Buscar

Capitalismo Gângster

Prévia do material em texto

IA/ood\v\J\^ ^
i<kr
Capitalismo gângster
Quem são os verdadeiros agentes do crime organizado mundial
Michael Woodiwiss
XEROX EXPRESS
j Disciplina
1 professor
Curso_
S N° Copias.,
! Pasta.
ÍÍQLAAÍ
TRADUÇAO
C. E. de Andrade
Ediouro
CAPÍTULO 2
Pagina 61: Barões, cruzados e o país das oportunidades criminosas, 1880-1920
Em 1934, nas profundezas da maior crise econômica do século XX, o escritor Mat- thew Josephson ajudou a explicar aos norte-americanos de que maneira eles haviam entrado em uma situação tão desesperadora. Em Robber Barons (1962), Josephson descreveu de forma competente a ascensão de gigantescos capitalistas como John D. Rockefeller no petróleo, Andrew Carnegie no aço e J. P. Morgan no sistema bancário. Esses magnatas haviam inicialmente enriquecido nas décadas finais do século XIX, conquistaram grandes fatias da indústria e finanças dos Estados Unidos durante a época posterior à Guerra de Secessão, que Josephson descreveu como “um paraíso de capitalistas piratas, sem peias e livres de impostos”. 1 O butim acumulado por esses titãs comerciais e industriais não ficou ocioso. Ajudou a impelir o boom do mercado de ações da década de 1920, enriquecendo as famílias e as empresas dos fundadores da economia norte-americana enquanto as massas de trabalhadores-e camponeses do país viam seus salários e rendimentos se estagnarem ou declinarem. Josephson descreve os meios impiedosos, brutais, corruptos e extremamente bem-sucedidos pelos quais as fortunas originais dos barões ladrões foram formadas.
Diversas formas de fraude e furto organizados eram comuns. Um exemplo notável foi a unificação das várias companhias de bondes de Nova York feita por William C. Whitney e Thomas F. Ryan em uma empresa denominada Metropolitan Street Railway Company, no inicio do século XX. Segundo outro historiador dos crimes empresariais, Gustavus Myers, essa fusão foi “acompanhada por uma monstruosa infusão de ações aguadas’”. Centenas de milhões de dólares de papéis sem valor foram vendidos ao público enquanto Whitney e Ryan se tornavam multimilionários. Um contemporâneo assinalou que “os administradores da Metropolitan se dedicaram a um esquema deliberado de apropriação do dinheiro de seus acionistas por meio de fundos de confiança.
62
CAPITALISMO GÂNGSTEP.
Entre seus crimes estão conspiração, intimidação, suborno, práticas judiciais corruptas, perjúrio, relatórios falsos, pagamento ano após ano de dividendos inexistentes, roubo persistente do dinheiro dos acionistas perpetrado durante um longo período por um sistema que consistia na forma mais baixa de roubalheira”.2 Embora esse escândalo tivesse atraído a atenção da imprensa nova-iorquina em 1907 e 1908, a intimidação, o suborno e a destruição de provas tiveram êxito e Ryan conservou seu butim, pôs convenientemente a culpa de tudo em Whitney, que morrera prematuramenté em 1908, e prosseguiu construindo sua reputação num mundo em que o dinheiro era adorado independentemente de sua origem.
Os industriais norte-americanos do início do século XX eram muito menos cui-dadosos em relação à vida humana do que a maioria dos gângsteres. As estatísticas governamentais indicam que 35 mil operários morreram anualmente em acidentes industriais e outros quinhentos mil ficaram aleijados. A taxa total de acidentes nas minas de carvão norte-americanas no período entre 1900 e 1906 foi quase quatro vezes a da França e o dobro da Prússia.1 Conforme concluiu um historiador, “A aceleração do trabalho, tarefas monótonas, exposição a produtos químicos tóxicos, pó metálico e orgânico e maquinaria sem proteção fizeram com que o trabalho nos Estados Unidos se tornasse o mais perigoso do mundo”.'
Os trabalhadores que corriam maiores riscos eram os imigrantes recém-chegados. Mais de três mil (cerca de 25%) novos imigrantes que trabalhavam na empresa side¬rúrgica Carnegie, somente em Pittsburgh, morreram ou se machucaram anualmente entre 1907 e 1910. Sem dúvida, os empregadores sabiam que os problemas de idioma tornariam muito mais difícil às famílias das vítimas exigir indenizações. A taxa de acidentes entre trabalhadores de outras línguas que não a inglesa foi freqüentemente o dobro do restante da força de trabalho. Em 1911, Arno Dosch esclareceu essa situação em um artigo para a revista Everybodys Magazine intitulado “Just Wops”. No artigo figurava o seguinte comentário, do assistente de um gerente de uma companhia construtora, a respeito de uma trincheira recentemente escavada para uma ferrovia, após ficar sabendo que os jornais não reportaram nenhuma baixa na força de trabalho: “Ninguém morreu, a não ser os wops”. Quando lhe pediram que explicasse o que eram os wops, o assistente respondeu: “Dagos* negros e húngaros — o pessoal que trabalhou. Eles não sabem nada, e não têm importância”.5
* Designação depreciativa dada a italianos, espanhóis e portugueses. (N. doT.)
BARÕES, CRUZADOS E O PAÍS DAS OPORTUNIDADES CRIMINOSAS...
63
As restrições legais eram no, máximo, incômodas para as grandes empresas antes da Grande Depressão, algo a ser ignorado ou driblado. Afirma-se que Daniel Drew, um dos mais notórios dos primeiros barões das ferrovias, observou certa vez: “A lei é como uma teia de aranha: é feita para apanhar moscas e insetos pequenos, mas deixa passar os grandes (...) quando as tecnicalidades da lei se intrometeram, eu sempre consegui afastá-las facilmente.”6 Seu rival e contemporâneo Cornelius Vanderbilt disse a mesma coisa com mais concisão: “A lei. Que me importa a lei? Eu tenho o poder.”7 Outros também ignoraram as leis e regulamentos que impediam a acumulação de lucros. Os barões ladrões, seus representantes e os que procuram emular seu sucesso compartilhavam algumas convicções baseadas no darwinismo social que dominou o pensamento norte-americano durante esse período e serviu para desculpar os crimes cometidos pelos que se encontravam em posições de poder. No final do sé¬culo XIX, o filósofo inglês Herbert Spencer e seu equivalente norte-americano Wil- liam Graham Sumner deram nova forma ao conceito darwiniano de “sobrevivência dos mais aptos”. Ambos encontraram maneiras de aplicá-lo a todos os aspectos da sociedade humana, e não somente aos reinos animal e vegetal. O darwinismo social racionalizou com êxito o sucesso de poucos, mesmo que envolvesse violência e roubo, e o fracasso de muitos. Sob essa perspectiva, o êxito era conseqüência da superioridade. Os ricos são ricos porque merecem sê-lo e os pobres merecem seu destino por serem fracassados biológica e socialmente, e, portanto, incapazes de sobreviver na luta competitiva. Não somente os círculos de negócios norte-ameri¬canos, mas também os acadêmicos, jornalísticos e políticos, estavam imbuídos de aspectos dessa filosofia, e ela continua a ter influência desde então. As reformas sociais eram combatidas com argumentos baseados no darwinismo social, porque por meio dos impostos necessários recompensavam os inaptos e penalizavam os que eram considerados mais capazes. A pobreza, segundo Spencer, era o modo pelo qual a natureza “expelia (...) os membros pouco saudáveis, imbecis, lentos, hesitantes e incrédulos da sociedade”.* As reformas assistenciais, argumen¬tou Sumner, interferiam no funcionamento normal da sociedade, estancando o progresso e talvez até mesmo contribuindo para a regressão a um estágio evolutivo anterior. Com efeito, segundo esse raciocínio, o governo deveria intervir o mínimo possível na economia e na sociedade. O laissez-faire se justificava porque o interesse próprio dos indivíduos era considerado socialmente benéfico, fazendo com que um
64
CAPITALISMO GÂNGSTER
número maior de pessoas trabalhasse e o custo dos produtos permanecesse baixo. O darwinismo social fornecia-aos interesses do mundo dos negócios argumentos poderosos e coerentes a fim de manter as mãos livres no mercado. Esses interesses prometiam que ao se enriquecer eles “construiríam o país”, ou como disse Andrew Carnegie, “os milionários são as abelhas que produzem mais mel e contribuem mais paraa colmeia, mesmo depois de estarem saciadas”.’ Naturalmente o darwinismo social foi contestado, principalmente pelos refor-madores progressistas das primeiras duas décadas do século XX. Esses cidadãos, na maioria provenientes das classes médias, sentiram-se horrorizados com os in¬dícios de brutalidade e corrupção das grandes empresas revelados em publicações dedicadas à investigação, denominadas muckrakers* como a revista McClures. Eles reagiram com apelos para limitar o capitalismo e realçar o papel do governo como influência benévola capaz de equilibrar os interesses egoístas e setoriais do mundo dos negócios com os interesses do público em geral. Apesar de algumas reformas pouco significativas, no entanto, as muralhas do laissez-faire e os interes¬ses egoístas ainda estavam intactos no final da Primeira Guerra Mundial, e se fortaleceram quando Warren Harding se tornou o primeiro de três republicanos conservadores eleitos presidente na década de 1920. A influência do mundo dos negócios sobre esses governos ficou evidente pelas políticas adotadas, baseadas na redução dos impostos para os ricos e na restrição ao crescimento dos sindicatos, e somente regulando a atividade empresarial quando isso servia aos interesses das grandes corporações. Havia poucos freios e contrapesos no mundo dos negócios nos Estados Unidos até a década de 1930, e os criminosos de todos os ramos de atividade utilizariam as possibilidades existentes. Embora desprezando as leis que procuravam restringir suas atividades, no en¬tanto, esses fundadores das grandes empresas norte-americanas e seus sucessores tinham interesse na manutenção da ordem. Queriam que seus trabalhadores e consumidores estivessem bem disciplinados. Preocupavam-se, especialmente, com a ordem moral e durante esse período apoiaram muitas campanhas que pretendiam tornar o país mais abstêmio e mais moral.
