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The Psychopath’s Test Traduzido do inglês por Jorge Lima Viagem à Indústria da Loucura O Teste do Psicopata JON RONSON Conteúdos CAPÍTULO 1 > A PEÇA QUE FALTAVA NO ENIGMA 9 CAPÍTULO 2 > O HOMEM QUE SE FINGIA LOUCO 35 CAPÍTULO 3 > OS PSICOPATAS SONHAM A PRETO E BRANCO 65 CAPÍTULO 4 > O TESTE DO PSICOPATA 87 CAPÍTULO 5 > TOTO 113 CAPÍTULO 6 > A NOITE DOS MORTOS-VIVOS 131 CAPÍTULO 7 > O TIPO CERTO DE LOUCURA 159 CAPÍTULO 8 > A LOUCURA DE DAVID SHAYLER 169 CAPÍTULO 9 > APONTAR ALTO 197 CAPÍTULO 10 > A MORTE EVITÁVEL DE REBECCA RILEY 213 CAPÍTULO 11 > BOA SORTE 235 NOTAS, FONTES, BIBLIOGRAFIA E AGRADECIMENTOS 252 9 :: CAPÍTULO 1 :: A peça que faltava no enigma Esta é uma história sobre loucura. Tem início com um encontro numa cafetaria Costa Coffee em Bloomsbury, no centro de Londres. Os neurologistas tendiam a frequentar o Costa, pelo facto de o Departamento de Neurologia do University College de Londres ser logo ao virar da esquina. E ali estava agora uma neurologista, virando para Southampton Row e acenando-me timidamente. Chamava-se Deborah Talmi. Tinha o ar de quem passa os dias enfiado em labo- ratórios e não está habituado a encontros peculiares com jornalis- tas em cafés, nem a ver-se envolvido em mistérios desconcertantes. Vinha acompanhada de um jovem alto, com ar de académico e barba por fazer. Sentaram-se. – Deborah – apresentou-se ela. – Jon – respondi. – E eu chamo-me James – disse o outro. – E então? – inquiri. – Trouxe-o? Deborah assentiu com a cabeça. Fez deslizar silenciosamente um pacote sobre a mesa. Abri-o e revirei o conteúdo nas mãos. – É muito bonito – disse eu. Em julho passado, Deborah recebeu uma estranha encomenda postal. Estava na caixa do correio. O carimbo postal assinalava Gotemburgo, Suécia. Alguém escrevera sobre o envelope acolchoado: Dir-lhe-ei mais quando voltar! Quem quer que fosse o remetente, porém, não se identificara. No interior do envelope havia um livro. Tinha apenas 42 pági- nas, 21 das quais – página sim, página não – completamente em branco. Mas tudo, o papel, as ilustrações, os carateres tipográficos, 10 O TESTE DO PSICOPATA denotava uma produção muito dispendiosa. A capa ostentava uma ilustração delicada e bizarra de duas mãos desencarnadas dese- nhando-se uma à outra. Deborah reconheceu Mãos Que Desenham, de M. C. Escher. O autor era um certo «Joe K» (talvez uma referência a Joseph K, de Kafka, ou um anagrama de «joke»?) e o título era O Ser Ou o Nada, aparente alusão ao ensaio de 1943 de Sartre, O Ser E o Nada. Alguém recortara cuidadosamente à tesoura a página que indicaria os pormenores de publicação e copyright, o número ISBN, etc., pelo que nenhuma pista se conseguia obter daí. Num autocolante lia-se: «Atenção! Por favor estudar a carta para o professor Hofstadter antes de ler o livro. Boa sorte!» Deborah folheou o livro. Tratava-se, manifestamente, de algum tipo de enigma à espera de ser resolvido, incluindo versos crípti- cos, páginas de onde haviam sido recortadas palavras, etc. Voltou a olhar para a frase: Dir-lhe-ei mais quando voltar! Um dos seus cole- gas estava de visita à Suécia, pelo que, ainda que ele não fosse o tipo de pessoa atreita a enviar encomendas misteriosas, seria ele o reme- tente mais verosímil. Mas quando o colega regressou e Deborah o questionou, ele afirmou nada saber sobre o assunto. Sentia-se intrigada. Consultou a Internet. E foi então que descobriu que não estava sozinha. – Os que receberam eram todos neurologistas? – perguntei-lhe. – Não – respondeu ela. – Muitos eram neurologistas. Mas também havia um astrofísico do Tibete. E um religioso académico iraniano. – Eram todos académicos – explicou James. Todos tinham recebido a encomenda exatamente da mesma forma que Deborah – num envelope almofadado proveniente de Gotemburgo, sobre o qual estava escrito: Dir-lhe-ei mais quando voltar! Tinham-se reu- nido em