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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL DARCI ROLDÃO DE CARVALHO SOUSA CAPITALISMO MONOPOLISTA: A ECONOMIA DE TRABALHO VIVO EM GOIÁS RIO DE JANEIRO 2008 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL DARCI ROLDÃO DE CARVALHO SOUSA CAPITALISMO MONOPOLISTA: A ECONOMIA DE TRABALHO VIVO EM GOIÁS Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Serviço Social da ESS/UFRJ, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Serviço Social. Orientadora: Profa. Dra. Cleusa Santos. RIO DE JANEIRO 2008 3 Ficha Catalográfica Sousa, Darci Roldão de Carvalho Capitalismo monopolista: a economia de trabalho vivo em Goiás /Darci Roldão de Carvalho Sousa; orientadora: Cleusa Santos − Rio de Janeiro: UFRJ, Escola de Serviço Social, 2008. 151 f.; Tese (doutorado) − Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social. Inclui referências Bibliográficas 1. Capitalismo monopolista 2. economia de trabalho vivo em Goiás 3. I. Santos, Cleusa. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social. III. Título. 4 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL DARCI ROLDÃO DE CARVALHO SOUSA CAPITALISMO MONOPOLISTA: A ECONOMIA DE TRABALHO VIVO EM GOIÁS Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da ESS/UFRJ, como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Serviço Social. Aprovada pela banca abaixo indicada: _________________________________________ Profa. Dra. Cleusa Santos ___________________________________________ Prof. Drª. Fátima da Silva Grave Ortiz _________________________________________ Profa. Drª. Walderez Loureiro Miguel _________________________________________ Profa. Dra. Veralúcia Pinheiro _________________________________________ Prof. Dr. Ronaldo Coutinho 5 O capitalista procura tirar o maior proveito do valor de uso de sua mercadoria. De repente, porém, levanta-se a voz do trabalhador, que estava emudecida pelo bombar do processo de produção: A mercadoria que te vendi distingue-se da multidão das outras mercadorias pelo fato de que seu consumo cria valor e valor que ela mesma custa. Essa foi a razão por que a comprastes. O que do teu lado aparece como valorização do capital é da minha parte dispêndio excedente de força de trabalho. Tu e eu só conhecemos, no mercado, uma lei, a do intercâmbio de mercadorias. E o consumo da mercadoria não pertence ao vendedor que a aliena, mas ao comprador que a adquire. A ti pertence, portanto, o uso de minha força de trabalho diária. Mas por meio de seu preço diário de venda tenho de reproduzi-la diariamente para poder vendê-la de novo. Sem considerar o desgaste natural pela idade etc., preciso ser capaz amanhã de trabalhar com o mesmo nível de força, saúde e disposição que hoje. Tu me predicas constantemente o evangelho da ‘parcimônia’ e da ‘abstinência’. Pois bem! Quero gerir meu único patrimônio, a força de trabalho, como um administrador racional, parcimonioso, abstendo-me de qualquer desperdício tolo da mesma. Eu quero diariamente fazer fluir, converter em movimento, em trabalho, somente tanto dela quanto seja compatível com a sua duração normal e seu desenvolvimento sadio. Mediante prolongamento desmesurado da jornada de trabalho, podes em 1 dia fazer fluir um quantum de minha força de trabalho que é maior do que o que posso repor em 3 dias. O que tu assim ganhas em trabalho, eu perco em substância de trabalho. A utilização de minha força de trabalho e a espoliação dela são duas coisas totalmente diferentes. Se o período médio que um trabalhador médio pode viver com um volume razoável de trabalho corresponde a 30 anos, o valor de minha força de trabalho que me pagas, um dia pelo outro, é ___1___ ou 365X30 __1___ de seu valor global. Se, porém, tu a consomes em 10 anos, 10950 anos, pagas-me diariamente __1___ em vez de 10 950 ___1__ de seu valor global, apenas 1/3 de seu valor de 1 dia, e furtas-me 3 650 assim diariamente 2/3 do valor de minha mercadoria. Pagas-me a força de trabalho de 1 dia, quando utilizas a de 3 dias. Isso é contra o nosso trato e a lei do intercâmbio de mercadorias. Eu exijo, portanto, uma jornada de trabalho de duração normal e a exijo sem apelo a teu coração, pois em assuntos de dinheiro cessa a boa vontade. Poderás ser um cidadão modelar, talvez sejas membro da sociedade protetora dos animais, podes até estar em odor de santidade, mas a coisa que representas diante de mim é algo em cujo peito não bate nenhum coração. O que parece bater aí é a batida de meu próprio coração. Eu exijo a jornada normal de trabalho, porque eu exijo o valor de minha mercadoria, como qualquer outro vendedor. Marx (1985a, p. 189-190). 6 RESUMO Este trabalho tem como objeto a economia de trabalho vivo em Goiás no período de 1970 a 2002. Um fenômeno histórico que compõe o processo retardatário de industrialização na periferia do mundo capitalista. Suas determinações ontogenéticas estão fincadas no movimento que impulsiona a internacionalização do capital. A análise da realidade evidencia a deflagração desse processo na sociedade goiana, quando deslancha a desconcentração industrial de São Paulo para outros estados brasileiros. Esta incorporação de Goiás ao mercado capitalista mundial vincula a indústria à agricultura ao desencadear o processo de modernização conservadora. Essas mudanças forjam relações sociais capitalistas aqui, introduzidas pelas empresas industriais de novo estilo, que penetram em lugares, que se tornam pólos de crescimento econômico para o capital. Sustentadas por investimentos públicos e privados, elas articulam as regiões às demandas de superlucros do grande capital. Como indutoras da economia de trabalho vivo, requerem maquinaria complexa, radicalizando o domínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo, forjando a satelitização de pequenas e microempresas que garantem a extração do sobretrabalho nos seus espaços a baixos custos. Procuramos relacionar este objeto em suas conexões internas e externas, tendo por base o processo de reprodução ampliada do capital. Esta demanda remete-nos à pesquisa bibliográfica, documental (em Censos Demográficos do IBGE, DIEESE, FIEG, FETAEG, MT, Juceg). Ainda, buscamos fontes secundárias em pesquisasjá realizadas, obedecendo aos critérios: ramo de atividades (alimentícia, farmacêutica, mineração e montadoras), maior representatividade na produção industrial e escolha de cidades pelas localizações das empresas indicadas para a pesquisa. Conclui-se que a relação desigual entre o centro e a periferia gera um desenvolvimento capitalista desigual e combinado, que tem por base a troca desigual fundada na economia de trabalho vivo. No estágio do capitalismo monopolista, a economia do trabalho vivo constitui-se elemento intrínseco ao modo de produção especificamente capitalista. É a lei geral da acumulação capitalista. A grande indústria e suas empresas industriais de novo estilo conectam-se sob a mediação de processos unidos organicamente: produção, consumo, circulação e troca. Palavras-chave: capitalismo monopolista - economia de trabalho vivo – acumulação capitalista. 7 ABSTRACT This paper focuses on the reduction of living work in Goiás from 1970 to 2002. This historical phenomenon is part of a tardy industrialization process on the periphery of the capitalist world, whose ontogenetic determinations are connected to the movement which impels the internationalization of capital. The analysis of this reality shows the deflagration of such process in the society in Goiás, when the process of industry de-concentration is launched, spreading it from São Paulo to other Brazilian states. This inclusion of Goiás to the world capitalist market connects industry to agriculture when it starts the process of conservative modernization. These changes forge capitalist social relations here, introduced by the new style industrial companies, which penetrate places which become centers of economic growth for capital. Supported by public and private investments, they link these regions to the demands of super profits of capital. As inductors of the reduction of living work, they require complex machinery, promoting the satellitization of micro and small enterprises which ensure the extraction of overwork in their space at low costs. This piece has tried to link this subject in its internal and external connections, based on the process of increased reproduction of capital. This need takes us to the bibliographical research of documents (in national censuses performed by IBGE (the Brazilian Institute of Geography and Statistics), DIEESE (Inter Trade Union Department of Statistics and Socio-Economic Studies), FIEG (Industry Federation of the State of Goiás), FETAEG (Federation of Agricultural Workers of the State of Goiás), MT (Ministry of Labor) and Juceg (Trade Board of the State of Goiás)). Secondary sources in published research have always been consulted , according to the following criteria: field of activity (foodstuff, pharmaceutical, mining and assemblers), major role in the industrial production and choice of cities according to the location of the companies selected for this research. This study comes to the conclusion that the uneven relation between the center and the periphery generates combined uneven capitalist development, which is based on the uneven exchange founded on the reduction of living work. At the stage of monopolist capitalism, the reduction of living work is an element which is intrinsic to the specifically capitalist means of production. It is the general law of capitalist accumulation. The great industry and its new style industrial companies are connected through the mediation of organically united processes: production, consumption, circulation and exchange. Key words: monopolist capitalism – reduction of living work – productive salaried work - capitalist accumulation. 