Buscar

O Conceito de Soberania em Jean Bodin

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 22 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 22 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 22 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

O conceito de soberania em Jean Bodin1 
 
 
 
Introdução 
 
“A soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma República”2. Foi este conceito de 
soberania que permitiu a Jean Bodin a) identificar o Estado (poder público) como o sujeito da 
política moderna e b) distingui-lo de todas as formas anteriores de organização política 
(somente o Estado possui o monopólio do exercício do poder político). A definição de Estado, 
assim, é jurídico-política, e permite a distinção entre soberano (fonte última do poder público) 
e governo (exercício cotidiano e material do poder público). Fonte e exercício material são, 
pois, aspectos distintos de uma mesma manifestação política, o poder público. 
Tomá-los – soberano e governo – indistintamente é que teria conduzido os autores à 
afirmação da existência de Estados mistos. Uma tal afirmação decorre tão somente de 
equívoco. É que o único capaz de estabelecer as leis (e que não está submetido a nenhuma 
delas) é o titular do poder soberano; contudo, o exercício da lei pode ser delegado a um outro 
órgão ou corpo administrativo (a critério do soberano). Estado e governo são as categorias 
correlatas a esta distinção, o que significa dizer que o corpo político a que pertence a 
titularidade da soberania não se confunde (ou pelo menos não se confunde necessariamente) 
com o corpo político responsável pelo exercício material da vontade soberana. É esta 
 
1 Este trabalho consiste em breve exposição crítica de alguns dos argumentos desenvolvidos em tese de 
doutoramento defendida em junho de 2001 na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas 
(sob orientação de Raquel Pereira Chainho Gandini): RISCAL, Sandra Aparecida. O conceito de soberania em 
Jean Bodin: um estudo do desenvolvimento das idéias de Administração Pública, Governo e Estado no século 
XVI. 
2 BODIN, Jean. Les Six Livres de la République, Livro I, Capítulo VIII, p. 179, apud RISCAL, Sandra 
Aparecida. Obra citada, p. 05. 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
4
distinção, aliás, entre Estado e governo, que parece ser, conforme novamente se verá adiante, 
o fio condutor de toda a dissertação de que este trabalho se ocupa. 
 
“[Pierre] Mesnard observa que depois de ter definido a soberania, Bodin se dedica 
ao estudo de sua encarnação sensível, o governo. Segundo Mesnard, a antiga questão dos 
diferentes tipos de governo é retomada por Bodin com agilidade e complexidade novas. Acima 
de tudo, Mesnard tem o mérito de trazer à tona um tema central na obra de Bodin: o conceito 
de governo e a sua distinção do conceito de Estado. Por detrás da diversidade de Repúblicas 
estariam, na verdade, mascaradas, uma multiplicidade de formas de governos. 
Mesnard observa que, no plano apresentado por Bodin, encontramos um 
fundamento e norma política comuns, mas que podem ser tomados de um lado como direito 
constitucional e de outro como direito administrativo, o que permitiria compreender a natureza 
do poder público, ora como poder soberano, ora como governo”3. 
 
“Absoluto” e “perpétuo” 
 
Tendo Bodin definido a soberania como “o poder absoluto e perpétuo de uma 
República”, conforme ficou algumas linhas atrás registrado, insta apurar, a fim inclusive de 
evitar interpretações errôneas do seu pensamento, o que podem significar os adjetivos 
absoluto e perpétuo. 
 
O adjetivo ‘absoluto’ 
Longe de dizer respeito ao substantivo absolutismo4, o adjetivo absoluto na definição 
de Bodin de soberania significa incondicionado, livre de obstáculos políticos antepostos pelos 
homens. Segundo Bodin, o poder soberano (absoluto) é aquele que só encontra limites nas leis 
divina e natural. 
Aqueles que antevêem neste adjetivo absoluto a defesa de um absolutismo, a saber, 
aqueles que compreendem por absoluto a não sujeição às leis - e, daí, a impossibilidade de 
um sistema constitucional de freios (em que o governante é subordinado a uma Carta Magna) 
e democrático (subordinação do governante aos resultados de deliberação coletiva) – 
enganam-se ao atribuir esta acepção a Bodin. Isto porque, diz ele, não é porque um indivíduo 
na República, por qualquer motivo, não está sujeito às suas leis que é ele o soberano. Além 
disso, como se disse, o soberano descrito por Bodin sujeita-se às leis divina e natural. 
 