blogues e fóruns de discussão e tentavam decifrar o código. Talvez, sugeria um dos destinatários da encomenda, o livro devesse ser lido como uma alegoria cristã, «incluindo o enigmático Dir-lhe-ei mais quando voltar! (claramente uma referência à Segunda Vinda de 11 CAPÍTULO 1 :: A PEÇA QUE FALTAVA NO ENIGMA Jesus). O autor, ou autores, parecem contradizer a formulação ateia de O Ser E o Nada�1 de Sartre (não B OR N).» Sarah Allred, investigadora de psicologia percetual, manifestou a sua concordância: «Tenho uma vaga suspeita de que vamos acabar por concluir que se trata de uma campanha de marketing viral, ou outro tipo qualquer de campanha de publicidade, concebida por uma orga- nização religiosa qualquer, e que os académicos, intelectuais, cientis- tas e filósofos vão acabar por ficar mal na fotografia.» A outros, pelo contrário, tal cenário afigurava-se improvável: «O fator preço exclui a possibilidade da teoria viral, exceto se a cam- panha pressupuser desde logo que os seus alvos cuidadosamente sele- cionados reflitam online acerca do misterioso livro.» A maior parte dos destinatários considerava que a resposta residia, de forma intrigante, neles próprios. Eles tinham sido selecionados um a um para receber a encomenda. Havia claramente um padrão em jogo, mas qual? Teriam estado presentes numa mesma conferên- cia, anos antes? Estariam a ser selecionados para um lugar de topo numa qualquer organização secreta? «Será que o primeiro a decifrar o código é que fica com o lugar, por assim dizer?», escrevia um australiano destinatário da encomenda. O que parecia óbvio era que um indivíduo ou organização brilhante concebera um enigma tão complexo que nem mesmo académicos dotados como eles logravam decifrá-lo. Talvez essa decifração simples- mente não fosse possível, por o código estar incompleto. Talvez lhe faltasse uma peça. Alguém sugeriu «observar a carta de perto, junto a uma lâmpada, ou sujeitá-la ao teste dos vapores de iodo. Pode haver alguma escrita secreta, com recurso a outro tipo de tinta». Mas não se encontrou escrita secreta nenhuma. Baixaram os braços, derrotados. Se este era um enigma impossí- vel de resolver por académicos, talvez se devesse recorrer a alguém mais rude, como um detetive privado ou um jornalista. Deborah lan- çou a pergunta no grupo. Que repórter seria suficientemente tenaz e curioso para se interessar pelo mistério? Analisaram alguns nomes. 1. Em inglês Being and Nothingness, a que é contraposto Being OR Nothingness (born = nascido). (N. do T.) 12 O TESTE DO PSICOPATA Foi então que James, o amigo de Deborah, disse: «O que acham de Jon Ronson?» No dia em que recebi o e-mail de Deborah a convidar-me para o Costa Coffee, encontrava-me a meio de um horrível ataque de ansiedade. Andava a entrevistar um certo Dave McKay, líder de um pequeno grupo religioso australiano denominado Jesus Christians. McKay suge- rira recentemente aos membros do culto que doassem um dos seus rins a um desconhecido. De início, eu e Dave entendêramo-nos muito bem. Parecia entusiasticamente excêntrico e, em resultado disso, eu estava a conseguir recolher bom material para a minha reportagem – citações divertidas e lunáticas, etc. –, mas quando sugeri que a pres- são grupal, emanada de Dave, seria porventura a razão que levava alguns dos membros mais vulneráveis a optar por doar um rim, ele explodiu. Enviou-me uma mensagem em que afirmava que ia man- dar travar uma doação iminente, para me dar uma lição. Deixaria que a destinatária do rim morresse, fazendo pesar sobre mim o fardo da sua morte. Senti-me horrorizado com a possibilidade de a destinatária do rim sair prejudicada e, em simultâneo, bastante satisfeito por Dave me enviar uma mensagem tão demente, ótima para o meu artigo. Mencionei a um jornalista que o homem parecia bastante psicopático (não sabia absolutamente nada acerca de psicopatas,mas presumi que era o tipo de coisas que