8 RÉSUMÉ Cette étude traite de l’économie du travail vivant dans l’État de Goiás au cours de la période 1970 à 2002. Il s’agit là d’un phénomène historique faisant partie du processus retardataire de l’industrialisation à la périphérie du monde capitaliste. Ses déterminations ontogénétiques sont ancrées dans le mouvement qui stimule l’internationalisation du capital. L’analyse de la réalité met en évidence la propagation de ce processus dans la société goianaise lors du démarrage de la déconcentration industrielle de São Paulo vers les autres états brésiliens. Cette incorporation de l’État de Goiás dans le marché capitaliste mondial relie l’industrie à l’agriculture en déclenchant le processus de modernisation conservatrice. Tous ces changements ont établi ici des relations sociales capitalistes, introduites par les entreprises industrielles de nouveau style qui, en pénétrant un peu partout, deviennent des pôles de croissance économique pour le capital. Soutenues par des investissements publics et privés, elles articulent les régions pour répondre aux exigences de superprofit du grand capital. En tant qu’inductrices de l’économie du travail vivant, elles exigent des équipements complexes, radicalisant ainsi la domination du travail mort sur le travail vivant et instaurant la satellisation de petites et moyennes entreprises qui, à leur tour, assurent dans leur domaine l’extraction du surtravail à faible coût. Nous avons cherché à expliquer cet objet dans ses liaisons internes et externes, sur base du processus de reproduction élargie du capital. Cette exigence nous renvoie à la recherche bibliographique, documentaire (dans Cens Démographiques de l’IBGE, DIEESE, FIEG, FETAEG, MT, Juceg). En outre, nous avons eu recours à des sources secondaires dans les recherches déjà réalisées sur le thème, en obéissant aux critères suivants : secteur d’activité (alimentaire, pharmaceutique, minération et constructeurs automobiles), plus grande représentativité dans la production industrielle et choix des villes selon la localisation des entreprises indiquées pour cette recherche. On en conclut que la relation d’inégalité entre le centre et la périphérie provoque un développement capitaliste inégal et combiné, fondé sur l’échange inégal qui est basé sur l’économie du travail vivant. Au niveau du capitalisme monopolistique, l’économie du travail vivant constitue un élément intrinsèque au mode de production typiquement capitaliste. Il s’agit là de la loi générale de l’accumulation capitaliste. La grande industrie et ses entreprises industrielles de nouveau style se relient par l’intermédiaire de processus organiquement unis : production, consommation, circulation et échanges. Mots-clés : capitalisme monopolistique – économie du travail vivant – travail salarié productif – accumulation capitaliste. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................ 10 CAPÍTULO I – ACUMULAÇÃO CAPITALISTA E ECONOMIA DE TRABALHO VIVO, UMA CONTRADIÇÃO CONTEMPORÂNEA ............................................................19 CAPÍTULO II – A EXPANSÃO DO CAPITALISMO MONOPOLISTA NO BRSIL, NA RELAÇÃO CENTRO E PERIFERIA ................51 2.1 - Acumulação capitalista nos países do centro, a lógica destrutiva ........................................................................52 2.2 – Acumulação capitalista na periferia: a realidade brasileira .........................................................................74 CAPÍTULO III – A ECONOMIA DE TRABALHO VIVO EM GOIÁS .........110 3.1 – Acumulação capitalista: os pólos de crescimento econômico para o grande capital e a economia de trabalho vivo ..............................................................................117 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................133 BIBLIOGRAFIA...............................................................................................137 ANEXOS ...........................................................................................................147 10 INTRODUÇÃO A exposição que ora apresentamos tem por objeto de pesquisa a economia de trabalho vivo em Goiás, de 1970 a 2002. Examinar este objeto torna-se imprescindível e desafiador por entendermos que esse período – síntese das circunstâncias particulares do pós-ditadura militar, a partir de seu declínio na sociedade brasileira, em face às novas determinações postas no e pelo atual estágio do capitalismo monopolista/imperialista – gera mudanças que, próprias das sociedades tardo-burguesas instituidoras de outro padrão de acumulação do capital, mesmo retardatárias, apropriam e alteram o processo de reprodução ampliada do capital na periferia. Essas mudanças reconfiguram a produção e a organização internacional do trabalho, consolidando a subordinação da periferia ao centro, e, nela, modificando a divisão sociotécnica do trabalho assalariado produtivo por constituir, em condições histórico-sociais particulares, a subsunção real do trabalho ao capital e a possibilidade da economia de trabalho vivo. Ainda, redesenham o quadro do poder político-econômico mundial sob a hegemonia de grupos de monopólios que, sobrepondo aos Estados-nação na periferia e aos seus povos, radicalizam a contradição socialização da produção e apropriação privada. Essas condições objetivas interferem, diretamente, e de modo mais intenso, sobre o destino da classe trabalhadora urbana e rural, no Brasil. É a crise geral da sociedade capitalista contemporânea1 – a primeira grande crise generalizada, no pós-Segunda Guerra Mundial – que emerge no núcleo do poder e engloba todas as grandes potências imperialistas em uma grave recessão. Inicia-se na década de 1970, precisamente em 1973, explicitada pelo recuo da produção industrial e do Produto Interno Bruto (PIB), pela diminuição da demanda interna desses países e da exportação, e pelo impulso das lutas operárias. Essas mudanças sócio-econômicas e ídeo-políticas derruem os “30 anos gloriosos” e demarcam uma transição histórica – 1 Esta crise é analisada, de modo aprofunndado, por autores da tradição marxista, como Hobsbawm, 1995; Harvey, 1996; Anderson, 1983; Chesnais, 1996; Netto, 1993; Ianni, 1992; Guerra, 1998, dentre outros. 11 ainda longe de completar-se – (HARVEY, 1996) ao modo de produção capitalista e ao seu “esquema de reprodução”. A repercussão desse processo na sociedade brasileira e que, sob outras condições objetivas e subjetivas, apanha, também, a sociedade goiana, expressa-se, de um lado, na sua incorporação à economia nacional e internacional como fornecedora de matérias-primas, produtos primários e força de trabalho barata para as áreas industrializadas do Centro-Sul do país. De outro, o grande capital alcança e atinge o trabalho assalariado produtivo – o do chão da fábrica –, exigindo-lhe novas competências à medida que o incorpora aos seus ditames. Isto por que dos modos de produção existentes, o capitalista é o único que, constantemente, se revoluciona, pois lhe é imanente o movimento de renovação das condições materiais de sua valorização (da cooperação simples à manufatura e, desta, à grande indústria). Por ter esta capacidade, é que vem conseguindo ainda, mesmo com suas novas contradições e crises, rearticular-se. Um sistema particular de acumulação pode existir porque ‘seu esquema de reprodução é coerente’ [com o seu tempo histórico]. (...) Tem de haver, portanto, uma materialização do regime de acumulação, que toma a forma de normas, hábitos, leis, redes de regulamentação etc., que garantam a unidade do processo. (HARVEY, 1996, p. 117) Nessa perspectiva, algumas questões já se colocam a este objeto: qual o movimento do real que engendra a economia de trabalho vivo na realidade goiana? Como essa movimentação contraditória – de conservação e de modificação – implica e incide de modo particular nos processos da produção e do trabalho, em Goiás, diferente da forma “clássica”? Intentamos reconstruir, na presente tese, sob a luz dos pressupostos marxianos (e engelsianos), a trajetória da expansão do capitalismo monopolista em Goiás, ao mesmo tempo, relacionando-a à do Brasil/América Latina e à sua constituição/desenvolvimento nas sociedades do centro, para elucidar, em uma movimentação contraditória, as razões econômicas, políticas, sociais e culturais que geram as mudanças capazes de dinamizar e fazer crescer a economia do trabalho vivo na sociedade goiana, como uma particularidade inserida na realidade histórica brasileira. A nossa análise abarca o momento histórico de deflagração da crise geral no centro (1973), ao curso do processo da reprodução ampliada do capital até 2002. A 12 escolha deste período demarca-se por ser esse momento em