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LISTA DE ABREVIATURAS ADPCP - Anuário de Derecho Penal y Ciências Penales AFD - Anuário de Filosofia del Derecho A PC - Archives de Politique Criminelle ARSP - Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie DS - Déviance et Socictc GA - Goltdammer’s Archiv für Strafrecht JD - Jueecs para la Democracia JZ - Juristenzeitung Krim) - K rim i no 1 ogisc h es J o u r n a 1 KritJ - Kritischejustiz KritV - Kritische Vierteljahrcsschrift für Gesetzgebung und Rech tswissenscha ft MLR - The Modern Law Review NJVV - N e u e J u ri s t i s c h e Wo c h e n s c h r i f t PJ - PoderJudicial (Revista) RAP - Revista de Adminislración Püblica RCSP - Revista Catalana de Seguretat Püblica RDM - Revista de Derccho Mercantil RI D PP - Rivista Italiana di Di ri t to e Procedura Penale RTF) PE - Rivista Trimestrale di Diritto Penale dell'Economia StV - Strafverteidiger ZRP - Zeitschrift für Rechtspolitik ZStW - Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft “Ali onde chovem leis penais continuadamente, onde por qualquer motivo surge entre o público um clamor geral de que as coisas se resolvam com novas leis penais ou agravando as existentes, ai não se vivem os melhores tempos para a liberdade - pois toda lei penal é uma sensível intromissão na liberdade, cujas consequências serão perceptíveis também para os que a exigiram da forma mais ruidosa -, ali se pode pensar na frase de Tácito: péssima respública, plurimae leges Provavelmente por considerações semelhantes às transcritas de Cari Ludwig von Bar, ainda que radicalizadas em razão do contexto atual, nunca se tinha ouvido falar tanto nos círculos intelectuais, como na última década, da necessidade de reconduzira intervenção punitiva do Estado na direção de um Direita Penal mínimo. Esta expressão, a força de sua repetição por amplos setores da doutrina - que não correspondem em absoluto à totalidade-’ -, começa a correr inclusive o risco de converter-se em um tópico desprovido de conteúdo concreto, de modo semelhante ao que aconteceu com a famosa - e deformada - frase de Radbruch relativa a substituição do Direito Penal por algo melhor que ele. Efetivamente, parece não importar muito a esse respeito que não se tenha muito claro onde se acham os limites do tal “Direito Penal mínimo”,’que, em suma, de acordo com algumas interpretações do mesmo, tampouco se acha conceitualmente muito distante das propostas formuladas por Beecaria há dois séculos/ entre outros. 1. Von Bar, Geschichte des deutschen Strafrechts und der St ruf rechtst heorien. Berlim, 1882 (reimpr. Aaalen, 1992), p. .‘334. 2. Cf. a postura crítica em relação ao minimalismo de Roxin, Política cri- minaly dogmática jurídico-penal en la actualidad (trad. Goinez Rivero), La evolución de la política criminal, el derccho penal y cl proceso penal, Valencia, 2000, p. 57 e ss, 89 e ss, com referencias. 3. Ferrajoli, El Derecho penal mínimo, Podery Control (1986), p. 35 e ss; também, Baratta, Prinzipien des minimalen Strafrechts. Eine Theorie der Menschenrechte als Schutzobjekte und Grenze des Strafrechts, en Kaiser/Kury/Albrechl (Hrsg.), Kriminologische Forschung in den 80er Jahren. Projektberichte aus der Bundesrepublik Deutschland, 2. Halbband, Freiburg, 1988, p. 513 e ss. 4. No momento em que redigia a primeira edição desta obra se difundiu Certamente, em princípio, parece que a expressão “Direito Penal mínimo” engloba propostas diversas cujo denominador comum é uma vocação restritiva do Direito Penal, mas sem que exista uma coincidência total quanto ao alcance exato das mesmas.5 No caso de Baratta, o ponto de partida da orientação tninimizadora vem sendo a avaliação da radical injustiça e inutilidade da pena, cuja função seria a reprodução das relações de domínio preexistentes, recaindo fundamentalmente sobre as classes inferiores. A part ir daí, esse autor tem pretendido desenvolver uma teoria da “minimização” da intervenção tomando como referência os direitos humanos c, acredito, desde uma visão conflitiva de nosso modelo social.6 O conteúdo que Baratta atribui a sua proposta, todavia, não parece coincidir com a visão que tem do “Direito Penal mínimo ' o máximo difusor dessa expressão, Luigi Ferrajoli, que também o denominagarantista, cognitivo ou de estrita legalidade,7 em especial porque este último autor considera que se trata “de um modelo limítrofe, apenas tendencial e nunca perfeitamente satisfatório”.8 O termo “Direito Penal mínimo" o seu contraposto a notícia de que um grupo de colegas italianos, entre ele os professores Baratta, Ferrajoli e Moccia, assumiu o desafio de redigir o Código Penal cuja instauração propugnariam os defensores do Direito Penal mínimo. Isso resultava especialmente interessante, unia vez que essa linha de pensamento tem padecido até o momento de uma falta de concreção de suas propostas. Sem embargo, não parece que referida iniciativa teve seguimento. 5. Cf. a descrição e crítica das diversas propostas em Marinucci/Dolcini. Diritto penale “minimo" c nuove forme di criminalità, R/DPP. 1999, p. 802 c ss, 808 e ss. 6. Cf. Baratta, Kriminologische Forschung, p. 518 c ss, integrando em tal teoria a privatização e a politizaçào dos conflitos, assim como a não utilização ilos conceitos de criminalidade e pena. Cf. ainda Baratta, Kriminologische Forschung, p. 534 e ss, p. 536 e ss. 7. Como novamente ressalta Baratta. Ia politica criminalc e il Diritto pénale delia Costituzionc. Nuove riflessioni sul modello integrato delle seienze penali. em Canestrari (éd.), II Diritto penale alla svolta di Jine milênio, Torino, 1998, p. 24 e ss, 44-45 e nota 51. 8. Ferrajoli. Derccho y rttzôn. Teoria dei garantismo penal (trad. Andrés Ibánez. Ruiz Miguel, Bayón Mohino, Terradillos Basoco y Cantarero Bandrés), Madrid. 1995, p. 93. (Direito Penal máximo'1) configuram-se em Ferrajoli por referência “ora aos maiores ou menores vínculos garantistas estruturalmente internos do sistema, ora à quantidade e qualidade das proibições e penas nele estabelecidas”.10 Nos dois últimos anos, a defesa do “minimalismo” tem sido associada, sobretudo, às posturas defendidas por alguns dos mais significativos autores da denominada “Escola de Frankfurt” . Esses, voltando-se à defesa de um modelo ultraliberal do Direito Penal, vêm propondo sua restrição a uir “Direito Penal básico” que tenha por objeto as condutas atentatórias à vida, à saúde, à liberdade e à propriedade, com manutenção das máximas garantias na lei, na imputação de responsabilidade e no processo. Nessa ótica, caracterizam a evolução do Direito Penal oficial como uma “cruzada contra o mal”, desprovida de uma mínima fundamentação racional. 9. Ferrajoli, Dercclwy razón, p. 105: “O modelo de direito penal máximo, isto é, incondicionado c ilimitado, c o que se caracteriza, alem dc sua excessiva severidade, pela incerteza e imprevisibilidade das decisões e das penas; c que, consequentemente, sc configura como um sistema dc poder não controlável racionalmente, por ausência de parâmetros certos e racionais de convalidação c de neutralização”. 10. Ferrajoli, Dcrccho y razón, p. 104; mas, entre os dois extremos, "existem diversos sistemas intermediários, até o ponto de que mais adequada mente deverá falar-se, a propósito das instituições e ordenamentos concretos, de tendência ao direito penal mínimo ou de tendência ao direito penal máximo”. 11. Cf. as mais relevantes manifestações dessa postura em Instituto de Ciências Critninalcs dc Frankfurt (ed.) (Área dc Dcrccho Penal de la Universidad Pompcu Fabra - ed. esp.), La insostcniblc situación dei dcrccho penal,Granada. 2000, uma obra que constitui a versão espa nhola da publicada na Alemanha em 1995; ainda, nos diversos tomos de Lüdcrsscn (Hrsg.), Aufgeklärte Kriminalpolitik oder Kampf gegen das Böse?. Bd. 1, Legitimationen, Baden-Baden, 1998; Bd. II Neue Fhänomcnc der Gewalt, Baden-Baden, 1998; III, Makrodelinqucnz, Baden-Baden, 1998; Bd. IV Legal Bewahrung und Ich-Struktur, Baden-Baden, 1998; Bd. V Lernprozesse im Vergleich der Kulturen, Baden-Baden 1998; ou, tambem, cm Institut für Kriminalwissenschaften und Rechtsphilosophie Frankfurt a. M. (Hrsg.), Irrwege der Strafgesetzgebung, Frankfurt a.M., 1999. Pois bem, ante tais posturas doutrinárias, realmente não é nada difícil constatar a existência de uma tendência claramente dominante em todas as legislações no sentido da introdução de novos tipos penais, assim como um agravamento dos já existentes,12 que se pode encaixar no marco geral da restrição, ou a “reinterpretação” das garantias clássicas do Direito Penal substantivo e do Direito Processual Penal. Criação de novos “bens jurídico-penais”, ampliação dos espaços de riscos jurídico- -penalmente relevantes, flexibilização das regras de imputação e relativização dos princípios político-criminais de garantia não seriam mais do que aspectos dessa tendência geral, à qual cabe referir-se com o termo “expansão”.13 Tal “expansão” é, por certo, uma característica inegável do Código Penal espanhol de 1995, e a valoração positiva que importantes setores doutrinários têm realizado sobre o mesmo deixa patente como a tópica “fuga (seletiva) ao Direito Penal” não é apenas um problema de legisladores superficiais e frívolos, mas que começa a ter uma cobertura ideológica de que carecia até pouco tempo. Em todo o caso, o legislador dc 1995, de fato, não pôde subtrair-se nem sequer a um reconhecimento expresso - ainda que parcial - desse fenômeno, ao aludir na Exposição de Motivos do texto legal à existência de uma “antinomia entre o princípio de intervenção mínima e as crescentes necessidades de tutela em uma sociedade cada vez mais complexa”, antinomia que se resolveria no texto, segundo o próprio legislador, “dando prudente acolhida a novas formas de delinquência, mas eliminando, ao mesmo tempo, figuras delitivas que perderam sua razão de ser”. Em realidade, sem embargo, o evidente era a acolhida de “novas formas de delinquência” e a agravação geral das penas imponíveis a delitos já existentes (sobretudo, socioeconõmicos); em 12. Poderia afirmar que esse é o leitmotiv do texto de Hettinger, Umwicklun- gen im Stnifrcchl unci Strajvcrfahrcnsrechl dec Gegenwart. Versuch einer kritischen Bestandsaufnahme. Heidelberg, 1997, passim. 