seriam capazes de fazer). O jornalista publicou a cita- ção. Alguns dias depois, recebi um e-mail de Dave em que me dizia: «Considero difamatório da sua parte ter afirmado que sou psicopata. Procurei aconselhamento jurídico. A malícia de que deu provas em relação a mim não lhe dá o direito de me difamar.» Era esta a causa do meu enorme pânico, no dia em que o e-mail de Deborah chegou à minha caixa de correio. – Onde é que eu estava com a cabeça? – comentei com a minha mulher, Elaine. – Estava a gostar da entrevista. Estava a gostar da conversa. E agora está tudo lixado. Dave McKay vai processar-me. 13 CAPÍTULO 1 :: A PEÇA QUE FALTAVA NO ENIGMA – O que se passa? – gritou o meu filho, Joel, entrando na sala. – Porque estão aos berros? – Fui eu que cometi um erro estúpido: chamei psicopata a um homem, e ele agora está zangado – expliquei. – O que é que ele vai fazer-nos? – inquiriu Joel. Seguiu-se um curto silêncio. – Nada – respondi. – Mas então, se ele não vai fazer-nos nada, porque estás preocu- pado? – perguntou ele. – Só estou preocupado por tê-lo feito zangar-se. Não gosto de irri- tar nem incomodar os outros. É por isso que estou triste. – Estás a mentir – disse Joel, semicerrando os olhos. – Eu sei que não te importas nada de irritar ou incomodar os outros. O que é que não me estás a contar? – Contei-te tudo o que havia para contar – retorqui. – Ele vai atacar-nos? – indagou Joel. – Não! – respondi. – Não, não! Claro que não! – Corremos perigo? – gritou Joel. – Ele não vai atacar-nos – gritei também. – Vai simplesmente pro- cessar-nos. Só quer ficar-me com o dinheiro. – Oh, Deus – disse Joel. Enviei a Dave um e-mail a pedir-lhe desculpa por lhe ter chamado psicopata. «Obrigado, Jon», respondeu ele de imediato. «O meu respeito por si aumentou consideravelmente. Espero que, se voltarmos a encon- trar-nos, o possamos fazer um pouco mais na qualidade do que se poderia chamar amigos.» E pronto, pensei para comigo, cá estou eu mais uma vez a preocu- par-me sem razão. Percorri os meus e-mails não lidos e encontrei o de Deborah Talmi. Dizia que ela e muitos outros académicos de todo o mundo tinham recebido por correio uma misteriosa encomenda. Um amigo dela que lera os meus livros dissera-lhe que eu era o tipo de jornalista capaz de se interessar por enredos policiais bizarros. Terminava assim: «Espero 14 O TESTE DO PSICOPATA ter conseguido transmitir-lhe a sensação de estranheza que tudo isto suscita em mim, e quão aliciante é esta história. É como um conto de aventuras, ou um reality game alternativo, e estamos reféns de todo este mistério. Enviando a encomenda a investigadores, espicaçaram a investigadora que há em mim, mas não consegui achar a resposta. Espero sinceramente que aceite o desafio.» Agora, no Costa Coffee, ela olhava para o livro, que eu examinava, revirando-o nas mãos. – No essencial – disse ela –, alguém está a tentar captar a atenção de académicos específicos, fazendo-a incidir sobre algo, de modo muito misterioso, e eu estou ansiosa por perceber a razão. Parece-me uma campanha demasiado elaborada para ser da responsabilidade de um único indivíduo, agindo em privado. O livro está a tentar dizer-nos alguma coisa. Só não sei o quê. Adorava descobrir quem mo enviou e porquê, mas não tenho dotes de investigador. – Bem... – comecei. Fiquei em silêncio, examinando o livro com ar sério. Beberiquei o café. – Vou tentar. Disse a Deborah e a James que gostaria de iniciar a minha investi- gação examinando os seus locais de trabalho. Expliquei que queria ver a caixa de correio onde Deborah descobrira pela primeira vez o pacote. Trocaram um olhar furtivo, como se dissessem: «Que sítio esquisito para começar, mas quem se atreve a pôr em questão os métodos de trabalho dos grandes detetives?» O olhar deles poderá, na verdade, não ter significado isso, mas antes: «A investigação de Jon não pode, seriamente, beneficiar de uma ronda pelos nossos gabinetes, e é ligeiramente estranho ele querer fazê-la. Esperemos não ter escolhido o jornalista errado. Esperemos que ele não seja um tarado qualquer e que não tenha uma agenda escondida que o leve a querer ver os nossos edifícios por dentro.» 