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Do Outro Lado do Mundo Fritz Utzeri, 1989 A primeira coisa que posso dizer, com relação ao trabalho de correspondente, é que não existe nenhuma posição para mim dentro do jornalismo que seja melhor. O Reali Jr., que é correspondente de O Estado de São Paulo, costuma definir essa posição como a de um repórter da geral numa cidade que não é a dele. O correspondente é alguém que tem que tratar de tudo, que tem que falar, por exemplo, da eleição francesa, e tentar explica-la para um publico que não vai participar dela. Então, ele tem que traduzir a realidade do pais em que está, e fazer o máximo possível de comparações que permitam às pessoas identificar o que esta acontecendo com os referenciais que estão acostumadas a usar aqui em casa. O correspondente não pode, de maneira alguma, perder o contato com o seu país. O tempo todo ele funciona como um brasileiro que está na Europa, nos Estados Unidos, no Japão, enfim, onde estiver, observando uma realidade que não é a dele. É fundamental que o correspondente esteja sempre bem informado tanto sobre a realidade do país em que esta como sobre a realidade do seu próprio pais. Não é possível, por exemplo, não saber quem é Fernando Collor de Melo, ou Leonel Brizola, ou a Xuxa. São coisas fundamentais para pinçar na realidade francesa, por exemplo, uma comparação brasileira. O correspondente, pela estrutura dos jornais brasileiros, é o mais livre dos jornalistas. Isso é mais verdade ainda na Europa, quando se tem cinco horas a favor. O que significa que, quando o correspondente esta com a sua matéria pronta, o pessoal aqui ainda não chegou ao jornal. O correspondente trabalha no século XXI. Em casa, com um computador na sua frente, ele passa a matéria direto para o jornal. Eu costumo brincar dizendo que o único jornalista que pode bater uma matéria de cueca, em casa, tranqüilo, é o correspondente. Os jornais brasileiros, em geral, têm uma estrutura que é muito amadorística. Eu fui para os Estados Unidos e para a França e ninguém jamais me perguntou sequer se eu falava a língua. Até achei que falava. Quando cheguei aos Estados Unidos, tomei um susto quando liguei a televisão. Havia uma crise no ar, e eu não estava entendendo nada do que a televisão dizia. Entrei em pânico, achei que não ia passar de uma semana. No exterior trabalha-se de uma forma muito pouco estruturada – com exceção de algumas empresas como a Globo e a Abril, que têm escritórios. Para o resto dos correspondentes, o que acontece é que temos que ser o produtor, o telefonista, o continuo. Isso é um pouco angustiante, porque se chega numa cidade desconhecida com um caderninho em branco. E como ser "foca" de novo. Rapidamente é preciso montar um sistema que permita não ser "furado" se acontecer alguma coisa importante, E o importante, no caso, vai desde o fato político local, até a passagem de algum brasileiro ilustre pela cidade. Dificilmente o jornal pede as matérias. Em 90% dos casos a decisão do que escrever, do que apurar é do próprio correspondente. Se, por um lado, isso da uma grande liberdade, por outro obriga que ele seja muito disciplinado, porque tem que manter um fluxo regular de matérias. E o problema é saber que matérias. Pode ser que um assunto, muito interessante para o correspondente ou para o leitor francês, não interesse ao público brasileiro. Essa sensibilidade tem que estar sempre presente. Descobrir um bom assunto, escrever de uma maneira atraente é importante, porque a maioria dos leitores do jornal não lê a seção internacional. É importante que o correspondente tenha um certo estilo, que descubra um gancho, algo que nem é necessariamente uma noticia importante. O essencial é transmitir para as pessoas que estão lendo como é o país onde o correspondente está baseado. No meu caso particular, como repórter de