1 3. Cf., por exemplo, Kindhäuser, Sicherheitsstraf recht. Gefahren des Stra- frechts in der Risikogesellschaft, Universitas 3/1992, p. 227: “El Derecho Penal se expande sin freno”; Seelmann, Risikostrafrecht, KritV 4/1992, p. 452 e ss; Palazzo, La politico criminate nell'Italia repuhhlicana, cm Violante (ed.), Storia d'Italia, Annali 12, La Criminalitä, Torino, 1997, p. 851 e ss, 898. E fundamental o estudo de Moccia, La perenne cmei- genza. Iendenze aulorilaric nel sistema penale. 1. ed., Napoli, 1995, 2. ed., Napoli, 1997, contendo um profundo exame da situação italiana.. contrapartida, a transcendência da eliminação de certas figuras delitivas resulta praticamente insignificante. De efeito, o que resulta verdadeiramente significativo são os fenô- menos que o legislador aponta como expressivos de um e outro aspecto: “Em primeiro lugar, merece ser destacada a introdução dos delitos contra a ordem socioeconômica ou a nova regulação dos delitos relativos à ordena- ção do território e dos recursos naturais; em segundo, o desaparecimento das figuras complexas do roubo com violência e intimidação cias pessoas que,Nl 1 surgidas no marco da luta contra o ‘bandoleirismo’, devem desa- parecer deixando passo a aplicação das regras gerais”. A vinculação do primeiro aspecto com as novas “necessidades” de tutela (penal?) de uma sociedade complexa resulta bastante clara, segundo o discurso doutrinário e ideológico que se está consagrando como dominante. Em contrapartida, não há como resistir á tentação de perguntar qual relação existe entre a reforma técnica dos delitos classicamente denominados complexos - des- tinada a submetê-los às regras gerais do concurso de delitos-com o prin- cípio de intervenção mínima (!). A primazia dos elementos de expansão se faz desse modo evidente. Não é infrequente que a expansão do Direito Penal se apresente como produto de uma espécie de perversidade do aparato estatal, que buscaria no permanente recurso à legislação penal uma (aparente) solução fácil aos problemas sociais, deslocando ao plano simbólico (isto é, ao da declaração de princípios, que tranquiliza a opinião pública) o que deveria resolver -se no nível da instrumentalidade (da proteção efetiva). Sem negar que a tal explicação possa atribuir-se alguma razão, creio que seria ingênuo situar as causas do fenômeno de modo exclusivo na superestrutura jurídico-política, na instância “estatal”.M Ao contrário, é minha opinião que em boa medida sn A expressão “roubo com violência e intimidação” não configura redun dância, uma vez que na terminologia do Código Penal espanhol - Lei Orgânica 10/1995, de 23 de novembro - o termo “roubo” também é utilizado para definir o furto qualificado por escalada, rompimento de ob stáculo, uso de chave falsa e com violação de sistemas de alarme, que são modalidades do “robo con fucrza cn las cosas” - art. 238 -, recebendo a denominação de “hurto” somente a conduta que no Código Penal brasileiro corresponde ao “furto simples” 14. Becketl, MtjJung crime pay. Law and order in coniemporary Anuviam nos encontramos aqui ante causas mais profundas, que fundam suas raízes no modelo social que vem se configurando no decorrer, pelo menos, das duas últimas décadas, na consequente mudança da expectativa que amplas camadas sociais têm em relação ao papel que cabe ao Direito Penal. Realçar esse último aspecto me parece essencial. Com efeito, dificil- mente poderá interpretar a situação de modo correto e, em consequência, fixar as bases da melhor solução possível dos problemas que suscita, se se desconhece a existência no nosso âmbito cultural de uma verdadeira de- manda social por mais proteção. A partir daí, questão distinta é que desde a sociedade se canalize tal pretensão em termos mais ou menos irracionais como demanda de punição. Neste ponto, provavelmente não seja demais aludir à possível responsabilidade que os formadores de opinião possam ter em tal canalização, dado o seu papel de mediadores. Como ainda convém questionar o fato de que as instituições do Estado não somente acolham tais demandas irracionais sem qualquer reflexão, em vez de introduzir elementos de racionalização nas mesmas, 15 como ainda as realimentam em termos populistas. 16 Tudo isso é certo, sem dúvida. Mas a existência de uma demanda social constitui um ponto de partida real, de modo que a proposta que acabe sendo acolhida no que se refere à configuração do Direito Penal não poderia desconsiderar a necessidade de dar a ela uma resposta também real. Em particular, e para evitar desde logo interpretações equivocadas, convém ressaltar, sobre esse aspecto, que a profundidade e a extensão das polities, New York/Oxford, 1997. p. 62 e ss, 108, se aproxima - em minha opinião - a essa interpretação, quando estabelece que o apoio popular às “cruzadas" governamentais contra o delito deve -se a nada mais do que a difusão da ideologia do governo por meio dos meios de comunicação. De não ser assim, a seu entender, as concepções que tomam como ponto de partida a existência de causas sociaisdo delito e propõem programas de reabilitação teriam o apoio total do público. 15. Cf. Palicro. Consenso sociale c diritto penale. R/DPP. 1992. p. 849 c ss, 868-869. 16. Em realidade, se não houvesse uma demanda social pela pena. Mais ou menos condicionada pelos meios de comunicação, não se entenderiam realmente as propostas expansivas da legislação penal elaboradas por uns partidos políticos que governam - ou pretendem governar - com a única referência axiològica das pesquisas de opinião. bases sociais da atual tendência expansiva do Direito Penal não têm nada a ver com as que na década de 70-e posteriores-respaldavam o movimento, inicialmente norte-americano, de law and order.7 Por isso seria errôneo pretender analisar sob esse prisma a expansão do Direito Penal característica de nosso particular fin de siècle, cujas “causas” se pretende esboçar neste texto.1” Efetivamente, as propostas do movimento de lei e ordem se dirigiam basicamente a reclamar uma reação legal, judicial e policial mais contundente contra os fenômenos de delinquência de massas, da criminalidade das ruas (patrimonial c violenta).19 Assim as coisas, uns setores sociais - para simplificar, os acomodados -, apoiavam tais propostas; outros - os excluídos, mas também os intelectuais e os movimentos dos direitos humanos - se opunham a elas.*0 Nesse particular, o debate em torno do referido movimento constitui seguramente o último exemplo da concepção convencional do Direito Penal como instrumento de restrição de direitos individuais, particularmente sofrido pelas classes “emergentes", e a cuja intensificação estas, assim como os movimentos de direitos civis e políticos, se opõe frontalmente. É fundamental sublinhar que a representação social do Direito Penal que dimana da discussão sobre o movimento de lei e ordem não era em absoluto unívoca, senão, pelo contrário, basicamente dividida. 21 17. Cf. a ampla exposição de Arzt, Der RuJ nach Recht mul Ordnung. Ursachen und Folgen der Kriminalitdtsfurcht in den USA und in Deutschland , Tübingen, 1976, o qual situa convencionalmente a origem do tema ein 1963, e seu conteúdo na petição de uma intervenção policial mais contundente, assim como de um Direito Penal ( substantivo, processual e penitenciário) mais rigoroso (p. 1). 18. Dessa maneira, a meu entender, com razão Von Hirsch, Law and Order: Die Politik der Ressentiments, cm Lüderssen (Hrsg.). Aufgeklärte Kriminalpolitik, Bd. V, p. 31 e ss. 19. Arzt, Der Ruf, p. 5: segurança dos cidadãos em casa, no trabalho e nas ruas. O movimento de lei c ordem propugna, pois, um “punitivismo”. que não implica necessariamente expansão no sentido exposto, senão em concreto em uma maior intensidade da reação. 20. Cf. Bcckctt, Making crime pay, p. 12, 28 c ss, 62 c ss, 80 c ss. Uns c outros discrepavam radicalmente quanto às causas dos delitos c, portanto, também quanto às possíveis formas de afrontá-los (mais controle, os conservadores; mais bem-estar, os progressistas). 21. São muito significativos os dados que aporia Arzt, Der Ruf. p. 17. A representação social do Direito Penal que comporta a atual tendência expansiva mostra, pelo contrário, e como se verá, uma rara unanimidade. A divisão social característica dos debates clássicos sobre o Direito Penal foi substituída por um consenso geral, ou quase geral, sobre as “virtudes” do Direito Penal como instrumento de proteção dos cidadãos. Desde logo, nem as premissas ideológicas nem os requerimentos do movimento de “lei e ordem” desapareceram: ao contrário, se integraram (comodamente) nesse novo consenso social sobre o papel do Direito Penal.* 2 As páginas que seguem se dedicam à formulação de algumas hipóteses sobre o porquê da cristalização desse consenso. sobre a representação radicalmente diversa de brancos e negros norte - - americanos em relação à intervenção da polícia. 