15 CAPÍTULO 1 :: A PEÇA QUE FALTAVA NO ENIGMA Se foi esse o significado do olhar que trocaram, acertaram: eu tinha de facto uma agenda escondida que me levava a querer ver os edifí- cios por dentro. O departamento de James era um bloco de cimento totalmente desin- teressante, logo à saída de Russel Square – a Faculdade de Psicologia do University College de Londres. Fotografias desbotadas das déca- das de 1960 e 1970, espalhadas pelas paredes, mostravam crianças presas a máquinas de aparência assustadora, com fios elétricos pen- dentes das cabeças. Sorriam para a fotografia com excitação inadver- tida, como se estivessem na praia. Em tempos, fora manifestamente feita uma tentativa para melho- rar a aparência destes espaços públicos, pintando o corredor com um amarelo vistoso. A razão, ao que parecia, era o facto de irem ali mui- tos bebés sujeitar-se a testes ao cérebro, e alguém se ter lembrado de que a cor amarela poderia acalmá-los. Mas eu não percebia como. Era tal a fealdade opressiva do edifício, que isso seria o mesmo que enfiar um nariz vermelho num cadáver e dizer que era o palhaço do McDonald’s. Dei uma vista de olhos pelos gabinetes. Em cada um deles, um neu- rologista ou um psicólogo debruçava-se sobre a secretária, concen- trando-se denodadamente sobre um qualquer tema relacionado com o cérebro. Num deles, explicaram-me, o objeto da observação era um homem do País de Gales que reconhecia todas as suas ovelhas como indivíduos, mas era incapaz de reconhecer rostos humanos, incluindo o da mulher, e até o seu, ao espelho. Esta doença é designada por pro- sopagnosia, ou cegueira a rostos. Os seus pacientes, aparentemente, insultam constantemente, de forma inadvertida, os seus colegas de trabalho, vizinhos e cônjuges, ao não lhes retribuírem os sorrisos quando se cruzam com eles na rua, ou em situações semelhantes. As pessoas não conseguem deixar de se sentir ofendidas, mesmo que saibam que a indelicadeza resulta da doença e não de arrogância. Os sentimentos negativos são, às vezes, contagiosos. Noutro gabinete, um neurologista estudava o caso, datado de julho de 1996, de um médico, ex-piloto da Royal Air Force, que voara sobre 16 O TESTE DO PSICOPATA um campo de cultivo em plena luz do dia, dera meia volta, voara de novo sobre o mesmo campo quinze minutos depois, para então avis- tar, subitamente, um grande círculo inscrito no campo. Era como se ele se tivesse simplesmente materializado. Estendia-se por uma área de 4 hectares e consistia em 151 círculos distintos. O círculo, deno- minado Julia Set, tornou-se o mais célebre da história dos círculos inscritos em campos de cultivo. Foram comercializadas T-shirts e posters. Organizaram-se congressos. O movimento de investigação das inscrições em campos de cultivo estava em declínio, pelo facto de se tornar cada vez mais óbvio que os círculos eram feitos, não por extraterrestres, mas sim por artistas conceptuais, na calada da noite, utilizando pranchas de madeira e corda. Este, porém, aparecera do nada no decorrer de um intervalo de quinze minutos entre as duas viagens do piloto sobre o campo. O neurologista deste ga- binete tentava descobrir por que razão o cérebro do pilo- to não conseguira detetar o círculo na sua primeira pas- sagem. É que ele já lá esta- va, pois fora feito na noite anterior por um grupo de artistas concetuais conhe- cidos por Team Satan, com recurso a pranchas de ma- deira e corda. Num terceiro gabinete, vi uma mulher com um exemplar do livro Little Miss Brainy na prateleira. Pareceu-me bem-disposta,jovial e atraente. – Quem é? – perguntei a James. – Essi Viding – respondeu ele. – O que é que ela estuda? – Psicopatas. Espreitei