)ix E no caso dessas uni ou bilateralidade – tende a ser mais unilateral – o teórico explica que está correlacionada com o tipo de contato – condição sine qua non – entre elas. Em outras palavras, elas envolvem as diferentes partes do sistema, sendo a mais visível o repertório. Na estabilização dessas relações que entrarão as especificações do tipo dependente ou independente. As de primeiro tipo correspondem às literaturas minoritárias, nas quais a interferência é fato decisivo para a sua existência e desenvolvimento, enquanto nas de segundo tipo, mais consolidadas, a interferência garante a sua hegemonia. Os exemplos citados são exatamente as literaturas francesa e inglesa que ocuparam esse posto por mais de duzentos anos, recebendo recursos de outros sistemas literários europeus, como o italiano e alemão, para citar alguns exemplos. Quanto aos canais de interferência, eles podem ser de ordem direta ou indireta. No segundo caso, está contida a tradução, visto que no caso direto não há a ação de intermediários. Transpondo essa teorização para o caso do Futurismo, a sua divulgação se deu de forma indireta, gerando a tendência observada por Even-Zohar: Os procedimentos seguidos pelos agentes de transferência em casos de contatos diretos são menos visíveis do que no caso de produtos 151 traduzidos observáveis, que muitas vezes podem ser comparados com os textos originais. Mas também se pode dar exemplos de casos em que alguma literatura fonte é acessada através de uma terceira parte - como uma terceira língua e literatura - que filtra os modelos para o alvo. Se isso acontecer, de ser uma língua conhecida por um grande número de produtores literários, naquele sentido para a “instituição”, pode haver alguns produtos de tradução real necessários aqui também. (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 57, tradução nossa)x De fato, após a publicação no Le Figaro, o Manifesto Futurista foi traduzido por certo número de periódicos europeus; mas esse alcance é devido a vários fatores, por exemplo: prestígio e dominação, resquício da hegemonia conquistada por longos anos, como já verificamos. Do contato entre as literaturas em diante, abre-se um leque de possibilidades ou leis que regerão a maior assimilação ou não pelo sistema receptor. O que não podemos confundir é interferência com a aceitação, pois esta não é inerente àquela, pelo contrário, é possível que haja alguma rejeição, além da possibildade de ela não atuar em todos os níveis do sistema. O consequente sucesso do novo repertório passa a ser uma condição particular à literatura que está sofrendo a interferência. Neste quesito, parece que encontramos uma explicação para o fato ambíguo de que mesmo com duas traduções, a repercussão fora escassa naquele momento. Às literaturas receptoras cabe o poder de apropriar-se apenas de partes do repertório, por meio de simplificações, regularizações ou esquematizações. No caso do Brasil, é possível citar a revista Klaxon pela não aceitação de todo o conteúdo programático do manifesto de Marinetti; e, em contrapartida, porque o sistema brasileiro encontrava-se desatualizado para a introdução de uma nova estética. O repertório brasileiro não oferecia plenamente aos modernistas as opções dessa remodelagem. A solução foi buscar nas vanguardas europeias os elementos para a elaboração de movimentos como o Pau-Brasil e Antropofágico, de Oswald de Andrade. Ao invés de simplesmente ignorá-las por orgulho e escolha da não-apropriação da cultura alheia, o modernista Oswald propõe a exportação da cultura brasileira e, em contrapartida, a deglutição do academicismo e erudição europeus em favor da literatura nacional. A trajetória do Futurismo no panorama cultural brasileiro do início do século consiste no processo de diálogo entre as manifestações literárias e entre os sistemas mais e menos consolidados. Por vezes, isso pode gerar uma revisitação, possibilitada pela liberdade do tradutor. É o caso da tradução do manifesto, em 1909, por Almachio Diniz no Jornal de Notícias de Salvador. Naquele momento, não houve grande repercussão, mas ele opta por retomá-la, explorando melhor os conceitos ali presentes, dedicando-lhes maior atenção em 1926, quando Marinetti apresenta-se no Brasil e o 152 assunto está em pauta. Ainda assim, com a polêmica que o evento suscitou, notamos que a tensão entre os sistemas não estava resolvida. Apesar da aparência negativa que esta provoca, a inconstância dos cânones é a causa da sua atualização constante e promove esse diálogo cultural, que na maioria das vezes, torna-se um debate ou embate. Referências bibliográficas BASSNETT, Susan. Estudos de tradução. Tradução Sônia Terezinha Gehring, Letícia Vasconcellos Abreu e Paula Azambuja Rossato Antinolfi. