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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA UMA RELEITURA DA TEORIA DAS FINANÇAS FUNCIONAIS GUSTAVO ANTÔNIO GALVÃO DOS SANTOS ORIENTADOR: FÁBIO N. P. DE FREITAS Rio de Janeiro 2005 2 UMA RELEITURA DA TEORIA DAS FINANÇAS FUNCIONAIS GUSTAVO ANTÔNIO GALVÃO DOS SANTOS Tese apresentada ao Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Economia. ORIENTADOR: FÁBIO N. P. DE FREITAS Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Economia Rio de Janeiro 2005 3 UMA RELEITURA DA TEORIA DAS FINANÇAS FUNCIONAIS GUSTAVO ANTÔNIOGALVÃO DOS SANTOS TERMO DE APROVAÇÃO Tese a ser defendida 31 de agosto 2005, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Economia, junto ao Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pela Banca Examinadora formada pelos professores: Prof. Fábio Freitas (Orientador) Prof. Carlos Lessa Prof. Franklin Serrano Prof. Carlos Pinkusfeld Bastos Prof. Antônio Henrique Pinheiro Silveira 4 Não sou imparcial. Sou parcial a tudo que prometa nos tirar desta triste rotina de oligarquias eternizadas e privilégios intocáveis, ou miséria eternizada e submissão intocável, e a esta outra triste rotina de governos de esquerda abatidos no nascedouro - quando não se autodestroem. E, claro, ao Internacional e ao Botafogo, mesmo quando não merecem. No Brasil, ser objetivo é quase uma forma de cumplicidade. Veríssimo > “Se a norma fundamental do discurso teórico é a adequação descritiva ou representativa – ou verdade – a norma fundamental do discurso prático é a consecução, realização ou satisfação dos desejos, necessidades e propósitos humanos. Se há razões reais (causas) para a crença ou ação, não devemos nos equivocar sobre elas, pois se fracassamos na verdade podemos igualmente fracassar na satisfação” (Bhaskar, 1978: 206; tradução livre baseada em Duayer e Medeiros, 2003). A propósito: na inauguração do governo Lula, num assomo de otimismo e bairrismo, elogiei todos os gaúchos do Ministério — Tarso, Olivio Dutra, Dilma Rouseff, Miguel Rosseto — e escrevi que, se desse errado, seria culpa dos paulistas. Estou pensando seriamente em comprar um turbante e me estabelecer como vidente. Veríssimo 5 Resumo Esta tese objetiva adaptar a teoria das finanças funcionais para a realidade dos países que sofrem de restrição externa ao crescimento. No primeiro capítulo, será exposto a teoria das finanças funcionais tal como proposta por Lerner. Nas finanças funcionais, a meta de pleno emprego com estabilidade de preços pode ser alcançada com apenas um instrumento: políticas (fiscais e monetárias) para manipulação da demanda doméstica. No segundo capítulo, serão desenvolvidas as teorias Lernerianas da inflação. Nesse capítulo, indicaremos as possíveis insuficiências dessas teorias por desconsiderar a relação entre desvalorização cambial e inflação e, conseqüentemente, a restrição externa. O terceiro capítulo buscará propor uma explicação alternativa sobre a evolução da taxa de câmbio e o papel dos juros no financiamento externo. Em particular, tentaremos mostrar que, em economias abertas, a autonomia da política monetária é muito maior do que normalmente se supõe. Essa teoria será útil para a reformulação das finanças funcionais no capítulo seguinte. No quarto capítulo, será proposta uma adaptação da teoria das finanças funcionais para a situação de restrição externa. A versão proposta das finanças funcionais possuirá seis instrumentos: (1) políticas de manipulação da demanda doméstica, (2) políticas industriais e de competitividade externa, (3) políticas de administração do movimento de capitais e de indução de financiamento externo, (4) política de infra-estrutura, (5) política anti- inflacionária e (6) política social. 6 Glossário CK = saldo na conta de capitais DCC = déficit em conta corrente BP = saldo do balanço de pagamentos R = variação de reservas cambiais AmE = saldo das amortizações dívidas de externas pagas DCC = déficit em conta corrente IDE = investimentos externos diretos líquidos EElp = saldo empréstimos externos de longo prazo tomados pelo setor privado EEG = empréstimos externos tomados pelo governo FFEcp = saldo das fontes de financiamento externo de curto prazo Rmín = compras mínimas de reservas cambiais pelo governo para recompor as reservas planejadas. R– = compras de reservas cambais acima do mínimo planejado Amcp = Saldo das amortizações pagas da dívida externa de curto prazo estoq. Elp = Elp – Amlp = crescimento do estoque de dívida externa de longo prazo NFE = DCC + AmE + Rmín NFE = Necessidade de Financiamento Externo NFED = NFE - IDE NFED = Necessidade de Financiamento Externo de Dívida NFEDcp = NFED – Eelp = – (fluxo estrutural de divisas) NFEDcp = Necessidade de Financiamento Externo de Dívida de curto prazo Pressão cambial = NFEDcp - FFEcp NFE estrutural = a NFE que se espera que obter, se forem adotadas políticas contracionistas aceitáveis para redução da NFE NFEDcp pós-desvalorização = NFEDcp que se espera obter, se o câmbio for desvalorizado dentro de patamares aceitáveis 7 Introdução A teoria das finanças funcionais propõe que o governo pode atingir a meta de pleno emprego com baixas taxas de inflação através simplesmente de políticas fiscais ou monetárias expansionistas e câmbio flutuante. Em países que sofrem restrição externa esse resultado não é possível. Os objetivos principais deste trabalho são: (1) mostrar porque a meta das finanças funcionais não é alcançável, nessas circunstâncias, com os instrumentos de política originalmente propostos e (2) identificar os instrumentos que tornariam essa meta atingível sob condições de restrição externa. A teoria econômica ortodoxa convencional acredita que o desemprego é, na pior das hipóteses, um evento fugaz. Essa teoria sofreu uma grande crise durante a grande depressão e manteve-se relativamente marginal por pelo menos três décadas. Nos anos 30, o alto e permanente desemprego não era apenas uma evidência inquestionável, ele “caía no colo” dos economistas cobrando soluções. No entanto, os conselhos dos economistas ortodoxos tradicionais não surtiam efeitos. Como sempre, esses só podiam dar a resposta usual: sugeriam que mantendo a disciplina fiscal, o que era praticamente impossível devido à redução da renda, em algum momento a atividade econômica iria se recuperar voltando ao equilíbrio. Se a proposta surtisse o efeito esperado, todos ficariam satisfeitos, caso contrário, a culpa seria dos governantes que não esperaram tempo suficiente ou não tiveram a disciplina necessária em suas contas fiscais. No entanto, dessa vez, o problema era muito grave para esperar que o mundo se adaptasse às abstrações dos economistas ortodoxos. Os governos da maioria os países foram obrigados a adotar soluções ad hoc contrárias a seus conselhos. Freqüentemente essas soluções surtiram efeitos positivos, o que tornava a práticapolítica cada vez mais distante da teoria econômica. Keynes escreveu em 1936 sua ‘Teoria Geral’, oferecendo uma explicação inovadora e satisfatória para a existência de desemprego. Em pouco tempo revolucionaria a disciplina e toda gestão de política econômica. O autor sugeriu que a falta de trabalho poderia ser combatida com políticas fiscais ou monetárias expansionistas. 8 Inicialmente, apesar da grande atenção despertada, havia uma importante dúvida. Como operar uma política de aumento dos gastos públicos, se na depressão a arrecadação de impostos estava muito reduzida e não havia superávit público? Abba Lerner, no início dos anos 40, foi o primeiro a responder a essa pergunta e assim preencher a principal lacuna que faltava para difundir a revolução keynesiana. Abba Lerner buscou, antes de tudo, mostrar que não existiria qualquer empecilho de ordem fiscal, contábil-fiscal ou de grau de endividamento público que pudesse impedir a economia de alcançar o pleno emprego. Ele chamou essa teoria de finanças funcionais. Essa teoria ajudou a dar a segurança que faltava aos keynesianos em relação às possibilidades da política fiscal. Esses economistas puderam assim preparar o espírito de sua época para receber o arcabouço de gestão macroeconômica que ajudou a construir a chamada de era de ouro do capitalismo, nos 25 anos seguintes à segunda guerra mundial. O sucesso econômico e social sustentou um forte otimismo nos países industrializados. Esse otimismo transbordou as fronteiras e chegou ao terceiro mundo, que naqueles anos, chegou a achar que o desenvolvimento era possível. Essa crença ajudou a sustentar as políticas que fizeram com que o Brasil tivesse a mais alta taxa de crescimento do mundo. Hoje, a realidade brasileira é muito diferente. Vivemos uma profunda crise social e sem qualquer perspectiva de melhoria. O setor privado não pode resolver essa situação, pois só pode gerar empregos se houver demanda. Como nos anos 30, só o governo pode dar a resposta necessária. Essa proposição implica que a continuidade da crise decorre da mediocridade das propostas de política econômica atuais. Essas propostas, antes de tudo, obrigam o governo limitar os investimentos públicos e os gastos sociais ao mínimo, para que sejam garantidas metas contábeis-fiscais arbitrárias. A teoria das finanças funcionais faz falta nesses momentos. Ela poderia ser uma esperança. As finanças funcionais são muito coerentes com a política econômica que ajudou a sustentar o