gera!, sempre achei que, quando não ha um grande assunto — quando não se esta cobrindo uma eleição,uma guerra ou uma crise política —, é melhor simplesmente sair pela cidade. Sempre aconselho aos repórteres que não fiquem na redação, porque ha coisas interessantes acontecendo na rua, e e!e tem que estar de olho aberto, à procura de uma novidade. Um simples passeio por Nova York ou Paris permite praticamente esbarrar em pautas na rua. Em ultimo caso, pratica-se o chamado vampirismo: pega-se, por exemplo, o Libération e chupa-se uma matéria. É uma coisa que o correspondente não gosta de admitir, mas que acontece. Mas mesmo isso requer uma certa arte. Não basta simplesmente pegar e copiar uma matéria. É preciso reescrever o texto de um jeito que o Brasil tenha alguma coisa a ver com aquilo. Não é necessariamente a matéria mais importante do jornal, às vezes é uma notinha. Quando eu estava em Nova York, li uma matéria pequena num jornal sensacionalista, New York Post. Era sobre uma escola sofisticada na Califórnia que estava usando as crianças, há vários anos, para fazer filmes pornográficos. Apurei mais alguma coisa, e a matéria teve a maior repercussão porque a historia era muito estranha. E era mais estranha para mim do que para os americanos. Eu me perguntava como nenhuma dessas crianças, durante anos, disse nada em casa. Através de uma matéria como essa se tem uma reflexão do tipo de sociedade que é aquela. É a mesma sociedade onde, de vez em quando, um louco pega uma carabina e vai ao MacDonald’s matar criancinhas. É o que e!es chamam de hostage situation (situação de refém). Na França, eram freqüentes as matérias mostrando mordomias, marajás, mas em geral os corruptos acabavam na cadeia ou afastados. O papel do correspondente nesses casos é comparar as situações. Quando eu era criança, na época em que ainda havia bonde no Rio, as pessoas me perguntavam quando ia a outras cidades: "Lá na tua cidade tem bonde?" Cidade que não tivesse bonde era ruim. Isso é um pouco o que todos fazem com o correspondente: "As pessoas comem o quê? Como vivem? Como se vestem? o que gostam? o que não gostam?" Tudo isso nos temos que responder, e bem. Isso não significa que o correspondente não dê um tratamento diferenciado às mesmas noticia.s que as agências estão enviando, mas não ha condição de ele competir com o tipo de estrutura de uma UPI ou AP, por exemplo. Quando eu era correspondente em Nova York, tinha uma dupla dificuldade, porque na época o Jornal do Brasil comprava o serviço do New York Times. Numa cidade onde se tinha o maior jornal do mundo cobrindo e mandando na mesma noite tudo o que acontecia, fora as outras agências, era preciso realmente procurar muito por um assunto interessante. Mas é sempre possível encontrar, até pela liberdade que o correspondente tem. O fato é que ele precisa montar uma estrutura. Trabalhando em casa, eu não podia me dar ao luxo de ter quatro ou cinco maquinas de telex, uma da Associated Press, outra da UPI, outra da France Press. Aliás, pegar um telex de agência e "pentear" é bobagem, porque o mesmo texto que estaria batendo na minha casa, estaria entrando, exatamente na mesma hora, na redação do Jornal do Brasil. O que quero dizer é que nos precisamos saber basicamente o que esta acontecendo, mas de uma maneira diferente, com uma perspectiva local, que permita ao correspondente trabalhar em cima dela. Nos Estados Unidos o nosso trabalho é facilitado pela CNN, uma rede de televisão chamada Cable News Network, que pertence ao Ted Turner e permite receber 24 horaspor dia material não editado. Lembro que, quando explodiu a embaixada americana em Beirute, a CNN entrou no ar ao vivo, e as imagens foram tão horríveis que eles pararam, pediram desculpas e editaram um pouco. Isso mostra que, se o Reagan levasse um tiro, eu teria imagens ao vivo. Para não perder nada, compra-se um