que, de fato, concretiza-se a (re)incorporação de Goiás, pertencente à Região Centro-Oeste, aos ditames agora do grande capital, na sua fase monopolista, sob a intervenção direta do Estado brasileiro. Sustentamos a tese de que a economia do trabalho vivo em Goiás em decorrência das mudanças deslanchadas pelo desenvolvimento desigual das forças produtivas no “mundo capitalista”, criadoras da troca desigual, em um contexto particular de disputa/luta entre as classes sociais, engendra processos de continuidade e de ruptura na periferia. A modernização do campo redefine, nesse espaço, as relações de produção com a introdução de novas tecnologias mantendo-se na condição de Estado fornecedor de matéria-prima para os centros hegemônicos. Ao lado dessa realidade desenvolve-se vários pólos industriais, nas suas principais cidades movidos pelo deslocamento do capital do centro para a periferia. Com base nessa problemática, o objetivo central deste estudo é explicar essa forma particular que o processo de reprodução ampliada do capital toma em Goiás. É quando desata imbricado nesta expansão, a partir da década de 1970 e, internamente, no Brasil, um outro processo: a “desconcentração industrial” de São Paulo – o centro hegemônico – para o interior paulista e outros estados brasileiros, o qual impõe a estes últimos, em pontos estratégicos definidos pelo grande capital, o desenvolvimento industrial, mas não a indústria pesada. Daí, a origem das cidades artificiais (MELO NETO, 1987), que “brotam como cogumelos”, como afirmara Marx (1985b). Buscamos resgatar, na historiografia contemporânea de Goiás, o processo que impulsiona a industrialização/urbanização com o aumento do índice demográfico pela migração,2 inicialmente, para as cidades de Goiânia e Anápolis, também, para Brasília no decorrer dessas mudanças. Estas ocorreram a partir dos anos de 1970, aliadas a outras já herdadas,3 com o incremento das rodovias4 que, aos poucos, vão substituindo as ferrovias. 2 Após 1980, a Região Centro-Oeste alcança a segunda maior taxa de urbanização (67,75%), perdendo só para a Região Sudeste. Sua população guarda “peculiaridades em função do potencial de trabalho. (...) Em termos de faixa etária, 31 por cento dos habitantes têm menos de 14 anos de idade e outros 30 por cento menos de 29 anos. Constituem, no todo, potencial força de trabalho que, a curto e médio prazo, representa um mercado abundante de [força de trabalho] ainda não devidamente aproveitado. São os milhares de jovens (...) que estão sendo, pouco a pouco, integrados ao surto agroindustrial, na reestruturação agropecuária e mineral que o Estado vem aprimorando” (ESTEVAM, 2005, p. 1) 3 Esses germes de mudanças tomam configurações particularesnos diferentes estados/regiões do país, e na condição sócio-histórica de Goiás, têm papel relevante no processo de reprodução ampliada do capital, aqui, a expansão expropriadora da pecuária desde o início do século XIX e a construção da Estrada de Ferro Goiás (1913), sendo que esta última favorece a exportação de produtos agrícolas e gado para o Triângulo Mineiro e São Paulo. No entanto, há já que se diferenciar nessa época, ligeiramente, a zona 13 Segundo Estevam (2005, p. 1), o ponto de ruptura deu-se, quando a indústria auferiu frações significativas de renda interna e o setor de serviços sustentou sua participação em função da acelerada urbanização regional. Tal fato pode ser também comprovado através da estrutura de ocupação e emprego da população ao longo destas últimas décadas. Em 1970, 60,4 por cento da PEA em Goiás ainda estava voltada para a agricultura (pecuária, silvicultura, extração vegetal, caça e pesca); nas atividades industriais (transformação e construção), estava o correspondente a 8,9 por cento e nos serviços 11,5 por cento da PEA. Em 1980, apenas 39,2 por cento da população economicamente ativa estava no setor agrícola, 16,5 por cento no industrial e 18,6 por cento na prestação de serviços; a partir de então, a estrutura de ocupação foi se alterando gradualmente – na década – em detrimento do setor agrícola e em favor do setor industrial e dos serviços. O crescimento da população urbana acelera-se na década de 1980 e vai se aglomerando na Região Metropolitana de Goiânia e no Entorno de Brasília que, a despeito do processo de “modernização conservadora”, irrompido no pós-1970, avança a “industrialização da agricultura”, assentada em uma política de economia de trabalho vivo em decorrência da incorporação de maquinário (5.692 tratores, pulando para 33.548 em 1985, e 43.313 em 1995) e insumos, via crédito rural (ESTEVAM, 1998, p. 173). Essas condições fulcrais exigidas para a expansão do capitalismo monopolista, no Estado de Goiás, indicam que 54% dos tratores estão nas médias propriedades rurais (de 100 hectares a 1000 hectares) e 30,0% nas grandes propriedades rurais (de 1000 hectares a 10000 hectares) (ESTEVAM, 1998, p. 173). Agora transformadas em agroindústrias, são elas que têm acesso às inovações tecnológicas e aos incentivos fiscais, gerando alto nível de desemprego no campo, o que vai interferir sobremaneira urbana da rural. Deste modo, se “o tempo de transformações no Brasil foi uno e, ao mesmo tempo, plural[,] (...) a estrutura de Goiás somente pode ser compreendida, na sua inteireza, levando-se em conta o movimento de sua transformação resultante da interpenetração dos condicionantes nacionais e regionais. A reflexão que Goiás é resultado histórico particular do processo de desenvolvimento capitalista brasileiro, que não se trata de um espaço isolado e sim de fração integrante e interdependente da sociedade nacional. De outro, que Goiás constitui um “mundo à parte”, que tem espaço, movimento e ritmo de tempo próprios, balizados por progressos, retrocessos, diversidades, hetrogeneidades e contradições específicas” (ESTEVAM, 1998, p. 24-25). 4 A primeira estrada de rodagem para o trânsito dos primeiros automóveis é construída no sudoeste goiano – de Santa Rita, Rio Verde, Jataí a Mineiros –, pela Cia. Auto-Viação Sul-Goiana S/A. Inaugurada em 1919, com sede em Rio Verde, esta empresa privada inicia a era do automóvel em Goiás, com linhas regulares de transporte de passageiros e cargas, realizadas com “10 Ford Double Phaeton, Modelo T, 2 caminhões Ford de 1 tonelada de carga e 1 carro Studebaker Big Six, de 7 lugares. (...) foram comprados em São Paulo [empresa norte-americana ali instalada desde 1919], ao preço de 3 contos e seiscentos mil reis (3:600$000) e 2 contos e seiscentos mil réis (2:600$000), cada unidade, respectivamente. Na cidade de Rio Verde foi montada também uma oficina mecânica, com estoque de peças e acessórios indispensáveis à manutenção dos carros em toda a região” (FRANÇA, 1979, p. 177). E novas empresas privadas seguiram-lhe o caminho em vários pontos do sul goiano. 14 na redução dos salários dos trabalhadores assalariados produtivos ocupados/desocupados e na proliferação da “informalidade”. Este fenômeno, que não é novo em Goiás, mas foge ao tratamento analítico desta exposição, explode a partir da década de 1990 e toma uma configuração nova ao tornar-se funcional ao capital, portanto, necessária à acumulação capitalista por escamotear a relação de compra e venda da força de trabalho favorecida pela “flexibilização” dos processos da produção e do trabalho, intensificando a sua precarização no capitalismo contemporâneo (TAVARES, 2002). O processo de industrialização/urbanização acentua-se depois de 1990, ampliando para o sul e sudeste goianos5 (e não para o norte) a exportação das “fábricas prontas” (MANDEL, 1990) ou empresas industriais de “novo estilo” (CHESNAIS, 1996), transnacionais, brasileiras e regionais, que disseminam aqui as relações capitalistas propriamente ditas, com a subsunção real do trabalho ao capital. A elevação do grau da produtividade do trabalho social possibilita que essas empresas industriais de “novo estilo” com o uso intensivo da maquinaria, para a garantia de maior fluxo de mercadorias mais baratas, poupem mais força de trabalho viva, introduzindo a economia de trabalho vivo na periferia. A busca da saída da crise e da retomada dos superlucros dos monopólios têm implicado, de um lado, em mais investimentos para o Monsieur Capital e, de outro, na redução dos custos do trabalho mesmo em lugares que nunca tenha existido o Welfare State. Essas condições vão redundar em crescimento econômico para o grande capital, em um mercado unificado, em detrimento das condições sociais com mais desemprego e revigoramento da produção/reprodução de uma “superpopulação relativa” funcional a ele, a ocorrência permanente do rebaixamento dos salários, que resulta na queda incessante da qualidade de vida dos trabalhadores assalariados produtivos, no campo e na cidade. Esses trabalhadores passam a ocupar os espaços menos valorizados dos centros urbanos, formados, em sua maioria, por áreas baixas, rentes aos rios, ou íngremes, nas encostas dos morros ou próximas ao local de trabalho, originando as vilas operárias, os cortiços, as favelas, “as casas de cômodos” e, na condição particular da 5 Para a Secretaria de Estado do Planejamento de Goiás (SEPLAN-GO), do Setor de Gerência de Estatísticas Sócioeconômicas (2003), no ano 2000, a indústria foi a que acumulou e concentrou maior riqueza, com uma “participação de 69,24%, (...) [dos quais,] Goiânia participu, sozinha, com 36,08% (...) na geração do valor adicionado da indústria estadual. Os dez municípios com melhor desempenho na agropecuária somaram 25,04% em relação ao total deste setor, no Estado”. Goiânia sobressai nos ramos da construção civil, vestuários, confecções e acessórios, produtos alimentícios e metalúrgicos e indústria moveleira. Anápolis vem em seguida com 8,30%, desenvolvendo as indústrias farmacêuticas, produção de adubos, alimentos, embalagens e metalurgia. Depois Catalão (4,90%) com a produção mineral e montadora de automóveis e, por fim, Rio Verde (3,41%) com a instalação de agroindústria. 