22. O consenso surge porque, por diversas razões, o movimento “conser vador” de lei e ordem converge com propostas ou interesses próxi mos, procedentes dos setores sociais anteriormente céticos ou diretamente contrários a intervenção do Direito Penal. SOBRE ALGUMAS CAUSAS DA EXPANSÃO DO DlREITO PENAL SUMÁRIO: 1. Os “novosinteresses” - 1.2 O efetivo aparecimento de novos riscos- 1.3 A institucionalização da insegurança - 1.4 A sensação social de insegurança - 1.5 A configuração de uma sociedade de “sujeitos passivos” - 1.6 A identificação da maioria com a vitima do delito - 1.7 O descrédito de outras instâncias de proteção -1.8 Os gestores “atípicos” da moral (atypischeXíoraluntcnicImier) - 1.9 A atitude da esquerda política: a política criminal social - -democrata na Europa-1.10 Um fator colateral: o “gcrencialismo”. 1. J OS “NOVOS INTERESSES” O Direito Penal é um instrumento qualificado de proteção de bens jurídicos especialmente importantes. Fixado este ponto, parece obrigatório levar em conta a possibilidade de que sua expansão obedeça, ao menos em parte, já à aparição de novos bens jurídicos - de novos interesses ou de novas valorações de interesses preexis - tentes-, já ao aumento de valor experimentado por alguns dos que existiam anteriormente, que poderia legitimar sua proteção por meio do Direito Penal. As causas da provável existência de novos bens jurídico-penais são, seguramente, distintas. Por um lado, cabe considerar a conformação ou generalização de novas realidades que antes não existiam - ou não com a mesma incidência -, e em cujo contexto há de viver o indivíduo, que se vê influenciado por uma alteração daquelas; assim, a mero título de exemplo, as instituições econômicas de crédito ou de inversão. Por outro lado, deve aludir-se à deterioração de realidades tradicionalmente abundantes que em nossos dias começam a manifestar-se como “bens escassos”, aos quais se atribui agora um valor que anteriormente não lhes correspondia, ao menos de modo expresso; por exemplo, o meio ambiente. Em terceiro lugar, há que contemplar o incremento essencial de valor que experimentam, como consequência da evolução social e cultural, certas realidades que sempre estiveram aí, sem que se reparasse nas mesmas; por exemplo, o patrimônio histórico-artístico. Entre outros fatores. A doutrina já se ocupou detalhadamente desses fenômenos-bens coletivos,1 interesses difusos - que realçam a crescente depen- dência do ser humano de realidades externas ao mesmo, como é o caso da normal atividade de determinados terceiros. O que não significa, em absoluto, que se possa afirmar, de momento, a existência de um consenso total sobre quais devem ser protegidos penalmente e em que medida. De qualquer modo, seria ocioso dedicar aqui mais espaço a essa discussão. O que interessa ressaltar neste momento é tão somente que existe, seguramente, um espaço de “expansão razoável" do Direito Penal, ainda que, com a mesma convicção próxima da certeza, se deva afirmar que também se dão importantes manifestações da “expansão desarrazoada". A título puramente orientativo: a entrada maciça de capitais procedentes de atividades delitivas (singularmente, do narcotráfico) em um determinado setor da economia provoca uma profunda desestabilização desse setor, com importantes repercussões lesivas. É, pois, provavelmente razoável que os responsáveis por uma injeção maciça de dinheiro negro em um determinado setor da economia sejam sancionados penalmente pela comissão de um delito contra a ordem econômica. Mas, vejamos, isso não faz, por si só, razoável a sanção penal de qualquer conduta de utilização de pequenas (ou médias) quantidades de dinheiro negro na aquisição de bens ou retribuição de serviços. A tipificação do delito de lavagem de dinheiro é, enfim, uma 1. Cf. Alexy, Derechos individualesy bienes colectivos, cm sua obra LI conceptoy la validez dcl dcrecho (trad. J. M. Sena), Barcelona, 1994, p. 179 e ss, 186-187: “Um bem é um bem coletivo de uma classe de indi - víduos quando conccitualmente, fáctica ou juridicamente, é impossível dividi-lo em partes e outorgá-las aos indivíduos. Quando esse é o caso. o bem tem um caráter não distributivo. Os bens coletivos são bens não distributivos”. manifestação de expansão razoável do Direito Penal (em seu núcleo, de alcance muito limitado) e de expansão irrazoável do mesmo (no resto das condutas, em relação às quais não se possa afirmar em absoluto que, de modo específico, lesionem a ordem econômica de modo penalmente relevante). 1.2 O EFETIVO APARECIMENTO DE NOVOS RlSCOS Desde a enorme difusão da obra de Ulrich Beck, é lugar comum caracterizar o modo social pós-industrial em que vivemos como “sociedade do risco" ou “sociedade de riscos” (Risihogescllsclwfl).3 Com efeito, a sociedade atual aparece caracterizada, basicamente, por um âmbito econômico rapidamente variante e pelo apareci- mento dc avanços tecnológicos sem paralelo em toda a história da humanidade. O extraordinário desenvolvimento da técnica teve, e continua tendo, obviamente, repercussões diretas em um incremen- to do bem-estar individual.H Como também as têm a dinâmica dos fenômenos econômicos. Sem embargo, convém não ignorar suas consequências negativas. Entre elas, a que interessa aqui ressaltar é a configuração do risco de procedência humana como fenômeno 2. Cujos livros emblemáticos são textos dc cabeceira da moderna teoria social: Risihogescllschaft. Auf dem Weg in eine andcic Moderne, Fränkin rt, 1.986; Gegengifte. Die organisierte Unvcrantwortlichkeit, Frankfurt, 1988; Politik in der Risikogescllschaft, Frankfurt, 1991; Die Erfindung des Politischen. Zu einer Theorie reflexiver Modernisierung. Frankfurt. 1993. 3. Isto c. uma sociedade na qual os riscos sc referem a danos não delimi- táveis, globais c, com frequência, irreparáveis; que afetam a todos os cidadãos; e que surgem de decisões humanas. Uma descrição resumida em Beck, De la socicdad industrial a la sociedad dei riesgo (trad. Del Rio 1 lerrmann). Revista de Occidente 150. novembro dc 1993. p. 19 e ss. 4. Desde logo, como se reconhece de modo praticamente unânime, dito progresso aumentou de modo relevante a segurança dos homens perante os riscos de origem natural: cf. Kuhlen. Zum Strafrecht der Risikogesclls- chaft, GA, 1994, p. 347 c ss, 360; Schtincmann, Kritische Anmerkungen zur geistigen Situation der deutschen Strafrechtswissenschaft, GA, 1995, p. 201 e ss, 211. social estrutural. Isso pelo lado de que boa parte das ameaças a que os cidadãos estão expostos provêm precisamente de decisões que outros concidadãos adotam no manejo dos avanços técnicos: riscos mais ou menos diretos para os cidadãos (como consumidores, usuários, beneficiários de serviços públicos etc.) que derivam das aplicações técnicas dos avanços na indústria, na biologia, na genética, na energia nuclear, na informática, nas comunicações etc. Mas, também, porque a sociedade tecnológica, crescentemente competitiva, desloca para a marginalidade não poucos indivíduos, que imediatamente são percebidos pelos demais como fonte de riscos pessoais e patrimoniais. O progresso técnico da lugar, tio âmbito da delinquência dolosa tradicional (a cometida com dolo direto ou de primeiro grau), a adoção de novas técnicas como instrumento que lhe permite produzir resultados especialmente lesivos; assim mesmo, surgem modalidades delitivas dolosas de novo cunho que se projetam sobre os espaços abertos pela tecnologia. A criminalidade, associada aos meios informáticos e á internet (a chamada ciberclelinquéncia), é, seguramente, o maior exemplo de tal evolução. Nessa medida, acresce-se inegavelmente a vinculação do progresso técnico e o desenvolvimento das formas de criminalidade organizada, que operam internacionalmente e constituem claramente um dos novos riscos para os indivíduos (e os Estados). Mas é, ainda assim, fundamental - e, dependendo do ponto de vista, mais ainda que no âmbito das formas intencionais de delinquência - a incidência dessas novas técnicas na configuração do âmbito da delinquência não intencional (no que, desde logo, é secundária sua qualificação como dolosa eventual ou culposa). Isto é, as consequências lesivas 5. Cf. a esse respeito às considerações gerais de López Cerezo/Luján I .opez, Ciência v política dei riesgo, Madrid, 2000, passim, p. 24-25. Em relação ao Direito Penal em particular, Pérez del Valle, Sociedad de riesgos y derecho penal, PJ 1996, n. 43-44, p. 61 e ss; López Barja de Quiroga. El moderno derecho penal para una sociedade de riesgos. PJ, 1997, n. 48, p. 289 e ss. da “falha técnica”, que aparecem como um problema central nesse modelo, no qual se parte de que certo porcentual de acidentes graves resulta inevitável à vista da complexidade dos desenhos técnicos. Assim, se trata de decidir, entre outras coisas, a questão crucial dos critérios de localização das “falhas técnicas”, ou no âmbito do risco penalmente relevante, ou no âmbito próprio do risco permitido. 