Literalmente, "raspadores de lodo", denominação dada aos jornalistas e outros que se dedicaram a levan- tar e denunciar casos de corrupção nas primeiras décadas do século XX nos Estados Unidos. (N. doT.)
ISARÕF.S, CRUZADOS E O PAÍS DAS OPORTUNIDADES CRIMINOSAS...
65
Os Estados Unidos experimentaram a cruzada moral mais significativa nas primeiras duas décadas do século XX. Enquanto milhões de migrantes e imigrantes lutavam nas cidades para melhorar suas condições de vida, muitos norte-america¬nos natos vislumbraram uma ameaça ao predomínio dos valores protestantes. Esse segmento reagiu formando associações antivício e antiálcool, ou passando a fazer parte delas, e fazendo intenso lobby nas capitais dos estados e nas prefeituras, em busca de leis para erradicar os jogos de azar, a prostituição e o consumo de drogas em escala nacional.
A moralidade e abstinência da classe trabalhadora fazia sentido para os interes¬ses do mundo dos negócios, que proporcionava a maior parte do apoio financeiro e influência política às campanhas para que a moralidade passasse a fazer parte da legislação. A bebida, o jogo, a prostituição e as drogas desviavam parte dos salários da compra de bens manufaturados; se o pagamento dos trabalhadores não fosse gasto em atividades perdulárias, haveria menor demanda de aumentos de salário. O álcool prejudicava a eficiência dos operários num momento em que os gerentes procuravam aumentar a produtividade de seus subordinados. Os interesses do mundo dos negócios também utilizaram sua aliança com os partidários da proi¬bição e a preocupação do país com o vício e o crime para desviar os ataques dos elementos reformistas contra a corrupção empresarial e outros males econômicos. Finalmente, os homens de negócios acreditavam que a transformação dos bares em foco da atividade política e econômica da classe trabalhadora não favorecia seus interesses. Era inaceitável para eles que os sindicatos utilizassem os bares para recrutar e organizar os trabalhadores.10
O êxito das campanhas de proibição do álcool e das drogas somente pode ser explicado pelo indubitável prejuízo que essas substâncias podem causar aos indivíduos. Embora essas campanhas mostrassem em detalhe muitas das tristes e às vezes trágicas conseqüências do alcoolismo e do vício das drogas, elas não teriam tido sucesso sem a mobilização de um racismo particularmente virulento em todo o país. A imigração em massa e a migração de grupos não-brancos a partir do final do século XIX levou a uma reação de ignorância da maioria branca dos Estados Unidos, estimulada por políticos e organizações moralistas. Os chineses, os afro-norte-americanos e os mexicanos, em especial, foram difamados e considerados adeptos de hábitos que ameaçavam a maioria dos habitantes do país, O consumo de ópio foi ligado aos imigrantes chineses, a cocaína aos negros e, a partir
66
CAPITALISMO GÀNGSTER
de década de 1920, a maconha aos mexicanos. Em 1910, por exemplo, o Relatório sobre a Comissão Internacional do Ópio afirmava que a cocaína transformava cm estupradores os negros do sexo masculino e que os homens dessa raça adquiriam força e astúcia extraordinária sob a influência da droga. O dr. Hamilton Wright, principal responsável por esse relatório e por grande parte do esforço nacional e internacional antidrogas subseqüente, chegou à conclusão de que “esse novo vício, o vício da cocaina, o mais grave dentre os que temos de tratar, mostrou ser criador de criminosos e de formas incomuns de violência, e tem sido um poderoso incentivo para levar os negros mais humildes em todo o país a crimes anormais”."
O desenvolvimento das políticas de controle de drogas nos Estados Unidos também foi plasmado por um moralismo persistente e dogmático que sobreviveu e exerceu influência até os tempos atuais. As drogas eram consideradas obra do demônio, que destruía o autocontrole dos indivíduos e levava a conseqüências para o restante da sociedade que somente podiam ser imaginadas. Os moralistas que no final do século XIX fizeram campanha reivindicando legislação antidrogas acharam que a promessa do inferno para os usuários de certos tipos de drogas era inadequada, devido à gravidade que emprestavam ao problema. Para eles, o uso, a produção e o tráfico de drogas eram flagelos, ou cânceres, que tinham de ser extirpados da sociedade.12 Assim como o jogo, o comércio sexual e o álcool, a idéia de regulamentar o uso de drogas era tão impensável quanto a regulamentação da violência ou do roubo. No início do século XX, os líderes morais dos Estados Unidos prenunciavam a vitória legislativa e conseguiram as leis que desejavam para proibir as drogas e transformar o comportamento pessoal de milhões de norte- americanos em um problema a ser tratado pela polícia.
As leis antidroga não conseguiram impedir que grande número de norte- americanos consumisse as novas substâncias ilegais. Os viciados foram obrigados a pagar mais caro por seus hábitos e muitos estavam dispostos a cometer crimes para obter os recursos necessários. Os fornecedores aproveitaram o fato de que as leis inflaram substancialmente o valor da cocaína e da heroína. O principal impacto internacional dessas leis foi estimular a atividade criminosa de maneira semelhante. A legislação tornou lucrativas plantas e substâncias que eram baratas e fáceis de cultivar ou produzir. Na Nova York dos anos 1920, como narra o historiador Alan Block, a demanda de usuários e viciados alimentou uma indústria fragmentada e ampla de cocaína: “A cocaína era importada, vendida por atacado, dada em franquia
BARÕES, CRUZADOS E O PAÍS DAS OPORTUNIDADES CRIMINOSAS...
67
e vendida a varejo (...) Era comercializada nos cinemas, teatros, restaurantes, cafés, cabarés, salões de bilhar, bares, parques e inúmeras esquinas”.'5
Os moralistas se equivocaram ao igualar as drogas a assassinatos ou assaltos em termos de sanções penais. O comércio de drogas é uma transação em espécie com consentimento das partes; faltam as provas principais — nenhum cidadão ferido ou roubado se queixa à polícia e nem serve de testemunha. A polícia foi obrigada, portanto, aaprender a investigar nos inquéritos por meio de informantes e métodos secretos antes de efetuar prisões, confiscar provas ou fazer interrogatórios. Até que determinado caso chegasse aos tribunais, a polícia controlava completamente a situação, pois somente ela podia decidir se havia sido cometido um crime e se era possível indiciar um suspeito. A situação aumentava a possibilidade de corrupção e reduzia a de controle dessa corrupção. Em 1917, o primeiro policial norte-americano foi condenado por haver aceito um gordo suborno para proteger uma operação de tráfico de drogas." Inúmeras outras operações foram protegidas e realizadas com êxito, e em nenhum momento a cruzada contra as drogas deixou de estar fatalmente comprometida pela corrupção.
Os líderes norte-americanos jamais conseguiram aceitar a realidade da proibição das drogas. As leis antidroga transformaram o problema do uso indesejável dessas substâncias em uma tragédia de proporções imensas. Em vez de modificar a maneira pela qual viam as drogas, procuraram explicações por meio de bodes expiatórios no exterior. Isso lhes permitiu continuar a acreditar que a proibição doméstica de drogas podería ser conseguida mediante um regime global de interdição. Na década de 1920, por exemplo, Richmond P. Hobson, que fundou grupos com nomes como Associação Mundial de Defesa contra Narcóticos, a fim de influenciar a imprensa e a opinião pública, afirmou que a América do Norte estava cercada por outros continentes perigosos. Segundo Hobson, “a América do Sul nos envia a cocaína; a Europa contribui com drogas como a heroína e a morfina; a Ásia é a fonte do ópio cru e a África produz o haxixe”. Esses continentes envenenavam os Estados Unidos ao fornecer as substâncias demoníacas. Especialmente a Ásia, dizia ele, era tão responsável pelo “flagelo do vício de drogas narcóticas” quanto havia sido pelas “invasões e pragas da história”.ls A xenofobia ignorante de Hobson não era um caso isolado nos Estados Unidos da década de 1920 e os estrangeiros eram assim transformados em culpados pelo fornecimento de drogas. O fato de que a demanda provinha do país mais rico do mundo era convenientemente esquecido.
68 CAPITALISMO GÂNGSTER
A proibição global das drogas, argumentava Hobson, era a única resposta a esse “câncer racial maligno” que ameaçava toda a civilização branca. Em 1930, ele procurou sem êxito tornar-se o principal funcionário dos Estados Unidos encarregado de fazer respeitar a legislação antidrogas, como comissário do Bureau Federal de Narcóticos (FBN). Harry J. Anslinger, que obteve o cargo, no entanto, compartilhava de muitas das opiniões, preconceitos racistas e desejos de Hobson de estabelecer uma resposta nacional e internacional mais severa às drogas. Desde 1961, como veremos no Capítulo 9, a reação internacional tem sido aperfeiçoar a estrutura proibicionista concebida e implementada por gente como Wright, Hobson e Anslinger.
Paradoxalmente, portanto, houve um setor da vida empresarial norte-americana para o qual se acreditava que o laissez-faire não fosse adequado: os negócios relativos ao “pecado”. Esperava-se que os governos federal, estadual e local eliminassem, e não apenas controlassem, o fornecimento de álcool e certos tipos de drogas, o comércio sexual e as oportunidades de entregar-se aos jogos de azar. Devido aos muitos anos de campanhas morais, dezenas de milhares de leis procuraram proibir essas atividades. A intenção era acabar com qualquer comportamento que a cultura protestante definisse como pecaminoso e não produtivo; o resultado foi um vasto setor das oportunidades de negócios que podia ser explorado por quem estivesse disposto a violar a lei.
Assim, com um sistema de negócios amplamente vulnerável a abusos e centenas de leis de moralidade incapazes de fazerem-se respeitar, o cenário estava preparado para que a década de 1920 se tornasse um período clássico de capitalismo gângster. No fim da década, poucos norte-americanos inteligentes discordariam do veredicto do mais famoso gângster de Chicago, Al Capone, em entrevista a Genevieve Fotbes, do jornal Chicago Tribune: “Minha senhora, ninguém realmente está legal quando se trata de casos específicos”.11 Se não fosse por sua incapacidade de manter-se em liberdade, o próprio Capone seria um bom representante do capitalismo norte-americano na década de 1920.