15 sociedade goiana, as áreas de posse urbana, alimentando e fazendo crescer a cada dia o exército industrial de reserva. Consideramos que o estudo do objeto – a economia de trabalho vivo – é, hoje, fundamental, para explicar o atual estágio do capitalismo monopolista na periferia, pois, as condições histórico-sociais ainda constituem aacumulação capitalista e a produção da mais-valia – absoluta e relativa – como relação orgânica. A concentração e a centralização do capital, de modo exponencial neste estágio, “exerce influência sobre o destino da classe trabalhadora” (MARX, 1985b, p. 187). No percurso histórico e teórico-metodológico, do estudo, buscamos reconstruir, fundamentando-se na crítica da economia política, este objeto, historicamente dado, constituído no processo da acumulação capitalista e de priorização da exploração da mais-valia relativa, condição essencial para a existência do capitalismo monopolista mundial. Procuramos relacionar este objeto em suas conexões internas e externas, tendo por base o processo de reprodução ampliada do capital. Esta demanda remete à pesquisa bibliográfica (em livros, artigos, dissertações, teses etc.), à pesquisa documental (em Censos Demográficos do IBGE, DIEESE, FIEG, FETAEG, MT, Junta Comercial do Estado de Goiás, Secretaria da Indústria e Comércio). É importante registrar o impedimento do acesso direto da pesquisadora às dependências dessas empresas. Por outro lado, aos trabalhadores era vedada o repasse de informações sob pena de demissão. Diante da impossibilidade de obter os dados no trabalho de campo, buscamos as fontes secundárias em investigações empíricas realizadas em empresas industriais de “novo estilo”, instaladas em Goiás. O critério utilizado para escolha das empresas foi o ramo de atividades (alimentícia, farmacêutica, mineração e montadoras) e as de maior representatividade na produção industrial, segundo percentual do Valor Adicionado Bruto (VAB), de 2000. As cidades escolhidas foram indicadas pelas localizações das empresas indicadas para a pesquisa. Pretendíamos identificar as implicações do processo de “modernização conservadora”, estratégia que se instala e se reveste de importância relevante à abertura das condições internas favoráveis à reprodução ampliada do capital, isto é, à produção e reprodução das relações especificamente capitalistas em Goiás. Se esse processo é tardio no Brasil em relação ao centro e, mesmo, a outros países da América Latina como o Chile e Argentina, é só na década de 1990 que ele encontra terreno fértil na realidade goiana. 16 E, para analisarmos esse processo que põe a economia do trabalho vivo em Goiás, organizamos o nosso trabalho “Capitalismo monopolista: a economia de trabalho vivo em Goiás”, em três capítulos articulados, tendo então por base a proposta teórico- metodológica, o objeto e o problema que norteiam a pesquisa. Se é no estágio do capitalismo monopolista, que o trabalho morto domina o trabalho vivo, o primeiro capítulo “Crise do capital: acumulação capitalista e economia do trabalho vivo, uma contradição contemporânea” trata desta polêmica, em âmbito mundial. Ao fazê-lo buscamos recuperar o debate atual que põe o crescimento da economia do trabalho vivo na periferia do “mundo capitalista”. Este movimento implica em revisitar autores da tradição marxista como Mandel (1985), Hobsbawm (1995), Mészáros (1995), Harvey (1996) e Antunes (1995), que embatem com as teses dos partidários do fim da “sociedade do trabalho”, porque negam o trabalho como a categoria fundante da socialidade humana. Recolocamos, na mesa, “em tempos neoliberais”, o debate da situação da classe trabalhadora na sociedade burguesa e as múltiplas mediações postas pela relação capital e trabalho, buscando explicar uma das leis básicas de movimento do capitalismo – o fenômeno da reprodução ampliada do capital – na periferia. Procuramos explicar, fundada na afirmação de que todo processo de produção é ao mesmo tempo processo de reprodução, que o modo de produção capitalista tem por base a troca desigual, isto é, a diferença na produtividade média do trabalho entre o centro e a periferia. Por isso, a troca desigual é lesiva tanto para os países não-hegemônicos do centro como para os da periferia capitalista. Salvaguardadas as diferentes singularidades, gera um capitalismo de desenvolvimento desigual e combinado ou um desenvolvimento capitalista articulado, do qual faz parte a periferia. Nela, o capitalismo constitui-se com a mesma essência, no entanto, toma uma configuração particular. A apreensão e análise dessa dinâmica da sociedade burguesa devem ser buscadas na crítica à economia política. No segundo capítulo, “A expansão do capitalismo monopolista no Brasil, na relação centro e periferia”, buscamos explicar, com a expansão do capitalismo monopolista na particularidade histórica da sociedade brasileira, a economia do trabalho vivo no Brasil e sua influência no destino dos trabalhadores assalariados produtivos. Porém, a fundamentação teórico-metodológica que embasa esta exposição, exige apanhar o movimento do real que a originou e, ao mesmo tempo, que a contém, a hegemonia britânica desbancada pela a norte-americana, para dar conta de, ao entender a origem da acumulação capitalista, analisar a constituição da economia do trabalho 17 vivo como uma lógica destrutiva, à medida que a redução da força de trabalho assalariada faz crescer a população disponível ao capital. Esse fato histórico tem na metade da década de 1950 o marco da (re)incorporação da sociedade brasileira como um dos pólos dinâmicos do capitalismo monopolista mundial, em sua segunda irrupção, pois até esta década não conformava as condições materiais exigidas para a subsunção real do trabalho ao capital. Nesse processo, tenta-se compreender como o grande capital consolida São Paulo, no Brasil, o centro hegemônico do processo de industrialização e torna-o um dos maiores no ranking latino-americano da indústria de transformação alimentícia e da indústria/montadora automobilística com inserção externa no comércio capitalista de mercadorias, porém com modesta participação na indústria de produção de bens de capital. No terceiro capítulo, “A economia de trabalho vivo em Goiás”, propomo-nos a analisar as determinações históricas que vêm forjando a economia de trabalho vivo, em Goiás, no bojo das relações, especificamente capitalistas, próprias do processo de expansão do capitalismo monopolista mundial e, no mesmo movimento, relacionando- as em âmbito nacional. Em Goiás, o processo de reprodução ampliada do capital só tem a sua dinâmica instituída a partir dos meados da década de 1980, quando a economia, centrada na agropecuária, é superada pela indústria (ESTEVAM, 1998; DEUS, 2003; SILVA, 2001; MENDONÇA, 2004). Desencadeia-se, daí em diante, os novos rumos para Goiás, resultado do pacto da Marcha para o Oeste que, em função do processo de industrialização/urbanização, o Estado brasileiro impulsiona a ampliação das relações mercantis e, com elas, o adensamento populacional pela migração no sul/sudeste goianos. Buscamos então examinar as condições materiais que tornam Goiás uma sociedade urbano-industrial, tendo como pólo irradiador a cidade, que se expande para o campo e “o industrializa”. Acelera-se então o processo da acumulação capitalista em lugares estratégicos, os quais vão se constituindo em verdadeiros pólos de crescimento econômico para o grande capital, à medida que empresas industriais “de novo estilo” vão penetrando em Goiás como indutoras nos “mercados imperfeitos” do processo de internacionalização do capital industrial. Esses pólos articulam essas regiões às demandas de superlucros ao grande capital, sustentados por investimentos públicos e privados. Deste modo, a grande indústria apropria do valor criado por todos os trabalhadores assalariados produtivos, inclusive aqueles que desempenham funções do trabalho coletivo fora do seu espaço 18 (pequenas e micro-empresas, nos trabalhos autônomos, “por conta própria” etc.), construindo as condições de, ao elevar a produtividade trabalho social, economizar trabalho vivo em Goiás. Nestaparte da exposição, procuramos desvelar a face da economia do trabalho vivo, aquela que expõe, sem meios termos, o despotismo do grande capital no seu estágio monopolista/imperialista, momento histórico considerado por muitos pesquisadores, dentre eles Fernandes (1974), como o mais devastador, face às exigências histórico-sociais postas para a sua constituição no centro e na periferia. Ao se instituir como acumulação capitalista, o modo de produção direciona-se no sentido da formação do trabalho excedente à custa da elevação da produtividade do trabalho social. A acumulação capitalista é constituída em condições objetivas e subjetivas tais que o capital torna-se capaz de, ao economizar trabalho vivo, levar ao ápice, no processo de trabalho, o empobrecimento material e espiritual dos trabalhadores assalariados produtivos e a descartar, no seu processo de valorização, os seus investimentos na reprodução da força de trabalho por privilegiá-la ao Monsieur Capital. Na sequência, apresentamos as considerações finais, em que, com base no exposto, reafirmamos a existência do trabalho assalariado produtivo no chão da fábrica e defendemos a centralidade da categoria trabalho na sociedade burguesa. 