 
3 RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 107. Interessante notar que, neste trecho, à distinção entre Estado e 
governo correspondem, respectivamente, os ramos do direito constitucional e administrativo. 
4 “O simples emprego do adjetivo ‘absoluto’ para qualificar o poder soberano não autoriza a qualquer analista 
concluir que Bodin seria um defensor do absolutismo” (RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 203). 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
5
“Se dizemos que tem poder absoluto quem não está sujeito às leis, não se 
encontrará no mundo príncipe soberano, posto que todos os príncipes da terra estão sujeitos 
às leis de Deus e da natureza e às leis humanas comuns a todos os povos. E, ao contrário, 
pode ocorrer que um dos súditos se encontre dispensado e isento da autoridade das leis, 
ordenanças e costumes de sua República e, nem por isto, será príncipe soberano” 5. 
 
Apesar de assim esclarecer as coisas, em seguida a autora cita o seguinte trecho da 
mesma obra a que pertence o acima: 
 
“É necessário que quem seja soberano não se encontre de modo algum submetido 
ao império de outro e possa dar a lei aos súditos e anular as leis inúteis; isto não pode ser 
feito por quem está sujeito às leis ou a outra pessoa. Por isso, diz-se que o príncipe está 
isento da autoridade das leis. O próprio termo latino lei implica no mandato de quem detém a 
soberania” 6. 
 
Intentando sublinhar o termo império para delinear o conteúdo semântico de 
absoluto, a autora, inadvertidamente, abriu espaço para a defesa da tese de que Bodin é 
defensor do absolutismo. 
De qualquer forma, absoluto alude a que o poder soberano é aquele que não encontra 
nenhum outro superior que se lhe contraponha, especialmente na sua atribuição essencial de 
fazer as leis e garantir a obediência a elas. 
 
O adjetivo ‘perpétuo’ 
Com uma tal qualificação, quer Bodin expressar que, fosse a soberania limitada no e 
pelo tempo, não seria em si mesma soberania. É o caso dos que governam como regentes, 
comissários ou de qualquer modo por mandato: estando submetidos a uma vontade exterior, é, 
na verdade, esta a soberana. Ainda quando o povo confie o poder a alguém pelo tempo de sua 
vida, com a sua morte o poder que se restaura é que se revela, por isso mesmo, o verdadeiro 
soberano. Sendo assim, a soberania não se transmite como que por herança a um sucessor, 
porque para isto seria necessário admitir que sofre interrupção e, daí, estaria já desnaturado o 
seu caráter de soberania. 
O adjetivo perpétuo aplicado ao termo soberania significa que esta não se encontra 
na figura pessoal do príncipe, uma vez que este possui um caráter temporal (transitório). Em 
outras palavras, a soberania não se encontra na ordem temporal; não é transitória e por esta 
razão dela se afirma “ser perpétua”. 
 
5 BODIN, Jean. Obra citada, Livro I, Capítulo VIII, p. 190, apud RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 
204, grifou-se.Carolina Muranaka Saliba 
 
 
6
Nesse sentido, estabelecer a soberania como um poder perpétuo equivale a proclamar 
o princípio da continuidade da República, contido já na fórmula latina “nullus tempus currit 
contra regem” ou nas expressões francesas “le roi est mort, vive le roi” e “le roi ne meure 
jamais en France”. Dizer que o rei não morre jamais significa dizer que a República não 
morre jamais. 
 