para dentro, olhando para Essi. Ela avistou-nos, sorriu e acenou com a mão. O Julia Set. 17 CAPÍTULO 1 :: A PEÇA QUE FALTAVA NO ENIGMA – Deve ser perigoso – observei. – Uma vez ouvi uma história sobre ela – disse James. – Na altura, entrevistava um psicopata. Mostrou-lhe uma fotografia de um rosto de expressão assustada, pedindo-lhe que identificasse a emoção em causa. Ele respondeu que não sabia dizer de que emoção se tratava, mas que era a mesma que as pessoas exibiam antes de ele as matar. Prossegui pelo corredor fora, antes de me deter e observar de novo Essi Viding. Nunca pensara demasiado sobre psicopatas antes daquele momento, e perguntei-me se não deveria tentar conhecer alguns. Parecia-me extraordinário haver pessoas cujo estado neurológico, de acordo com o relato de James, as tornava tão aterradoras como uma criatura espacial totalmente malévola, saída de um filme de ficção científica. Recordei-me vagamente de ouvir psicólogos afirmarem que existe uma preponderância de psicopatas no topo da escala, no mundo empresarial e na política, pelo facto de a ausência clínica de empa- tia constituir um trunfo nesses ambientes. Será que isso é de facto verdade? Essi acenou-me de novo. E decidi que não; seria um erro vasculhar no mundo dos psicopatas, um erro especialmente grande para alguém que, como eu, sofre de excesso de ansiedade. Retribuí o aceno e prossegui pelo corredor fora. O edifício de Deborah, o Wellcome Trust Center for Neuroimaging do University College de Londres, ficava ao virar da esquina de Queen Square. Era mais moderno, e estava equipado com gaiolas de Faraday e scanners fMRI, operados por técnicos com ar de cromos, envergando T-shirts com personagens de banda desenhada. O ar deles tornava as máquinas menos intimidantes. «O nosso objetivo», afirmava o website do Centro, «é compreender de que forma o pensamento e a perceção emergem da atividade cere- bral, e como esses processos se degradam nas doenças neurológicas e psiquiátricas.» Chegámos à caixa de correio de Deborah. Examinei-a. – OK – disse eu. – Certo. 18 O TESTE DO PSICOPATA Fiquei ali por momentos, acenando com a cabeça. Deborah retri- buiu o aceno. Olhámo-nos. Era agora a ocasião perfeita para lhe revelar a minha agenda escon- dida para querer examinar os edifícios. A razão era que os meus níveis de ansiedade, nos últimos meses, tinham rebentado com a escala. Não era normal. As pessoas normais não sentem, segura- mente, este tipo de pânico. As pessoas normais não sentem, segu- ramente, que estão a ser eletrocutadas de dentro para fora por uma criança por nascer, munida de um taser em miniatura; não sentem que estão a ser espetadas com um fio elétrico que emite o tipo de carga que impede o gado de invadir os campos adjacentes. E assim, o meu plano ao longo de todo o dia, desde o Costa Coffee, fora o de conduzir a conversa para o tema do meu cérebro excessivamente ansioso. Talvez Deborah se oferecesse para me fazer um scanner, ou coisa parecida. Mas ela parecia tão satisfeita com o facto de eu ter concordado em solucionar o mistério de O Ser Ou o Nada que ainda não tivera coragem para mencionar a minha falha, não fosse com isso estragar a mística. Agora era a minha última oportunidade. Deborah viu-me a olhar para ela, como se me preparasse para dizer algo de importante. – Sim? – disse ela. Seguiu-se um curto silêncio. Olhei-a. – Eu vou-a mantendo a par – respondi. O voo low cost da Ryanair das 6 da manhã para Gotemburgo estava cheio que nem um ovo, provocando-me uma sensação de claustrofo- bia. Tentei chegar ao bolso das calças para pegar no bloco de notas e escrever uma lista de coisas a fazer, mas a minha perna estava enta- lada numa posição impossível debaixo da mesa-tabuleiro, que estava atafulhada com os restos do meu pacote de pequeno almoço. Preci- sava de planear a estada em Gotemburgo. O jeito que me daria o bloco de notas! A minha memória