19 CAPÍTULO I Acumulação capitalista e economia do trabalho vivo: uma contradição contemporânea Mas por tanto tempo quanto continuarem a produzir como hoje, de forma inconsciente e irrefletida, (...) as crises subsistirão; e cada uma delas que vier deverá ser mais universal e, pois, pior do que a precedente: deve pauperizar maior número de pequenos capitalistas e aumentar progressivamente o efetivo da classe que só vive do trabalho, e, portanto, aumentar visivelmente a massa de trabalho a ocupar (o que é o principal problema dos nossos economistas) e provocar por fim uma revolução social tal que a sabedoria escolar dos economistas jamais sonhou. Engels, 1844 Ao assumirmos a matriz marxiana (e engelsiana) como fundamento teórico- metodológico e ídeo-político desta exposição, neste capítulo, buscamos reconstruir, no movimento do capital e do trabalho, o processo do objeto historicamente dado – a economia do trabalho vivo –, no seu confronto com o trabalho morto, em sua condição de constituído e constituinte do processo da acumulação capitalista. Este processo, hegemonizado pela industrialização e acompanhado pela hipertrofia do financeiro, próprios do estágio do capitalismo monopolista maduro, para ser desvendado na atual crise do capital, é preciso que o entendamos como dela decorrente e da própria lógica 20 destrutiva do grande capital, em um contexto de luta de classes, favorável a um desenvolvimento do capitalismo desigual e combinado. Faz-se necessário, então, a análise do processo de acumulação capitalista que põe a subsunção real do trabalho ao capital, condição para entendermos como e por que a ordem burguesa produz/reproduz a economia de trabalho vivo, resultado da forma de como o capitalismo produz-se e reproduz-se historicamente. Para fazer este movimento, buscamos as contribuições de Hobsbawm (1995),6 Harvey (1996),7 Mandel (1985),8 Mészáros (2002),9 e Antunes (1995),10 como autores pertencentes a um mesmo campo e ao conjunto da tradição marxista, portanto, comungando um núcleo teórico-metodológico e ídeo-político comum, sem deixar de explicitar a sua heterogeneidade, uma vez que, no seu seio, esse campo (e todos os demais) não comporta um bloco monolítico, mas matizes diversos É inconteste que entre estes autores que a existência histórica da produção e da reprodução do capital marca o seu processo de formação, desenvolvimento e decadência por crises cíclicas,11 as quais são sucedidas por fases de retomada econômica e de prosperidade, causadas antes pela crise de superprodução∗ no centro, em face da 6 Eric J. Hobsbawm é de Alexandria (1917, Egito); considerado um dos maiores historiadores vivos; professor aposentado; já lecionou em diversas universidades da Europa e América Latina. Faz parte da Academia Britânica e membro honorário do Kings College, Cambridge. É presidente do Birbeck College (London University) e professor emérito da New School for Social Research (Nova Iorque). Entre suas obras, encontra-se a trilogia acerca do "longo século XIX", traduzidos em vários idiomas. 7 David Harvey é de Oxford (1935, Grã-Bretanha); geógrafo marxista, formado na Universidade de Cambridge; foi professor da Universidade John Hopkins, nos Estados Unidos até 1987, quando transferiu-se para a cadeira de Geografia em Halford Mackinder da Universidade Oxford. Seus livros inicialmente versavam sobre a epistemologia da geografia, ainda no paradigma da chamada geografia quantitativa, depois redireciona sua pesquisa para a problemática urbana, a partir de uma perspectiva materialista-dialética. 8 Ernest Ezra Mandel é de Frankfurt (1923, Alemanha), economista e político judeu-alemão, Autor de vários ensaios políticos e livros de economia marxista. Seus pseudônimos: Ernest Germain, Pierre Gousset. Henri Vallin, Walter etc. 9 István Mészáros é de Budapeste (1930, Hungria); filósofo ligado à chamada Escola de Budapeste, um grupo de filósofos húngaros, constituído por discípulos de Georg Lukács. Está entre os mais importantes intelectuais marxistas da atualidade. Professor emérito da Universidade de Sussex, na Inglaterra, onde ensinou filosofia por 15 anos, anteriormente foi também professor de Filosofia e Ciências Sociais na Universidade de York, durante 4 anos. 10 Ricardo Antunes é de São Paulo (1953); sociólogo, professor no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, onde foi diretor do Arquivo Edgard Leuenroth; lecionou na FGV-SP e na UNESP- Araraquara. Colabora em revistas e jornais nacionais e internacionais e é editor-participante da Revista Latin American Perspectives (EUA). 11 O problema das crises periódicas manifesta-se, segundo os pressupostos marxiano-engelsiano, “pela contradição entre a tendência do Capital ao desenvolvimento ilimitado das forças produtivas e os limites estreitos impostos por esse mesmo Capital ao consumo das massas operárias. [Eles distinguem] desde essa época [1844] corretamente a demanda física e a demanda solvável. (...) Marx e Engels sublinham antes de tudo a importância das ‘grandes saídas de além-mar’ para a situação econômica da Grã-Bretanha (e da indústria européia em geral) (Apud MANDEL, 1968, p. 71-73). ∗ Entendida como crise no processo de acumulação do capital. 21 oposição entre as forças produtivas e as relações capitalistas de produção do que pela mera especulação. Esta contradição inerente ao modo de produção capitalista provoca o seu revolucionamento no sentido de gestar e rearticular outro padrão de acumulação do capital condizente com as condições materiais do seu tempo histórico, movendo o seu quadro político de hegemonia. Nesta exposição, tratamos da crise global contemporânea como crise do capital, que, também, arrasta o trabalho, como resposta às mudanças no “mundo capitalista” sob as determinações do processo de mundialização do grande capital e é a crise que suplanta “os anos dourados”. Esta crise, equivocadamente denominada por muitos pesquisadores como a crise do fordismo e do keynesianismo, configura-se para Antunes (1995; 2006), Hobsbawm (1995; 1991), Mészáros (2006), Harvey e Mandel.(1985) como uma crise estrutural do capital por se colocar permanente. Nessa direção, põe o seu início no centro a partir da década de 1970, quando explicitam-se seus traços peculiares que, dentre outros, são assim identificados: � a queda da taxa de lucro com a redução dosníveis de produtividade do capital; a retração do consumo em resposta ao desemprego estrutural que então se iniciava no centro; � a hipertrofia da esfera financeira, que ganhava relativa autonomia frente aos capitais produtivos; � a maior concentração e centralização de capitais graças às fusões entre as empresas monopolistas e oligopolistas; � a crise do welfare state ou do “Estado do bem-estar social”, acarretando por um lado, o incremento acentuado das privatizações e a retração dos gastos públicos e sua transferência para o capital privado; � a tendência à flexibilização do processo produtivo, dos mercados e da força de trabalho. Essas condições vão impulsionar a intensificação do processo de internacionalização do capital como estratégia de busca de novos mercados, reestruturando os processos da produção e do trabalho, a fim de garantir à grande indústria das sociedades do centro a taxa média de lucro, corroída na época em que vigia a hegemonia do fordismo/keynesianismo. Observa-se, nestes países, “profundas 22 transformações no mundo do trabalho, nas suas formas de inserção na estrutura produtiva, nas formas de representação sindical e política” (ANTUNES, 1977, p. 71), sendo que “a classe que [só] vive do trabalho presenciou a mais aguda crise na sua subjetividade e, no íntimo inter-relacionamento destes níveis, afetou a sua forma de ser” (ANTUNES, 1977, p. 71), alcançando o conjunto da vida social. Se os anos de 1945-1973 constituíram a hegemonia dos Estados Unidos da América do Norte (EUA), o final da década de 1960 até o primeiro lustro da década 1970 põem a gênese de seu declínio e desborda-se nesta crise global contemporânea. “Entre 1974 e 1975, a economia capitalista internacional conheceu a sua primeira recessão desde a II Guerra Mundial, sendo a única, até então, a golpear simultaneamente todas as grandes potências imperialistas” (MANDEL, 1985, p. 9). Esta crise rompe o longo período expansionista do pós-guerra, no centro. A sociedade norte-americana cresce abaixo da média da economia mundial (ver anexos, gráficos 1 e 2), explicita queda da taxa média de lucros, restringe o crédito, cai o dólar frente ao iene japonês e ao marco alemão. Além disso eleva os custos de vida, da política militar-armamentista, da inflação e dos preços do petróleo. Ao mesmo tempo, aumenta os estoques de mercadorias, apresenta crescimento do desemprego12 e ingressa no déficit do balanço de pagamentos (dívida pública). 