videocassete e deixa-se gravando o dia inteiro. Quando se chega em casa, tudo aquilo que aconteceu no país está bem à frente. Em geral, os correspondentes gostam de dizer q\le boa cobertura é aquela em que se vai para urna guerra, ou para urna revolução. No período em que estive fora, infelizmente ou felizmente — no sentido de que não sou tão deformado que quero que o circo pegue fogo para que eu faça urna boa matéria —, não houve nada nesse sentido. Entre 82 e 85, nos Estados Unidos, o único episódio realmente empolgante do ponto de vista militar foi a invasão de Granada, mas ninguém pôde chegar perto. Foi o único caso que vi de censura à imprensa nos EUA. Havia a tal ponto, que as redes de televisão: à noite, mostravam alguns pequenos barquinhos de borracha com equipes da televisão tentando chegar perto e helicópteros voando baixo, fazendo marola para que o pessoal fosse embora. Foi um bloqueio completo e com aprovação do publico. Quando cheguei à França, estávamos em plena época dos atentados. Em Paris havia urna verdadeira histeria, todo mundo era revistado. E a população até queria realmente que se revistasse, porque não é muito interessante estar numa loja e, a qualquer momento, voar tudo pelos ares. Enfim, a única crise internacional que houve, e à qual os correspondentes em Paris não conseguiram ter acesso, foi o episódio do bombardeio à Líbia. Todos os jornalistas franceses, inclusive eu, já tinham lugar marcado a bordo de um avião líbio que sairia de Paris. Demos azar parque o governo francês resolveu expulsar quatro líbios e, obviamente, não iriam dar a chance de eles viajarem no mesmo avião que a imprensa. O vôo foi cancelado e, então, saiu um avião, com os jornalistas que estavam em Roma — inclusive quem viajou nesse avião foi o Roberto Pompeu, que era da Veja. Em geral, o correspondente tem pouco contato profissional com os "coleguinhas" do país onde esta. A não ser que o assunto envolva brasileiros. Quando houve aquele caso das máquinas de videopôquer do Castor de Andrade, e os franceses estavam envolvidos — havia um burocrata do governo, Yves Chalier, que tinha vindo ao Brasil com um passaporte falso, dado pelo ministério do Interior francês, e tinha participado da montagem do esquema -, n6s trabalhamos em ligação com repórteres da televisão francesa. Eu era o bom canal para transmitir a eles o que acontecia na polícia do Rio de Janeiro e, por outro lado, era muito mais fácil para eles ir à delegacia em Paris e conseguir informações. Não adianta ficar indo às redações de jornal chateando o "coleguinha", porque o fechamento dele é mais apertado e os interesses não são iguais. Eventualmente posso recorrer a algum "coleguinha" se não entendo alguma coisa muito complicada, ou quando, numa viagem, preciso assimilar muito rapidamente a rea1idade do local. Isso aconteceu quando fui cobrir, antes de ser correspondente, a queda da lsabelita Perón. A primeira pessoa que entrevistei na Argentina foi o Jacopo Timmerman que era do Opinion, para ele me dar uma luz. Lembro o que ele me disse: "Bom, o senhor, quando chegar na Argentina, sua primeira impressão vai ser do caos total. O senhor vai olhar pra Argentina e não vai entender absolutamente nada, vai pensar que está maluco. Com uma semana de Argentina o senhor vai ficar feliz, vai achar que entendeu tudo. E ai quando o senhor estiver bem feliz, de repente vai lhe bater a certeza de que o senhor jamais entenderá a Argentina, e assim o senhor vai continuar para o resto de sua vida junto com todos os argentinos." É mais ou menos o que acontece no Brasil. O que é mais freqüente é um jornalista francês ou americano, que vai viajar para o Brasil, precisar de informações ou dicas. Em geral, os correspondentes brasileiros no exterior se ajudam na cobertura dos eventos que envolvem personagens brasileiros, até por causa da precariedade da