CAPÍTULO 3
Pagina 69
Os anos 1920 cheios de falcatruas e as origens da Grande Depressão
A quantidade de falcatruas nos Estados Unidos durante a década de 1920 e início da de 1930 foi enorme. Muitos norte-americanos sabiam, ou pelo menos suspeitavam, que políticos, advogados, juizes, banqueiros e empresas recebessem muitos milhões de dólares provenientes de fraudes, propinas e várias formas de extorsão. Ao mesmo tempo, os negócios dos criminosos profissionais também floresciam. O crime organizado era a norma e não a exceção nos sistemas político, de negócios, policial e judiciário do país. O capitalismo norte-americano era desonesto e poucos pareciam importar-se, desde que o país prosperasse.
Os membros do governo do presidente Warren Harding foram os primeiros a mostrar o caminho no início da década de 1920, como revelaram o Teapot Dome e outros escândalos correlatos. Albert B. Fali, secretário do Interior de Harding, forçou a transferência, para seu próprio departamento, das reservas navais de óleo diesel, que estavam subordinadas ao Departamento da Marinha, para que ele as pudesse arrendar a empresas privadas. Uma dessas reservas estava localizada em Teapot Dome, no Estado de Wyoming. Em seguida ele recebeu gordas propinas das companhias petrolíferas e encaminhou negócios no valor de milhões de dólares a amigos seus.' Verificou-se que negócios igualmente corruptos eram comuns na Administração de Assistência aos Ex-Combatentes (Veterans Benefit Administra- tion), e no Departamento de Justiça os contrabandistas compravam imunidade contra a instauração de processo.
Na maioria das indústrias a corrupção era entranhada, porém discreta. No setor de energia, entretanto, era demasiado ostensiva para que pudesse ser ignorada. No final da década, ajudado pelas políticas e práticas daqueles governos, um pequeno
70
CAPITALISMO GÂNGSTER
eletricidade obtiveram enormes lucros à custa dos consumidores norte-americanos. Em seguida fizeram com que contadores ocultassem esses lucros aumentando artificialmente o valor de seus investimentos. Esses “acréscimos” eram uma forma de “aguar” as ações, prática já mencionada em relação às fraudes do sistema de bondes urbanos de Nova York. No caso das companhias geradoras de energia, eram ocultados os ganhos reais sobre investimentos, que podiam ser de 40% e até mesmo de 600% em certos casos. Uma comissão governamental estimou o valor dessa inflação em pouco menos de um bilhão de dólares, enquanto as empresas faziam publicar, nos jornais, relatos sobre a superioridade da propriedade privada e os perigos e custos do fornecimento “socialista” de energia de fontes federais, estaduais ou municipais. Se o público tivesse conhecimento da redução do valor das ações, teria exigido da comissão ou dos tribunais a redução do custo da eletricidade.'
Não existia regulamentação adequada que pudesse haver assegurado que os monopólios da energia fornecessem um serviço correto, acessível e honesto. O governo federal tinha uma atitude distante, deixando aos estados a pouca regulamentação que havia. Os reguladores estaduais eram facilmente “capturados” por aqueles que deveríam ser objeto de regulamentação. A atitude do presidente Her- bert Hoover para com a regulamentação dos serviços públicos é simbolizada pela nomeação de James W. Good, ex-representante legal da Companhia de Energia do Alabama, para chefiar a Comissão Federal de Energia. Pouco depois, Good demitiu os funcionários cujo zelo irritara as empresas. Acreditava-se suficiente confiar em que os empregados das companhias fossem honestos e responsáveis.'
Enquanto na indústria da energia a corrupção era principalmente baseada em ações entre amigos,o poder das empresas em outras atividades era mais severo. Muitas firmas empregavam rotineiramente gângsteres para prejudicar os concorrentes ou furar greves e infiltrar sindicatos. Havia muito tempo que a brutalidade e o assassinato eram parte das disputas sobre circulação de jornais em Chicago, por exemplo. Durante a década de 1920, mais de duas dúzias de distribuidores de jornais perderam as vidas e muitas centenas mais ficaram feridos por vender os jornais errados, nas mãos de gângsteres que representavam os interesses ou de William Randolph Hearst ou da família McCormick, proprietária do Tribune:' Stan ;tótleton, que trabalhava no Herald-Examiner, de Hearst, refletiu a natureza quase Stjtuaonal dessa violência ao relatar seu primeiro dia como distribuidor:
OS ANOS 1920 CHEIOS DE FALCATRUAS...
71
O chefe estava conversando com dois homens quando eu cheguei, e ele me fez um gesto para que me sentasse enquanto ele falava. Depois de alguns minutos ele disse aos homens: “Levem 0 menino e o ensinem a ser distribuidor”. Descemos e chegamos a um carro que estava perto da plataforma de carga e seguimos pela avenida Madison até chegarmos quase à Cicero. Eu estava junto ao motorista no assento dianteiro e ele me disse:
“Diga que tragam um jornal para nós”. Gritei para 0 homem da banca de jornais: “Hei, traga um jornal”. Quando pedi o jornal o homem veio até onde estávamos e me entregou um Tribune. Ao fazê-lo, o que estava sentado no banco de trás do carro estendeu o braço e bateu-lhe na cabeça com um porrete, fazendo-o ajoelhar-se. Quando ele se levantou, 0 agressor disse: “Escute, seu f.d.p., quando alguém pedir um jornal, você dê um jornal do Hearst”. Bem, essa foi minha instrução formal sobre a profissão de distribuidor.5
Dado o uso dessas táticas e outras atividades ilegais, não admira que os jornais hesitassem em denunciar os crimes de outras empresas.
A violência contra os sindicatos e até mesmo contra os que os apoiavam era também difundida. A Standard Oil, por exemplo, pagou a Pete DeVito meio milhão de dólares em 1929 para acabar com greves. Fez isso usando capangas para atirar em sindicalistas e esfaqueá-los, e o público somente tomou conhecimento de sua existência quando ele foi preso por deixar de pagar impostos sobre o dinheiro da Standard Oil que possuía.6
O mais proeminente entre os homens de negócios norte-americanos que contrataram gângsteres foi o fabricante de automóveis Henry Ford. Sua companhia usava o bastão e a cenoura para impedir a ação dos sindicatos. Em geral os salários da Ford eram mais elevados, mas 0 bastão costumava ser empunhado por capangas e gângsteres, ou também os punhos, pedaços de mangueira e às vezes armas de fogo. Já em 1940, a junta Nacional de Relações Trabalhistas (National Labor Relations Board — NLRB) descreveu os métodos de Ford como “gangsterismo organizado”.7 Durante décadas, a Ford Motor Company assegurou o funcionamento ininterrupto de suas linhas de montagem e o aumento constante da produtividade mantendo sua força de trabalho em Detroit impotente e desorganizada.
72
CAPITALISMO GÂNGSTER
Mais onerosa em termos de perdas de vidas foi a ampla violação pelas empresas das leis e práticas destinadas a zelar pela segurança da mão-de-obra. Há muitos exemplos, mas essa forma de violência empresarial ficou ilustrada com mais nitidez com a morte de quase quinhentos operários em Gauley Bridge, no Estado de West Virgínia.
Em 1929, a New Kanawha Power Company — subsidiária da Union Carbide — escolheu a Rhinehart-Dennis Construction Company como subcontratista para cavar um túnel perto de Gauley Bridge. A Rhinehart-Dennis recrutou para a obra uma força de trabalho composta de negros e operários não-especializados, desesperados por encontrar trabalho durante a Depressão, e começou a construção do túnel em 1930. Os homens foram obrigados a trabalhar imediatamente após a explosão para eliminar uma rocha de alto teor de silício, e não conseguiam enxergar além de poucos metros, até mesmo com forte iluminação. Embora a New Kanawha advertisse seus engenheiros a usarem máscaras ao entrar no túnel, não havia precaução semelhante para os operários.
A maioria dos jornais ignorou ou deu pouco relevo à tragédia resultante, mas o jornal socialista Peoples Press captou sua brutalidade e injustiça:
Tendo por túmulos somente o mílharal e por mortalha apenas os macacões que vestiam ao morrer, 169 trabalhadores mortos em Gauley Bridge foram jogados em trincheiras a fim de apodrecerem num campo em Summerville, West Virgínia. Quando tombavam no túnel da morte, individualmente ou vários por dia, asfixiados pelo silício, eram levados a 60 quilômetros de distância até Summerville e atirados na fossa no mesmo dia. Não havia identificação nem ataúdes. Para enterrá-los, a companhia pagava 50 dólares por cabeça ao agente funerário. Uma esposa que veio em lágrimas pedir os restos mortais de seu marido foi afastada discretamente. Não havia maneira de encontrar seu corpo. Todos foram vítimas do pior desastre industrial dos Estados Unidos. Os funcionários do governo, os jornalistas e outras pessoas conspiraram para que esta história não chegasse ao conhecimento do público, sabendo que em breve todas as testemunhas estariam mortas. Os 26 capatazes já morreram. Em Gauley Bridge, cidade dos mortos-vivos, homens que eram fortes e decididos se estiolam enquanto seus entes queridos aguardam sombrios sua morte."
OS ANOS 1920 CHEIOS DE FALCATRUAS...
73
Uma estimativa do custo final do projeto em vidas humanas fala de 476 mortos e 1.500 incapacitados. O senador Rush Dew Holt, de West Virgínia, chamou-o “o exemplo mais bárbaro de construção industrial jamais ocorrido neste mundo.