12 Tabela I - Máximo de desemprego durante a recessão de 1974/75 Países Período Quantidade Estados Unidos 4º trim. 1975 7 912 000 Grã-Bretanha 3º trim. 1976 1 319 000 Japão 4º trim. 1975 1 178 000 Itália 3º trim. 1976 1 145 000 RFA 4º trim. 1976 1 141 000 França 3º trim. 1976 1 036 000 Espanha 4º trim. 1976 800 000 Canadá 4º trim. 1975 724 000 Austrália 4º trim. 1975 297 000 Bélgica 3º trim. 1976 292 000 Holanda 4º trim. 1975 211 000 Dinamarca 4º trim. 1975 111 000 Outros países 4º trim. 1975 600 000 Imperialistas Fontes: para o 4º trim. 1975: Nações Unidas, Suplemento ao estudo sobre a Economia Mundial, 1975; para o 3º trim. 1976: Financial Times, 25 de out. 1976 e Eurostat, CEE – Comunidade Econômica Européia; para a Espanha: estatísticas espanholas. Mandel (1985) afirma que “durante o inverno de 1975/76, quando o desemprego atingiu seu ponto culminante, o número total de desempregados oficialmente reconhecidos no conjunto dos países imperialistas se aproximava de 17 milhões” (p. 16). 23 A falência técnica da cidade de Nova Iorque em 1975 – cidade com um dos maiores orçamentos públicos do mundo – ilustrou a seriedade do problema. Ao mesmo tempo, as corporações viram-se com muita capacidade excedente inutilizável (principalmente, fábricas e equipamentos ociosos) em condições de intensificação da competição. Isso as obrigou a entrar num período de racionalização, reestruturação e intensificação do controle do trabalho (caso pudessem superar ou cooptar o poder sindical). A mudança tecnológica, a automação, a busca de novas linhas de produto e nichos de mercado, a dispersão geográfica para zonas de controle do trabalho mais fácil, as fusões e medidas para acelerar o tempo do giro do capital passaram ao primeiro plano das estratégias corporativas de sobrevivência em condições de deflação∗ (HARVEY, 1996, p. 137 e 140). Outros países imperialistas são apanhados pela crise, inicialmente, enquanto movimento de estagnação como, por exemplo, o Japão e a Alemanha,13 quando sofrem queda na produção, na taxa média dos lucros e na demanda interna. Em seguida, transforma-se em movimento de recessão, e estende-se pela Europa ocidental, puxando também a periferia. Esta crise é o resultado da contradição fundamental – produção social e apropriação privada – do modo de produção capitalista, que veio à tona depois que mudanças deflagradas ainda na época da “onda longa expansiva” favoreceram o grande capital. Elas impulsionam novo avanço das forças produtivas, incluindo a tecnologia, colocando a concentração e a centralização do capital em patamares nunca vistos. Essas condições trazem, em decorrência, a superprodução ou superacumulação, a radicalização da luta concorrencial entre os grupos de monopólios, a superexploração dos trabalhadores assalariados produtivos, o recrudescimento do desemprego e do exército industrial de reserva e as dificuldades de valorização do grande capital no próprio seio das potências imperialistas. Tudo isso impõe estratégias e mecanismos novos ao processo de internacionalização do grande capital, já desencadeado no centro desde a década de 1880. Na busca da superação desta crise, o investimento ou a exportação de capital excedente gerador de superlucros aos monopólios torna-se uma estratégia de primeira ordem neste estágio do capitalismo monopolista. Com a retomada da produção industrial e da acumulação do capital no centro, a partir de 1976, simultaneamente, vai sendo deteriorada a posição de liderança dos EUA (ver anexo, gráfico 3), pois a capacidade de investimento no exterior só permite o restabelecimento da rentabilidade do capital nos anos seguintes aos níveis anteriores à crise, notadamente, nos Estados ∗ Diminuição da circulação do papel-moeda superabundante. 13 A recessão difundiu-se na Alemanha, quando, “no quarto trimestre de 1974 e no primeiro de 1975, as exportações caíram, respectivamente, 3,5% e 8,5%, sob o efeito evidente da recessão internacional da economia capitalista. (...) O [Produto Nacional Bruto] PNB diminuiu 2% e 2,5% respectivamente, no curso desses dois trimestres” (MANDEL, 1985, p. 11). 24 Unidos da América do Norte. O grande saldo desta crise para a burguesia internacional é o deslocamento da prioridade econômico-social do “pleno emprego” para o “desemprego massivo permanente” (MANDEL, 1985; MÉSZÁROS, 2006; ANTUNES, 1995, 2006; NETTO, 1993; 1996), inaugurando a era neoliberal nas sociedades do centro.14 Os grupos de monopólios canalizam o capital excedente para fora dos EUA e da Europa ocidental, ou seja, para a periferia, ampliando o seu campona direção da Ásia, principalmente, do Japão, de Taiwan e Coréia do Sul. Nas décadas de 1980 e 1990, estendem-se para a China, Índia e (re)incorporam a América Latina e, de modo particular o Brasil, aos ditames do grande capital. Essa condição só é possível devido o processo de industrialização brasileira dos anos trinta, de base estatal-nacionalista, instituir um parque industrial de grande expressão na Região Centro-Sul do país, e experimentar, nos meados da década de 1950, mudanças no seu padrão de acumulação por se fundar em uma política desenvolvimentista financiada pela entrada exorbitante de capital excedente no país, inclusive aumentando, exponencialmente, a dívida externa. E, na dinâmica do pré e pós- 1964, consolida-se o capitalismo monopolista, em face da oposição de dois projetos claros de sociedade: um, é defendido por forças democráticas e populares, por isso, definido por tendência a uma ruptura “nacionalista” movida ainda dentro dos marcos do capitalismo, e outro, pela demanda burguesa e suas facções, expressa uma tendência que rearranja e reproduz o conservadorismo e o reacionarismo. De fato, é vitorioso o projeto que propugna a conciliação com o grande capital internacional e a ascensão de grupos de monopólios, os quais, com a adesão de governos locais, passam a sobrepor os Estados-nacionais (MANDEL, 1985; NETTO, 1992). E o “país passa a servir de entreposto industrial para várias multinacionais” (SINGER, 1978, p. 92). Partimos então por resgatar que, se na metade do século XIX, depois da segunda máquina a vapor de Watt, Marx já detectava que a maquinaria do capital tinha a finalidade de tornar as mercadorias mais baratas e de ela ser “meio de produção de mais-valia” (MARX, 1985b, p.15), no período da acumulação capitalista, quando são 14 Esta foi uma experiência deflagrada em um país da periferia. O neoliberalismo começou naquele país um decênio antes de Thatcher, na Inglaterra. Após o golpe de Estado, que derrubou o governo popular de Salvador Allende, em 1973, no Chile, Hobsbawm (1995, p. 399) afirma que “uma ditadura militar terrorista permitiu a assessores americanos instalar [ali] uma economia de livre mercado irrestrita, demonstrando assim, aliás, que não havia ligação intrínseca entre o livre mercado e a democracia política”. Para Anderson (1995). “Pinochet começou os seus programas de maneira dura: desregulamentação, desemprego massivo, repressão sindical, redistribuição de renda em favor dos ricos, privatização dos bens públicos” (p. 19). O neoliberalismo começou naquele país um decênio antes de Thatcher, na Inglaterra. 25 instituídas, de fato, as relações especificamente capitalistas no centro e essas relações são expandidas para a periferia, essa finalidade não mudou, e radicalizou-se a intenção da supressão total do trabalho vivo. Mudaram-se as condições históricas e as formas de sua utilização pelo grande capital. Neste aspecto, é relevante a análise mandeliana do modo de produção capitalista no século XX, depois da metade dos anos cinqüenta, por assinalar que a automação movida à energia nuclear – nova tecnologia e originária da política armamentista – inicia-se na indústria química e dissemina-se para outras áreas no centro, põe uma maquinaria voltada à supressão do trabalho vivo do processo de produção e a “esfera da produção [é] uma unidade contraditória de empresas não automatizadas, semi- automatizadas e plenamente automatizadas (na indústria e na agricultura, e por isso em todas as esferas da produção de mercadorias juntas) (MANDEL, 1985, 145). De acordo com Mandel (1985, p. 145), torna-se evidente que, a partir de certo ponto e por sua própria natureza, o capital deve apresentar uma resistência crescente à automação. As formas dessa resistência incluem o uso do trabalho barato nos ramos semi- automatizados da indústria (tais como o trabalho de mulheres e de [crianças] nas indústrias têxteis, de alimentos e de bebidas), o que desloca o limiar da lucratividade para introdução de complexos plenamente automatizados; as mudanças constantes e a concorrência mútua na produção de conjuntos de máquinas automatizadas, o que impede o barateamento de tais conjuntos e, conseqüentemente, a sua mais rápida introdução em outros ramos da indústria; a busca incessante de novos valores de uso, inicialmente produzidos em empresas não automatizadas ou semi-automatizadas etc. (p.145) Tudo isso evidencia a constituição da natureza combinada do desenvolvimento do capitalismo e o limite do capital à corrida tecnológica como estratégia da “guerra intercapitalista”, que alcança o seu ápice no estágio da organização monopólica, como uma das condições viabilizadoras de seu processo de mundialização. Explicita, também, a limitação do próprio capital,15 à medida que põe a sua impossibilidade em se desfazer de vez do trabalho vivo, porque corta o processo de produção da mais-valia, da 15 “Na verdade, a indústria que produz meios eletrônicos de produção tem uma composição orgânica de capital notavelmente baixa. Em meados da década de 60, a participação dos custos de salários e ordenados no movimento total anual bruto desse ramo da indústria nos Estados Unidos e na Europa ocidental flutuou entre 45% e 50%, [como diz Freeman]. Isto explica por que o montante maciço de capital que se encaminhou para ela desde o início dos anos 50 tenha diminuído e não aumentado a composição social média do capital e, correspondentemente, tenha aumentado e não diminuído a taxa média de lucros. Em conseqüência, a produção automática de máquinas automáticas representaria um novo ponto de inflexão, em termos qualitativos, igual em significado ao seu aparecimento da produção mecânica de máquinas em meados do século XIX (MANDEL, 1985, p. 145; grifos do autor). 