Estado do bem-estar social. Elas prometem a viabilidade do pleno emprego com baixa inflação. Se pudessem ser adaptadas à realidade dos países com crônica dificuldade de balanço de 9 pagamentos, em particular aos países subdesenvolvidos, poderiam ser uma luz na escuridão contemporânea. Entretanto, o subdesenvolvimento não foi o objetivo de Abba Lerner ao formular a teoria. As finanças funcionais pareciam, na época, se assentar como uma luva à realidade dos países industrializados. No entanto, é uma teoria que encontra dificuldades para explicar certos fenômenos, como as limitações à política econômica nos países subdesenvolvidos e certos processos inflacionários. Em geral, essas dificuldades estão relacionadas com a restrição externa. Dessa forma, esta tese objetiva adaptar a teoria das finanças funcionais para a realidade dos países que sofrem de restrição externa ao crescimento. No primeiro capítulo, vamos expor a teoria das finanças funcionais tal como proposta por Lerner. Nas finanças funcionais, a meta de pleno emprego com estabilidade de preços pode ser alcançada com apenas um instrumento: políticas (fiscais e monetárias) para manipulação da demanda doméstica. No segundo capítulo, serão desenvolvidas as teorias Lernerianas da inflação. A inflação é fundamental para as finanças funcionais. Nessa teoria, para manter a inflação controlada, bastaria manter o nível de atividade no nível, chamado por Lerner, de baixo pleno emprego. Essa proposição possui limitações. Nesse capítulo, indicaremos as possíveis insuficiências dessas teorias por desconsiderar a relação entre desvalorização cambial e inflação e, conseqüentemente, a restrição externa. Por dar pequena atenção à restrição externa e por ter feito suas propostas em um momento onde o controle de capitais era generalizado, Lerner acabou não considerando as possíveis limitações que as taxas de juros poderiam sofrer em decorrência dos movimentos de capitais. No mundo atual, a liberdade de movimento de capitais tem sido a regra. Nesse sentido, convém explicar as relações econômicas nessas circunstâncias, ainda que elas possam não ser a política ideal. O terceiro capítulo buscará propor uma explicação alternativa sobre a evolução da taxa de câmbio e o papel dos juros para o financiamento externo sob essas condições. Em particular, tentaremos mostrar que, em economias abertas, a autonomia da política monetária é muito maior do que normalmente se supõe. 10 Essa teoria será útil para a reformulação das finanças funcionais no capítulo seguinte. No quarto capítulo, será proposta uma adaptação da teoria das finanças funcionais para a situação de restrição externa. Sob restrição externa e com liberdade de movimentos de capitais os desafios enfrentados pelos governos são maiores. Torna-se, assim, necessário a adoção de um maior número de metas intermediárias e, portanto, um maior número de instrumentos. Dessa forma, a versão proposta das finanças funcionais possuirá seis instrumentos: (1) políticas de manipulação da demanda doméstica, (2) políticas industriais e de competitividade externa, (3) políticas de administração do movimento de capitais e de indução de financiamento externo, (4) política de infra-estrutura, (5) política anti-inflacionária e (6) política social. 11 Índice INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 7 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 7 1º CAPÍTULO: FINANÇAS FUNCIONAIS SEGUNDO LERNER ....................... 14 1.1. A MOTIVAÇÃO PRIMEIRA DAS FINANÇAS FUNCIONAIS: .......................................... 14 1.2. AS FINANÇAS SAUDÁVEIS .................................................................................... 15 1.3. LERNER E A TEORIA DAS FINANÇAS FUNCIONAIS ................................................... 16 1.3.1. Lições de Lerner para as finanças públicas e política econômica .............. 22 “Lição 1: Pleno emprego, estabilidade de preços e um padrão de vida decente para todos são metas macroeconômicas fundamentais e é responsabilidade do Estado promover sua obtenção”. ........................................................................ 22 “Lição 2: As políticas devem ser julgadas pela sua habilidade em alcançar os objetivos para que elas foram projetadas e não qualquer noção sobre se elas são “saudáveis” ou se estão em conformidade com os dogmas da economia tradicional”. ........................................................................................................ 23 “Lição 3: ‘Dinheiro é uma Criatura do Estado’”. ............................................... 23 “Lição 4: Tributação não é uma operação de financiamento”. ........................... 27 “Lição 5: Emissão de dívida pública não é uma operação de financiamento”. .. 31 “Lição 6: O propósito primário da tributação é influenciar o comportamento do público”. ............................................................................................................. 31 “Lição 7: O propósito primário da vendade títulos de dívida pelo governo é regular a taxa de juros no overnight”. ................................................................ 32 “Lição 8: A venda de títulos seguem, ao invés de preceder, os gastos do governo”. ............................................................................................................ 37 “Lição 9: O ato de ‘Imprimir dinheiro’ em si mesmo não tem absolutamente nenhum impacto na economia”. ......................................................................... 38 “Lição 10: Sem uma política de pleno emprego, a sociedade não pode se beneficiar do avanço de tecnologias poupadoras de trabalho, o que é eficiente se torna ineficiente. Com uma política de pleno emprego, técnicas poupadoras de trabalho tornam-se verdadeiramente benéficas para a sociedade”. .................... 38 “Lição 11: Sem uma política de pleno emprego, um país pode ser prejudicado pelos resultados do seu saldo comercial. Com uma política de pleno emprego, não há necessidade de preocupação por se estar importando muito relativamente às exportações”. .................................................................................................. 39 “Lição 12: São contra-produtivas as tentativas de argumentar que o déficit e a dívida pública não são tão grandes quanto parecem, ou que se nós os medirmos de forma diferente ou se mantivermos uma conta de capital [no orçamento público], [ver-se-ia que os montantes dessas variáveis] não são realmente tão ruins”. ................................................................................................................. 40 “Lição 13: Quando há desemprego, postos de trabalho e moeda – e não recursos e bens – são escassos”. ....................................................................................... 41 “Lição 14: Finanças Funcionais não é uma política, mas um arcabouço dentro do qual todo um conjunto de políticas pode ser conduzido”. .................................. 41 “Lição 15: Para alcançar o [mais alto nível de] pleno emprego, gastos do governo podem ter que incluir criação de trabalho direto”. ............................... 42 1.3.2. Limites aos estoques de riqueza em papéis de dívida pública? ................... 42 CAPÍTULO 2: LIMITAÇÕES .................................................................................... 51 12 2.1. TEORIAS LERNERIANAS DE INFLAÇÃO .................................................................. 55 Conflito distributivo ................................................................................. 66 Aspectos políticos do (baixo) pleno emprego ............................................ 70 2.2. BALANÇO DE PAGAMENTOS E AS FINANÇAS FUNCIONAIS SEGUNDO LERNER ........ 75 2.2.1. Restrição externa .......................................................................................... 75 2.2.2. A visão otimista de Lerner ............................................................................ 77 2.2.3. Câmbio e Inflação ........................................................................................ 80 2.2.3.1. Inflação em economias abertas .............................................................. 81 2.2.3.2. Câmbio flutuante não elimina a restrição externa ................................. 89 2.2.3.3. Câmbio, pleno emprego e finanças funcionais ...................................... 92 CAPÍTULO 3: CÂMBIO, JUROS E FINANCIAMENTO EXTERNO ................. 94 3.1. TENDÊNCIAS DA TAXA DE CÂMBIO: A PRESSÃO CAMBIAL ..................................... 94 3.2. ELEVAÇÃO DOS JUROS NÃO ELIMINA A RESTRIÇÃO EXTERNA ............................. 113 3.2.1. A visão tradicional ..................................................................................... 114 3.2.1.1. Juros ..................................................................................................... 114 3.2.1.2. A opção pela paridade coberta............................................................. 117 3.2.1.3. Mobilidade imperfeita de capitais, substituição imperfeita de ativos, prêmio de risco e expectativa cambiais ............................................................ 119 3.1.2.4. Expectativas cambiais e prêmio de risco endógenos e função da curva BP? ................................................................................................................... 