A companhia sabia perfeitamente o que ia acontecer com esses homens. Afirmou ostensivamente que se eles morressem haveria muitos outros para contratar”.’ Alguns dos sobreviventes acionaram a Rhinehart-Dennis e a New Kanawha nos tribunais por negligência, mas as demandas foram sabotadas pela corrupção pública e privada em West Virginia. Em seu depoimento, o chefe do Departamento de Minas disse não haver visto pó no túnel em 1930 e nem em 1931, embora tivesse enviado cartas à companhia em 1931 instando-a a tomar alguma providência sobre a situação do pó. Descobriu-se que um dos jurados era levado para casa todas as noites num carro da empresa, e houve muitos outros boatos sobre interferência no júri. Finalmente, 167 demandas foram resolvidas por acordos fora dos tribunais, num total de 130 mil dólares, cuja metade ficou com os advogados dos operários. Verificou-se que uma das empresas advocatícias aceitara um pagamento de 20 mil dólares das duas companhias. Nenhuma ação punitiva foi tomada contra a Rhinehart-Dennis nem contra a New Kanawha Power.10 Esta última foi dissolvida tão logo o túnel foi inaugurado em 1934, mas a Union Carbide continuou a crescer em tamanho e poder, nacional e internacionalmente, até tornar-se uma das principais multinacionais do mundo, com 130 subsidiárias em cerca de quarenta países, aproximadamente quinhentos locais de produção e 120 mil empregados. A Union Carbide produzia desde gases industriais e fertilizantes até uma série de artigos de plástico, inclusive sacos para 80% dos norte-americanos que visitavam o comércio." Em dezembro de 1984, como veremos no Capítulo 17, a companhia esteve envolvida em um episódio em Bhopal, na índia, que foi muito mais destruidor do que Gauley Bridge.
Nas décadas de 1920 e 1930, o crime organizado nos Estados Unidos era tão comum nos pequenos negócios quanto nas empresas gigantescas que dominavam os mercados de petróleo, gás, eletricidade, jornais e fabricação de automóveis. Floristas, açougueiros, padeiros, barbeiros, carvoeiros, vendedores de sorvete, lavadores de janelas, motoristas, agentes funerários, camiseiros e taxistas eram alguns dentre as dezenas de donos de pequenos negócios em Nova York, Chicago e outras cidades vítimas de extorsão organizada de uma forma ou de outra.12 O termo racketeering*
* Atividade desonesta, especialmente a extorsão,praticada por quadrilhas. (N. do T.)
74
CAPITALISMO C.ÂNGSTER
foi cunhado para descrever esses esquemas e, segundo os comentaristas da revista Political Quarterly, tornou-se “uma filosofia assentada de negócios, criminosa em sua ética e subversiva em seu programa político e econômico”.'3
Os contemporâneos perceberam também que em vez de fazer respeitar a lei, muitas forças policiais tinham seus próprios esquemas de extorsão. Ao relatar uma investigação sobre a corrupção policial para o New York Times, James Thurlow Adams, por exemplo, notou as seguintes formas pelas quais policiais e encarregados de fianças nos tribunais utilizavam seu poder para extorquir dinheiro:
Quase todos os casos levados à magistratura emanam de detenções feitas pelo Departamento de Polícia. O resultado dos processos está em grande parte sob controle dos policiais que efetuaram as prisões, cujo testemunho é a base para o sucesso ou fracasso do processo. A experiência mostra que muitos policiais não estão cegos para as oportunidades desonestas que esse poder coloca em suas mãos. Em alguns casos fazem prisões e imediatamente oferecem vender imunidade, sem sequer exigir que o preso se dirija ao distrito policial.
Em outros casos, como prossegue Adams, a polícia cooperava com os encarregados das fianças para “esvaziar” o réu da maior quantia possível: “O procedimento era o mesmo, quer a pessoa presa fosse culpada quer a detenção fosse nada mais do que uma farsa”.''1
O crime nos mercados legais, como o petróleo, o gás e a quantidade de pequenos negócios mencionada acima era semelhante ao crime nos mercados ilegais criados pela cruzada moralista nos Estados Unidos.
Como resultado da 18* Emenda Constitucional, conhecida como Emenda da Lei Seca, e da Lei Volstead, o comércio de cerveja e outras bebidas alcoólicas tornou-se ilegal nos Estados Unidos a partir de 16 de janeiro de 1920 e até 5 de dezembro de 1933. Mesmo assim, os norte-americanos que queriam beber continuaram a fazê-lo. Como assinalaram muitos comentaristas, a proibição fez piorarem muito os problemas ligados ao álcool, criando ou agravando uma situação de ampla e sistemática ilegalidade nas cidades e estados do país.‘s A legislação inaplicável, a corrupção e uma infindável multidão de clientes dispostos forneciam oportuni-
OS ANOS 1920 CHEIOS DE FALCATRUAS...
75
dades sem precedentes para que uma nova raça de gângsteres, muitos dos quais formados nas gangues de rua, emergisse como homens de negócios capazes de gerir operações bastante complexas. Atender à demanda das classes média e alta por bebidas alcoólicas importadas, por exemplo, exigia a contratação da compra dessas bebidas em países às vezes distantes, passar pela Guarda Costeira e pela Alfândega, desembarcá-las, carregá-las em caminhões, levá-las aos depósitos e entregá-las aos distribuidores. E qualquer operação de contrabando ou produção clandestina exigia pagar pistoleiros para dissuadir assaltantes ou desestimular ou combater os concorrentes violentos no nível do varejo.
Essa competição pelos mercados e territórios era feroz, onerosa e constante, pelo menos nas duas maiores cidades do país, Nova York e Chicago. Os jornais aproveitavam ao máximo os detalhes macabros. Gângsteres rivais eram simplesmente mortos nas ruas a tiros de pistola ou metralhadora. Outros métodos eram mais imaginosos. Alguns eram levados para um “passeio”, convencidos ou obrigados a entrar em carros para terem os miolos estourados por trás. Outros, notadamente os envolvidos no Massacre do Dia de São Valentim, eram mortos por pelotões de fuzilamento. Muitos jaziam onde haviam caído, mas outros eram tratados mais discretamente, envolvidos em cimento, enfiados em sacos ou amarrados com arame e em seguida lançados em lagos ou rios. No total, milhares perderam a vida porque o comércio de bebidas alcoólicas e de armas de fogo não era regulamentado. O assassinato de um contrabandista menos importante passou a ser tão corriqueiro que os jornais quase não os registravam. A polícia fazia investigações superficiais e ninguém se preocupava com a falta de prisões ou condenações. Ser chefe de uma quadrilha não dava proteção, como demonstraram as mortes de muitos deles. Maxie Eisen, bandido de Chicago, captou a essência da situação quando disse, ao que consta: “Somos um bando de idiotas que nos matamos uns aos outros enquanto a polícia dá risada”.16
Em 1929, o novo presidente, Herbert Hoover, em resposta à má imagem que essas guerras de gangues estavam trazendo ao país, e reconhecendo a ampla ineficácia da 18* Emenda, anunciou a criação da Comissão Nacional de Observância e Aplicação da Lei (National Commission on Law Observance and Enforcement), que seria chefiada pelo ex-ministro da Justiça, George Wickersham. Após uma investigação que durou dois anos,-os relatórios da Comissão Wickersham tornaram evidente que a Lei Seca não produzira a população trabalhadora e moral que havia sido prometida pelos que a apoiavam.
76 CAPITALISMO GÂNGSTER
Os indícios de que a proibição tivera efeito deletério na sociedade norte-americana em geral e especialmente sobre o respeito à lei e à justiça criminal eram avas- saladores. A “arrumação” dos casos judiciais tornou-se ainda mais institucionalizada nos Estados Unidos durante a Lei Seca. Houve milhares de detenções, mas quando os contrabandistas se apresentavam aos juizes, os promotores subitamente descobriam que dispunham de "provas insuficientes”, as testemunhas não apareciam ou os policiais confessavam que haviam se excedido no cumprimento do dever. A flagrante “arrumação” dos casos judiciais fez com que a ministra-assistente da Justiça, Mabel Willebrandt, se queixasse de que passava mais tempo indiciando os promotores do que as pessoas que deveríam ser acusadas.17 Os juizes eram também mais vulneráveis às pressões da corrupção e de qualquer forma eram obrigados a dispensar justiça por atacado a fim de aliviar o congestionamento dos tribunais.
Os indícios recolhidos pela comissão sugeriam que as realidades econômicas sempre solapariam os ideais proibicionistas, e que a proibição havia piorado a situação de ilegalidade sistemática e ampla nos Estados Unidos. Seus relatórios reforçaram ainda mais os argumentos daqueles que desejavam revogar a proibição no início da Grande Depressão. Um número cada vez maior de norte-americanos convenceu-se de que a Lei Seca privava as pessoas de empregos legítimos e o governo de receitas, e contribuía para a continuação dos problemas econômicos, além de conseguir apenas enriquecer alguns indivíduos homicidas e corruptos. Até mesmo o notável político pró-norte-americano Winston Churchill se dispôs a assinalar o absurdo da Lei Seca dos Estados Unidos a um repórter, durante uma visita feita em 1929: “Nós obtemos mais de 100 milhões de libras anuais com os impostos sobre bebidas, quantia que pelo que vejo vocês entregam aos contrabandistas”.18
Na década de 1920, a maioria dos norte-americanos percebeu que a proibição do álcool exacerbou grandemente a elevada taxa de criminalidade daqueles dez anos. Em tempos mais recentes, uma campanha de propaganda mais completa e imaginativa e as afirmações dos peritos que freqüentemente têm interesse financeiro no combate às drogas fizeram com que poucos norte-americanos compreendessem que o mesmo se aplica ao narcotráfico. O que distingue o combate às drogas da Lei Seca é a substituição de antigas idéias de reforma moral, ligadas ao cristianismo evangélico, por um novo drama de guerra total entre as forças da lei e da ordem e as do mal, representadas principalmente por estrangeiros que produzem, contrabandeiam e distribuem drogas. Os policiais e os traficantes passaram a ser novos mocinhos e índios.
OS ANOS 1920 CHEIOS DF. FALCATRUAS...