26 valorização do capital, só realizável pela força de trabalho humana. Nesse sentido, Mandel (1985) é categórico em afirmar que o capital economiza trabalho vivo pela automação só na planta produtiva e o aumenta então nas áreas fora da produção direta (laboratórios, departamentos, pesquisa etc) onde o trabalho é parte do “trabalhador produtivo coletivo”. Com o avanço da acumulação capitalista, a centralização e a concentração do capital tornam possíveis, a partir da subsunção real do trabalho ao capital, elevar a produtividade do trabalho social e valer-se da economia de trabalho vivo. As grandes potências por meio da grande indústria lançam-se à expansão das relações especificamente capitalistas na periferia, difundindo o processo de proletarização agora a uma força de trabalho mais barata em uma época histórica de maior gasto “em massa de meios de produção (...) [e] dispêndio progressivamente decrescente da força de trabalho [viva] (...) essa é a lei absoluta geral, da acumulação capitalista” (MARX, 1985b, p. 209). Mas, isto não quer dizer que elimina o trabalho vivo como produtor de mais-valia e de valor na ordem burguesa. E a grande indústria assim o faz transferindo suas “fábricas prontas” para onde estão força de trabalho disponível ao capital, terras fartas e matérias-primas abundantes. Estas são transformadas em mercadorias e são vendidas como meios de subsistência aos trabalhadores assalariados. Desta forma, o grande capital espraia o processo de reprodução ampliada para regiões, lugares nunca dantes atingidos, evidenciando que “não basta à produção capitalista de modo algum o quantum de força de trabalho disponível que o crescimento natural da população fornece. Ela precisa, para ter liberdade de ação, de um exército industrial de reserva independente dessa barreira natural” (MARX, 1985b, p. 202). O crescimento do capital provoca o crescimento de uma força de trabalho ou uma população trabalhadoraexcedentária tanto no centro quanto na periferia, que se torna, contraditoriamente, imprescindível à existência do capital, porque é o elemento vivo criador de valor e a ele pertence “de maneira tão absoluta, como se ele [a] tivesse criado à sua própria custa” (MARX, 1985b, p. 200), mas, é descartável. A efetivação desse processo, que põe a economia de trabalho vivo na periferia do “mundo capitalista”, assume novas configurações na contemporaneidade e guarda determinações históricas e mediações particulares em relação à sua constituição e desenvolvimento no centro, e vai exigir – tanto lá quanto aqui – condições materiais e objetivas diferenciadas e mais complexas do que o estágio anterior do capitalismo. 27 Essa tendência à redução de trabalho assalariado produtivo pelo capital, criador de valor, também, é criticada por Hobsbawm (1995), que identifica um movimento de declínio da classe operária, iniciado nas décadas de 1970 e de 1980, embora seja, nos anos de 1990, que emergem traços “de uma grande contração da classe operária” (p. 296), quando mudanças na produção a desencadeiam, crescendo a economia da força de trabalho viva. Estes fatos fortalecem, de certa maneira, as afirmações dos anunciadores do adeus ao proletariado – os adeptos da “sociedade pós-industrial”–, no entanto, este autor defende que “a impressão generalizada de que de alguma forma a velha classe operária industrial estava morrendo era estatisticamente errada, pelo menos em escala global” (HOBSBAWM, 1995, p. 296), pois, no mundo do final “dos anos dourados” havia mais operários. A classe operária permanece estável nas sociedades do centro – os oito dos 21 países que compõem um terço da população empregada –, e eleva-se naquelas recentemente industrializadas na Europa, até a década de 1980, exceto nos EUA, em que o declínio ascendente da classe operária (ver anexo, Tabela 1) se prenuncia entre 1965 e os anos de 1970. Já nos países socialistas industrializados da Europa oriental, Japão e Terceiro Mundo (Brasil, México, Índia, Coréia e outros), o proletariado multiplica-se. “Com isso, durante este século, temos um crescimento da proletarização combinado com o relativo declínio, dentro da população assalariada, dos trabalhadores braçais, no sentido literal da palavra. Trata-se de um fenômeno bem geral em países industrializados” (HOBSBAWM, 1991, p. 18). Na verdade, essa movimentação não significa o colapso da classe operária, mas são modificações que estão ocorrendo no interior dos processos de produção e do trabalho ocasionados pela crise do início da década de 1970, aprofundada no transcorrer da de 1980, onde que, as velhas indústrias do século XIX e início do XX declinaram, e sua própria visibilidade no passado, quando muitas vezes simbolizavam a “indústria”, tornou mais impressionante o seu declínio. (...) Mesmo quando não desapareceram, essas indústrias tradicionais mudaram-se de velhos para novos países industriais. Produtos têxteis, roupas e calçados migraram em massa. O número de pessoas empregadas nas indústrias têxteis e de roupas dentro da República Federal da Alemanha caiu em mais da metade entre 1964 e 1984, mas no início da década de 1980, para cada cem operários alemães, a indústria de roupas alemã empregava 34 no exterior. Mesmo em 1966 eram menos de três. Ferro, aço e indústria naval praticamente desapareceram das terras de industrialização mais antiga, mas reapareceram no Brasil e na Coréia, na Espanha, Polônia e Romênia. Velhas áreas industriais tornaram-se “cinturões de ferrugem” – termo inventado nos EUA na década de 1970 –, ou mesmo países inteiros identificados com uma fase anterior da indústria, como a Grã-Bretanha, foram largamente 28 desindustrializados, transformando-se em museus vivos ou agonizantes de um passado desaparecido, que os empresários exploravam, com certo êxito, como atrações turísticas. Enquanto as últimas minas de carvão desapareciam do sul de Gales, onde mais de 130 mil ganhavam a vida como mineiros no início da Segunda Guerra Mundial, velhos sobreviventes desciam em poços mortos para mostrar a grupos de turistas o que outrora faziam ali em eterna escuridão. E mesmo quando novas indústrias substituíam as velhas, não eram as mesmas indústrias, muitas vezes não nos mesmos lugares, e provavelmente com estruturas diferentes. (...) não tinham as grandes cidades industriais, as empresas dominantes, as fábricas enormes. Eram mosaicos ou redes de empresas que iam da oficina de fundo de quintal à fábrica modesta (mas de alta tecnologia), espalhados pela cidade e o país (HOBSBAWM, 1995, p. 297). O caráter global desta crise só foi considerado como tal pelos países da Europa ocidental em 1990, porque ainda não estava de todo esclarecido para eles que ela se constituiria mais grave do que a de 1930. Os “anos dourados” gestam um mercado mundial articulado e único, alimentado pela imigração, e torna possível a internacionalização da produção e da acumulação capitalistas, acirrando a contradição capital e trabalho, a partir da crise de 1973. Os grupos de monopólios, como uma verdadeira operação “de vida ou de morte”, ao constituírem a grande indústria, da fase do capitalismo monopolista maduro, “estabeleceram seu domínio sobre o mundo, solapou uma grande instituição até 1945, praticamente universal: o Estado-nação territorial, pois um Estado assim já não poderia controlar mais que uma parte cada vez menor de seus assuntos” (HOBSBAWM, 1995, p. 413). E “as Décadas de Crise foram a era em que os Estados nacionais perderam seus poderes econômicos” (HOBSBAWM, 1995, p. 398). Por sua vez, a queda do “socialismo real” na União Soviética e na Europa oriental é o fato histórico que a explicita sem subterfúgios e expõe a sua face política. Depois de 1973, a crise traz como conseqüências aos países do centro o reaparecimento do desemprego em massa, miséria e tensões sociais. Problemas velhos que pareciam dissolvidos pelos “anos dourados” ressurgem sob um processo de reestruturação produtiva do capital e avanço espetacular na sua internacionalização. Essas condições caracterizam o desemprego estrutural, pois, mesmo em período de expansão, indústrias demitem força de trabalho viva, que jamais serão reabsorvidas ao mesmo tempo em que a produção triplica seus produtos16 com o emprego das forças 16 Hobsbawm (1995) exemplifica o desemprego estrutural nos EUA, ao identificar nos anos de 1950 a 1970, que o número de telefonistas para interurbanos caiu em 12% e o número de telefonemas aumentou em cinco vezes, no entanto, de 1970 a 1980, o número de telefonistas caiu em 40% e os telefonemas cresceram em três vezes. 