já não é o que era. Na verdade, hoje em dia, é frequente sair de casa com uma expressão de excitação e pro- pósito no rosto para me deter ao fim de algum tempo e ficar para- do com ar confuso. Nesses momentos, tudo se torna irreal e vago. 19 CAPÍTULO 1 :: A PEÇA QUE FALTAVA NO ENIGMA O mais provável é que um dia a minha memória desapareça de todo, como aconteceu com a do meu pai, e nessa altura não haverá livros para escrever. Preciso mesmo de juntar um pé de meia. Tentei baixar-me para coçar o pé. Não fui capaz. Estava preso. Que coisa! Estava mesmo preso! «ICCC!», gritei involuntariamente. A minha perna disparou para cima, batendo na mesa. O passageiro do lado olhou para mim com ar espantado. Eu tinha soltado um guincho não intencional. Olhei para a frente, com ar chocado, mas também ligeiramente assustado. Não tinha a noção de que existissem dentro de mim sons tão misterio- sos e invulgares. Tinha uma pista em Gotemburgo: o nome e morada profissional de um homem que poderia conhecer a identidade ou identidades de «Joe K». O seu nome era Petter Nordlund. Muito embora nenhuma das encomendas enviadas aos académicos contivesse quaisquer pis- tas – em especial, nomes de possíveis autores ou distribuidores –, algures, enterrado bem fundo no arquivo de uma biblioteca sueca, eu descobrira «Petter Nordlund», referido como tradutor inglês de O Ser Ou o Nada. Uma pesquisa no Google nada mais revelou sobre ele, com exceção da morada de uma empresa de Gotemburgo, de nome BIR, à qual ele estava de alguma forma ligado. Se, como suspeitavam as pessoas que tinham recebido o livro, uma equipa de inteligentes criadores de enigmas estivesse por detrás desta dispendiosa e enigmática campanha, por razões ainda não determi- nadas (propaganda religiosa? marketing viral? recrutamento?), Petter Nordlund era a minha única porta de entrada. Mas ele não sabia que eu chegara. Eu receava que, se o soubesse, desaparecesse da circula- ção. Ou talvez avisasse a organização obscura por detrás de O Ser Ou o Nada, qualquer que ela fosse. Talvez então tentassem deter-me de uma qualquer forma inimaginável. Em todo o caso, cheguei à con- clusão de que ir bater à porta de Petter Nordlund constituía a estra- tégia mais astuta. Era uma questão de sorte. Toda a viagem era uma simples questão de sorte. Os tradutores trabalham frequentemente a 20 O TESTE DO PSICOPATA grande distância dos seus clientes, e era perfeitamente possível que Petter Nordlund não estivesse a par de nada. Alguns dos que tinham recebido a encomenda haviam sugerido que O Ser Ou o Nada era um enigma impossível de descodificar pelo facto de estar incompleto e eu, ao fim de uma semana de estudo do livro, acabara por concordar. Cada página parecia constituir um enigma de solução inalcançável. Uma nota logo no início afirmava que o manuscrito fora «encon- trado» num canto de uma estação de caminhos de ferro abandonada: «Estava no chão, à vista de todos, mas eu fui o único suficientemente curioso para apanhar o pacote.» Seguiam-se citações elípticas: O meu pensamento é muscular. ALBERT EINSTEIN Sou um estranho loop. DOUGLAS HOFSTADTER A vida deve ser uma aventura feliz. JOE K Apenas 21 páginas do livro não estavam em branco e, dessas, algu- mas incluíam só uma frase. A página 18, por exemplo, dizia simples- mente: «No sexto dia depois de ter parado de escrever o livro, sen- tei-me em casa de B e escrevi-o.» E tudo isto numa produção muito dispendiosa, com papel e tin- tas da mais alta qualidade – numa página, por exemplo, encontra- va-se uma delicada reprodução colorida de uma borboleta – pelo que o empreendimento deve ter saído muito caro a uma ou mais pessoas. Afinal a peça que faltava no enigma não era uma qualquer escrita secretaa tinta invisível, mas havia outra possibilidade. Na página 13 de todos os exemplares fora sistematicamente recortado um buraco.
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