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005. CASANOVA, Pascale. A república mundial das letras. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. DINIZ, Almachio. F. T. Marinetti: sua escola, sua vida, sua obra em literatura comparada. Rio de Janeiro: Lux, 1926. EVEN-ZOHAR, Itamar. Polysystem Studies. Tel Aviv: The Porter Institute for Poetics and Semiotics, and Durham: Duke University Press, 1990. GNISCI, Armando. A literatura comparada. Tradução de Helena Meneghello. In: RELIT-Revista de Estudos Literários do Neiita. Florianópolis, v. 1, n. 2, p. 95-104, mar. 2011. Disponível em: <http://www.neiita.cce.ufsc.br/relit/Numeros/N2Vol1Mar%C3%A7o2011.pdf>. Acesso em: 07 dez. 2011. GNISCI, Armando (Org.). Introduzione alla letteratura comparata. Milano: Mondadori, 1999. GRASSO, Sebastiano. Futurismo: a Bologna il Manifesto. In: Corriere della Sera, Milão, 01 fev. 2009. 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Essa è riunita intorno all’immenso campo di forze emanato dal potere della parola, orale e scritta, che inventa 153e vivifica mondi e che si lascia ascoltare proprio perché apre le intelligenze alla complessa presenza del mondo e alla simultanea possibilità di diversi mondi. Al tempo stesso la barra posta tra letteratura (e) letterature lo dice chiaramente – la letteratura non esiste se non nelle concrete letterature espresse in lingue diverse; la loro diversità babelica muove verso una fluente riunione attraverso la traduzione; a sua volta la traduzione è il patrimonio comune dell’umanità formato dalle innumerevoli traduzioni che traversano da sempre tutte le lingue e dal potere inarrestabile e futuro di trasportare testi e messaggi tra i mondi”. (GNISCI, 1999, p. X) iii “i discorsi intrecciati che ci tengono insieme nella complessità di mondo-mondi-letteratura/letterature- noi-mondi-mondo” (GNISCI, 1999, p. XIV). iv Sobre “o espaço literário internacional”, ver: CASANOVA, Pascale. A república mundial das letras. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p. 25. v “In short, it is a major goal, and a workable possibility for the Polysystem theory, to deal with the particular conditions under which a certain literature may be interfered with by another literature, as a result of which properties are transferred from one polysystem to another”. vi “When a repertoire is established and all derivative models pertaining to it are constructed in full accordance with what it allows, we are faced with a conservative repertoire (and system). Every individual product (utterance, text) of it will then be highly predictable, and any deviation will be considered outrageous”. (EVEN-ZOHAR, 1990, p.21) vii “we do not understand or accept anything new except in the context of the old” (EVEN-ZOHAR, 1990, p.04). viii “Il Futurismo lo ha inventato Marinetti, il più "dinamico" dei poeti d' Italia. La rivista Poesia ci manda il proclama focosissimo con cui il nuovo partito letterario scende a combattere. Vedremo se alle premesse seguiranno le idee, i libri e i fatti”. (GAZZETTA DELL’EMILIA apud GRASSO, 2009, p. 33) ix “a relation(ship) between literatures, whereby a certain literature A (a source literature) may become a source of direct or indirect loans for another literature B (a target literature). Interference can be either unilateral or bilateral, which means that it may function for one literature or for both”. (EVEN- ZOHAR, 1990, p. 54-5) x “The procedures followed by agents of transfer in cases of direct contacts are less visible than in the case of observable translated products, which often can be compared with the original texts. But one can also provide examples of cases where some source literature is accessed via some other third party – such as a third language and literature – which filters the models for the target. If this happens to be a language known to a large number of the literary producers, in that sense to the “institution,” there may be few actual translation products needed here either”. (EVEN-ZOHAR, 1990, p. 57) 154
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