121 3.2.1.5. Curva BP e restrição externa ............................................................... 122 3.2.1.6. Questionamentos ................................................................................. 125 3.2.1.7. Explicações ortodoxas ......................................................................... 126 3.2.1.8. Juros altos para maximizar o crescimento? ......................................... 131 3.3. UMA NOVA VISÃO: OS JUROS SÃO ALTOS PORQUE SÃO ALTOS ............................ 133 3.3.1. Endogenidade do custo de oportunidade em moeda estrangeira .............. 133 3.3.1.1. Bresser-Nakano ................................................................................... 136 3.3.1.2. Cirne de Toledo ................................................................................... 141 3.3.2. Uma Crítica à paridade juros .................................................................... 145 3.3.2.1. introdução: Heterodoxia tradicional e paridade juros.......................... 145 3.3.2.2. Endogenidade do custo de proteção cambial ....................................... 147 3.3.2.3. Endogenidade do custo de proteção cambial e risco-país ................... 152 3.4. A variação dos juros pode ser mais importante do que o diferencial ........... 154 3.4.1. Diferencial de juros, fluxo ou estoque? .............................................. 155 3.4.2. Taxas de juros e o financiamento externo de curto prazo .................. 159 3.4.3. Pressão cambial e elevação dos juros ................................................. 160 3.4.3.1. Manipular os ganhos de capital: uma oportunidade para os especuladores e para a política econômica ............................................... 164 3.5. Elevação dos juros não é solução definitiva contra a pressão cambial ....... 171 3.6. Investimento externo direto, empréstimos de longo prazo e política de financiamento externo .......................................................................................... 181 3.6.1. A importância da solvência externa........................................................ 190 3.6.2. Política cambial e creditícia .................................................................... 205 3.6.2.1. Autonomia da política cambial ........................................................ 206 3.6.2.2. Política cambial e crédito de longo prazo ........................................ 208 3.6.2.2.1. Moeda forte .............................................................................. 208 3.6.2.2.2. Taxa de juros de longo prazo mínima ...................................... 208 3.6.2.2.3. Construção de uma moeda forte e de uma baixa taxa de juros de longo prazo ............................................................................................... 211 13 3.6.2.2.4. Política cambial, competitividade e crescimento ..................... 213 CAPÍTULO 4: FINANÇAS FUNCIONAIS SOB RESTRIÇÃO EXTERNA ...... 216 4.1. POR UMA PROPOSTA DE AMPLIAÇÃO DAS FINANÇAS FUNCIONAIS ....................... 217 4.2. A PROPOSTA ....................................................................................................... 225 4.3. POLÍTICA ANTI-INFLACIONÁRIA .......................................................................... 239 4.4. ADMINISTRAÇÃO DA PRESSÃO CAMBIAL ............................................................. 2444.4.1. NFEDcp, pressão cambial, juros e inflação: uma retrospectiva ............... 247 4.4.2. Financiamento de curto prazo da NFEDcp: solução ágil mas temporária 253 4.4.2.1. Políticas mais adequadas para financiamento de curto prazo da NFEDcp .......................................................................................................................... 254 4.4.2.2. Não existe diferencial mínimo para as taxas de juros no curto prazo . 259 4.4.2.3. Políticas ineficientes, mas potencialmente complementares em períodos críticos .............................................................................................................. 263 4.4.3. Políticas de financiamento da NFEDcp com emissão de dívida pública externa .................................................................................................................. 266 4.4.4. Políticas de redução da NFEDcp ............................................................... 267 4.5. POLÍTICAS PARA DESLOCAMENTO DA RESTRIÇÃO EXTERNA................................ 270 4.5.1. Políticas industriais e comerciais ............................................................ 272 4.5.2. Política cambial e creditícia .................................................................... 277 4.5.2.1. Autonomia da política cambial ........................................................ 278 4.5.2.2. Política cambial e crédito de longo prazo ........................................ 280 4.5.2.2.1. Moeda forte .............................................................................. 280 4.5.2.2.2. Taxa de juros de longo prazo mínima ...................................... 281 4.5.2.2.3. Construção de uma moeda forte e de uma baixa taxa de juros de longo prazo ............................................................................................... 284 4.5.2.2.4. Política cambial, competitividade e crescimento ..................... 285 4.6. POLÍTICA DE INFRA-ESTRUTURA ......................................................................... 288 4.7. POLÍTICAS DE DEMANDA E EMPREGO .................................................................. 291 4.8. POLÍTICA SOCIAL ................................................................................................ 294 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 296 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 301 14 1º Capítulo: Finanças Funcionais segundo Lerner Keynes: “Sugerir à City de Londres uma ação social para o bem público é como discutir a Origem das Espécies com um bispo, sessenta anos atrás. A primeira reação não é intelectual, mas moral. É uma ortodoxia que está em questão e, quanto mais persuasivo os argumentos, mais grave será a ofensa.” 1.1. A motivação primeira das finanças funcionais: “‘Fogo’, diz o velho provérbio, ‘é um bom servo, mas um mal mestre’. Isto é verdade não somente para o fogo, mas para todo instrumento que tenha sido projetado para ajudar o homem a alcançar seus fins. Quando o uso de algum instrumento se torna habitual, as pessoas tendem a esquecer os propósitos para que eles foram estabelecidos, os meios usurpam o status de fins, e nós freqüentemente temos o próprio fim sacrificado [em benefício] ao meio originalmente projeto para servi-lo. (...) A elevação do meio a um fim pode constituir a base da tragédia do fanatismo ou idolatria. (...) Na economia nacional nos temos visto isto na elevação do mecanismo de orçamento de um instrumento que tinha um papel a cumprir na saúde econômica em um princípio de equilibrar o orçamento em cujos pés a melhor saúde da economia pode ser oferecida como um sacrifício [em sinal] de devoção” (Lerner, 1951: 342). A revolução keynesiana indicava novas esperanças para a solução dos graves problemas econômicos e sociais no final dos anos 30. Mas naquele momento ainda era uma teoria pouco difundida e muito controversa. De um lado, Keynes sugeria políticas fiscais mais ativas, que, por acaso, se pareciam com as empreendidas pelos países mais bem-sucedidos em reduzir o desemprego, em especial, com as políticas encampadas por Roosevelt no programa do New Deal. Entretanto, tais políticas sofriam uma forte oposição nos EUA e em outros lugares. Na própria academia não era fácil defender, por exemplo, políticas de déficit público exercidas por longos períodos. A política e a academia, naquela época, eram dominadas pela doutrina que Lerner chamou de Finanças Saudáveis. As finanças saudáveis diziam que os governos deveriam buscar decisivamente o equilíbrio orçamentário e restringir a expansão do endividamento público. Essas doutrinas certamente batiam de frente com as novas esperanças keynesianas. Para os keynesianos, era necessário saber quando, como e em que montante seria possível expandir 15 os gastos públicos para induzir a economia a sair da recessão e eliminar o desemprego. Provavelmente o principal objetivo de Lerner ao construir sua teoria das Finanças Funcionais tenha sido mostrar quais seriam as reais limitações ao gasto e endividamento públicos. Esse objetivo está relacionado à escolha do nome dessa teoria. As Finanças Funcionais são, antes de tudo, uma crítica às Finanças Saudáveis. Mas não apenas uma crítica à teoria econômica ortodoxa em que se baseia as Finanças Saudáveis. Lerner visava criticar também a incoerência dos keynesianos e população em geral quando acreditam ao mesmo tempo nas Finanças Saudáveis e na possibilidade de desemprego estável. As finanças saudáveis só seriam uma política funcional, se fossem válidas as premissas ortodoxas, em particular a tendência automática e rápida para o pleno emprego. Se existe desemprego crônico, as finanças saudáveis se tornam irracionais. Entretanto, os keynesianos, e mesmo Keynes, a princípio, não percebiam claramente essa incoerência. Lerner completou a revolução keynesiana ao tornar as teorias das finanças públicas coerentes e, portanto, funcionais com a premissa de desemprego estável. As finanças funcionais são apenas o keynesianismo levado às últimas conseqüências. 