1.3 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA INSEGURANÇA A sociedade pós-industrial é, além da “sociedade dc risco” tecnológico, uma sociedade com outras características individu- alizadoras que contribuem à sua caracterização como uma sociedade de “objetiva” insegurança. Desde logo, deve ficar claro que o emprego de meios técnicos, a comercialização de produtos ou a utilização de substâncias cujos possíveis efeitos nocivos são ainda desconhecidos e, em última análise, manifestar-se-ão anos depois da realização da conduta, introduzem um importante fator de incerteza na vida social.7 O cidadão anônimo diz: “Estão nos matando’, mas não conseguimos ainda saber com certeza nem quem, nem como, nem a que ritmo”. Em realidade, faz tempo que os especialistas descartaram a excessivamente remota possibilidade de neutralizar os novos riscos, significando que é preferível aprofundar-se nos critérios de distribuição eficiente e justa dos mesmos-existentes e em princípio não neutralizáveis.8 O problema, portanto, não radica mais nas decisões humanas que geram os riscos, senão também nas decisões humanas que os distribuem. E se é certo que são muitos os que propugnam a máxima participação pública nas correspondentes 6. Cf. a referência de López Cerezo/Luján Lópcz, Cicnciay política, p. 28 e ss, a lese das “catástrofes normais” (de Charles Perrow, Normal accidents: living w ith high-risk technologies, New York, 1984). 7. O problema das denominadas “vacas loucas”, que se acha em pleno apogeu quando escrevo estas linhas, e mais um exemplo dessa situação. N 1: Outros problemas semelhantes, surgidos nos anos subsequentes a inserção desta nota (as chamadas "gripe aviária” e "gripe suma”), ilustram e confirmam esta observação. 8. Cf. l opcz Cerezo/Luján López, Ciência y política, p. 173 e ss. tomadas de decisão, não é menos certo que, de momento, as mesmas têm lugar em um contexto de quase total obscuridade. Tudo isso evidencia que, inegavelmente, estamos destinados a viver em uma sociedade de enorme complexidade ,9 na qual a interação individual - pelas necessidades de cooperação e de divisão funcional-alcançou níveis até agora desconhecidos. Sem embargo, a profunda correlação das esferas de organização individual incrementa a possibilidade de que alguns desses contatos sociais redundem na produção de consequências lesivas.10 Dado que, no mais, tais resultados se produzem em muitos casos a longo prazo e, de todo modo, em um contexto geral de incerteza sobre a relação causa-efeito, os delitosde resultado/lesão se mostram crescentemente insatisfatórios como técnica de abordagem do problema. Daí o recurso cada vez mais frequente aos tipos de perigo, assim como a sua configuração cada vez mais abstrata ou formalista (em termos de perigo presumido).12 A crescente interdependência dos indivíduos na vida social dá lugar, por outro lado, a que, cada vez em maior medida, a indenidade dos bens jurídicos de um sujeito dependa da reali - zação de condutas positivas (de controle de riscos) por parte 9. A relação entre a crescente complexidade social e o incremento de dis - posições penais que, a seu juízo, prosseguirá no futuro, c estabelecida por Roxin, El desarrollo dei derecho penal e el siguiente siglo, Dogmática penal y política criminal (trad. Abanto Vasquez). Lima, 1998. p. 435 e ss, 448-449. 10. Cf., por exemplo. K. Günther. Kampf gegen das Bõse? Zehn Thcscn wider die cthische Aufrüstung der Kriminalpolitik, KritJ, 1994-2. p. 135 e ss. 151: “O modelo liberal de uma soc iedade de indivíduos linha que aparecer, desde a perspectiva de uma sociedade que se integrava no essencial sobre diferenças de status e obrigações de reciprocidade, como uma ‘sociedade do risco"’. 11. Cf. López Cerczo/Luján López, Ciência y política, p. 138, 170 etc. 1 2. Nisso constituindo a tradução jurídico-penal do denominado “princípio de precaução ’, seguido na gestão política de riscos: cf. López Cerezo/ Luján López, Cicnciay política, p. 139 e ss. Sobre outras razões do recurso aos tipos de perigo, cf. infra. de terceiros.11 Expressado de outro modo, as esferas individuais de organização já não são autônomas; procluzem-se, de modo continuado, fenômenos - recíprocos - de transferência e assunção de funções de proteção de esferas alheias. Em Direito Penal, isso implica a tendência de exasperação dos delitos de comissão por omissão que incide diretamente em sua reconstrução técnico-jurídica.11 Ademais, a sociedade pós-industrial europeia é uma sociedade que expressa a crise do modelo do Estado do bem- estar, uma sociedade competitiva com bolsões de desemprego ou marginalidade - especialmente juvenil - irredutíveis, de migrações voluntárias ou forçadas, de choque de culturas. Uma sociedade, em suma, com importantes problemas de vertebração interna.15 Entre outros efeitos, que não precisamos analisar neste momento, o certo é que todos esses elementos geram episódios frequentes de violência (em sua acepção mais ordinária de “criminalidade de rua" individual e em outras manifestações10) mais ou menos explícita. Nesse modelo, 13. Aponta-o claramente Schlüchter, Grenzcn strajbarer Fahrldssigheit, Thüngersheim/Nürnberg. 1996, p. 3. quando destaca a diferença entre os riscos vinculados à imprudência de um cocheiro do século XIX c a de um piloto de avião na atualidade. 14. Até o pontoem que algum autor manifesta que a comissão imprudente é o novo paradigma do conceito de delito: cf. K. Günther, De la vulncración de un derecho a la infracción de un deber £Ün “cambio de paradigma cn el dcrccho penal?" (trad. Silva), Lm situação insosietiiblc, Instituto de Ciências Criminales de Frankfurt, p. 489 c ss. em especial 502 e ss. 15. A uma “pluralistischc Risikogesellsehafr (sociedade de riscos pluralista) alude Arth. Kaufmann, Grundpmbleme der Rcchtsphilosophic. Eine Einführung in das reclitsphilosophischc Denken, Múnchen, 1994. p. 232- 233. Uma das características desse modelo social seria que o homem deve comportar-se arriscadamente (“er muls sich rishant verhalten”) lambem em um sentido moral, isto é, sem poder certificar -se a partir de normas bem assentadas sobre se sua conduta c correta ou não. 16. Muito significativamente deve aludir-se nesse âmbito a “outra" crimina- lidade organizada que surge com força nas grandes cidades. Concreta - mente, a que se manifesta na existência de quadrilhas -basicamente, de indivíduos marginalizados, inclusive menores—dedicadas a delinquência de apossamento (furtos c roubos), cm veículos, residências e indústrias. de efeito, a própria convivência aparece como uma fonte de conflitos interindividuais. O fenômeno da “criminalidade de massas” determina que o “outro” se mostre muitas vezes, precisamente e, sobretudo, como um risco,17 o que constitui a outra dimensão (não tecnológica) de nossa “sociedade do risco”. Esse último aspecto - o da criminalidade de rua ou de massas (segurança dos cidadãos em sentido estrito) - converge com as preocupações clássicas de movimentos como o de “lei e ordem”. Nesse sentido, o fenômeno não é novo. O novo é que as sociedades pós-industriais europeias experimentem problemas de vertebração até há pouco por elas desconhecidos (pela imigração, a multiculturalidade e os novos bolsões de marginalidade). E o novo é também que, a raiz ele tudo isso, a ideologia de lei e ordem haja ancorado em setores sociais muito mais amplos do que aqueles que a respaldavam nos anos 60 e posteriores. A SENSAÇÃO SOCIAL DE INSEGURANÇA De qualquer maneira, mais importante que tais aspectos objetivos é seguramente a dimensão subjetiva de tal modelo de configuração social. Desde essa ultima perspectiva, nossa sociedade pode ser melhor definida como a sociedade da “insegurança sentida" (ou como a soc iedade do medo). Com efeito, um dos traços mais significativos das sociedades da era pós-industrial é a sensação geral de insegurança,18 isto é, o aparecimento de uma forma especialmente aguda de viver os riscos. É certo, desde logo, que os “novos riscos” 17. Kindhauscr, Universitas 3/1992. p. 229: “Primärer Risikofaktor isi der Mensch selbst'. Cf. também Mitzler/Gõschl, Reflexive Reaktionen. Zur Bewältigung allgemeiner Verunsicherung, ein Erehsee/Löschpcr/ Smaus (Hrsg.), Konstruktion der Wirklichkeit durch Kriminalität und Strafe, Baden-Baden, 1997. p. 134 e ss, 139: “(...) cada vez mais pessoas partem de que podem confiar cada vez em menos gente e em circunstâncias cada vez mais excepcionais e de que fazem bem em desconfiar profilaticamenlc cada vez em mais ocasiões e de mais gente". 1.8. Ainda que o fenômeno psicológico social da sensação de insegurança lenha precedentes: sobre o tema Arzt, Der Ruf, p. 1 3 ess, 3 3. dcscrevendo- -Ihe como “multiplicação emocional do risco existente". - tecnológicos e não tecnológicos - existem. Tanto é assim que a própria diversidade e complexidade social, com sua enorme plura- lidade de opções, com a existência de uma abundância informativa a que se soma a falta de critérios para a decisão sobre o que é bom e o que é mau, sobre em que se pode e em que não se pode confiar, constitui uma fonte de dúvidas, incertezas, ansiedade e insegurança. Três aspectos concretos, a título puramente exemplificativo, podem ilustrar essa ideia. Por um lado, é inegável que a população experimenta uma crescente dificuldade de adaptação a sociedades em contínua aceleração.20 Desse modo, depois da revolução dos transpor- tes, a atual revolução das comunicações dá lugar a uma perplexidade derivada da falta - sentida e possivelmente real - de domínio do curso dos acontecimentos, que não pode traduzir-se senão em termos de insegurança. Por outro lado, as pessoas se acham ante a dificuldade 19. E, portanto, como se indicava mais acima, o medo pode ter uma base, em princípio, real. Nesse sentido indicou João Paulo II. em sua encíclica Lides et Ratio, 1998, Capitulo IV, n. tnarg. 47: "0 homem, portanto, vive cada vez com mais medo. Teme que seus produtos, naturalmente não todos e tampouco a maior parte, senão alguns e precisamente os que contêm uma parte especial de sua genialidade e de sua iniciativa, possam ser dirigidos de maneira radical contra ele mesmo". 