nossa estrutura. Numa reunião do Clube de Paris, nós tínhamos que ficar na rua a uma temperatura de 15 graus abaixo de zero. Virar uma noite, a 15 graus abaixo de zero, na rua, brigando com o “coleguinha”, é absolutamente impossível. Nos Estados Unidos, por exemplo, existem os chamados Foreign Press Centers, que são Centros de Imprensa Estrangeira, nos quais o correspondente se inscreve e tem acesso a todas as publicações que saem no país, a documentos do governo americano, material de pesquisa e xerox livre, o que significa uma facilidade de pesquisa para qualquer matéria. Na França não existe nenhum lugar para os correspondentes se reunirem, e a televisão só dá as notícias no dia seguinte. É realmente mais complicado. Mas como existem as cinco horas de diferença — nos Estados Unidos se trabalha contra o relógio — fica muito mais difícil acontecer algo importante que não possa ser utilizado. A posição do correspondente brasileiro é muito diferente dos outros. Os corresponden- tes americanos no Brasil, em geral, estão na coluna social, até pela própria posição político-econômica dos Estados Unidos em relação a nós. Os correspondentes americanos na Europa, obviamente, são importantes, e os correspondentes europeus nos Estados Unidos, alguns deles, são importantes também. Lembro numa das entrevistas coletivas do Reagan, por exemplo, que era o próprio presidente que escolhia quem faria as perguntas. Ele começava: "Helen Thomas, da UPI" — que era, e ainda é, a decana do corpo de imprensa de Washington e invariavelmente fazia a primeira e a última perguntas — "Fulano de TaI da AP", "Sicrano do New York Times", "Beltrano do Washington Post" e assim por diante. O Pravda, certamente, se tivesse alguma pergunta para fazer, faria. O resto, nós, o Jornal do Brasil e O Globo, nunca tínhamos chance. A única oportunidade de nos aproximarmos de uma figura assim era se, por acaso, ela visitasse o Brasil. Logo que cheguei à França, o Mitterrand deu uma coletiva para a imprensa brasileira porque viria ao Brasil. No exterior nos ganhamos a noção da nossa desimportância. Na França é um pouco melhor, porque a bagunça quase é igual à do Brasil. Liga-se para uma pessoa e ela não responde à ligação, briga-se com a secretária e acaba-se conseguindo falar com um ministro. Nos Estados Unidos, não se passa, em geral, do Secretário de Assuntos Latino-Americanos. A volta para o Brasil não é muito fácil, e é completamente diferente para quem até então escrevia tudo e só dependia de si mesmo. O JB, antes da minha volta, tinha me feito a proposta de montar a editoria de ciência e tecnologia. Devo fazer um parêntesis e dizer que sou médico e entrei no jornal em 68 exatamente para cobrir o setor de saúde. Fazer o chamado jornal medicamentoso era tranqüilo, porque ainda era uma época em que a censura não estava muito preocupada com esse assunto. Depois ela ficou, porque começou a meningite e nós descobrimos que através da saúde podia-se contar a historia social do país. Até que se descobriu isso, e ficou difícil também. E foi o que fiz durante alguns anos, e não com muito boa vontade. Por melhor que fosse a matéria, havia sempre uma coisa que pesava contra mim: "O Fritzé médico." Eu sentia que jamais seria aceito como jornalista se ficasse apenas nesse setor. E foi aí que mudei assim que pude. Quando o JB me fez o convite de voltar para fazer a mesma coisa, a minha resposta foi simplesmente não. Ficou uma situação estranha, porque fiquei deslocado, completamente à margem, e sem muita perspectiva de crescimento. Tinha a sensação de que, depois de ter sido correspondente eu não iria mais a lugar nenhum. E foi então que resolvi sair. Quando a Globo me fez a mesma proposta, aceitei, e não ha nenhuma incoerência nisso, porque o veículo é diferente. Eu começaria fazendo aquilo que já fazia em jornal, mas desta vez aprendendo num