Política, História e Direito 
 
O saber político deveria, segundo Bodin, ser fundado nos dados históricos, na 
experiência humana prática acumulada. Isto, entretanto, não deve ser compreendido como 
uma defesa de simples transposição do ser para o dever ser (tensão esta que, no entender da 
autora, seria a fundamental da política), ou, como se prefira, de mera legitimação do poder tal 
como ele se manifesta historicamente. Ao contrário, em Bodin a história teria, para a teoria 
política, um caráter instrumental: 
 
“A história, por si só, seria de natureza enciclopédica e acumulativa, não passando 
de uma coleção de experiências, relatos e comentários de acontecimentos. Mas, sobre esses 
dados da experiência humana, acumulados pela narrativa histórica em estado bruto, deveria, 
segundo Bodin, pousar o olhar do analista político”7. 
 
Nesse passo, a superioridade da política em relação à história situa-se na sua 
capacidade de transcender o simples fato do poder, através da afirmação do direito, que 
constitui, portanto, um valor normativo superior. O papel da ciência política seria justamente 
o de encontrar um equilíbrio entre ser e dever ser. Mais do que isso, é o olhar voltado aos 
dados de fato (ser) que permite a Bodin concluir pela universalidade ideal do direito. 
 
Direito e Justiça em Jean Bodin8 
 
Para Bodin, a República é o governo estabelecido sob os princípios da justiça. A 
justiça, por sua vez, proviria das leis instituídas pelo soberano. É próprio apenas ao soberano, 
porque soberano, o poder de estabelecer as leis. Isto fez com que alguns autores, tal como 
 
6 BODIN, Jean. Obra citada, Livro I, Capítulo VIII, p. 191, apud RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 
205. 
7 RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 07. 
8 Este item corresponde ao Capítulo IV da tese ora em discussão, intitulado O Espelho da Justiça (RISCAL, 
Sancra Aparecida. Obra citada, pp. 293-356). 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
7
Simone Goyard-Fabre, asseverassem que, em Bodin, haveria uma identificação entre a ação 
da justiça e a soberania. 
Para Simone Goyard-Fabre, o direito governamental (tal como concebido por Bodin) 
estaria fundado na lei natural. Há, pois, a tese de que, para Bodin, o direito identifica-se ao 
justo – o que, de resto, não constitui nenhuma novidade no pensamento político. 
 
“(...) Goyard-Fabre deduz a concepção de justiça de Bodin da fórmula tomista que, 
em conformidade com o espírito da jurisprudência romana, identifica o direito ao justo (...). 
Goyard-Fabre reduz o pensamento de Bodin ao dos pensadores antigos e medievais que 
afirmavam que o Estado teria sido concebido com a finalidade de estabelecer a justiça. 
(...) 
Tal como ocorre com Goyard-Fabre, boa parte das análises que consideram a 
justiça como uma marca do conceito de soberania parecem dever sua origem à concepção de 
realeza medieval (...)”9. 
 
Todavia, não seria possível, segundo a autora, aceitar a tese de que em Bodin o 
conceito de soberania tem a justiça como sua essência ou que seja ela um seu atributo. 
É que Bodin é claro ao sustentar que a) os atributos da soberania devem ser tais que 
apenas convenham aos soberanos; já que, fossem compartilhados com os súditos, não seriam 
em si mesmos atributos da soberania e b) a justiça é um ato comum tanto ao soberano quantos 
aos súditos, pelo que não pode, pois, constituir-se em atributo da soberania. 
 
“Como também os magistrados e administradores da República estão incumbidos 
da tarefa de realizar a justiça, o soberano não pode ser reconhecido por esta característica”10. 
 
O item b) acima aludido e o trecho a ele acostado deixam antever o ponto essencial 
que o tratamento do tema da justiça pretendia indicar: a justiça diz respeito ao governo, e não 
ao Estado. Assim, tem-se mais uma vez reiterada a distinção entre Estado e governo: 
 
“A justiça é compreendida por Bodin como parte das atividades do governo e não 
define o Estado”11. 
 
Ou, em trecho mais adiante: 
 
“A justiça, necessário insistir, é a causa eficiente do governo, mas não constitui a 
essência do Estado. Pertence ao âmbito do governo e deve ser entendida como a distribuição 
a cada um do que lhe é próprio”12. 
 