20. Olema da aceleração do ritmo de vida pela revolução das comunicações esta se convertendo em um importante objeto de estudo das ciências so- ciais. São muito significativos, a esse respeito, os trabalhos do pensador Irancês Paul Virilio. UArt du nioteiir, Paris, 1993; La Vitcssede Liberation, Paris, 1995; Cybennonde, la polHií/ue du pire. Paris, 1996. Na literatura juridico-penal merece ser consultado Schultz. De la aceleración de las condiciones de la vida. Reflexiones sobre la reaccion adecuada dei dere- cho penal (trad. Ragués), La situación insostcniblc, Instituto de Ciências Criminales de Frankfurt, p. 447 e ss, com numerosas referências, li, ainda, A. y H. Tofflcr, Crisis de la democracia de masas em EEUII, no diário El Mundo, de 12.12.2000, p. 10-11. destaca que "é. precisamente a combinação de uma crescente complexidade e de uns men ores prazos para tomar decisões com a reflexão devida o que põe em perigo as estruturas políticas atualmente vigentes”, ao que caberia acrescentar também as estruturas sociais. de obter uma autêntica informação fidedigna em uma sociedade - a da economia do conhecimento - caracterizada pela avalancha de informações.21 Estas, que de modo não infrequente se mostram contraditórias, fazem em todo caso extremamente difícil sua integração em um contexto significativo que proporcione alguma certeza.22 Em terceiro lugar, deve ser ressaltado que a aceleração não é somente uma questão da técnica, mas, precisamente, também da vida. A lógica do mercado reclama indivíduos sozinhos e disponíveis, pois estes se encontram em melhores condições para a competição mercadológica ou laborativa. De modo que, nessa linha, as novas realidades econômicas, às que se somaram importantes alterações ético - sociais, vêm dando lugar a uma instabilidade emocional-familiar que produz uma perplexidade adicional no âmbito das relações humanas. 23 Pois bem, nesse contexto de aceleração e incerteza, de obscuridade e confusão, 24 se produz uma crescente desorientação pessoal (Orientientngsvcrlus), que se manifesta naquilo que já se denominou perplexidade da “relatividade”.25 21. Lledó Real, La inscgureiat com a causa dei racismo i la xenofobia. RCSP 2, abril 1998, p. 19 e ss. 22: “Potser mai com ara em aquesta societat 1'ésser hutná ha estat més informai i al mateix temps mós sol. Aliè ais altres. i sobretoi aliè a si mateix. perplex davam dei món i perplex davant de si mateix, no comprèn que la informació sense teoria es um obstacle per al pensament, tant com mancar dinforrnació". 22. CL.de forma genérica, Bell, Izl advcnimientodclasociedadpós-industrial, Madrid, 1991, tratando da transformação do indiistrialismo, dando lugar ao advento da sociedade da informação. A caracterização de nossa sociedade como “sociedade da informação" ( Infonnationsgcscllscluijt) pode ser vista também cm Luhmann, Dic Gesellschajt der Gesellschajt, Frankfurt. 1997, II. p. 1.088 ess. com múltiplas referências. No raciocí nio de Luhmann, a sociedade da informação aparece junto à sociedade do risco, como fórmula de expressão da aulocomprecnsào e autodcscrição de nossa sociedade. 23. Cf. Marina, Cróniens dc la ultramodemidad, Barcelona. 2000, p. 100,108. 24. Ao que se alude com o afortunado Ululo da obra de Habcrmas, Dic ncue Unübcrsichtlichlcit, 1. ed., Frankfurt, 1985. 25. Smart, Poslnwdcrnity, London/Ncw York, 1993, p. 111. Em realidade, porém, seria provavelmente mais expressivo falar da perplexidade do “relativismo”. De fato, a perplexidade da relatividade tem também - e talvez mais do que tudo - uma dimensão filosófica e ética, pela perda de referências valorativas objetivas. Vivemos em uma sociedade na qual se constata a ausência de refe- rências de “auctoritas” ou de princípios generalizáveis,26 enquanto prevalece o pragmatismo do caso ou a busca da solução consensual, sem premissas materiais a partir das quais se possa buscar o consenso. Agora vejamos, como já se disse, se tudo é igualmente verdadeiro , então acaba a força impondo-se como o argumento mais poderoso.27 E ante tal constatação, é forçoso convir que é difícil não sentir insegurança. Visto de outra forma, tampouco cabe negar que a relação de interdependência entre esferas de organização e a necessária transferência a terceiros de funções de respaldo da própria esfera jurídica, com o correlato da perda de domínio real, constitui uma base efetiva da sensação de insegurança. 28 Sobretudo, quando tal interdependência tem lugar em um contexto fortemente atomizado, isto e, anônimo, após o desaparecimento ou, pelo menos, o importante retrocesso das estruturas orgânicas de solidariedade 26. Destaca-o João Paulo 11. Eides et Ratio, Capítulo VII, n. marg. 91, em que, ao aludir ao pós-moderno c suas correntes de pensamento, observa criticamente que “(...) segundo algumas delas, o tempo das certezas ficou para tras irremediavelmente; o homem deveria agora aprender a viver em uma perspectiva de carência total de sentido, caracterizada pela provisoriedade c pela fugacidade". 27. Marina, Crónicas, p. 48; ou também p. 222: “Se não existem valores, a liberdade do ditador é tão válida como a do cidadão, embora mais forte". 28. Também H. Lübbe, Moralismus oder fingierte Handlungssubjektivitàt in komplexen historischen Prozessen, cm W. Lübbe (Hrsg.), Kausalität und Zurechnung, p. 289 e ss, 293, cm que se observa que a tendência à expansão da imputação se vincula a perdas de autossuficiência e, por - tanto. a dependência e suscetibilidadc a ações de terceiro s socialmente marginalizados. mais tradicionais. De fato, não deixa de ser intranquilizador o manifesto paradoxo de que o incremento da interdependência social tenha lugar no contexto de uma Sociedade de massas na qual se experimenta uma “dessolidarização” estrutural, com o patente retorno ao privado segundo critérios de interesse individual. 30 E certamente esse é o modo social hoje dominante do “individua lismo de massas”, no qual “a sociedade já não é uma comunidade, mas um conglomerado de indivíduos atomizados e narcisisticamenie inclinados a uma íntima satisfação dos próprios desejos e interesses”.31 Mas vejamos, em tal modelo, em que a vida social subordina-se à forma jurídica, de modo que as ações somente se explicam em termos de realização de pretensões jurídicas,32 é até 29. Cf. Lledó Real, RCSP 2, abril 1998, p. 21: “l_a complcxitat de rcslructura social actual potência 1’aillament de les persones i lcs fainílics. Les rela - cions de grup són superficiais i poc freqüents, ja que no es planifica res a riiàbitat per afavorir-les. lis van perdent valors lan iinportants com o cie la solidai itat i la comunicado interpersonal; s’estàn deshumanitzanl eis costums, rnentre que la tecnologia envaeix la nostra vida”. Em tal sentido já se observou, a meu ver com razão, que as sociedades modernas são "sociedades do seguro”, porque este vem a satisfazer um importante aspecto da demanda por segurança que se verifica nesse contexto dc anonimato e atomização. O seguro estaria gerando, assim, um conceito moderno de "solidariedade”. Cf. IIwald, Die Versieherungs -Gesellschaft, KiitJ, 1989. p. 385 ess, 387. 30. Produzindo-se uma monetarizaçáo de qualquer relação que, em lugar de relações de reconhecimento reciproco, gera relações de “indiferença” reciproca. Cf. Barcellona, Postmodemidad y comunidad. El retorno dc la vinadación social (trad. Silveira/Estévez/Capella), Madrid, 1992, p. 112. 121, 123 etc. 31. Cf.Souza,Laindividualidadpostmoderna,AFD, 1999,p.321 ess.327. 322. 32. Souza, AFD, 1999, p. 324, c nota 2 (citando P. Barcellona): "A única forma de intermediação entre o indivíduo c a sociedade eo Direito: isto significa que um sujeito pode exigir alguma coisa em face de outro não com base em razões morais, afetivas etc., senão com base na existência de uma norma legal que justifica sua pretensão. Em outros termos, as relações (sociais e) individuais são intermediadas pelas normas”. certo ponto razoável que a sensação de solidão (insegurança) tenda a mostrar-se mais e mais intensa. Em última instância, a insegurança e a angústia podem também guardar relação com a intensa experiência do mal como elemento de nossa existência, que de modo significativo tem sido possível experi - mentar ao largo da interminável sucessão de guerras e destruição que caracterizou o recém-concluído século XX. Ainda não silenciaram os ecos das duas guerras mundiais e da sucessão ininterrupta de conflitos locais propiciados pela guerra fria e o processo de desco lonização. Mas a barbárie das guerras nacionalistas do Oriente Médio e dos Bál- cãs, assim como do terrorismo - singularmente no caso espanhol constituem uma renovada vivência do mal que atemoriza e angustia. 5' O que foi dito acima permite intuir que é realmente duvidoso que a medida da insegurança sentida pelos cidadãos se corresponda de modo exato com o nível de existência objetiva de riscos dificilmente controláveis, ou simplesmente incontroláveis (os próprios da Risikogescllschaft), que lhes afetem pessoalmente e de modo imediato.34 Além disso, como observado mais acima, é inegável que 33. Como indica João Paulo II, Eides et Ratio, Capítulo VI1, n. marg. 91: “Ante esta experiência dramática, o otimismo racionalista que via na historia o avanço vitorioso da razão, fonte dc felicidade e dc liberdade, não pôde manter-se ein pé, até o ponto de que uma das maiores ameaças neste fim de século e a tentação a desesperança". Ainda que, curiosamente, como o próprio Pontífice constata, junto a isto persiste certo positivismo que ainda cré que o homem, com suas conquistas científicas e técnicas, vai lograr o pleno domínio de seu destino. 