1.2. As Finanças Saudáveis “A irresponsabilidade praticada hoje, em qualquer nível de governo, resultará amanhã em mais impostos, em menos investimentos, ou em mais inflação, que é entre os impostos, o mais perverso, pois incide sobre os mais pobres. O governo não fabrica dinheiro. Esta afirmação pode parecer óbvia para alguns. Mas não para aqueles que administram contas públicas gastando mais do que arrecadam. Deixando dívidas para seus sucessores e assumindo compromissos que sabem, de antemão, não poderão honrar. É esse tipo de postura, danosa para o País, que vai ser coibida pela Lei de Responsabilidade fiscal” (Martus Tavares, 2000) 1 . “A analogia pode ser usada como inspiração, não como argumento” (Lerner, 1951: 270). “Como outras ‘verdades auto-evidentes’, o axioma é aceitável somente enquanto alguém não pensa em questioná-lo.” (Lerner, 1951: 344) 1 Discurso do economista e do Ministro do Planejamento, Martus Tavares, no ato de sanção da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 04 de maio de 2000. 16 A doutrina econômica ortodoxa, onde se fundamenta toda a defesa dos chamados orçamentos “equilibrados”, se baseia na premissa de que a economia está sempre em pleno emprego ou que ela tende automaticamente e com a rapidez adequada para o pleno emprego. Dessa forma, para que seja possível o aumento dos gastos públicos é necessário que haja redução dos gastos privados de tal forma que os fatoresde produção que seriam utilizados na produção de bens e serviços para o setor privado pudessem ser usados para produzir bens e serviços para o setor público. A queda dos gastos privados ocorreria, mesmo que os gastos públicos não viessem acompanhados por aumento dos impostos. Caso o “financiamento” desse gasto não seja feito por meio de aumento dos impostos, a redução dos gastos privados ocorrerá por meio do aumento da taxa de juros ou do “imposto inflacionário”. Nessa perspectiva, o governo não pode aumentar o nível de renda de longo prazo, reduzir a taxa de juros real e diminuir a relação dívida pública/ base monetária. O governo, então, a não ser pela sua capacidade de elevar a carga tributária, seria como qualquer outro agente econômico. Se a economia está sempre no pleno emprego, a expansão de quaisquer gastos implica na redução de outros ou no aumento no volume trabalhado no presente e, provavelmente, uma proporcional redução no futuro. Nessa situação, os gastos públicos sempre implicam em dilemas (trade-offs) e os déficits possuem sempre um custo social. Lerner chamou o arcabouço argumentativo que defende a necessidade de orçamentos públicos com saldos nulos ou tendendo a zero de finanças saudáveis, em referência aos próprios expoentes da mesma, que propõem que seja “saudável” a manutenção de saldo nulos entre as contas de gasto e de receitas fiscais dos governos. 1.3. Lerner e a teoria das finanças funcionais 17 As Finanças Funcionais proposta originalmente por Abba Lerner é “meramente a consciente adoção pelo governo da responsabilidade de prevenção da inflação e [ do desemprego]” (Lerner, 1951: 136) Para se compreender os instrumentos propostos pelo autor é necessário, antes de tudo, reconhecer as conseqüências da liberdade e do monopólio estatal de emissão de moeda. Não há referências de economia com possibilidade de livre acesso à emissão de moeda na civilização ocidental. Se qualquer um pudesse produzir moeda homogênea a partir apenas do próprio trabalho, não haveria desemprego2. Entretanto, o mesmo pode não acontecer se a oferta de moeda é monopolizada, pelo governo, bancos ou mineradoras de ouro. Não há, no mundo real, garantias de que todos que queiram trabalhar conseguirão empregos. O emprego total depende no nível de gasto total. Mas nada garante que o nível de gasto total será exatamente o necessário para empregar todos os demandantes de postos de trabalho. O setor privado não pode ser responsabilizado por não realizar um volume de gasto o suficiente acabar com o desemprego. Dessa forma, nas sociedades modernas, “o desemprego surge como conseqüência quando o governo gasta muito pouco” (Wray: 210) “Porque o público necessita do dinheiro do governo (...), ele vai querer fornecer coisas para o governo a fim de obter ‘aquilo necessário para pagar impostos’ [aneppi]. Assim como as pessoas lutariam para obter peles de castor se estas fossem o [aneppi] exigido, os cidadãos nas economias modernas esforçam-se para obter moeda a fim de pagar os tributos. Isso significa que o governo pode, se assim escolher, estabelecer os termos em que a moeda pode ser obtida (isto é, o esforço necessário para obtê-la). Não teria sentido para o governo impor um tributo e depois recusar-se a oferecer a moeda necessária, pois isso poderia significar a prisão dos cidadãos por evasão fiscal! No mínimo, o governo terá de assegurar a oferta de um montante de moeda igual às obrigações tributárias a longo prazo. Na verdade, provavelmente, poderia, sem perigo, fornecer mais moeda que o estritamente necessário para os tributos. Muitos cidadãos ficariam felizes de acumular pequenas reservas de moeda extra num dado ano, para o caso de ser mais difícil obter moeda nos anos seguintes, e também para o caso de 2 É preciso sublinhar que essa idéia nada tem em comum com a proposta ultra-liberal de propor que cada cidadão possa emitir sua própria moeda plenamente fiduciária. De acordo com a teoria cartalista, esse tipo de sistema não poderia funcionar, porque não haveria um motivo para a demanda primária de moeda dos diversos agentes, pois eles não cobram impostos. E se o governo aceitasse a moeda de qualquer um como pagamento de impostos, haveria fortes incentivos à super-emissão. E ainda que fossem criados mecanismos acessórios para tornar essa proposta viável, ela ainda seria concentradora de renda e poder, pois apenas bancos e grandes capitalistas poderiam emitir com liberdade moeda fiduciária confiável. Certamente os desempregados não poderiam. A moeda não seria homogênea, sua capacidade de manter poder de compra dependeria do seu emissor. 18 perder algum dinheiro na troca. O caso ‘normal’, então, é o governo ‘incorrer em déficit’, isto é, fornecer mais moeda do que ele recolhe em tributos” (idem: 23). O déficit público é fundamental para atender as demandas das pessoas, bancos e empresas por moedas para transacionarem ou entesourarem3. Em uma visão de finanças funcionais, o déficit público não é necessário simplesmente para prover a demanda por moeda. Ele é necessário para prover a “demanda” por renda dos desempregados. Um desempregado sem patrimônio também “demanda moeda”. Mas a menos que a falta de emprego, bens e capacidade de pagamento não seja qualquer empecilho à obtenção de crédito, esse moeda só pode ser obtida com renda monetária. Os desempregados como um todo não podem por si próprios solucionar seus problemas, pois o que podem oferecer – trabalho – já está com a demanda completamente atendida. Para eles não resolve virar “camelô” ou fazer artesanato em casa, a demanda por esses serviços ou bens é uma fração relativamente estável da demanda agregada. Mas a demanda agregada não pode ser aumentada sensivelmente pelos próprios desempregados. Existe um nível de gasto na economia que gera pleno emprego. Mas, como mostram as teorias keynesianas em suas várias vertentes, nada garante que tal nível de gasto agregado possa ser alcançado automática ou “naturalmente”. Volumes de gasto agregados inferiores ou superiores ao requerido pela situação de pleno emprego podem muito bem ser estáveis ou mesmo ser instáveis com tendência contrária à sugerida pela macroeconomia ortodoxa. Lerner (1951: 124-5) faz questão de ressaltar que mesmo se o setor privado estivesse totalmente consciente da necessidade de manipulação do gasto agregado, não seria possível manter a economia em pleno emprego sem a ação pública. O interesse individual de gastar ou não gastar raramente vai 3 É preciso lembrar que o déficit público não é a única forma que o governo tem para oferecer moeda estatal para o setor privado. Ele também pode fazer isso comprando ativos do setor privado, sejam eles de emissão pública ou privada. Entretanto, se o governo mantiver o superávit fiscal indefinidamente, acabará comprando todos os ativos do setor privado. Nesse caso, a economia acabaria se tornando toda estatal (para espanto dos liberais defensores do superávit fiscal). 