/ /
Os contrabandistas e extorsionários como Al Capone, Arnold Rothstein e Dutch Schultz não foram os únicos criminosos que atraíram atenção da mídia durante a década de 1920 e início da de 1930. Com efeito, após o encarceramento de Capone por sonegação de impostos em 1931, a nação se interessoumuito mais pelas façanhas de seqüestradores e assaltantes de bancos.
Naqueles anos iniciais da Depressão, os norte-americanos sobre quem mais se falava e escrevia eram Bonnie Parker e Clyde Barrow, George “Baby Face” Nelson, Charles “Pretty Boy” Floyd e John Dillinger. Eram gente fora-da-lei, que operava principalmente no sul e no oeste dos Estados Unidos assaltando bancos, e por algum tempo conseguiram escapar. Os métodos eram semelhantes. Costumavam andar bem armados, freqüentemente com submetralhadoras, e se mostravam dispostos a tiroteios com as autoridades. Fugiam apressadamente em automóveis e, se necessário, cruzavam as fronteiras entre um estado e outro, onde a jurisdição dos perseguidores em geral terminava.
No entanto, ainda mais dramáticos do que os assaltos a bancos eram os seqüestros, nos quais a vítima era o personagem principal. O mais sensacional de todos foi o caso do filho ainda bebê de Charles Lindbergh, raptado de sua casa em Nova Jersey em Ia de março de 1932. Era apenas um dentre quase trezentas vítimas de sequestro, mas o lugar de seu pai no coração dos norte-americanos fez com que esse crime tocasse nervos especialmente sensíveis. Em 1927, Charles Lindbergh havia sitio o primeiro homem na história a atravessar o Atlântico de avião, sem escalas e sozinho. A notícia dessa façanha foi recebida com um entusiasmo de massas sem precedente e a admiração continuou muito depois que as 1.800 toneladas de papel picado foram varridas das ruas de Nova York. A foto dele ainda estava pendurada em inúmeras salas escolares e em casas particulares quando o bebê foi raptado.
O seqüestro dominou o noticiário durante várias semanas, e Lindbergh e a mulher ofereceram imunidade aos raptores numa declaração assinada, informando esperançosamente os patéticos detalhes da dieta da criança e pedindo a dois gângs- teres, Spitale e Bitz, que servissem de intermediários com os seqüestradores. Nada adiantou, e o cadáver da criança foi encontrado semi-enterrado em uma moita no dia 21 de maio, cerca de seis semanas após o rapto.”
O fato foi tomado como mais do que um crime contra um indivíduo. Segundo o New York Herald Tribune, o seqüestro foi “um desafio à ordem em toda a nação (...) A verdade tem de ser encarada: o exército de criminosos desesperados recrutado
78
CAPITALISMO GÂNGSTER
durante a última década está vencendo a batalha contra a sociedade”.™ Tratava-se naturalmente de uma hipérbole, mas o crime sem dúvida aumentou a desmoralização de um país já desmoralizado.
No governo do presidente Herbert Hoover, as autoridades encarregadas de fazer respeitar a lei somente podiam contar com a condenação de Capone para causar boa impressão. Enquanto isso, a atividade criminosa continuou a reinar e a série de assaltos a bancos prosseguiu. Mas acima de tudo foi o seqüestro do filho de Lindbergh o que levou o temor ao crime aos lares norte-americanos. O Saturday Evening Post não foi a única publicação a exigir uma decisão sobre “Quem é o manda-chuva nos Estados Unidos — os criminosos ou o governo?”210 presidente respondeu de maneira hesitante a perguntas como essa, e em mais de um terreno não conseguiu captar o ânimo de uma nação cada vez mais desencantada.
A fraude, a corrupção e a extorsão foram tão profundas que contribuíram de maneira significativa para a maior crise enfrentada pelos Estados Unidos no século XX-: a Grande Depressão.
Para começar, a precária estrutura bancária do país era tão pouco regulamentada quanto a indústria de energia, e não admira que fosse igualmente suscetível de fraude e abuso por parte dos qut se encontravam em posições privilegiadas. Grande parte da vasta riqueza em dinheiro e em instrumentos de crédito gerada pela máquina industrial norte-americana foi simplesmente roubada em vez de ser investida em projetos úteis ou gasta para melhorar as vidas daqueles cujo trabalho havia tornado o progresso possível.™ Mais de 55 bancos fecharam as portas durante a década de 1S20, principalmente porque seus diretores saqueavam as instituições que haviam prometido proteger, com a cumplicidade e às vezes a cooperação de advogados e reguladores governamentais. Quando não estavam envolvidos em simples estelionato, os que estavam "por dentro” tentavam utilizar o dinheiro dos depositantes em esquemas duvidosos e freqüentemente especulativos para ganhar mais dinheiro, e quando esses esquemas fracassavam, seus bancos também faliam. Segundo o estudo de Raymond B. Vickers, mais de 90% das falências de bancos na Flórida durante a década de 1920 decorreu de abusos ou fraudes de parte dos dirigentes e pessoas bem situadas. A versão aceita sobre as causas da crise bancária da Flórida absolveu os banqueiros e os funcionários, afirmando que uma queda imprevista no valor dos imóveis criara uma recessão regional que acarretou um
OS ANOS 1920 CHEIOS DE FALCATRUAS...
79
número sem precedentes de falências de bancos. Vickers consultou registros governamentais que haviam permanecido em segredo durante 63 anos e demonstrou que a versão aceita era uma ficção que servia aos interesses dos banqueiros.”
As fraudes foram também fator importante no estouro espetacular da bolha da Bolsa em outubro de 1929, que anulou grande proporção dg$.economias de milhões de norte-americanos. Investigações posteriores mostraram que os operadores de Wall Street conspiraram com pessoas no interior das empresas para manipular o valor dos papéis na Bolsa. Os grandes lucros que auferiram prejudicaram principalmente os pequenos investidores e desempenharem um papel na promoção da mania especulativa dos “dinâmicos anos 1920”. Banqueiros poderosos também haviam enganado os incautos, fazendo-os comprar ações e títulos sob pressão de vendedores, e ganharam milhões comercializando os títulos de seus próprios bancos e lesando os acionistas.” Políticos dos dois grandes partidos participaram ativamente dessas fraudes, justificando 0 título de um livro de 1930, de autoria de Emmanuel H. L.evine: Gimme: or How Politicians Get Rich, Conforme disse John Kenneth Galbraith em sua história do The Great Crash: “O fato era que as empresas norte-americanas na década de 1920 haviam acolhido de braços abertos um número excepcional de promotores, aproveitadores, vigaristas, impostores e fraudes. Na longa história de tais atividades, isso foi uma espécie de maré de gatunagem empresarial.”” Embora muitos economistas discordem, a fraude e a corrupção empresariais devem, portanto, ser aceitas como fatores que contribuíram para a precipitação da Grande Depressão. A distribuição desigual da renda nos Estados Unidos foi uma causa mais fundamental, mas é claro que isso tinha relação com alguns dos crimes de que tratamos. Segundo os estudos, em 1929, a parcela superior de 0,1% das famílias norte-americanas possuía uma renda total igual à da faixa inferior de 42% delas. Naquele ano, que foi o mais próspero na história do país, ou mesmo do mundo, 71% das famílias dos EUA tinham rendimentos inferiores a 2.500 dólares, e a tendência sem dúvida continuaria. Parte da riqueza norte-americana na década de 1920 estava escoando aos menos aquinhoados, mas o ritmo com que os ricos ficavam mais ricos era muito mais rápido do que o ritmo com que os pobres ficavam menos pobres. O hiato crescente entre ricos e pobres decorria principalmente de que a produtividade, e portanto a lucratividade da indústria nacional, crescia a uma taxa muito mais rápida do que os salários. Um movimento sindical forte poderia ter aumentado a fatia do bolo entregue aos operários, mas o governo e a hostilidade
80
CAPITALISMO GÂNGSTER
dos empregadores impediu que isso acontecesse. Os norte-americanos foram extraordinariamente produtivos durante esses anos, mas muito poucos dentre eles conseguiam consumir a um nível suficiente para sustentar uma economia saudável; as sociedades que produzem em massa necessitam de consumo em massa tanto interna quanto externamente, a fim de manter a prosperidade. Como explica Robert McElvaine, a distribuição desigual da riqueza e da renda foi apenas uma entremuitas causas da Grande Depressão, mas “foi a principal raiz. Levou tanto ao subconsumo quanto à superpoupança, e ajudou a alimentar a especulação financeira”.26 Oficinas e fábricas fecharam, as filas para a sopa dos pobres cresceram, e favelas construídas com caixas de papelão e outros materiais descartáveis surgiram nos arredores das cidades, batizadas ironicamente de Hoovervilles” [Cidades de Hoover], em alusão ao presidente. Um número cada vez maior de norte-americanos começou a pensar nos motivos pelos quais tinham fome e frio em meio à abundância.
.As explicações, esperança e ajuda que vinham recebendo do presidente Hoover eram claramente inadequadas. Ele continuava a negar a profundidade e gravidade da Depressão. Achava que os problemas do país eram mais psicológicos do que econômicos e afirmava que um retorno à confiança no mundo dos negócios seria em breve seguido pela recuperação econômica. Apoiou um programa de obras públicas a fim de dar emprego a alguns norte-americanos, mas sua intervenção na economia ficou aquém da reforma estrutural, pois ele acreditava que o sistema capitalista era essencialmente firme. "O único problema do capitalismo”, confidenciou ele a um amigo, “são os capitalistas, que são muito gananciosos”.”