34. No que respeita às ações violentas, é muito significativo que as estatísticas delitivas sejam mal interpretadas ou sofram manipulações. Na sociedade alemã, um dos lemas objeto de maior discussão foi sempre o da criminalidade dos jovens filhos de imigrantes: cf., por exemplo, Mansel, Gefahr oder Bedrohung? Die Quantität des kriminellen Verhaltens der Gastarbeiternachkommen. Krim), 1985, p. 169 css. Cf. também Baster- ra, Fremdenhaß als Ursache von Gewalt? Staatliche (Des-)lnfonnaiion nährt Feindbilder, cm P. A. Albrecht/Backes (Hrsg.), Verdeckte Gewalt. Plädoyers für eine “Innere Abrostung”, Frankfurt, 1990, p. lOOess. a aparição dos novos riscos está, de certa lorma, compensada pela radical redução dos perigos procedentes de fontes naturais (assim, as consequências lesivas de enfermidades ou catástrofes 35)- Por tal motivo, é mais razoável sustentar que, por múltiplas e diversas causas,36 a vivenda subjetiva dos riscos é claramente superior a própria existência objetiva dos mesmos37 Expressado de outro modo, existe uma elevadíssima “sensibilidade ao risco”. 3” 35. Isso é certo, apesar de que as estruturas soeioeconômicas (por exemplo, a concentração de população em cidades, inclusive eventualmente em subúrbios com moradias inseguras) determinem que os fenômenos naturais - os terremotos ou furacões - afetem de modo concentrado grupos humanos numerosos. 36. Uma causa adicional seria nossa pretensão, antes aludida, de controlar tudo. de controlar inclusive o futuro, com certeza herdada do positivismo, e que mostra um contraste especialmente intenso com a realidade social atual. H também outro fator-de natureza bastante diversa, mas que pro- vavelmente não seja o ultimo cm importância - é o que se convencionou chamar de “sentimentalização'’ da nossa sociedade. Cf. Fahing it. The sentimentalisation o) modem society, London, Anderson/Müller, 1998. Como observa Contreras, Aceprensa, 1 26/98, 23.09.1998. Los riesgos de lo sociedadsentimentalizada, cm sua resenha dessa obra. “nenhuma socie dade tem menos razões que a nossa para estar obcecada pela enfermidade: vivemos mais e melhor que jamais se viveu ante s, e nada obstante ficamos intranquilos ante qualquer trivialidade que possa afetar a nossa saúde". 37. Cf. Herzog, Gescllschaftliche Unsicherheit und strafrcchlliche Dascins- vorsnrgc. Studicn znr Vorverlegung des Stra/rechtsschutzcs in den Ge - fãhrdungsbereicli, Hcidelberg, 1990, p. 50, aludindo que o Direito Penal, contemplado antropologicamenic, “corresponde a necessidade de segurança que se sente”. Cf. também Kunz. Die innere Sichcrheit: Schlüsseldimcnsion einerncucn Kríminalpolitik, in SchwcizerischeArbeits- gntppc für Kriminologie (Hrsg.), Innere Siehcrheit-Innere Unsicherheit? Kriminologischc Aspchtc, Chur/Zurich, 1995, p. 327 e ss. 38. Como, por certo, também sucede relativamente à dor. ao sofrimento físico ou moral etc. Marina, Crónicas, p. 147, o ressalta: “Estamos educando nossos jovens com 11111 baixo nível de tolerância a frustração. Todos nos convertemos com facilidade em propagandistas da recompensa imediata”. Mas a questão é se se trata apenas de nossos jovens c Em todo caso, à vista do que vem acontecendo nos últimos anos, é incontestável a correlação estabelecida entre a sensação social de insegurança diante do delito e a atuação dos meios de comunicação. 39 Estes, por um lado, da posição privilegiada que ostentam no seio da “sociedade da informação” e no seio de uma concepção do mundo como aldeia global, transmitem uma imagem da realidade40 na qual o que está distante e o que está próximo têm uma presença quase idêntica na forma como o receptor recebe a mensagem. Isso dá lugar, algumas vezes, diretamente a percepções inexatas;41 e, em não também dc nós mesmos. A propósito da discussão sobre o suicídio, o explica muito convincentemente R. Tcrmes, Dc la disponibilidad de la vida, no diário F.l Pais. dc 06.04.1998: “O desenvolvimento da tecnologia induziu uma mentalidade segundo a qual o homem pode dominar todas as coisas do mundo humano. Mas o homem dc hoje está pouco preparado para ‘sofrer’; qualquer dor é interpretada como um estímulo para tomar os remédios adequados com a finalidade dc evitá-la ou suprimi-la. Quando essa dor e inevitável, o homem sc sente desconcertado. Por isto sc pode dizer que nesse tempo, em nosso mundo superdesenvolvido, o homem te m muito menos dores que anos atrás, mas tem muito mais sofrimento”. .39. Muito preciso, Francesc Barata, Las nuevas fabricas del miedo. Los "mass media" y la inseguridcid ciudadana, Munagorri Laguía (cd.). La protect ion dc la seguridad ciudadana, Onati Proceedings 18. Onatc, 1995, p. 83 c ss, com amplas referências; no mesmo sentido, M. Rodrigo ALsema, El cono - címiento dei sistema penal: alarma social y medios de comunicación, cm Larrauri Pijoan (dir.), Política criminal, CGPJ, Madrid, 1999, p. 73 ess. 40. Cf. Luhmann. Die Gcscllschaft. II, p. 1.096 e ss. 41. Cf. Reiner, Media made criminality: the representation of crime in the mass media. The Oxford Handbook of Criminology, 2. ed., Oxford, Ma- guire/Morgan/Reiner, 1997, p. 189 c ss, cm qite destaca a forma como a imagem que transmitem os meios sc afasta da realidade; sc transmite uma desproporção de delitos violentos, autores de status elevado, uma imagem demasiadamente positiva da polícia e da justiça criminal, uma prevalência de modelos dc eleição racional diante do papel do ambiente social etc. De modo geral, os diversos trabalhos contidos no volume Mitjans de comunicado i seguretat pública, RCSP, n. 4, junho de 1999. com referências reiteradasao processo dc “construção da notícia”. outras, pelos menos a uma sensação de impotência.42 Com mais razão, por outro lado, a reiteração e a própria atitude (dramatização, morbidez) com a qual se examinam determinadas notícias atuam como um multiplicador dos ilícitos e catástrofes,43 gerando uma insegurança subjetiva que não se corresponde com o nível de risco objetivo.44 Assim, já se afirmou com razão que "os meios de comu- nicação, que são o instrumento da indignação e da cólera públicas, podem acelerar a invasão da democracia pela emoção, propagar uma sensação de medo e de vitimização e introduzir de novo no coração do individualismo moderno o mecanismo do bode expiatório que se acreditava reservado aos tempos revoltos”. 45NT 42. Cf. Garcia Anoveros, Desorden mundial, no diário 1:1 Puis, 12.1 1.1998, p. 20: “A tecnologia atual faz os homens mais próximos; não parece, por enquanto, que os faz mais semelhantes, mas certamente mais próximos. Ao mesmo tempo, persistem os esquemas de organização política em setores estanques, ainda que cada vez menos. O desajuste entre ambas realidades produz sensação de desordem, um certo desalento diante da ausência de meios, instituições, procedimentos, para fazer frente aos problemas que supõe a proximidade gerada pela técnica”. 43. Luhmann, Die Gesellscluifí, II, p. 1.099, ressaltando a forma como se dá prioridade aos dados quantitativos, sem que se possa refletir sobre a maneira de contabilizá-los. 44. Quando escrevíamos a primeira edição deste livro vivenciávamos mais um episódio característico dessa influência, relativo à questão tia liber tação delinitiva do denominado "violador dei ensanche” 1NT: Trata-se de indivíduo que loi preso e condenado na Espanha pela pratica dc diversos crimes sexuais, que tiveram grande repercussão na época dos latos. Em 1999, anunciou-se que seria ele libertado), de Barcelona, que havia cumprido sua pena dc acordo com a legislação vigente, interpre tada rciteradamente pelo Tribuna! Supremo, mas sem “dar mostras de arrependimento” nem “haver sido submetido a tratamento". 45. Garapon, Juez y democracia, Barcelona, 1997, p. 94, que aduz: “Os assassinatos de crianças se convertem em acontecimentos nacionais para uma opinião pública fascinada pela morte e a transgressão. Sua exasperação pelos meios acabará por fazer crer ao cidadão menos avisado que este tipo de crime é frequente, o que não é o caso” (p. 99). I NT: O fenômeno inverso também pode dar-se, como parece ser o caso Além disso, junto com os meios de comunicação, não cabe negar que, em certas ocasiões, também as próprias instituições públicas de repressão da criminalidade transmitem imagens oblíquas da realidade, que contribuem com a difusão da sensação de insegurança.'16 Um exemplo suficientemente comentado e criticado - já alu- dido nestas páginas-é o relativo á forma como são apresentadas as estatísticas de delitos cometidos por jovens imigrantes (ou, melhor, filhos de imigrantes) na República Federal da Alemanha. Mas o fenômeno é generalizado.4. brasileiro. Nada obstante lenha a ONU divulgado eni seu último relatório sobre a criminalidade que o Brasil possui o segundo maior índice de homicídios do planeta - 23.9 por 100.000 habitantes; a Espanha é o país que possui o menor: 0,53 por 100.000 habitantes -, esse dado não c ressaltado com frequência pela mídia que, ao contrário, aparentemente prestigia as teses de que “o problema e mundial (...)’’. | N,! Essa ultima expressão é claramente empregada para significar a insegu rança individual característica dos momentos de incerteza política gerada por golpes de Estado, revoltas populares, governos ditatoriais etc. 46. Conforme descrevem Baer/Chambliss, Generating fear: The politics of crime reporting, cm Crime, Law & Social Change. 