19 coincidir com o interesse social de manter o pleno emprego e a inflação controlada. Nessa situação, o governo não pode se eximir de sua responsabilidade com essas duas importantes demandas coletivas. “A primeira responsabilidade do governo (visto que ninguém mais pode assumir essa responsabilidade) é manter a taxa total de dispêndio no país em bens e serviços nem maior nem menor que a taxa que, a preços correntes, compraria todos os bens que é possível produzir” (Lerner, 1941; apud. Wray, 1998)4. As Finanças Funcionais partem do princípio de que o ajuste pelo governo do nível de gastosda economia torna possível a manutenção do nível de pleno emprego com taxas controladas de inflação. Dessa forma, a variável chave5 da teoria das Finanças Funcionais é o gasto agregado. Controlando o nível de gasto agregado, pode-se evitar simultaneamente ambos malefícios macroeconômicos, inflação e desemprego. Segundo Lerner (1951: 126), o governo possui 3 pares de instrumentos para ajuste do nível de gasto agregado: 1) Comprar e vender bens 2) Pagar transferências e tributar dinheiro dos cidadãos 3) Emprestar e tomar emprestado dinheiro Esses seis instrumentos são exaustivos. “Eles incluem tudo que o governo pode fazer para influenciar ou compensar [faltas ou excessos em relação ao] nível de gasto total” (idem: 127-8). Todos esses instrumentos podem ser usados de forma independente. Não há, a priori, qualquer necessidade de complementaridade entre esses instrumentos. Todavia, as Finanças “Saudáveis” insistem em só pensar esses instrumentos de forma combinada, a partir da “idéia de que o propósito de usar um dos instrumentos seja tornar possível o uso de um outro instrumento, usualmente [quando] esse último tende a neutralizar o efeito do primeiro [sobre o gasto agregado]” (grifo nosso; idem: 130). Por exemplo, as finanças “saudáveis” supõem que a tributação prévia ou tomar dinheiro emprestado sejam necessários para a viabilização do gasto público. Mas a proposição inversa – a tributação só deve ser feita, se 4 É interessante observar a forte oposição que existe entre essa noção de responsabilidade e a que está da Lei de Responsabilidade Fiscal e que é bem resumida no discurso de Martus Tavares citado na epígrafe da Introdução deste trabalho. 5 Ou meta intermediária na terminologia de Tinbergen (1967). 20 acompanhada de gasto – também pode ser sugerida pelos seus defensores. “Alguns escritores de finanças públicas vão tão longe a ponto de dizer que o único propósito legítimo da tributação é obter dinheiro para o gasto do governo e que a taxação por qualquer outro propósito é somente um tipo de perversão ou uso impróprio dos instrumentos tributários, estigmatizados [nesse caso] como ‘não fiscais’” (grifo nosso; idem: 130). Os defensores das finanças saudáveis também podem vincular à tomada de empréstimos pelo governo com gastos. “A noção de que a tomada de empréstimos pelo governo seja inflacionária, o que é muito comum, deriva da combinação de emissão de dívida com gastos governamentais” (idem: 132). De acordo com Lerner (idem: 128-9), essa necessidade de pensar de forma combinada as finanças públicas gera confusão e distorção. As Finanças Funcionais propõem a utilização de alguma combinação dos seis instrumentos fiscais para alcançar o nível de gasto agregado que permita a economia manter os objetivo de pleno emprego sem afetar o objetivo de controle da inflação. Essa é a essência da proposta de Lerner. Convém destacar que, para Lerner, o grau de emprego que é possível atingir com essa política pode ser tanto o que o autor chama de nível de baixo pleno emprego, quanto o nível de alto pleno emprego. Lerner (1951) propõe esses dois conceitos para explicar a relação entre nível de gasto, emprego e inflação. O nível de alto pleno emprego é definido pelo ponto onde só existe o chamado desemprego friccional. O autor sugere que nesse ponto o número de vagas de emprego abertas é igual ao número de desempregados. O nível de baixo pleno emprego é o que interessa às finanças funcionais. Esse nível é determinado no ponto onde o crescimento da demanda por trabalhadores acabará causando inflação de salários e preços. Na verdade, para Lerner (1951) é possível que a economia ultrapasse o nível de baixo pleno emprego sem que isso implique numa espiral inflacionária. Porém, esse seria o máximo de emprego que se poderia atingir apenas com instrumentos atuam sobre os gastos domésticos. Esses conceitos serão mais profundamente discutidos no capítulo 2. Em oposição às Finanças Funcionais, tem-se em geral o fetichismo do orçamento “equilibrado”, proposto como objetivo primordial das Finanças 21 “Saudáveis”. Apesar do fetichismo do discurso não acadêmico das finanças públicas convencionais, na verdade, o orçamento “equilibrado” só poderia mesmo ser tratado nas teorias acadêmicas como instrumento e não como fim. Dessa forma, o orçamento “equilibrado” se opõe como meio aos três pares de instrumentos fiscais citados por Lerner. A diferença conceitual fundamental entre as duas abordagens está na teoria da inflação. Lerner não considera que o orçamento equilibrado seja uma medida necessária e nem mesmo eficaz contra a inflação. Assim, podemos dizer que a teoria da inflação é também fundamental para a compreensão do conceito de Finanças Funcionais e afastar qualquer temor de que essas sejam inflacionárias. Não é demais lembrar que as Finanças Funcionais têm no combate à inflação um dos seus dois objetivos prioritários. Abandoná-la em prol do orçamento equilibrado pelo temor da inflação seria como “sacrificar o objetivo em benefício de um alegado meio de alcançar o próprio [objetivo]” (Lerner, 1951: 131). Como vimos, as Finanças Funcionais propõem apenas a liberdade para a utilização dos seis instrumentos fiscais disponíveis com os objetivos de alcançar o pleno emprego e a estabilidade do custo de vida. Vimos também que a proposta de Abba Lerner contrasta com a visão tradicional de finanças públicas que tem como meta o orçamento “equilibrado”, como política necessária de combate à inflação. Porém, a teoria que propõe a independência dos seis instrumentos fiscais mostra que o déficit não é nem necessário e nem suficiente para combater a inflação. Resumindo: “Finanças Funcionais rejeitam completamente doutrinas tradicionais de “finanças saudáveis” e o princípio de tentar equilibrar o orçamento durante um ano solar ou qualquer outro período arbitrário. Em seu lugar, prescreve: primeiro o ajustamento do dispêndio total (por todos na economia, incluindo o governo) a fim de eliminar tanto o desemprego quanto a inflação, usando o dispêndio governamental quando o dispêndio total é muito baixo e a tributação quando o dispêndio total é muito alto; segundo, o ajustamento da quantidade de dinheiro e de títulos governamentais em poder do público, pela tomada de empréstimos ou pagamento de dívida, a fim de alcançar a taxa de juros que resulta no nível mais desejável de investimento; e, terceiro, a impressão, armazenamento ou destruição de moeda à medida que for necessário para implementar as duas primeiras partes do programa” (Wray, 1998: 41) Esses princípios são suficientes para a compreensão básica das Finanças Funcionais. Mas podemos ir além e conhecer mais nuances e possibilidades dessa teoria. 22 1.3.1. Lições de Lerner para as finanças públicas e política econômica Nesta seção, pretendemos desenvolver um pouco mais profundamente o pensamento de Abba Lerner. Para isso, vamos nos basear no trabalho de Forstater (1999), que propõe 15 lições de Lerner para as finanças públicas e a política econômica em geral. “Lição 1: Pleno emprego, estabilidade de preços e um padrão de vida decente para todos são metas macroeconômicas fundamentais e é responsabilidade do Estado promover sua obtenção”. Essa proposição pode parecer óbvia para alguns, mas certamente não é para muitos, em particular para os defensores do laissez-faire. Para quem aceita a premissa dos “mercados perfeitos”, ou para quem considera que a intervenção pública tende sempre a ser desastrosa6, o Estado não deve assumir de forma ativa essa responsabilidade, usando plenamente os poderesde que dispõe. Essa divergência é especialmente grave no que tange à meta de pleno emprego. Os economistas ortodoxos não-keynesianos chegam ao ponto de questionarem até a existência de desemprego prolongado, e, às vezes, até mesmo a possibilidade de qualquer desemprego involuntário. O Estado não pode assumir a responsabilidade sobre algum problema que não existe ou que é apenas efêmero e auto-solucionável. Lerner (1941) diz que essa posição significaria eximir a coletividade de assumir o “volante da economia”. O pleno emprego, em particular, deveria ser um objetivo a ser considerado com mais seriedade. Para o autor, “os ganhos econômicos derivados do pleno emprego são enormes” (Lerner, 1951: 31-2). “Isso inclui evitar perdas permanentes na produção de bens e serviços, mas também custos sociais advindos de maior criminalidade, doenças, [etc]” (Forstater, 1999: 1). O pleno emprego aumenta a eficiência econômica ao permitir que os trabalhadores tenham confiança em procurar outros empregos em que se sintam mais realizados e onde possam utilizar melhor seus conhecimentos. 6 Ou que seja pior inclusive que as falhas de mercado. 