veículo diferente. Os problemas de origem persistem, passei a escrever pouco e dependo muito mais do trabalho dos outros. A televisão é alucinada e não existe um trabalho individual. Em relação ao país, depois de sete anos no exterior, entre os Estados Unidos e a França, é claro que é difícil voltar e se acostumar. O nível da deterioração dos serviços e até mesmo o empobrecimento que noto são enormes. Tomei um susto quando recebi o meu primeiro salário brasileiro, e era um salário razoável para os padrões locais. O correspondente, mesmo dentro dos padrões brasileiros, com a penúria empresarial e o custo do dólar, em geral, é um profissional bem pago, inclusive para os padrões franceses ou americanos. Eu ganhava na França iguaI a um bom jornalista francês, o que significa um bom salário, porque os salários dos jornalistas de lá são melhores do que os daqui. Em geraI os salários lá são o suficiente para viver. Essa é a diferença básica. Mesmo no caso de um "foca" que está começando e ganha mal, esse mal é o suficiente para ele viver. Uma das propostas que o Jornal do Brasil tinha me feito, e era até uma boa proposta, era para ser editor nacional, porque eu seria alguém que teria uma visão ainda um pouco escandalizada do Brasil, e poderia transmiti-la às pessoas. Quando cheguei, os deputados brasileiros estavam querendo aumentar os salários deles e as pessoas me perguntaram: "Quanto é que ganha um deputado na França?" Eu disse: "Olha, um deputado na França ganha exatamente a mesma coisa que os deputados querem ganhar aqui, a única diferença é que esse dinheiro na França equivale a 12 salários mínimos, aqui equivale a 120." Há uma distorção maior dentro da sociedade, e são coisas com as quais não é possível se acostumar. Talvez fosse bom não se adaptar realmente. Acho que ainda estou resolvendo a minha volta. Conheço alguns "coleguinhas" que não resolveram bem esse problema, que saíram do jornalismo e foram fazer assessoria, "piraram" ou voltaram para o exterior. A experiência de correspondente é muito boa, tanto que eu não pedi para voltar. Mas os jornais, hoje, criaram uma espécie de rodízio, em que acham que o jornalista deve permanecer três anos no exterior. O prazo adequado para um correspondente ficar no exterior está em torno de quatro a cinco anos. Depois ele deveria .voltar. O primeiro ano é um ano de construção, não se sabe de nada. No segundo, já se começa a ficar à vontade, e o terceiro é o ano em que, efetivamente, a pessoa já é conhecida, já tem um alentado caderninho de endereços. Quando chega a esse ponto a pessoa é transferida, pega o caderninho, arquiva na mala, e vai para outro lugar com uma nova folha em branco. Fiz isso duas vezes, e estou fazendo pela terceira, porque voltar para o Rio depois de tanto tempo é recomeçar do zero. Aliás, espero que daqui a três anos alguém me mande para fora. Até acho que pode existir uma carreira de correspondente, afinal, hoje, os jornais costumam ser cada vez mais especializados. Mas, mesmo que existisse essa carreira, o jornalista deveria passar um tempo na redação antes de seguir para outro país. Em geral, o cargo de correspondente é visto como um prêmio, ou então como solução para uma questão política interna da redação. Quando saí daqui em 82, tinha chegado ao Jornal do Brasil e dito: "Não agüento mais o JB, vou me embora." Então, eles me fizeram a proposta de ir para Nova York. Na mesma hora eu disse: "Vou." E fui. Mas imaginem desembarcar em Nova York — Manhattan, Empire State, World Trade Center, Wall Street, milhões de carros na rua, todo mundo falando inglês — com uma folha de papel em branco, sem conhecer ninguém. É preciso ir à polícia tirar uma credencial, ao Foreign Press Center, arranjar um apartamen- to, descobrir quem são os correspondentes dos outros jornais, começar a conhecer as pessoas, pôr as crianças na escola. A