27/1997, p. 87 e ss. E. da mesma forma, Erehsee, Fehlfunktionen des Strafrechts und der Verfall rechsstaatlichen Ereiheitsschutzes,em Frehsee/Lôschper/Smaus(Ursg.), Konstruktiondcr Wirhlichhcitdurch Kriminalitãí und Strafe, Baden-Baden, 1997, p. 29: “A política criminal oficial refere-se prazerosamente ao fato dc que a população não somente aceita esta tendência, senão que inclusive a propugna. Esta é certamente uma argumentação pérfida, pois a disposição da população a uma restrição da liberdade em favor da segurança germina exatamente sobre o terreno de um pânico pela segurança ( Sicherheitspa- nih) criado por tal política criminal oficial, preferentemente em torno da criminalidade organizada". As declarações do Ministério Público aos meios dc comunicação, relativamente ao caso supracitado, do “violador dei ensanche”, foram dadas claramente nessa linha. 47. Cf. Hough/Roberts, Sentencing Trends in Britain. Public Knowledge and Public Opinion, etn Punishment & Society, 1999, n. 1, p. 11 e ss. ressaltando ate que ponto a difusão de notícias oblíquas provoca a im- pressão dc que as sentenças judiciais são excessivamente suaves, com a consequente desconfiança em relação aos juizes e tribunais. Contudo, o que foi aludido acima não deveria conduzir à in- genuidade de pensar que o medo da criminalidade é criado pelos meios de comunicação ou pelas instituições públicas. É, ao contrá - rio, mais razoável a hipótese de que eles, em todo caso, reforçam ou estabilizam medos já existentes. Como, também, a ideia de que o medo da criminalidade constitui, fundamentalmente, a concreção de um conjunto de medos difusos dificilmente perceptíveis que, como apontado páginas atrás, de algum modo são inerentes à posição das pessoas nas sociedades contemporâneas. Expressado de outro modo. o medo do delito aparece como uma metáfora da insegurança vital generalizada.8 Seja como for, o caso é que, em medida crescente, a segurança se converte em uma pretensão social á qual se supõe que o Estado e, em particular, o Direito Penal, devem oferecer uma resposta. 49 Ao 48. Nesse sentido, imbert, Los cscenarios de la violência, Barcelona, 1992, j>. 43, já apontava que o medo que a pessoa experimenta em nossas sociedades é difuso, é um medo diante do imprevisível; Kube, Vcrbre - chensfurchl - ein vernachlässigtes kriminalpolitisches Problem, em Festschrift für Koichi Xtiyazawa, Baden-Baden, 1995, p. 199 e ss, 201. Esse autor, seguindo a Kierkegaard, distingue o alcance dos termos “Angst”, como expressão do medo a algo indeterminado, e “Furcht", cotno medo vinculado a um objeto concreto; de modo que a “Kriminalitätsfurcht" redundaria cm “Ängste” mais difusos. Com mais detalhes Kunz, Innere Sicherheit und Kriminalitätsvorsorge im liberalen Rechtsstaat. cm Kunz/Moser (Hrsg.), Innere Sicherheit und Lebensängste, Bern/Stuttgart/Wien, 1997, p. 13 c ss, 18-19, 21, observa que tanto a criminalidade como o medo a ela são objetivizações de outros riscos do sistema, estes menos perceptíveis; no mesmo sentido, M. Walter, Kriminalpolitih im Zeichen der Verbrechensfurcht: von der Spezial-über die Gcral-zur “Ubiquitäls”prävcntion?, cm Festschrift für H.J. Hirsch zum 70. Gebut tstag, Berlin/New York, 1999, p. 897 e ss, 902. 49. Bastante reveladores são o título e o conteúdo do trabalho da ex -Ministra de Justiça da Alemanha. Sabine Leutheusser-Schnarrenberger, Innere Sicherheit. Herausforderungen an den Rechtsstaat, Heidelberg, 1993, passim. Mas o tema da “innere Sicherheit” (segurança interior, ou, melhor, segurança cidadã) está sc convertendo cm uma questão recorrente nos afirmar isso, não se ignora que a referência à segurança está contida em nada menos que o art. 2 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.50 Simplesmente se trata de destacar, como observa Prittwitz, seguindo o sociólogo Franz XaverKaufmann,’1 que, apesar de incontestável a afirmação de que os homens nunca viveram tão bem e tão seguros como agora, o certo é que “Angst und Unsicherheit (semd) zum Thema des 20.Jahrhunderts geworden“. ’’ A solução para a insegurança, ademais, não se busca em seu, digamos, “lugar natural” clássico - o direito de polícia senão no Direito Penal. Assim, pode-se afirmar que, ante os movimentos so- ciais clássicos de restrição do Direito Penal, aparecem cada vez com maior claridade demandas de uma ampliação da proteção penal que ponha fim, ao menos nominalmente, à angústia derivada da inse - gurança. Ao questionar-se essa demanda, nem sequer importa que seja preciso modificar as garantias clássicas do Estado de Direito: ao contrário, elas se veem às vezes tachadas de excessivamente “rígidas" e se apregoa sua “flexibilização”. Apenas como exemplo, vale aludir à demanda de criminalização em matéria de meio ambiental, econômica, de corrupção política, no âmbito sexual (especialmente últimos anos de discussão político-criminal: cf. a observação crítica de Knicsel. “Innere Sicherheit" und Grundgesetz, ZR P. 1996. p. 482 e ss; vide nesse sentido Schneider, H. ]., Kriminalpolitik an der Sclnvcllc Zinn 21 .Jahrhundert. Eine vergleichende Analyse zur inneren Sicherheit, Berlin. 1998. 50. “O objeto dc toda sociedade política e a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança c a resistência a opressão”. Como, dc resto, observa Kindhãuser, L/nivtTSiías,3/1992,p. 229, 233. “naturalmente, a aspiração por segurança não 6 ilegítima”; o questionável é que se converta na ideia matriz rio Direito Penal, quando este, com seu instrumental, dificilmente pode atender de modo razoável a tal requerimento no modo em que o mesmo é formulado. 51. Sicherheit als soziologisches und sozialpolitisches Problem, 2. ed., 197.3. 52. “O medo e a insegurança sc converteram no tema do século XX”: Prii- twitz, Strafrecht und Risiko. Untersuchungen zur Krise von Strajrccht und Kriminalpolitik in der Risikogesellschaft, Frankfurt, 1993. p. 73. nas hipóteses de abuso sexual ou pornografia infantil), ou da violência familiar etc. E é fato que, em um mundo no qual as dificuldades de orientação cognitiva são cada vez maiores, parece mesmo razoável que a busca de elementos de orientação normativa - e, entre eles, o Direito Penal ocupa um lugar significativo - se converta em uma busca quase obsessiva. Com efeito, em uma sociedade que carece d e consenso sobre valores positivos, parece que corresponde ao Direito Penal malgrê lui a missão fundamental de gerar consenso e reforçar a comunidade. 1.5 A CONFIGURAÇÃO DE UMA SOCIEDADE DE “SUJEITOS PASSIVOS” A sociedade do Estado do bem-estar se configura cada vez mais como uma sociedade de classes passivas, no sentido amplo da expressão. Pensionistas, desempregados, destinatários de serviços públicos educacionais, sanitários etc., pessoas ou entidades subvencionadas (beneficiários, enfim, da transferência de riqueza, mais que criadores dos excedentes objetos de transferência) s e convertem nos cidadãos, os eleitores por excelência. Inclusive com relação ao cidadão abstrato se realça sua dimensão “passiva” de consumidor, ou de sujeito paciente dos efeitos nocivos do desenvolvimento (sobre o meio ambiente, por exemplo). Diante disso, e certamente, ao menos em parte, pelo fenômeno da concentração do capital, as classes ativas, dinâmicas, empreendedoras, são cada vez menos numerosas. E, de qualquer modo, sua relevância - e inclusive seu prestígio - no cenário social são inferiores; desde logo, muito inferiores a de cem ou cinquenta anos atrás. O modelo da pós-induslrialização53 resulta, desse modo, diretamente contraposto ao da sociedade do desenvolvimento industrial do século XIX e provavelmente da primeira metade do século XX. Realmente, a industrialização, no âmbito da dogmática jurídico-penal, havia trazido consigo a construção do conceito 53. Da concentração econômica, da imigração e emigração, da globalização. de risco permitido como limite doutrinário (interprelativo) à incriminação de condutas, assim como a determinação de seu alcance básico. Em linhas gerais, a ideia era a seguinte: a coleti- vidade há de pagar o preço do desenvolvimento, admitindo que as empresas não adotam as máximas medidas de segurança nem empregam materiais de máxima qualidade. Do contrário, não se poderá obter o benefício que permita a acumulação de capital necessário para reinversão e crescimento; ou então não progredirá no ritmo esperado. E isso se deve admitir , ainda que se saiba de antemão, e já não mais de modo genérico, que se produzirão lesões e mortes, senão que especificamente em uma determinada indústria elas haverão de ocorrer. 