 
9 RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, pp. 295 e 297. 
10 RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 303. 
11 RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 303. 
12 RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 307. 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
8
Ao estabelecer a proveniência da justiça nas leis (instituídas pelo soberano), Bodin 
não estaria recolocando a antiga identificação entre o direito e a justiça (como supôs Simone 
Goyard-Fabre), senão apontando para que a justiça está relacionada à lei13, a saber, consiste 
na administração da lei. Administração e não estabelecimento, visto ser esta última atribuição 
exclusiva do soberano, ou, como se prefira, aquilo que é marca essencial da soberania. 
 
Nessa esteira, cabe listar algumas das características da soberania: 
(1) o poder de dar a lei a todos em geral e a cada um em particular; 
(2) o poder de declarar a guerra e realizar a paz; 
(3) o direito de decidir em última instância, o que inclui o poder de outorgar graça 
aos condenados, acima das sentenças proferidas pelos magistrados (somente o 
soberano pode abrir exceção à lei que ele mesmo instituiu). 
 
A contrario sensu, nota-se, pois, mais uma vez, que a administração da lei não 
compete exclusivamente ao soberano, o que significa dizer que a efetivação da justiça não lhe 
compete apenas. Apesar disso, precisamente porque a justiça reside na administração da lei, 
Bodin recomenda que o soberano por vezes se incumba desta tarefa que não lhe é usual (por 
definição, não pertence à soberania), a fim de que a massa do povo sinta-o mais próximo. 
 
“Trata-se de um conselho, cujo objetivo seria demonstrar publicamente o interesse 
do soberano pelos direitos de seus súditos. Do ponto de vista da razão do Estado, a sessão 
pública, na qual o príncipe aparecia em toda a sua pompa, portando todas as insígnias da 
justiça, tornava mais próxima do súdito a personificação do soberano como pessoa pública. A 
teatralização permitia ao súdito saber-se incluído nos interesses da República e ver a lei não 
apenas na forma abstrata das ordenanças, mas em sua ação. Quando o príncipe relega aos 
oficiais toda a administração da justiça, o elo que permite ao súdito se reconhecer no Estado 
enfraquece, a lei torna-se distante e abstrata, correndo o risco de se dissociar da pessoa do 
soberano (...)”14. 
 
A explicação de Bodin sobre a origem do Estado 
 
Para Bodin, o instinto de sobrevivência dos homens que vivem sem Estado 
conduziria a uma luta entre eles, com o uso da violência e da submissão. Esta animalidade 
original dos homens e que instaura um estado de conflito só poderia ser superadapela forma 
 
13 A fraqueza do argumento aqui é patente. Fosse este o significado que Bodin pretendia atribuir à justiça, não 
diria que ela provém das leis instituídas pelo soberano, já que nesta formulação sublinha-se a instituição ou 
estabelecimento das leis (que compete apenas ao soberano), e não a sua administração (que compete 
precipuamente ao governo). 
14 RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 304. 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
9
de associação denominada Estado, que se erige sobre eles, então, como o garantidor de sua 
sobrevivência. 
 
“A violência gerada pelo confronto das paixões privadas caracterizaria o período de 
guerra que teria antecedido a instituição das Repúblicas. O que conhecemos como Estado 
seria o resultado de um equilíbrio de forças alcançado após este período de guerras entre os 
homens (...). 
Da oposição entre as paixões privadas teria surgido o estado de guerra. A força do 
vencedor teria imposto ao vencido a perda total de sua liberdade e instaurado o Estado, 
submetendo ao comandante guerreiro todas as liberdades individuais. 
A instituição do Estado teria colocado os homens em uma posição jurídica que os 
abrigaria da violência privada, da ambição, da avareza e da vingança que, sem a lei, armavam 
os homens uns contra os outros. Para tanto, a soberania deveria ser reconhecida como poder 
legítimo dentre os vencedores que, em troca do freio à violência privada, têm a garantia da 
segurança e sobrevivência material, o primeiro dos bens comuns. Reconhecem, assim, a 
autoridade do seu chefe como o único soberano, tendo, em contrapartida, reduzida a liberdade 
de agir sob o comando de suas próprias paixões”15. 
 