23 “Isso frequentemente significa mover de empregos com menor produtividade para empregos com maior produtividade” (Lerner, 1951: 32). No entanto, os ganhos sociais são muito mais importantes do que os ganhos econômicos (Lerner, 1951: 33). Esses ganhos incluem a redução da discriminação na contração de trabalhadores, maior estabilidade social e política e maior confiança na democracia (Lerner, 1951: 31-7). “Lição 2: As políticas devem ser julgadas pela sua habilidade em alcançar os objetivos para que elas foram projetadas e não qualquer noção sobre se elas são “saudáveis” ou se estão em conformidade com os dogmas da economia tradicional”. Esse é explicitamente o princípio metodológico das Finanças Funcionais. “A idéia central é que a política fiscal do governo, seu dispêndio e tributação, sua tomada e amortização de empréstimos, sua emissão de nova moeda e sua retirada de moeda [do mercado] serão todos tratados tendo exclusivamente em vista os resultados destas ações na economia, e não em alguma doutrina tradicional estabelecida sobre o que é ou não saudável. Esse critério de julgamento somente pelos efeitos tem sido aplicado em muitos outros campos da atividade humana, onde ele é conhecido como o método da ciência em oposição à escolástica. O critério de julgamento das medidas fiscais pelo modo em que operam ou funcionam na economia nós podemos chamar de Finanças Funcionais (...). Isso significa que déficit, emissão de dívida, impressão de dinheiro etc, não são por si por próprios nem bons nem maus, eles são simplesmente os meios para alcançar os fins do pleno emprego e da estabilidade de preços” (Lerner, 1943: 354; apud Forstater, 1999: 2). A teoria das Finanças Funcionais mostra que não há inerentemente nada de bom ou ruim no volume de déficit, dívida pública, tributação, gastos. Se o volume dessas variáveis “conflitam com os princípios das ‘finanças saudáveis’ ou com o ‘equilíbrio’ do orçamento ou com a limitação ao crescimento da dívida pública, tanto pior para esses princípios” (Lerner, 1951: 11; apud Forstater, 1999: 3). “Lição 3: ‘Dinheiro é uma Criatura do Estado’”. “De acordo com Knapp, os metalistas [e hoje os economistas ortodoxos] tentam ‘deduzir’ o sistema monetário ‘sem a idéia de um Estado’. Isso acredita ele, é um ‘absurdo’, porque ‘a moeda de um Estado’ é aquela que é ‘aceita nos guichês de pagamento dos tributos públicos’ (Knapp, 1924). É pois impossível separar a teoria monetária da teoria do Estado” (Wray, 1998: 43). 24 “Knapp aceita como ‘moeda’ – exatamente como penso – qualquer coisa que o Estado se compromete a aceitar em seus guichês de pagamento [de tributos], seja ou não declarada de curso legal entre os cidadãos” (Keynes: 1930: 6-7). Em uma economia normal funcionando bem, o dinheiro é uma criatura do Estado. Sua aceitação geral, que é seu atributo fundamental, decorre da sua aceitação pelo Estado. (tradução livre; Lerner, 1947; 313, citado por Forstater, 1999). Defendemos que o déficit público não seja a causa da inflação, ou seja, que o governo pode gastar mais do que arrecada sem ultrapassar suas “metas” de inflação. Aceita essa proposição, a pergunta que imediatamente vem à cabeça é: “então, por que o governo cobra impostos das pessoas?”. A resposta mais direta possível é: o governo cobra impostos das pessoas para definir o que é moeda e criar a razão primária para que as pessoas a demandem. “O Estado moderno impõe e obtém pela força uma contribuição tributária de seus cidadãos, e, importante, escolhe ‘aquilo que é necessário para pagar [impostos (aneppi)]” (Wray, 1998: 22). O que ele definiu como aneppi será por nomeação e de fato a moeda. Se não houvesse impostos para pagar ou se os impostos fossem cobrados em mercadorias ou em outras “moedas” que não as emitidas pelo Banco Central, em algum tempo as pessoas iriam perceber que aqueles pedaços de papel assinados e garantidos por aqueles austeros e confiáveis presidentes de Banco Central não tinham nenhum valor, mesmo se o valor das receitas do governo (cobradas em outras “moedas”) fossem muitas vezes superiores a suas despesas. Nessa situação, uma tentativa mais generalizada de especulação com algum ativo transformaria o valor da moeda em pó como um passe de mágica. O mesmo não poderia acontecer com uma moeda que fosse aceita como pagamento de impostos. Se por acaso, as pessoas acreditarem realmente que o governo não pode gastar mais do que arrecada e acharem que os pedaços de papel denominados de dinheiro não têm valor intrínseco, poderão tentar especular com outro ativo antes que “todos percebam que os pedaços de papel não têm valor”. Nesse caso, a tentativa de especular com mercadorias levará muito mais a aumento da produção e dos impostos e menos em aumento da inflação. Se a 25 especulação se concentrar em poucas mercadorias haveria aumento maiores nos preços delas, na verdade, seria uma mudança de preço relativo. Mas o impacto na inflação ficaria restrito ao peso de tais mercadorias no índice de preços. Se a especulação se concentrar em muitas mercadorias o impacto recairia quase exclusivamente sobre a produção, pelo menos enquanto a economia não estiver em pleno emprego. Se a especulação recair sobre um ativo financeiro qualquer, como ações, não haveria maiores impactos sobre a inflação. Apenas se a especulação recair sobre moeda estrangeira, poderia haver problemas sobre a taxa de inflação, mas essa relação será explicada no segundo capítulo. A moeda tem valor intrínseco, não como as mercadorias, mas como os direitos de propriedade. Em última instância, se ninguém confiar nela, pelo menos salva da prisão por sonegação aqueles que tiveram rendas monetárias e ainda não depositaram suas obrigações fiscais. O que o governo define como “aquilo necessário para pagar impostos” – aneppi – terá valor. Os aneppis serão demandados pelas pessoas que precisam pagar impostos e por aquelas que sabem que podem trocá-los por bens e serviços oferecidos pelas pessoas que pagam impostos e pelas outras pessoas que também sabem que os contribuintes demandam dinheiro etc. Da mesma forma, se o governo escolhe outra coisa para ser aneppi, essa coisa passará a ter valor, ainda que não possua qualquer valor de uso. Enquanto isso, a antiga moeda aos poucos perderá completamente o valor; ou, se for uma mercadoria com valor de uso, terá seu valor definido pelo custo de produção mais a margem de lucro de seus produtores. Provavelmente,a primeira apresentação completa dessa teoria foi descrita pela abordagem cartalista desenvolvida por Knapp. “Na abordagem cartalista, o dinheiro é uma criatura do Estado; ao menos no caso do dinheiro moderno, sendo difícil de ocorrer exemplos de dinheiro sem Estado. O Estado define dinheiro como aquilo que aceita nos guichês públicos de pagamento (principalmente em pagamento de tributos). Isto tem importantes implicações políticas. Uma vez que o Estado impõe um tributo aos seus cidadãos, pagável numa moeda sobre a qual tem um monopólio de emissão, ele pode influenciar o valor daquela moeda estabelecendo as condições sob as quais a população pode obtê-la. O governo não tem ‘necessidade’ do dinheiro do público para gastar; ao contrário, o público necessita do dinheiro do governo para pagar tributos. Isso significa que o governo pode ‘comprar’ qualquer coisa que esteja à venda em termos de seu dinheiro, apenas pelo fornecimento desse dinheiro”. (Wray, 1998: 38). 26 Abba Lerner seguia a abordagem cartalista, como pode ser constatado em seus escritos. “O Estado moderno pode, em geral, tornar moeda qualquer coisa que escolha aceitável como moeda (...). É verdade que uma simples declaração de que isto ou aquilo é moeda não funcionará, mesmo se apoiada pela evidência constitucional mais convincente da soberania absoluta do Estado. Mas, se o Estado está pretendendo aceitar a moeda proposta em pagamento de tributos ou de outras obrigações para consigo, a mágica está feita. Qualquer um que tenha obrigações para com o Estado desejará aceitar os pedaços de papel com que pode pagar obrigações, e todas as outras pessoas desejarão aceitar estes pedaços de papel porque sabem que os contribuintes, etc, por sua vez, os aceitarão” (Lerner, 1947: 313; tradução livre). Keynes também era um assumido seguidor da teoria cartalista de Knapp. De acordo com Keynes (1930: 3, citado por Wray, 1998: 49), a “moeda de conta” é o “principal conceito” de uma teoria monetária; o dinheiro de conta “surge junto com as dívidas que são contratos de pagamento diferido, e as listas de preços, que são ofertas de contratos para compra e venda”. Por sua vez, “o próprio dinheiro, principalmente aquele com o qual é mantido um estoque de poder de compra geral, deriva sua natureza das suas relações com a moeda-de-conta, desde que dívidas e preços tenham sido primeiro expressos em termos desta última” (idem). Mais adiante, esclarece a distinção entre dinheiro e moeda-de-conta: “moeda-de-conta é a descrição ou denominação e o dinheiro é aquilo que corresponde à descrição” (idem: 3-4). Como Knapp, Keynes defende que o Estado determina tanto o que serve como moeda-de-conta, quanto estabelece “a coisa” que será aceita como dinheiro. “O Estado, portanto, atua, em primeiro lugar, como a autoridade legal que obriga o pagamento da coisa que corresponde ao nome ou descrição nos contratos. Mas atua uma segunda vez quando, além disso, invoca o direito de determinar e declarar que coisa corresponde ao nome, e mudar sua declaração de tempos em tempos – quando, por assim dizer, ele invoca o direito de reeditar o dicionário. Este direito é invocado por todos os Estados modernos e vem sendo invocado há quatro mil anos pelo menos” (Keynes, 1930: 4; citado por Wray: 49). O Estado “invocou o direito não apenas de impor o dicionário, mas também de escrever o dicionário” (Keynes, 1930: 5; citado por Wray: 49-50). “Em resumo, com a evolução do Estado moderno, o dinheiro de conta (‘a descrição’) é escolhido pelo Estado, que é livre para escolher o que qualificará como moeda (‘a coisa’ que corresponde à descrição). Isso vai além das leis de curso legal – que estabelecem o que pode legalmente liquidar contratos – para 27 incluir o que o Estado aceita em pagamento nos seus ‘guichês’ de pagamento” (Wray: 52). O Estado moderno escreve a descrição do que é dinheiro quando denomina a obrigação tributária numa moeda-de-conta. E define “a coisa” que corresponde à descrição quando decide que