As deficiências de Hoover preocuparam muitos dos integrantes da elite de negócios do país. Acharam que muitos cidadãos perderíam a confiança no próprio sistema empresarial norte-americano e em conseqüência talvez se voltassem para o socialismo, o comunismo ou o fascismo. A possibilidade de que a Depressão levasse a um colapso ainda maior da lei e da ordem entre os pobres e os que haviam recentemente perdido o que tinham também serviu para concentrar seu raciocínio. Quinze milhões de homens estavam desempregados, milhares âe panhandlers* ou mendigos, vagavam pelas ruas, e houve distúrbios em diversas cidades. Em algumas delas,' os homens de negócios formaram comissões para assumir o controle “caso , ,ás ferrovias e linhas telefônicas sejam cortadas e as estradas sejam bloqueadas”.28
1
OS ANOS 1920 CHEIOS DE FALCATRUAS... 8 1
Os hotéis de Nova York perceberam que “hóspedes abastados que normalmente alugavam suítes durante o inverno ficaram escondidos em suas casas de campo”.29 Alguns hotéis chegaram a montar metralhadoras nos telhados. Nesse ambiente de temor e insegurança, junto com um reconhecimento difundido em todas as classes sociais de que a Depressão demonstrava os defeitos, talvez fatais, do capitalismo norte-americano, a reforma estrutural se tornou uma exigência, mais do que uma opção, para muitos, tanto entre os poderosos quanto entre os que não detinham o poder no país. Os norte-americanos precisavam de um tipo de capitalismo que desse certo, e não o capitalismo gângster que tinham. Ao votarem no final de 1932, precisavam de um salvador, e não apenas de um presidente.
I
CAPÍTULO 4
Pagina 83
O New Deal e o crime organizado
I
; ■
í
|	Negócios inacabados — 1933-1945
I
j	A campanha de FrankJin Delano Roosevelt para presidente, em 1932, mostrou
claramente que sua intenção era ao mesmo tempo salvar e limpar o capitalismo doméstico. No final de seu segundo mandato, conseguira realizar em parte o primeiro desses objetivos e o grande ímpeto que a Segunda Guerra Mundial trouxe à economia norte-americana completou o socorro. Embora o esforço de moralizar o capitalismo viesse a perder fôlego, alguns passos importantes foram dados. A reforma do New Deal conseguiu tornar os Estados Unidos menos vulneráveis às brutalidades e conchavos do sistema laissez-faire e, dessa forma, assim como de outras, fez do país um lugar menos hospitaleiro para criminosos, extorsionários e criminosos empresariais profissionais. Durante esse período, o governo dos Estados Unidos enfrentou o problema do crime organizado numa perspectiva mais ampla do que a maneira pela qual ele hoje é entendido, e por isso fez mais do que simplesmente prender os malfeitores. Houve, como veremos, limites à eficácia do New Deal no combate ao crime organizado nos Estados Unidos, mas esse período de reforma foi a única ocasião na história do país em que as oportunidades de crime organizado se reduziram.
Na campanha presidencial de 1932, Roosevelt atacou constantemente a ineficiência da resposta de Hoover à Depressão e por extensão a filosofia de laissez- faire que ela representava. Num discurso pelo rádio em abril, o candidato disse aos norte-americanos que as medidas limitadas tomadas por Hoover poderíam ser desejáveis, mas eram inadequadas: "Um verdadeiro tratamento econômico”, enfatizou ele, “tem de chegar a matar as bactérias do sistema, e não somente cuidar dos sintomas exteriores”.1
84
CAPITALISMO GÂNGSTER
As melhores cabeças do país estavam concentradas nos problemas econômi-
cos dos Estados Unidos. Todos os comentaristas atentos sabiam que a Depressão
demonstrara haver alguma coisa fundamentalmente errada no capitalismo norte-
americano e que o tratamento envolvería mais do que a dependência ortodoxa na
capacidade do mercado de curar-se a si mesmo. Adolph Berle, por exemplo, era
professor de Direito e co-autor em 1932 de uma das mais importantes análises
do capitalismo moderno em The Modem Corporation and Private Property [A
moderna sociedade anônima e a propriedade privada], e mais tarde participou do
famoso grupo de assessores denominado hrains trust [cérebros de confiança] de
Roosevelt. Berle achava que o poder empresarial precisava ser contido e ser mais
responsável diante do Estado, além de compelido a servir “aos supremos interesses
da comunidade”. Ele definia comunidade como o conjunto de todos os que eram
afetados pelo funcionamento das organizações empresariais, não somente o capital,
mas também a mão-de-obra, os consumidores e o governo. Em outras palavras, era
preciso haver novas formas de controle público sobre o poder corporativo.2
Outros trataram em termos mais candentes dos problemas do capitalismo exa-
cerbado pelo laissez-faire, inclusive as muitas oportunidades de organizar-se para
o crime e lucrar com ele. Comentaristas contemporâneos, como Charles Beard,
Walter Lippmann e Murray Gurfein sugeriram daramente que o crime organizado
era um dos desafortunados produtos do capitalismo desenfreado. Depreende-se de
suas análises que uma regulamentação mais rigorosa do mundo dos negócios era
necessária para reduzir as oportunidades de êxito do crime organizado nos merca-
dos legítimos. Em 1931, Charles Beard, principal historiador da época, escreveu um
artigo sobre o mito largamente difundido de que a grandeza dos Estados Unidos se
baseava no “vigoroso individualismo”: “A fria verdade é que o credo individualista
de cada um por si e que o diabo fique com a sobra é o principal responsável pela
aflição em que se encontra a civilização ocidental, com falcatruas de investimento
de um lado e falcatruas da mão-de-obra do outro (...) Isso se tornou um perigo
para a sociedade.”3
No mesmo ano, Lippmann, um dos mais influentes articulistas da imprensa, recomendou aos norte-americanos que pelo menos investigassem “se certas formas de atividade criminosa não serão o resultado, em condições adversas, da dedicação -legislaturas, tribunais e opinião pública à filosofia do laissez-faire”.11 Gurfein, ■'respeitado advogado de Nova York, escreveu um ensaio sobre a definição de
1
O NEW DEAL E O CRIME ORGANIZADO 85
racketeering [modo de ganhar dinheiro desonestamente], que pode ser considerado notavelmente premonitório dada a onda de escândalos empresariais que se seguiu ao colapso da Enron em 2002. Ele alinhou as seguintes características do sistema norte-americano de negócios que explicam o problema do crime organizado: “o mercado fraudulento de ações, a manipulação de empresas subsidiárias, a irresponsável inflação de títulos, o pagamento aos diretores de bônus exageradamente elevados, a evasão fiscal generalizada, o fácil conluio com políticos para auferir ganhos”. Essas características “ilustravam o ânimo da época” e forneciam “uma chave à desonestidadeparasitária”, continuava ele. “O bandido típico”, concluía,' e um produto evolucionário natural do laissez-faire no sentido estrito”.5
O próprio Roosevelt fez afirmações específicas sobre as ligações entre o crime e o capitalismo, mas evidentemente tinha de usar linguagem comedida. Num discurso de abril de 1932, desta vez a uma platéia em Portland, no Estado do Oregon, ele lançou um forte ataque contra as companhias de energia e a ausência de controle governamental sobre suas práticas fraudulentas. “A eletricidade”, argumentou, “não é mais um luxo. É uma verdadeira necessidade. Ilumina nossos lares, nossos locais de trabalho e nossas ruas. Faz girarem as engrenagens da maior parte de nossos sistemas de transporte e nossas fábricas (...) Interesses egoístas”, prosseguiu, haviam tornado esse recurso crucial demasiadamente caro para o uso generalizado pelo público, e “a manipulação privada engambelou o lento poder do governo”. Denominando “uma monstruosidade” a complexa rede de empresas e subsidiárias organizada para formar o império do empresário Samuel Insull, de Chicago, Roosevelt passou a detalhar as formas pelas quais tanto o público quanto os investidores haviam sido enganados, com um prejuízo de bilhões de dólares:
Não perceberam que houve uma inflação contábil arbitrária de ativos, elevando vastas contas de capital. Não perceberam que preços excessivos haviam sido pagos para aquisição de propriedades (...) Não perceheram que (...) subsidiárias haviam sido sugadas repetidamente a fim de manter vivas as partes mais débeis da grande cadeia. Não perceberam que tinha havido empréstimos concedidos e tomados entre os diversos elementos componentes do sistema. Não perceberam que tudo isso disfarçava os tremendos aumentos de tarifas pelos serviços dessas empresas.
86
CAPITALISMO GÂNGSTER
Roosevelt culpou a incapacidade da regulamentação federal e estadual por permitir que essas condições surgissem. Por causa disso, disse ele, “muitas companhias de serviços públicos burlam a legislação comum, capitalizando-se sem relação com o verdadeiro investimento em propriedades, acumulando o capital por meio de companhias-mãe e vendendo, sem limitações legais, bilhões de dólares em ações que o público foi levado a acreditar, falsamente, serem adequadamente supervisionadas pelo próprio governo”. O público, concluiu, “foi tosquiado em milhões de dólares”.
Para solucionar a imensa fraude e extorsão das companhias de energia, ele propôs um papel muito mais positivo do governo na regulamentação da indústria em geral e da indústria de energia em particular. As empresas energéticas tinham conseguido “tosquiar” o público porque suas transações eram efetuadas principalmente a portas fechadas, e Roosevelt exigiu, entre suas medidas saneadoras, “ampla transparência em todas as emissões de capital em ações, títulos e outros papéis; nos passivos e dívidas, assim como nos investimentos de capital; e informação freqüente sobre ganhos brutos e líquidos”. Vamos “acender a luz”, exigiu ele, repetindo um tema recorrente entre aqueles que desejavam vigiar as imperfeições e abusos do capitalismo desenfreado.6 “A transparência”, disse ele em outro discurso, “é a inimiga da desonestidade”.7
A necessidade de controlar o capitalismo foi também o tema de seu mais famoso discurso de campanha, em 22 de maio. Dirigindo-se aos estudantes e professores da Universidade Oglethorpe, falou do gigantesco desperdício do progresso industrial norte-americano, “grande parte do qual poderia ter sido prevenido com um pouco mais de visão e maior medida de planejamento social”. Em vez de ser dirigido para o interesse nacional, acusou ele, esse progresso ficara sob controle de pequenos grupos de interesses especiais. A nação já não podia permitir que “nossa vida econômica seja controlada por esse reduzido grupo de homens, cuja principal opinião sobre o bem-estar social está subordinada à capacidade de auferir enormes lucros por meio de empréstimos e da venda de títulos (...) Precisamos corrigir, se necessário por meios drásticos, as falhas de nosso sistema econômico, que hoje nos prejudicam”.'