Dada a vantagem da instituição do Estado, os homens seriam, consensualmente, a ele 
levados pela força dos fatos, e não pelo Direito (para Bodin a fonte do Estado não seria 
jurídica, mas sim factual). 
Nesse passo, a soberania de Bodin afigura-se como a realização legal de um estado 
de equilíbrio que se origina da pressão dos fatos naturais (animalidade original dos homens) 
que conduz ao Estado. O Direito não instaura o equilíbrio, mas o retoca. 
 
O Direito Público e o nascimento do Estado jurídico moderno 
 
No período medieval, dada a fragmentação do poder, do espaço físico e 
conseqüentemente da autoridade e do direito, não houve lugar para que se pudesse sequer 
conceber um direito público. Assim, foi apenas com a centralização do poder – o que se deu 
efetivamente com o nascimento de reinos ou ascensão das monarquias – que as discussões 
teóricas sobre a divisão do direito em público e privado passaram a alcançar, paulatinamente, 
algum significado. 
 
“Uma vez que as relações de poder medieval eram de base patrimonialista e o 
caráter da administração do patrimônio dos reinos obedecia a critérios ainda herdados das 
práticas do patriciado romano, a concepção de direito público, mesmo após a redescoberta das 
compilações do Código de Justiniano, ainda tiveram (sic) que esperar muito tempo para se 
incorporarem às práticas cotidianas. Durante muito tempo o direito positivo permaneceu 
 
15 RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, pp. 305-6. Difícil não lembrar aqui da explicação (posterior) 
hobbesiana do estado de natureza que conduz à formação do Estado (Leviatã). 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
10
impermeável às discussões teóricas sobre a divisão do direito em público e privado levadas a 
cabo pelos estudiosos. 
À medida que o monarca concentra poderes em suas mãos, surgem as condições 
que permitem a emergência da esfera pública e os juristas encontrarão um novo quadro onde 
poderá ser espelhada e reelaborada a antiga distinção do direito romano em jus publicum e jus 
privatum”16. 
 
Faz-se necessário ressaltar que historicamente é que o direito público nasceu como o 
direito do rei (droit royauté)17. 
 
O mesmo movimento – e pelos mesmos motivos (características medievais e sua 
derrocada) – pode ser verificado na gênese do conceito de soberania18: enquanto o seu sentido 
moderno corresponde à expressão de um poder público identificado ao Estado, na Idade 
Média uma tal acepção, evidentemente, não era possível, pelo que o seu uso restringia-se a 
um fraco adjetivo “soberano” (soverain). 
 
“Na Idade Média, a forma substantiva da palavra soberania era desconhecida, 
sendo apenas utilizado o adjetivo soberano soverain (sic), o qual constituía, simplesmente, um 
comparativo que denotava um certo grau de poder. 
Em seu sentido medieval, o adjetivo soberano era utilizado para qualificar o detentor 
da mais alta posição, dentro de uma escala de poderes relativos. Não possuía a conotação 
de poder supremo, absoluto que lhe será atribuída, mais tarde, por Jean Bodin. Seu sentido 
era acima de tudo comparativo e exprimia uma situação de ascendência hierárquica dentro 
de uma escala de poderes concebidos relativos, uns aos outros”19. 
 
Mesmo quando o adjetivo vinha a ser aplicado ao rei, não o era na acepção moderna, 
notadamente porque designava uma relação de poder (repita-se, num sentido comparativo), 
mas não uma atribuição de competência. 
Visto de outro ângulo, é quando, pouco a pouco, soberania passou a designar a 
competência de decidir em última instância (de dar a última palavra), muito mais que a 
repartição de poder, que se dá um passo no sentido da sua acepção moderna (eminentemente 
jurídica, portanto). 
 