será aceita nos guichês de pagamento públicos (aneppi). Mas ele exerce outro papel fundamental, pois é o fornecedor exclusivo “da coisa”. Assim, não apenas o governo pode gastar mais do que arrecada, mas deve gastar mais do que arrecada e (em termos lógicos) gastar antes de arrecadar. “Lição 4: Tributação não é uma operação de financiamento”. O propósito dos tributos não é realmente financiar o dispêndio, mas remover renda excessiva do setor privado. Os impostos não servem para financiar o Estado no sentido de recolher moeda que possa ser utilizada em pagamentos, já que ele emite a moeda que usa em pagamentos. A importância primária dos impostos é: (1) definir qual a unidade ou moeda de conta (real, dólar etc.), (2) definir o que é o dinheiro que corresponde à unidade de conta (aqueles pedaços de papel com determinadas características), (3) criar a razão primária para a demanda por moeda nacional e (4) sustentar a razão para a demanda por moeda pela criação de uma “dívida” flexível, não contabilizada e crescente do setor privado (sob autoridade do Estado) com o Estado. É essa “dívida” que garantirá, em última instância, que qualquer uma expansão na oferta de títulos públicos decorrente de uma expansão nos gastos públicos terá demanda e que todo crescimento econômico puxado pelo déficit público (gastos) é sustentável desde que exista desemprego7, não importando qual seja o tamanho da dívida governamental. Na economia moderna, os gastos públicos não precisam ser financiados. Eles próprios se financiam, pois são, a priori, diretamente e imediatamente uma emissão monetária. Como vimos, os gastos públicos, ao contrário do que diz a visão tradicional, vem historicamente e logicamente antes dos impostos, pois as pessoas precisam de moeda para poder pagar seus impostos. 7 E desde que não comprometa a capacidade de sustentação da taxa de câmbio. Essa condição será explicada quando estivamos tratando explicitamente de uma economia aberta. 28 Ao contrário do que ressalta o pensamento tradicional, o déficit público não é só possível, mas também necessário. “Permanentes déficits governamentais consolidados são a norma teórica e prática numa economia moderna. Embora seja certamente possível realizar um superávit a curto prazo (...), isto tem efeitos sobre a renda e os balanços que desatam poderosas forças deflacionárias. Dadas as preferências usuais dos setor privado em relação à poupança líquida8, crescimento econômico requer persistentes déficits governamentais” (Wray, 1998: 94). “[A] função mais importante [do déficit público] é ser o meio através do qual o poder de compra não gasto em consumo, nem reciclado enquanto renda pela criação privada de capital líquido9, é reinjetado enquanto poder de compra pelo governo, que toma emprestado e gasta. O poder de compra que não é reinjetado desta maneira se torna não-compra, não-venda, não-produção, e desemprego” (Vickrey, 1993: 1). O aumento dos gastos públicos e, conseqüentemente, do déficit público tem como função essencial a expansão dos gastos totais da economia quando o nível de atividade não está suficientemente alto. Essa função é bem desenvolvida pela teoria das Finanças Funcionais de Abba Lerner, que será exposta mais à frente. Mas o déficit público tem também uma importante função que talvez seja menos conhecida. Os déficits acompanhados de emissão de moeda e mesmo de títulos de dívida são fontes fundamentais de provimento de liquidez e solvência para o sistema privado. O crescimento econômico sustentável exige expansão das fontes de liquidez. Na falta dessa, o crescimento econômico acabaria resultandoem crise financeira. Em primeiro lugar é preciso reconhecer a inviabilidade completa de políticas de superávit público permanente, ao menos em países que não operam com significativos superávits externos permanentes. “Se o governo fosse tentar realizar um superávit, o público descobriria que suas receitas de ‘moeda líquida’ seriam menores do que suas obrigações tributárias, requerendo que as famílias recorressem a seus estoques de moeda fiduciária (acumuladas a partir do dispêndio deficitário governamental e de compras públicas de ativos do passado) para pagar tributos. Eventualmente, como é natural, os estoques se esgotariam. Finalmente, o público apresentaria para pagamento títulos governamentais a vencer a fim de obter moeda fiduciária com que pagar 8 Poupança total menos investimento. Ou seja, superávit em conta corrente mais déficit público. 9 Ou seja, investimento privado. 29 tributos, mas, de novo, isto está limitado à parcela do estoque de dívida pendente que está por vencer (ela própria uma função de déficits governamentais prévios e da estrutura temporal de vencimento da dívida). Neste ponto, a única fonte de dinheiro de curso forçado para pagar tributos é um novo dispêndio governamental (déficit) ou compras governamentais de ativos” (Wray, 1998: 100). É, portanto, óbvio que políticas de superávit permanente são impossíveis se não acompanhadas de superávits externos equivalentes. Mas podemos ir além. Não apenas o superávit permanente é inviável, o chamado déficit público é de fato necessário. As empresas, bancos e famílias não podem aumentar indefinidamente seus dispêndios via redução dos seus níveis de solvência ou liquidez financeira. Se a liquidez atinge níveis críticos, o agente auto-restringe seus gastos e investimentos ou é compelido a fazê-lo pelos credores. Se parte significativa dos agentes se vê nessa situação, a economia entrará certamente em recessão. A menos que existam outra fontes de expansão da demanda agregada. Existem diversas formas de medir a liquidez. A solvência a curto prazo ou liquidez pode ser medida pelo saldo de tesouraria ou capital líquido10 sobre o passivo. Em uma economia fechada ou com déficit em conta corrente nulo, se o governo mantém um déficit público também nulo, o crescimento econômico tenderá a levar a uma piora nos índices médios de liquidez, porque ativos de curto prazo são fontes de liquidez para empresas bancos e famílias, e o setor privado não pode criar ativos de curto prazo sem criar também passivos11. Se os agentes estiverem eufóricos com algum boom econômico, as perspectivas para o futuro podem estar superavaliadas. Nesse caso, a piora nesses índices de solvência poderia não ocasionar maiores impactos imediatos. Porém, a tendência seria a crise financeira. Na verdade, é bem provável que, na maior parte das situações, os agentes resistam a piorar em demasia seus índices de solvência. Nesse caso, o desejo de poupar deverá ser em média superior ao desejo de investir. De 10 Ativos de curto prazo menos passivo de curto prazo. 11 Praticamente a única exceção seria a valorização de ações em bolsa, mas devido ao risco desse tipo de investimento, eles não são considerados completamente como fontes de liquidez confiáveis para os momentos onde a liquidez se mostra fundamental, isto é, nos momentos de crise econômica. 30 fato, essa parece ser a situação mais comum, pois boa parte dos agentes tem naturalmente o desejo de melhorar seus índices de solvência e, não deve ser um equívoco supor que em média o resto dos agentes não deseja reduzi-los, a não ser que a capacidade de alavancagem financeira dos bancos, das famílias e das empresas esteja sub-aproveitada. Assim sendo, é muito provável que o setor privado deseje em média poupar mais do que deseje investir. Se o déficit público e externo forem nulos, essa atitude em algum momento levará necessariamente a reduções dos gastos privados período a período, conduzindo a economia a uma recessão. Dessa forma, o déficit governamental é fundamental para manter os índices de liquidez e solvência da economia, e consequentemente a sustentabilidade dos gastos privados. “Se o governo deixar de preencher o hiato e de atender à demanda por ativos através da emissão de um volume adequado de títulos, a tentativa dos indivíduos de adquirir ativos através do não-gasto [poupança] causará uma redução nas vendas, investimento temporário em estoques excedentes, cancelamento de encomendas, desemprego e redução do produto nacional e da renda. Isto pode ser parcialmente compensado pela elevação de valor dos ativos, levando a um certo volume de aumento nos gastos vindos dos ganhos de capital, mas a “poupança” incorporada nestes ganhos de capital não envolve a criação de capital novo ou o emprego de indivíduos na construção civil. A redução das taxas de juros poderia a princípio elevar tipos de investimento intensivos em tecnologia poupadora de trabalho, mas após o estímulo inicial o efeito sobre o emprego tende a ser negativo. É pouco provável que haja investimento ampliador de capacidade, mesmo com reduzidas taxas de juros, caso o mercado para o produto não exista. Existe um sério perigo de que a elevação dos preços dos ativos possa criar uma bolha de valores insustentável, que corre o risco de estourar desastrosamente, como aconteceu em 1929 após os superávits públicos dos anos anteriores. Cedo ou tarde uma redução na produção e na renda nacional vai acontecer, até que a redução na renda reduza a demanda por ativos a um nível compatível com a oferta. Reduzir o “déficit” pode reduzir a dívida do governo, mas reduz também a oferta de ativos que as pessoas querem adquirir para prover a sua necessidade de segurança. Reduzir o “déficit” não melhora a herança real deixada para o futuro; ao contrário, deteriora esta herança, deixando um legado de trabalhadores inexperientes, infra-estrutura ineficiente, e investimentos em capacidade reduzidos por causa da reduzida demanda pelos produtos, para não falar do impacto do desemprego quanto à saúde, à delinqüência e aos lares desfeitos. O “déficit” não é nem calculado numa base empresarial. Não faz distinção entre os itens de custeio e os da conta de capital. Se a GM, a AT&T e as famílias tivessem sido compelidas a “equilibrar seu orçamento” calculado da forma como o orçamento federal é calculado, teríamos agora muito menos automóveis, telefones, e casas” (Vickrey, 1993: 1).” Podemos assim concluir que os déficits públicos pela emissão de moeda ou mesmo de títulos de dívida são fontes fundamentais de liquidez para o setor privado. 