Ao apontar as falhas na estrutura do capitalismo norte-americano, Roosevelt se colocava em campo diferente do de Hoover e de seus próprios rivais para a escolha do candidato democrata. Ele exprimia uma crença central no pensamento liberal
O NEW DE AL E O CRIME ORGANIZADO
87
da época: a de que algo estava errado no capitalismo e o governo deveria encontrar a maneira de consertá-lo.9
Roosevelt reiterou os temas acima no discurso de aceitação da designação para ser o candidato do Partido Democrata, em julho, e voltou a atenção também para o único outro tema, além da Depressão, que preocupava os norte-americanos na época — a Lei Seca. “Devemos abolir as repartições inúteis”, disse ele, referindo-se, entre outros, à que administrava a Lei Seca, e “devemos eliminar as funções desnecessárias do governo”. Em seguida afirmou seu apoio à revogação da 181 Emenda.10
Nesse particular, Roosevelt mais uma vez refletia a corrente de opinião inteligente. Muitos comentaristas haviam argumentado veementemente que a Lei Seca e outros aspectos do programa de reforma moral dos Estados Unidos eram na melhor das hipóteses inúteis, e até mesmo contraproducentes em seus efeitos. Ao reagir a reivindicações de mais policiais e prisões para fazer respeitar a Lei Seca, por exemplo, o senador Robert Wagner, poderoso aliado político de Roosevelt, fizera uma pergunta irrespondível: “Para que empilhar mais sacrifícios no altar da desesperança?”11 O apoio de Roosevelt à revogação reconhecia a força de tais argumentos e deu maior ímpeto à campanha que acabou com a proibição de bebidas alcoólicas em 5 de dezembro de 1933, quando Utah se tornou o último estado a ratificar a 21‘ Emenda. Após 14 anos de existência, Roosevelt pôde anunciar o fim da Lei Seca.
O impacto foi quase imediato. A legalização do álcool forneceu emprego legítimo a mais de um milhão de pessoas na fabricação de bebidas fermentadas e destiladas e em funções correlatas, desde o serviço de bares até a fabricação de barris e salgados. As receitas federais, estaduais e locais com impostos e licenças excederam um bilhão de dólares anuais em 1940. Duas outras conseqüências sem dúvida positivas da revogação foram a de que o número de mortes decorrentes de álcool barato contaminado caíra drasticamente, assim como o de mortes nas guerras de gangues de contrabandistas. A proibição do álcool já não era a principal base financeira do crime organizado nos mercados ilegais. Não houve aumento perceptível na embriaguez e nos problemas de saúde relacionados com o álcool.12
O contrabando continuou a ser um negócio florescente porém localizado, nos poucos estados do Sul que mantiveram leis antibebidas alcoólicas. Em estados como Mississippi e Oklahoma, o lobby da temperança sempre podia contar com o apoio
88
CAPITALISMO ÜÂNGSTER
oculto dos contrabandistas, cujos negócios exigiam a continuação da tentativa de impor a abstinência."
Na maioria dos estados, entretanto, os gângsteres contrabandistas não tiveram condições de competir, uma vez que foi estabelecida a legalidade do comércio de bebidas, e logo se extinguiram ou se adaptaram às novas circunstâncias. Alguns conseguiram legitimar suas operações de contrabando tornando-se importadores, e outros, de variedade mais violenta, foram empregados por empresas para “convencer” varejistas a vender marcas específicas de bebida. Outros, como Abner “Longy” Zwillman, de Nova Jersey, continuaram como distribuidores de bebidas no nível local. Após a revogação, Zwillman e seus sócios fundaram a Browne Vintners, para distribuição de álcool na área de Nova York. Em 1940 venderam a firma à gigantesca corporação Seagram por 7,5 milhões de dólares.'1
A revogação eliminou imediatamente uma imensa fonte de receitas ilegais. No entanto, as redes de corrupção, compostas de gângsteres, criminosos profissionais, homens de negócios e funcionários públicos continuaram a prover a demanda de atividades quepermaneceram proibidas nos Estados Unidos, especialmente os jogos de azar, o comércio sexual e o uso de certos tipos de drogas, como a heroína e a cocaína.
No discurso de aceitação da candidatura à Presidência pelo Partido Democrata,
Roosevelt anunciou uma cruzada para “restituir os Estados Unidos a seu próprio povo”,
e prometeu “um novo trato (New Deal) para os norte-americanos”." Ao assumir o cargo
de presidente, em março de 1933, estava portanto comprometido a tomar medidas
radicais para restaurar a confiança do povo no sistema norte-americano, tendo como
alvo especial os banqueiros e os homens de negócios cuja conduta ele classificou de
“desonestidade insensível e egoísta”. “As práticas dos negociantes inescrupulosos com o
dinheiro”, acusou ele, “estão indiciadas pelo tribunal da opinião pública”." O presidente
iniciou então um período intenso e sem precedentes de atividade legislativa e executiva,
visando a reformar o sistema corrupto e improdutivo dos Estados Unidos. Em uma
de;suas “conversas ao pé da lareira” com os norte-americanos, em setembro de 1934,
ele,explicou a motivação de tal transformação fundamental do capitalismo do país.
Disse aos milhões que o ouviam pelo rádio que “em tempos como os atuais, a empresa
privada não pode ser deixada sem assistência e sem salvaguardas razoáveis, sob pena de destruir não apenas a si mesma mas também nossos processos de civilização”.17
O NEW DEAL E O CRIME ORGANIZADO 89
Seu governo iniciou essa tarefa estabelecendo uma agência-chave de recuperação, encarregada de revitalizar a indústria. A Administração Nacional de Recuperação (National Recovery Administration - NRA) foi uma tentativa de planejamento econômico conjunto entre o governo e a indústria, objetivando estabilizar preços, restringir a concorrência, expandir o poder de compra,, aliviar o desemprego e melhorar as condições de trabalho. Embora haja fracassado em seu objetivo primordial, e talvez inatingível, da recuperação econômica, deu início efetivo a processos que reduziram significativamente o gangsterismo na indústria norte-americana.
Para começar, o Artigo 7-a da lei que estabelecia a NRA garantia o direito de negociação coletiva, e preparava o caminho para a Lei Nacional de Relações Trabalhistas, de 1935. Enquanto os sindicatos não possuíssem o direito de negociar coletivamente em nome de seus filiados, os empregadores consideravam legítimo o uso de quaisquer métodos de repressão, inclusive os praticados por gângsteres, e nisso eram invariavelmente sustentados pelos tribunais. A nova lei exigia o respeito mais eficaz ao direito de filiar-se a sindicatos. Criou a Junta Nacional de Relações Trabalhistas (NLRB), com o poder de negociar em nome dos trabalhadores e também de coibir as empresas no emprego de gângsteres para intimidar os sindicatos e no uso de outras “práticas trabalhistas desleais”, tais como listas negras e sindicatos dominados pelas empresas. Os primeiros tempos da NLRB foram de ineficácia, mas sua capacidade de ação aumentou com uma série de denúncias, em 1936 e 1937, dos métodos usados pelas corporações industriais para combater o sindicalismo. Entre esses métodos estava a acumulação de armas especialmente adaptadas para uso em disputas industriais, como submetralhadoras, gás lacrimogêneo, gás de efeito moral, granadas e cartuchos. As armas eram usadas pelas polícias particulares das empresas contra grevistas e sindicalistas. Graças em grande parte ao trabalho da NLRB, somente uns poucos adversários obstinados da sindicalização continuaram a confiar na força bruta de capangas nas lutas com os sindicatos."
A legalização da fixação de preços, introduzida sob os auspícios da NRA, impediu o papel estabilizador dos industriais desonestos nas empresas prestadoras de serviços e em indústrias de pequena escala, como a de confecções e transporte rodoviário, distribuição de alimentos, lavanderias e lavagem a seco. Segundo o.sociólogo Daniel Bell, nessas indústrias deformadas e sanguinárias o empresário desonesto, paradoxal- mente, havia desempenhado uma função estabilizadora por meio da regulamentação da concorrência e da fixação de preços. “Quando a NRA apareceu e assumiu esse
90
CAPITALISMO GÂNGSTER
papel”, explicou Bell, “os empresários perceberam que aquilo que antes fora um serviço quase econômico passava a ser pura extorsão, e começaram a exigir ação policial”.1’ Assim, as associações empresariais exerceram pressão sobre as autoridades para que agissem e eliminassem esse tipo de corrupção industrial.
Em Nova York, o promotor especial Thomas E. Dewey personificou a reação das autoridades. Investigou e obteve condenações nas indústrias de frangos e de restaurantes e começou uma devassa nas quadrilhas que dominavam as padarias, os transportes rodoviários e as confecções, o que acabou por afastar Lepke Buchalter, Jacob Shapiro e muitos outros gângsteres. No entanto, as autoridades de Nova York e outros lugares agiram com muito mais lentidão nos casos de gângsteres que se infiltravam nos sindicatos com a anuência ou colaboração dos empregadores.”
O New Deal, portanto, não conseguiu acabar com o envolvimento das quadrilhas de bandidos nas relações de trabalho nos Estados Unidos, mas marcou o princípio do fim dos gângsteres clássicos do tipo de Lepke. O fim custou a chegar, em grande part.e porque as reformas trabalhistas não procuraram democratizar muitos dos sindicatos mais corruptos e nem fornecer qualquer tipo de proteção aos fundos de assistência e pensões desses sindicatos desonestos. Esses fundos foram objeto de livre pilhagem por parte de criminosos empedernidos durante várias décadas ainda. Mas a indiciação dos elementos corruptos dos sindicatos se iniciou, efetivamente, na década de 1960, e houve grandes êxitos contra tais sindicatos, como a dos caminhoneiros nas décadas de 1970 e 1980.