agenda em branco leva um certo tempo para se encher. O que mais complicou a minha chegada a Nova York foi que, dois meses depois, o México decretou a moratória, e o sistema financeiro internacional quase foi à falência. Eu, que nunca tinha coberto economia, fui aprender navegação a bordo do Titanic. Quando se está lá fora, pode-se reparar que o mundo está se integrando cada vez mais, que estão se formando grandes blocos econômicos e políticos: a Europa de 92, os Estados Unidos, o México e o Canadá que estão praticamente formando uma unidade econômica, o Japão e os países do Sudeste Asiático e a China, namorando essa órbita de influência. Nós nos vemos aqui no quintal, longe desse processo, às voltas com as nossas velhas histórias. Os jornais estão muito preocupados com: “Fulano diz”, “Sicrano faz”. Na época em que comecei, os jornais tinham um ar mais corajoso, se investia mais em reportagem. Posso estar até generalizando. Os jornais não são muito diferentes uns dos outros. O Globo, por exemplo, para mim não mudou nada. Outros jornais mudaram um pouco, a Folha aperfeiçoou o que já vinha fazendo, é interessante, mas ainda é um jornal muito confuso. Sinto falta da grande matéria, da matéria de repórter. No período em que fui correspondente, observei dois universos muito diferentes em termos de jornal. Os nossos jornais e televisões têm um padrão muito mais parecido com o americano. O Jornal do Brasil é muito mais parecido com o New York Times do que com o Le Monde, sem sombra de dúvida. O americano tem um jornalismo mais investigativo. Basta acompanhar, por exemplo, os escândalos que periodicamente acontecem sobre a vida privada dos políticos americanos. Quando o Jornal do Brasil publicou uma matéria sobre a filha do Lula, ele disse que isso acontecia porque estava morando aqui e não nos Estados Unidos. Lula disse uma bobagem, porque lá, possivelmente, iriam querer saber não só da filha dele, mas da primeira namorada que ele teve... Isso dá idéia de que lá as coisas têm conseqüência. Basta ver o efeito da imprensa em cima do caso Watergate, e, recentemente, do Irãgate. É só comparar com o que acontece no Brasil. Aqui as coisas se diluem. Os jornais americanos são muito ágeis. Até porque eles têm uma enorme quantidade de dinheiro. Há os grandes jornalões, o Washington Post, o Los Angeles Times, o New York Times; que são nacionais, e as duas grandes revistas a Time, e a Newsweek, além de uma infinidade de outras revistas da melhor qualidade. O New York Times tem um corpo enorme de correspondentes, um staff gigantesco, e é um jornal massudo, com um faturamento absurdo, que cobre tudo que se puder imaginar. Mas há um outro fenômeno nos Estados Unidos, que é fundamental, a televisão. As três grandes redes e a CNN têm programas de jornalismo com os quais nós não podemos nos comparar. Sópara ter uma idéia, um programa chamado 60 Minutes tem 150 produtores. Na França, todos os jornais têm opinião sobre tudo. O Le Monde, por exemplo, é um belo jornal, com uma perspectiva histórica que, certamente, explicará tudo ou quase, até porque o francês médio pensa melhor do que o americano. Mas é difícil saber o que aconteceu ontem. Uma vez houve uma manifestação muito grande da CGT em Paris e o Le Monde garantiu, em três linhas, que aquela manifestação tinha sido menos importante do que a de 1984. Eu li e disse: "Obrigado." Essas três linhas resumiam tudo o que tinha acontecido naquela tarde, e seguia-se uma página de análise sobre sindicalismo. Ou seja, notícia é em outro lugar. Existe ainda um jornal chamado Libération. um tablóide muito bem-feito, que não tem a pretensão de cobrir tudo mas sempre tem alguns assuntos muito bons. O Figaro é o que mais se aproximaria do nosso modelo de jornalão, uma espécie de Estado de S. Paulo. É o maior jornal nacional da França. Há 25 jornais em Paris, cada um deles tem uma