31 Ao contrário do que comumente se pensa, a política monetária não cumpre esse papel. Nas suas formas mais tradicionais essa política apenas troca ativos líquidos por outros, ou seja, não muda significativamente as condições de solvência e liquidez do setor privado. Para melhorar realmente a liquidez, é necessário aumentar a relação entre ativos líquidos e passivo dos agentes em geral. Isso significa que é preciso aumentar as rendas de uns sem reduzir a liquidez de outros. Apenas o déficit público, o superávit externo e uma aquisição líquida de ativos privados pelos bancos podem fazer isso. Nesse último caso, entretanto, se os bancos assim procederem, sem correspondente aumento do déficit público ou saldo em conta corrente, estariam piorando seus indicadores de solvência, pois tanto o indicador ativo/patrimônio líquido, quanto o indicador ativo/títulos públicos teriam se deteriorado. “Lição 5: Emissão de dívida pública não é uma operação de financiamento”. “O governo só deveria tomar empréstimoem moeda se fosse desejável que o público devesse ter menos moeda e mais títulos governamentais” (Lerner, 1943: 40, citado por Wray, 1998: 95). Para as finanças funcionais, a emissão de títulos públicos tem a função de oferecer um ativo líquido remunerado como alternativa de aplicação de parte da riqueza do setor privado e definir sua taxa de rendimento. Essa política permite que o governo possa influir sobre as condições de financiamento e aplicação de capital, portanto, sobre as condições de rentabilidade do setor privado e suas disposições de gasto em consumo e investimento. A política monetária influencia o setor privado na medida em que manipula a taxa de juros. Na lição 7, será explicado como a política monetária determina a taxa de juros. “Lição 6: O propósito primário da tributação é influenciar o comportamento do público”. “Um interessante corolário é que a tributação nunca deve ser estabelecida apenas porque o governo precisa fazer pagamentos monetários (...) Tributação deveria, pois, ser imposta somente quando é desejável que os contribuintes 32 tenham menos moeda para gastar” (Lerner, 1943: 40, citado por Wray, 1998: 95) Como vimos, a tributação tem a função de fundar e manter a demanda por moeda. Mas ela pode influenciar o comportamento dos cidadãos de outras formas. Uma das mais importantes e que é essencial para as Finanças Funcionais é alterar o nível de gastos privados, via redução da acumulação de riqueza líquida disponível dos contribuintes. A possibilidade de redução do poder de compra do setor privado permite ao governo reduzir a demanda agregada total sem ser obrigado a reduzir gastos públicos em volumes superiores aos desejáveis. A tributação também pode ser um instrumento imprescindível em políticas de distribuição de renda e como formas de induzir determinados tipos de comportamento pelo setor privado. “Lição 7: O propósito primário da venda de títulos de dívida pelo governo é regular a taxa de juros no overnight”. A primeira coisa que precisa ser compreendida sobre a política monetária é a importância e a função do dinheiro estatal. O dinheiro estatal é o objeto das reservas bancárias. Ele é constituído por papel-moeda e depósitos dos bancos no Banco Central. O outro tipo de dinheiro são os depósitos à vista, que é o dinheiro criado pelos bancos. Para o público não faz muita diferença entre o dinheiro estatal e os depósitos à vista, porém, para os bancos, há uma grande diferença. Normalmente as despesas dos bancos, suas aquisições de títulos de dívida privados e ativos em geral são supridas por emissão de cheques contra si próprios ou registro de novos depósitos na conta de terceiros. Assim, toda vez que fazem pagamentos ao público, os bancos emitem moeda. Para o público, os depósitos emitidos pelos bancos são moeda como outra qualquer. Mas para os outros bancos e para o governo não são. Há situações em que os bancos não podem fazer pagamentos simplesmente emitindo e precisam de moeda estatal. Essas situações são quando: (1) o público saca dinheiro do banco, (2) o banco ou o público fazem algum 33 pagamento ao governo e (3) quando o público deposita o cheque do banco em outro banco. Em todas as três situações o banco é obrigado a entregar moeda estatal, se ele não o faz, estará sujeito a punições do banco central ou perda de confiança do público, que poderá levar a uma fuga de depósitos e à possível falência do banco. Dessa forma, os bancos procuram sempre por iniciativa própria manter um volume mínimo de reservas de moeda estatal em seus ativos para evitar essas situações. Esse volume mínimo é geralmente uma proporção fixa em relação aos depósitos do banco. Ademais, os bancos são comumente obrigados a manter um certo volume mínimo de depósitos no banco central em proporção fixa ao depósitos detidos por seus clientes. Assim forma-se o chamado sistema de reservas fracionárias, onde as reservas detidas pelos bancos são uma fração dos depósitos. A relação entre depósitos e reservas é chamada também de alavancagem. Como os novos empréstimos concedidos aumentam os depósitos, eles também aumentam a demanda por reservas para que seja mantida a mesma alavancagem. A teoria do multiplicador monetário supõe que o banco central fixa o volume de reservas e os bancos vão emprestando até que seus depósitos atinjam o nível máximo permitido pelo sistema de reservas fracionárias. Entretanto, não é isso o que acontece no mundo real. Os bancos sabem por experiência diária que, mesmo estando operando no limite da sua alavancagem, podem oferecer, sem grandes problemas, empréstimos a bons clientes às taxas fixadas pela sua política de crédito. Nesse caso, ao fazer isso, os bancos ultrapassariam o nível de alavancagem desejado. A solução é tomar pelo interbancário reservas emprestadas dos outros bancos. Essas reservas são uma fração do empréstimo concedido e geralmente pagam taxas de juros inferiores aos empréstimos feitos pelos bancos. Portanto, isso, a princípio, não causaria maiores problemas de liquidez ou rentabilidade12. Os bancos que tivessem reservas ociosas estariam ansiosos para emprestá-las a taxas superiores à remuneração dos depósitos no banco 12 Desde que o banco não estivesse com exagerado descasamento de prazos entre seus ativos e passivos. 34 central. Assim, diariamente, os bancos que concederam relativamente menos crédito, emprestam reservas para os que concederam relativamente mais crédito. Há, porém, um problema. Nada garante que a demanda por reservas será diariamente igual à oferta de reservas. Por um lado, as reservas recebem pouca ou nenhuma remuneração, o que faz com que os bancos desejem mantê-las ao mínimo. Por outro, os bancos tem que preservar esse mínimo, por exigência do banco central ou para se manterem confiáveis para o público e outros bancos. O sistema opera então sempre “no fio da navalha” e raramente a demanda por reservas se iguala à oferta. Por não emitirem a moeda estatal, os bancos dependem do banco central para manter seus requerimentos de reserva. Sem intervenção do banco central, se a demanda por reservas for superior à oferta, o sistema entraria em colapso. Os bancos com falta de reservas estariam buscando desesperadamente quem poderia oferecê-las e estariam aceitando taxas de juros cada vez maiores para quem pudesse emprestar seu dinheiro estatal. Mas não haveria ofertantes suficientes. O resultado disso poderia ser a insolvência do banco ou mesmo uma séria crise bancária. O banco central certamente não deseja uma crise bancária. Mas esse tipo de crise é evitado normalmente e trivialmente pelas políticas corriqueiras da “autoridade monetária”. O principal instrumento de ação do banco central sobre o nível de atividade, sobre a inflação, sobre o risco de crise bancária e outras variáveis econômicas é a taxa de juros de curto prazo. O banco central pode emitir moeda e vender títulos próprios ou do Tesouro em qualquer volume que quiser. Assim a autoridade monetária tem interesse e poder para fixar a taxa de juros. Faz então todo sentido que defina uma meta de taxa de juros que precisa ser cumprida diariamente. Se faltam reservas no sistema, os bancos tentam tomar emprestado no interbancário e acabam puxando as taxas de juros para cima. Em resposta, o banco central passa a comprar títulos públicos 35 até que a demanda por reservas seja atendida e, portanto, acabe a pressão por aumento da taxa de juros 13 . Mas pode haver também sobra de reservas. Nesse caso, não há risco de crise ou de elevação da taxa
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