16 RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 444. 
17 Mais uma vez, a autora quer ressaltar sua posição de que Bodin não é signatário do absolutismo monárquico. 
Assim, não é porque os Estados modernos assumiram esta forma que a teoria da soberania de Bodin 
necessariamente a defende. Neste sentido: “De acordo com as exigências históricas e políticas da época, a 
concepção abstrata do poder político, refletida na fórmula da soberania, foi elaborada a partir da estrutura de 
poder que tinha o monarca como titular. Entretanto, é necessário não confundir este processo histórico, que 
através da afirmação da autoridade do rei levou à construção do Estado, com o tipo de poder exercido 
posteriormente pelos reis no período absolutista” (RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 06). 
18 “Será precisamente a ruptura com a ordem feudal, através do processo de centralização do poder, que 
permitirá a reelaboração moderna do conceito de soberania” (RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 445). 
19 RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 445, grifou-se. 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
11
Ainda durante a Idade Média, mormente quando os juristas tiveram acesso e 
voltaram-se às versões completas dos Códigos de Justiniano, nas discussões acerca do 
problema da possibilidade de conjugar a jurisdição do poder do Papa e a dos reis, já se 
encontra na solução duas importantes notas do conceito de soberania. É que, conforme se 
concluiu, o rei é soberano porque, dentro dos limites do reino, não é reconhecido qualquer 
superior. Isto equivale a dizer que, para haver soberania, é preciso que se verifique a) a 
exclusão de qualquer outro poder, interno ou externo e b) a plenitude de poder. 
 
Menções a Hans Kelsen 
 
Na tese de que nos ocupamos neste trabalho faz-se alusão a Kelsen especialmente em 
dois trechos. No primeirodeles, a autora afirma considerar (ou, pelo menos, afirma que há 
quem considere) que Kelsen seguiu a concepção de soberania de Jean Bodin20. Uma análise 
crítica responsável deste tema demandaria uma extensão que não cabe neste trabalho, pelo 
que passa-se ao próximo trecho em que o jusfilósofo de Viena é mencionado21. 
Na esteira do paralelismo que a autora pretendia traçar entre o desenvolvimento da 
teoria do e do próprio direito público e o conceito de soberania (conforme item anterior), 
trata-se a certo ponto da distinção e divisão, atribuídas precipuamente ao positivismo jurídico, 
entre direito público e direito privado. O critério residiria em que, enquanto aquele designa 
um certo conjunto de normas que estipulam os deveres e os direitos nas relações jurídicas que 
têm o Estado por uma das partes, este compreende as normas concernentes às relações 
jurídicas entre particulares22. Particulares, por sua vez, seriam todos aqueles que não o Estado 
 
20 “[Preston] King considera que Bodin e alguns autores que seguiram sua concepção de soberania como 
Hobbes, Spinoza, Austin e Kelsen, podem ser descritos como autores voltados para o estudo da estrutura política 
e que estão prioritariamente preocupados com o que o Estado é e como o Estado funciona” (RISCAL, Sandra 
Aparecida. Obra citada, p. 194, grifou-se). 
21 Particularmente, seria necessário examinar o texto kelseniano: Das Problem der Souveranität und die Theorie 
des Volkerrechts: Beitrag zu einer reinen Rechtslehre (Aalen: Scientia, 1981). Embora não se queira adentrar no 
tema, arrisca-se dizer que talvez seja difícil sustentar esta tese de que Kelsen teria seguido a concepção de 
soberania de Bodin, especialmente no que se refere à sua definição como poder absoluto: “(...) uma autoridade 
não pode ser absoluta se o é somente com relação a certos sujeitos, como acontece para a autoridade do Estado e 
para sua soberania, que é tal somente em relação aos próprios súditos. Nem se pode falar de ‘onipotência’ se o 
poder do Estado limita-se somente aos próprios súditos, sem estender-se aos súditos de outros Estados. Esse 
conceito de soberania pressupõe claramente a unicidade do Estado” (KELSEN, Hans. Direito Internacional e 
Estado soberano, p. 122). 
22 “De acordo com a abordagem conhecida como positivismo jurídico, a jurisprudência contemporânea 
sistematiza, em consonância com a tradição, o Direito a partir da distinção entre Direito público e privado. 
Tradicionalmente, é designado Direito privado o conjunto das normas que estipulam deveres e direitos entre 
pessoas privadas. Em contraposição, o Direito público é designado como as normas que estipulam os deveres e 
direitos entre o Estado, de uma lado, e as pessoas privadas de outro. Trata-se de uma definição, portanto, baseada 
na distinção entre dois tipos de sujeitos titulares de direito confrontados, reciprocamente, em uma relação 
jurídica” (RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 420). Chama a atenção, de fato, a tentativa de, neste 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
12
(o conceito de pessoa privada seria, pois, obtido por exclusão, carregando daí uma certa 
conotação negativa). 
Entretanto, este critério parece ser incorretamente imputado mesmo aos que se valem 
da distinção entre direito público e direito privado. O próprio Kelsen, em geral apontado 
como expoente do chamado positivismo jurídico mas que rejeita esta distinção – conforme 
adiante se verá -, parece fazer mais justiça a eles: 
 