29 mecânico-automáticas em substituição da força de trabalho. Esta substituição pela máquina constitui-se em uma das fontes geradoras da economia do trabalho vivo. Segundo Hobsbawm (1995, p. 299), as crises econômicas do início da década de 1980 recriaram o desemprego em massa pela primeira vez em quarenta anos, pelo menos na Europa. Em alguns países desavisados, a crise produziu um verdadeiro holocausto industrial. A Grã-Bretanha perdeu 25% de sua indústria manufatureira em 1980-4. Entre 1973 e fins da década de 1980, o número total de pessoas empregadas na manufatura nos seis velhos países industriais da Europa caiu 7 milhões, ou cerca de um quarto, mais ou menos metade dos quais entre 1979 e 1983. Em fins da década de 1980, enquanto as classes operárias nos velhos países industriais se erodiam e as novas surgiam, a força de trabalho empregada na manufatura estabilizou-se em cerca de um quarto de todo o emprego civil em todas as regiões desenvolvidas ocidentais, com exceção dos EUA, onde a essa altura estava bem abaixo de 20%. Estava muito longe do velho sonho marxista da população gradualmenteproletarizada pelo desenvolvimento da indústria até a maioria das pessoas serem trabalhadores (braçais). Com exceção dos casos mais raros, dos quais a Grã-Bretanha era o mais notável, a classe operária industrial sempre fora uma minoria da população trabalhadora. Assim, nas sociedades do centro, a exacerbação da diferença entre as classes sociais fundamentais – econômica, política, social e cultural – cresce e torna novamente comum a presença massiva de “mendigos”, de “desabrigados” e de “sem teto” nas ruas. Em qualquer noite de 1993 em Nova York, 23 mil homens e mulheres dormiam na rua ou em abrigos públicos, uma pequena parte dos 3% da população da cidade que não tinha tido, num ou noutro momento dos últimos cinco anos, um teto sobre a cabeça (New York Times, 16/1193). No Reino Unido (1989), 400 mil pessoas foram oficialmente classificadas como “sem teto” (Human Development, 1992, p. 31). Quem, na década de 1950, ou mesmo no início da de 1970, teria esperado isso? (HOBSBAWM, 1995, p. 396). Essa realidade põe então em relevo o declínio do campesinato17 e o crescimento da suburbanização de áreas em volta de centros urbanos, gerando as “hipercidades” com mais de 10 milhões de habitantes. Nesse processo, lembra Hobsbawm (1991), em oposição ao que ocorria na década de 1930, o governo britânico desastroso caminha no desmonte 17 “Hoje, ele representa 4% da população ocupada nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e 2% nos Estados Unidos. (...) Em meados da década de 1960, ainda havia cinco países europeus com mais da metade da população ocupada nessa área, onze nas Américas, dezoito na Ásia e, com três exceções (Líbia, Tunísia e África do sul), toda a África. (...) Em 1900, apenas 16% da população mundial vivia em cidades. Em 1950, esse número já havia crescido para quase 26%, e hoje, ele está próximo da metade (48%) (HOBSBAWM, 2007, p. 37-38) 30 da rede de benefícios sociais [que] está sendo simultaneamente desmantelada – exemplos disso são as escolas e os serviços de saúde – enquanto as construções públicas e privadas, que estavam explodindo, virtualmente, pararam. A estrutura da produção industrial britânica está sendo demolida quase além da esperança de uma restauração. Poucos operários que elegeram Thatcher não lamentam amargamente de tê-lo feito, e até amplos setores de capitalistas britânicos buscam desesperados, alguém em quem se apoiar. Em dadas circunstâncias, (...) encontramos um movimento trabalhista confuso, dividido, desagregado por divisões e lutas internas, e isolado de vários de seus antigos apoios. (HOBSBAWM, 1991, p. 42) E desacelera-se o crescimento nos países socialistas18, devastando-os. Na periferia – Ásia ocidental, África e América Latina/Caribe – essas mudanças ocorrem, substancialmente, diferentes. Acreditamos que as razões dessa diferença encontram-se, em primeiro lugar, por ser uma área que, tirânica e subordinadamente, é (re)incorporada ao centro do poder capitalista. Segundo, devido a essas condições formar-se enquanto, no dizer de “uma zona mundial de revolução – recém-realizada, iminente ou possível” ((HOBSBAWM, 1995, p. 421) de libertação.19 Daí, a sua caracterização como zona instável social e politicamente, situação esta tomada como propícia ou identificada com o comunismo soviético pelo centro como pretexto utilizado para sustentar e mascarar a sua própria ofensiva à dominação mundial. Como saída da crise, acresce-se a esse processo a proliferação de países recém- industrializados na periferia e que “já consumiam 24% do aço do mundo e produziam 15% dele” (HOBSBAWM, 1995, p. 403), na metade da década de 1980, às custas da migração de “indústrias de trabalho intensivo” do centro – movimento consentido como “natural” – para essas áreas, pois elas tendem a se concentrar nos lugares onde há condições favoráveis de ampliar seus superlucros a começar por uma localização que assegure força de trabalho barata e disponível, matérias-primas, fontes de energia, incentivos fiscais, meios de comunicação suficientes para o acesso ao mercado mundial. 18 No pós-1989, “o PIB da Rússia caiu 17% em 1990-1, 19% em 1991-2, e 11% em 1992-3. (...) a Polônia tinha perdido mais de 21% de seu PIB em 1988-92; a Tchecoslováquia, quase 20%; a Romênia e a Bulgária, 30% ou mais. [Nesses países] sua produção industrial, em meados de 1992, estava entre metade e dois terços da de 1989 (Financial Times, 24/2/94. In: Hobsbawm, 1995, p. 395. 19 Ver a minuciosa e competente análise de Hobsbawm (1955) em a Era dos Extremos, a respeito da condição sócio-política do Terceiro Mundo, resultado da relação de subordinação ao centro capitalista. Para ele, “muito poucos Estados do Terceiro Mundo, de qualquer tamanho, atravessaram o período a partir de 1950 (ou data de sua fundação) sem revolução; golpes militares para suprimir, impedir ou promover revolução; ou alguma outra forma de conflito armado interno. As principais exceções até a data em que escrevo são a Índia e umas poucas colônias governadas por paternalistas autoritários e longevos [em Malavi e Costa do Marfim]. Essa persistente instabilidade social e política do Terceiro Mundo dava- lhe seu denominador comum” (p. 422). 31 Se, de um lado, nesses lugares, a crise põe uma grave depressão combinada com expulsão de força de trabalho viva, paralisando o PIB per capita com queda na produção e no poder aquisitivo da maioria da população, por outro, os países do leste da Ásia, incluindo a China – os denominados “países recentemente industrializados” (Newly Industrialized Countries – NICs) – experimentam um desempenho incomparável na economia mundial. O processo de desconcentração da produção industrial leva as chaminés e, conseqüentemente, uma semi-industrialização a Cingapura, Hong Kong, Coréia do Sul e Formosa/Taiwan por meio de unidades industriais modernas, controladas por conglomerados transnacionais do centro. De modo diverso do bloco latino-americano – México, Venezuela, Brasil e Argentina –, mas, carregando a essencialidade capitalista, com impulso na mesma época – nas décadas de 1960 e 1970 –, esta semi-industrialização dos pequenos “tigres” ou “dragões” asiáticos constitui-se em ramos industriais de bens de consumo, de baixo investimento tecnológico, voltados à exportação para os países do centro, condições que os torna em “plataformas de exportação”. Essa realidade reforça ainda mais as análises de Hobsbawm (1995) e de Mandel (1985) de que a “revolução tecnológica” de per si não dá conta de explicar os “anos dourados” nem o processo de reestruturação produtiva do capital no pós-1973, ou seja, os períodos de prosperidade e de crises cíclicas postas pelo grande capital, apesar de muitos pesquisadores teimarem em superdimensioná-la, uma vez que o processo de industrialização das grandes potências (EUA, Grã-Bretanha, Canadá, Alemanha Federal, França, Itália e Japão) sustenta-se, dentre outros, pela exportação de tecnologia obsoleta20 para os países não-hegemônicos no centro, os dos socialistas agrários e os da periferia. Precisamos entender por que a busca do lucro impulsiona a transformação tecnológica, e com ela, a economia do trabalho vivo. A sociedade capitalista volta à sua dinamicidade nas décadas finais do século XX, de modo mais lento, e as poucas grandes potências industriais “da primeira divisão” tornam-se mais ricas e mais produtivas do que no começo da década de 1970, exceto os EUA que, após 1976, são repostos indicadores do alargamento da sua perda de hegemonia (BELLUZZO & COUTINHO, 1998).21 20Na “Era de Ouro, embora fosse expressiva (...) [a] disseminação
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