54 Pelo contrário, na sociedade 54. Sobre a vinculação da evolução do conceito de risco permitido com a industrialização, Prittwitz. Strafrecht und Risiko, p. 301 e ss. Ainda sobre o tema Schultz, Kausalität und strafrechtliche Produkthaftung. Materiell - und Prozessrecht liehe Aspekte, em W. Lübbe (Hrsg.), Kausalität und Zurechnung. Über Verantwortung in komplexen kulturellen Prozessen , Berlin/New York, 1994, p. 41 e ss. 42-43; do mesmo, Perspektiven der Normativierung des objektiven Tatbestandes (Erfolg, Handlung. Kau - salität) am Beispiel der strafrechtlichen Produkthaftung, ein Lüderssen (Hrsg.), Aufgeklärte Kriminalpolitik, Ul, p. 43 e ss, 48-49, aludindo cm particular a questão das ferrovias nos Estados Unidos. Com a industria- lização, pois, o risco permitido deixou dc ser exceção para constituir -se em regra. As referências clássicas são as de Binding, Die Normen und ihre Übertretung, t. IV, Leipzig, 1919, p. 432 e ss. 4.37, 440, vinculando expressamente risco permitido e desenvolvimento industrial; ainda. p. 445, nota 42: “Uma indústria possivelmente não será rentável ou, pelo menos, o será de modo insuficiente se empregar o melhor material". Já anles, Von Bar, Die Lehre vom Causal zusammenhange im Rechte, besonders im Straf rechte, Leipzig, 1871, p. 13, aludindo ao modo coino a vida exige certo risco. de maneira que a adoção de cautelas qitc poderiam evitá-lo, por sua vez, excluiriam toda atividade industrial (Gewerbebetriebe). Assim, conclui que há indústrias perigosas, mas necessárias para a vida, das quais se sabe por estatística que, com o transcurso dos anos, um número dc homens, c não somente dos que trabalham voluntariamente nelas, perderão a vida. Dc novo aqui lambem aparece a consideração do exemplo da ferrovia. Expressando um fenômeno até certo ponto da pós-industrialização se constata com clareza uma tendência ao retrocesso da incidência da figura do risco permitido.” Dessa maneira, se há um século o estado de coisas predominante no pensamento europeu “desenvolvimentista” podia aproximar-se à máxima “navigare necesse est, vivere non necesse”,56 neste momento - em que poucos “navegam", isto é, apostam decididamente pelo desenvolvimento - debate-se em torno da prioridade da necessidade de “viver” e, por extensão, a redução das fronteiras do risco permitido. 57 paralelo, a vinculação das doutrinas da culpa civil nos Estados Unidos entre fins do século XIX e meados do século XX com o desenvolvi mento industrial c com a pretensão de diminuição de custos da classe em presarial é ressaltada por Bisbal, La responsabilidad extraconiractual y la distribución de los costes dei progreso, RDM. 1983, p. 75 e ss. 86, nota 16, 95. 55. Prittvviiz, Strafrcclu urnl Risilw, p. 310-311, comentando como se produziu uma revisão dos princípios sobre cuja base tem lugar o tra - tamento social no que respeita aos riscos. A mudança de enfoquepro - duzida nos últimos anos recebe uma valoração positiva cm Fabricius, Rcchtsdogmatische Wandlungen ais Entnennungen gcsellschaftlicher Risikozutcilungen, em ARSP-Beihcft, 71, Grõscluicr/Morlok (Hrsg.), Rcchtsphilosophic mui Rechtsdogmatik in Zcilcn des Umbi uchs, Slutlgart, 1997. p. 119 e ss, 121, para quem o desenvolvimento do “Dir eito penal do risco" é um intento de reparar de maneira forçada uma situação na qual se havia tolerado o sacrifício maciço do bem jurídico “vida" cm prol do progresso. Um exemplo de seu modo de ver as coisas em p. 128. nota 43: “Se a velocidade máxima dos veículos na zona urbana fosse reduzida a 30 km/b, os acidentes mortais diminuiriam em 90%”. 56. A máxima c a versão latina do texto grego de Plutarco e foi adotada como lema pela Liga Uanseática. 57. Sobre a ideia de que o conceito de “risco" e um conceito cultural, assim como de que na percepção e aceitação do risco incide a posição social que se ocupa, cf. Schultz, cm Lüderssen (Hrsg.), Aufgchldt te Kriminal- politik, 111, p. 50-51; Duelos, Quand la tribu des modernes sacrifie au dieu risque (Mary Douglas et le risque commc concept culturel), DS. 1994, vol. 13. n. 3, p. 345 ess, 348,353 ess; Lópcz Ccrezo/Luján López, Cienciav política, p. 72 e ss. Como é sabido, o conceito de risco permitido expressa uma ponderação dos custos e benefícios da realização de uma determinada conduta.58 Mas também é evidente que tal cálculo depende de uma valoração prévia, na que necessariamente se haverá de incluir como premissa maior a autocompreensão da sociedade e a ordem relativa de valores (ou preferências) na qual aquela se plasme. 58 Na mudança significativa da autocompreensão social produzida nas últimas décadas se encontra, pois, a base também da modificação do produto do referido cálculo. Assim, a diminuição dos níveis de risco permitido é - produto direto da sobrevaloração essencial da segurança - ou liberdade de não padecer diante da liberdade (de ação).60 Ou, — em outro sentido, da concepção de muitas liberdades como “liberdades perigosas” (riskante Frcihcitcn). Tal predomínio 58. Cf. a obra básica dc Paredes Castanón, LI riesgo permitido en derccho penal, Madrid, 1995. passim. em especial, p. 483 c ss. Da mesma forma. Paredes Castanón, 1:1 limite entre imprudência v riesgo permitido en derccho penal: ies posihle detenninarlo con critérios utilitários?. APDCP, 1996, 111 (2000), p. 909 c ss. 59. Nesse sentido, Jakobs, La imputation objetiva en derccho penal (trad. Cancio Meliá), Madrid. 1996. p. 119-120: ‘TQuc valor corresponde al riesgo existente para la salud en el puesto de trabajo en comparación ( con unas condiciones de producción rentables?"; Duelos, D5, vol. 18. n. 3, p. 350: “Il y a certains risques que nous ne percevons pas et d’autres que nous hypertrophions, et cela moins a partir dc nos tendances personcllcs que par notre position dans les institutions socialles, qui ‘pensent le monde à travers d'une métaphore privilégiée". Critico com os procedimentos de definição do risco permitido, Fabricius, AR5P- - Beihcft, 71. p. 137. aludindo à introdução de elementos míticos como “a sociedade”, “o ordenamento", “o Estado” etc. 60. Que no risco permitido se trata de um conflito de liberdades e não da mera proteção de uma liberdade é observado por W. Líibbe, Eraubtes Risiko -Zur Legitimationsstruktur einesZurechnungsauschliessungsgrundes, em Lüderssen (Hrsg.), Aufgehlãrtc Kriminalpolitih, 1, p. 373 c ss, 381, entendendo, nada obstante, que nem a análise dc custo-beneficio nem a perspectiva histórica fundamentam convincentemente a instituição. é característica de uma sociedade de sujeitos pacientes mais que de agentes.61 Dessa forma, nos vemos, pois, diante de um modelo de sociedade orientado a uma restrição progressiva das esferas de atuação arriscada.6l Em outras palavras, como se indicava supra, um modelo social em que, na ponderação prévia ao estabelecimento da fronteira entre risco permitido e risco desaprovado, a liberdade de ação cede claramente ante a liberdade de não padecer.63 Seguramente, não são em absoluto alheios a essa circunstância os modernos progressos da jurisprudência (e, eventualmente, da doutrina) tendentes a uma concepção bastante ampliadora da figura da “ingerência”, como fundamento da imputação de responsabilidade a título de comissão por omissão. Mas, vejamos, o que foi até agora mencionado não é tudo. Na sociedade de sujeitos passivos existe também uma resistência psico- lógica ante a aceitação do caso fortuito, ante a admissão da possibi - lidade de produção de danos por azar. Seguramente, isso tampouco é casual e se relaciona de modo direto com autocompreensão de uma sociedade na qual a maior parte dos perigos, como estivemos indicando, já não pode ser concebida sem algum tipo de interme- 61. Como observa K. Gunther, La situaciun insostcníble, Instituto de Ciências Criminales de Frankfurt, p. 503. “(...) a liberdade de ação deriva de um perigo abstrato em si mesma. Em campos de ação densamente entrelaçados, como é característico nas sociedades de risco, o próprio uso individual da liberdade é perigoso em si”. 62. Na percepção de Van Svvaaningen, Criticai criminology. Visions Jrom Europe, London, 1997, p. 174. a nova sociedade do risco “is no longer oriented towards positive ideais, bui towards the negative rational of limitingrisk” (já não está orientada a ideais positivos, senão a raciona lidade negativa da limitação de riscos). 63. A liberdade de ação se vê, sobretudo, como fonte de riscos: cl. o texto, de expressivo título, de Beck/Beck Gershcim (Hrsg.), Rishante Frcihci- tcn. Zur Individualisientng von Lcbensformcn t/t der Modcntc, Frankfurt, 1994. diação de decisões humanas, de natureza ativa ou omissiva. Mas, seja como for, o efeito é uma crescente tendência a transformação do Unglück (acidente fortuito, desgraça) em Unreclu (injusto),65 o que inevitavelmente conduz a uma ampliação do Direito Penal. 66 O tema é suficientemente importante para justificar uma breve incursão sobre ele. Como já aludido, o núcleo do problema radica em que, uma vez produzido o resultado lesivo, nos inclinamos a rechaçar a ideia de que ele pode não ter se originado de qualquer comportamento descuidado de alguém. 67 Agora interessa observar como isso supõe um curioso fechamento do círculo aberto pelo Direito Penal moderno. Com efeito, no Direito Penal primitivo, e ainda hoje em certas sociedades, as catástrofes, a morte, uma enfermidade ou uma diminuição/física ou psíquica frequentemente eram vistas 64. Esse dado é essencial na delimitação que Bcck realiza dos conceitos de risco c de perigo. Cf., nesse sentido, Esteve Pardo, Técnica, riesgoy dcrecho. Barcelona, 1999, p. 43. 65. É interessante a apreciação de Prittwiiz, Strafrccht und Risiho, p. 108. relativa a que os acontecimentos negativos são mais fáceis de assumir se e possível atribuir a um terceiro responsabilidade por eles. Dai (p. 379) a tendência a encontrar um autor - e de modo éfn absoluto inútil - inclusive nos casos clássicos de desgraças provenientes da natureza. Aludindo a este fenômeno de “imputation déplacée” nas culturas primitivas, Duelos, DS, vol. 18, n. 3, p. 349. Diante disso, sustenta Eabricius que no Direito Penal tradicionalmente tem ocorrido o contrario: dada a lé no progresso e no crescimento própria dos juristas, se pretende explicar o “injusto" como “desgraça", esquecendo o mandamento de não sacrificar vidas humanas e não justificar tal proceder em nenhum caso; desse modo tem sido possível o sacrifício maciço cie vidas humanas com o assentimento dos penalistas
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