tendência política. O Figaro é escandaloso, porque a posição política não está só no editorial, o noticiário também sofre essa interferência. Quem lê o L'Humanité e o Figaro vê dois fatos completamente diferentes, porque eles têm uma posição política que é muito mais marcada do que estamos acostumados a ver. No Brasil, todo mundo sabe de que lado um jornal está, apesar de eles gostarem de, pelo menos, dar uma aparência de que isso não é verdade. Na França as pessoas, em geral, não se preocupam muito com isso., Os jornais defendem suas bandeiras abertamente. O jornal mais "furão" da França é um semanário satírico que chama-se Le Cal1ard Enchainé, que é, literalmente, o pato acorrentado. Esse jornal, de vez em quando, dá furos, denuncia escândalos, cria crises de governo. É como se fosse o Pasquim dos bons tempos dele. A televisão não tem o mesmo papel, principalmente porque ela era estatal até pouco tempo. Além disso, o francês não gosta muito de televisão. Não é igual aos Estados Unidos ou ao Brasil. Basta dizer, por exemplo, que um dos programas de maior audiência na França chama-se Apostrophes, um programa literário. Alguém consegue imaginar um programa literário no Brasil às 9h da noite na Rede Globo? No metrô de Paris, as pessoas, em geral, estão todas apertadinhas com o seu livrinho, nas posições mais esdrúxulas, tentando ler alguma coisa. lê-se alucinadamente. Inclusive, às vezes, os noticiários terminam recomendando um livro. Realmente isso não faz parte da nossa cultura. Os jornais franceses atendem muito a esse tipo de necessidade. Os franceses têm uma idéia talvez maior da história, existe uma memória que nós aqui, infelizmente, não. temos. A preocupação com a imagem do país não é só dos brasileiros: Fiz uma matéria que saiu publicada num livro na França, chamado A França no exterior, em que se reuniram 250 artigos de imprensa para mostrar como o país era visto pelos correspondentes. Depois a revista Actuel traduziu três desses artigos, o meu abria e o do Pravda fechava, dizendo inclusive que as mulheres francesas eram feias e raquíticas. Meu artigo era sobre o seguinte: quando se mora na França, todo ano é preciso ir à polícia e tirar uma Carte de Sejour, uma autorização de permanência. A Carte de Sejour é o terror do estrangeiro na França, porque ele tem que ir para uma fila quase igual à do Félix Pacheco do Rio. Os jornalistas são mais bem tratados, tiram o documento no mesmo lugar em que os diplomatas obtêm os deles. Quem não é nem uma coisa nem outra vai para a fila, e no inverno, fica-se esperando na rua. Resolvi não tomar conhecimento da simpática velhinha que cuidava disso para mim no serviço dos diplomatas e fui como um mortal comum. Depois de três horas e meia de fila, a 15 graus abaixo de zero, finalmente me colocaram numa sala, que media 9m 2 , junto com outras 60 pessoas. Quando consegui chegar ao guichê, a mulher carimbou um papel e disse: "Volte em maio", ou seja, quatro meses depois. Não me deu a Carte de Sejour, me mandou para uma nova fila, em maio, quando já estaria um pouco mais quente. Então tive um ataque, gritei, e quase quebrei uma porta de vidro, porque eu queria ser preso. Não aconteceu nada, porque os franceses não reagem. Saí de lá morrendo de raiva e escrevi uma matéria no jornal, contando tudo, inclusive dizendo que "quando a gente importou a cultura francesa, a gente importou a arrogância, a prepotência". Foi uma matéria editorializada e de um mau humor absoluto. Obviamente que os franceses souberam, porque depois a matéria apareceu traduzida na revista. Aliás, não me pagaram por isso até hoje. Referência bibliográfica UTZERI, Fritz. “Do Outro Lado do Mundo” in RITO, Lúcia; ARAÚJO, Maria Elisa de; ALMEIDA, Cândido J. Mendes de (orgs.). Imprensa ao Vivo, Rio de Janeiro: Rocco, 1989. págs.145-158
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