A ação governamental nos níveis local e federal durante a era Roosevelt assegurou não apenas a condenação de grande número de gângsteres, mas também pelo menos a de alguns de seus protetores politicos. O mais proeminente entre os gângsteres, ao menos segundo as reportagens sensacionalistas, foi Charles “Lucky” Luciano, em Nova York, condenado em 1935 por haver organizado uma operação de prostituição em larga escala. O principal entre os protetores políticos era Jímmy Hines, chefe politico corrupto do Partido Democrata na Margem Oeste Superior de Manhattan, que era estreitamente ligado à quadrilha de loteria clandestina do poderoso gângster Dutch Schultz. Tanto Luciano quanto Hines foram indiciados e condenados por Thomas E. .Dewey. Em meio ao calor dos esforços para fazer respeitar a lei, Schultz acabou mor- rendo çomo gângster, de forma espetacular, no Palace Chophouse, em Nova Jersey. çNáconfusão de suas últimas palavras está a frase possivelmente lamentosa: “A melhor que temos é nossa mãe, e não deixe que Satã leve você depressa demais”.”
O NEW DEAC E O CRIME ORGANIZADO
91
A agência escolhida para representar o compromisso do New Deal para tornar mais eficientes e profissionais os esforços de fazer respeitar a lei foi o Bureau Federal de Investigações (FBI). Em 1934 o FBI recebeu jurisdição sobre diversos crimes interestaduais, como o seqüestro e o roubo de automóveis. Seu diretor, J. Edgar Hoover, imediatamente orientou seus agentes contra os assaltantes de banco, que vinham evitando a captura ao atravessar as fronteiras dos estados. Em rápida seqüência, Nelson “Baby Face”, Floyd “Pretty Boy” e John Dillinger foram mortos a tiros pelos agentes de Hoover. Embora alguns gângsteres se rendessem e fossem capturados vivos, o conselho muito citado do ministro da Justiça Homer S. Cum- mings aos agentes resume a violência da reação federal: “Atirem para matar e depois contem até dez”.22 Esses gângsteres, conforme assinalamos, vinham aproveitando as limitações da jurisdição das polícias locais e estaduais, refugiando-se fora das fronteiras de municípios, cidades e estados após os assaltos aos bancos. Em 1936, o FBI podia afirmar, com certa justiça, que todosos casos de seqüestro no país, inclusive o do bebê Lindbergh, haviam sido encerrados.2-’ A expectativa da presença federal nesses casos, sem dúvida, estimulou uma reação mais diligente e profissional de parte das polícias estaduais e locais. O seqüestro se tornou profissão muito mais difícil nos Estados Unidos a partir da década de 1930.
O governo Roosevelt usou também a atmosfera anticrime da época para promover leis muito necessárias de controle de armas de fogo. A Lei Nacional de Armas de Fogo autorizou a imposição de um imposto federal sobre metralhadoras, silenciadores, revólveres de cano curto e rifles, além do licenciamento dos revendedores, registro das armas e restrições à importação de todo armamento. A lei, no entanto, foi muito amenizada devido à pressão da Associação Nacional do Rifle; as pistolas, revólveres automáticos e rifles semi-automátícos ficaram de fora, e não era necessária muita inteligência para que um criminoso serrasse o cano de alguma arma!21
Enquanto isso, Hoover utilizou seus novos poderes e o interesse e apoio de seus superiores para transformar sua agência na mais eficiente e menos corrupta repartição de polícia do país. As forças policiais local e estadual haviam se mostrado quase universalmente ineficientes e corruptas, e, portanto, era necessário que uma agência federal ditasse os padrões de profissionalismo. Também foi preciso que o FBI investigasse e reprimisse atividades “subversivas” quando os Estados Unidos entraram na guerra contra o fascimo, e Hoover foi um dos primeiros e mais previdentes adversários do regime nazista da alemanha. No entanto, após a vitória
92
CAPITALISMO GÂNGSTER
na guerra, não era necessário que Hoover definisse a “subversão comunista” tão
amplamente a ponto de englobar até mesmo reivindicações de reforma econômica
e social inspiradas pelo New Deal, mas foi isso o que ele fez, juntando-se a uma
perigosa guinada para a direita no pensamento norte-americano.
As reformas do New Deal fizeram dos Estados Unidos um lugar menos hospi-
taleiro para gângsteres e criminosos. Reduziram também as oportunidades para o
êxito da atividade criminosa organizada em pelo menos três importantes setores da
economia, como demonstram os relatos seguintes sobre as mudanças na estrutura
dos setores de energia, bancos e finanças.
As companhias de energia, usando a imprensa e outros setores dos meios de
informação, fizeram o que podiam para tentar bloquear a candidatura e a eleição
de Roosevelt, dada sua atitude contra a ganância e a corrupção. Combateram todas
as reformas do New Deal que afetavam a indústria da eletricidade. Apesar desses
esforços, o governo conseguiu estabelecer novas agências, concluiu quatro grandes
projetos hidrelétricos e teve sucesso, em linhas gerais, em tornar a eletricidade
disponível a baixo custo, tanto aos norte-americanos urbanos quanto rurais. Para
impedir os abusos a que Roosevelt se referiu em seu discurso de abril de 1932, a Lei
Federal de Holdings de Companhias de Serviços Públicos (Federal Public Utility
Holding Company Act — PUHCA) foi aprovada em 1935. Sua intenção era romper
os grandes trustes, ou companhias de holding em todo o país, com suas estruturas
complicadas que permitiam práticas enganosas. Em conseqüência da melhor regu-
lamentação após a PUHCA e da transparência introduzida no fornecimento de
energia elétrica nos Estados Unidos, os consumidores pagantes viram suas contas
declinarem substancialmente. Já não eram “tosquiados” como antes.
No entanto, essa situação relativamente saudável não sobreviveu por muito
tempo ao fim do New Deal. Quando se iniciou o governo Eisenhower em 1950,
grande parte da PUHCA havia sido amenizada, as companhias energéticas res-
surgiram novamente e o cerne dos antigos abusos permanecia intacto.K
A pedra angular da reforma do sistema bancário foi a Lei Glass-Steagall, de 1933,
que atacou o hiato regulatório que permitira a banqueiros desonestos operarem
livremente em muitos sistemas estaduais. A Glass-Steagall e outras leis e regula-
' mentos sobre bancos aumentaram significativamente o poder e a independência do
Federal Reserve, transformando-o num verdadeiro banco central, capaz de exercer
I
O NEW DEAL E O CRIME ORGANIZADO 93
controle eficaz sobre a política monetária do país.26 As novas leis restringiram a utilização especulativa dos créditos bancários, asseguraram os depósitos privados com um programa governamental de seguros que forçava os grandes bancos a contribuir para a segurança dos pequenos estabelecimentos, e proibiu aos bancos comerciais dedicar-se aos negócios de investimentos. Dessa forma, a Lei Glass-Steagall coibiu drasticamente as práticas daqueles “negociantes inescrupulosos com o dinheiro” que tanto haviam irritado Roosevelt. As medidas colaboraram para sustentar a estabilidade da indústria bancária. Isso se refletiu em um forte declínio do número de falências de bancos após a reforma. A atividade regulatória federal conseguiu assim trazer estabilidade ao sistema bancário do pais, reduzindo as oportunidades de fraude e protegendo a poupança dos norte-americanos comuns.2'
A Lei de Títulos, de 1933, e a Lei de Títulos e Bolsa, de 1934, objetivavam o tratamento de outro vazio regulatório, que havia permitido tantas fraudes no mercado de ações e especulação desenfreada durante os anos de ascendência republicana. Antes da década de 1930, Wall Street era, nas palavras de David Kennedy em Freedom from Fear (1999), um ambiente espantosamente faminto de informação. As firmas não tinham obrigação de publicar relatórios adequadamente auditados e somente um punhado de banqueiros de investimento como J. R Morgan eram capazes de tomar decisões financeiras sólidas porque possuíam o monopólio das informações necessárias. Abundavam as oportunidades para manipulação e especulação selvagem de parte de pessoas bem situadas, e na tradição do laissez-jaire a principal restrição à atividade fraudulenta era a claramente inadequada caveat emptor, ou “o comprador que se cuide”!2' O governo Roosevelt tentou suplementar a caveat emptor com “o vendedor que se cuide também”, responsabilizando pela confiança neles depositada os gerentes de bancos, corporações e outras instituições que manuseavam ou usavam dinheiro alheio. Roosevelt assinalou numa mensagem ao Congresso que a lei deveria “dar ao vendedor o encargo de dizer toda a verdade”, e pediu uma lei que impedisse as fraudes, exigindo às empresas que registrassem todas as novas emissões de ações e títulos na Comissão Federal de Comércio. O presidente obrigava as empresas emissoras a dar as informações financeiras relevantes de modo “completo e leal” sobre os papéis emitidos e sobre as companhias neles envolvidos.'” Em resumo, a intenção era dar transparência às transações na Bolsa de Valores.
A Lei de Títulos e a Lei de Títulos e Bolsa estabeleciam uma Comissão de Títulos e Bolsa (Securities and Exchang Commission – SEC) composta de cinco pessoas.
94
CAPITALISMO GÂNGSTER
'im
para fazer respeitar a nova regulamentação. Roosevelt escolheu Joseph Kennedy, profundo conhecedor de Wall Street e pai de um futuro presidente, para ser o primeiro chefe da comissão porque, como ele próprio disse, “é preciso um ladrão para pegar outro ladrão”. A intenção era de que Kennedy utilizasse seu conhecimento do ambiente interno da Bolsa a fim de ensinar os funcionários da comissão a policiar as fraudes do mercado de ações que o haviam ajudado a fazer sua fortuna. A história investigativa da SEC desde sua criação mostra que os representantes das empresas, os compradores e vendedores de títulos, os corretores, conselheiros de investimentos, contadores e advogados tinham pelo menos a mesma probabilidade de serem ladrões que os que tinham cargos menos respeitáveis. A diferença é que eles tinham mais oportunidades.50
Foi dessa forma que a legislação do New Deal transformou e, pelo menos em parte, saneou os setores de energia, bancos e finanças da economia norte-americana. O New Deal policiava os negócios dessa e de

Continue navegando