“(...) referiremos à fundamental distinção entre Direito público e privado (...). 
Segundo a concepção dominante, trata-se de uma repartição de relações jurídicas. Assim, o 
Direito privado representa uma relação entre sujeitos em posição de igualdade – sujeitos que 
têm juridicamente o mesmo valor – e o Direito público uma relação entre um sujeito supra-
ordenado e um sujeito subordinado – entre dois sujeitos, portanto, dos quais um tem, em face 
do outro, um valor jurídico superior”23. 
 
Esta maneira de colocar a questão é de todo diversa da sugerida pela autora em 
primeiro lugar. É que ela abre a possibilidade de se reconhecer que, por vezes, relações 
jurídicas entre Estado e pessoa privada podem ser integralmente regidas pelo Direito privado. 
Neste sentido: 
 
“Quando o Estado compra ou aluga uma casa de uma pessoa privada, de acordo 
com vários sistemas jurídicos, a relação entre comprador e vendedor (ou locatário e locador) é 
exatamente a mesma que existiria se o comprador ou locatário fosse uma pessoa privada. 
Como uma ‘pessoa’ existe apenas em ‘seus’ deveres e direitos, a personalidade jurídica do 
Estado não difere em nada da personalidade jurídica de um indivíduo privado, na medida em 
que os deveres e direitos do Estado possuam o mesmo conteúdo que os deveres e 
direitos da pessoa privada. Não existe nenhuma diferença entre o Estado como proprietário 
ou locatário de uma casa e um proprietário ou locatário privado, se os direitos de ambos 
forem os mesmos, o que não só é possível, como muitas vezes é efetivamente o caso”24. 
 
O que torna o texto um tanto quanto confuso é que, tendo afirmado apenas algumas 
linhas antes que “sabemos que uma relação pertence à esfera do Direito privado [pura e 
simplesmente] quando nenhum dos dois sujeitos envolvidos é o Estado”25, reconhece-se o que 
acima ficou explicado: o Estado pode também figurar em relações jurídicas regidas pelo 
Direito privado26. 
 
 
trecho, tentar explicar o direito privado como aquele que trata das relações entre pessoas privadas. É que, 
segundo regra logicamente evidente e de todo conhecida, nada explica uma definição que usa o termo a ser 
definido no conteúdo da própria definição. 
23 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 310. 
24 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 203. 
25 RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 420. 
26 “(...) o Estado também pode ser uma das partes, em uma relação jurídica, no domínio do Direito privado” 
(RISCAL, Sandra Aparecida, p. 421). 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
13
Há, na tese, ainda outras confusões relativas a Kelsen – mas estas mais graves. Certas 
frases soltas e arbitrárias podem, no mínimo, fazer supor idéias que de modo algum podem ser 
unidas ao pensamento kelseniano. Constituem exemplo disto: 
 
“Segundo Kelsen, todo o Direito é, por sua própria natureza, público. Isto decorreria 
do fato de todo o Direito ter como princípio o Estado”27. 
 
“A oposição real para Kelsen seria, então, entre Direito e Estado, duas faces, 
dois aspectos de uma mesma realidade, o sistema normativo. 
Poderíamos concluir, portanto, que, na medida em que todo o ordenamento 
jurídico encontra a sua origem no Estado, todo o sistema normativo pode ser considerado 
como uma manifestação do Estado, podendo ser concebido, desta forma, como público”28. 
 
Com o fulcro de apontar exatamente a incorreção destas assertivas, proceder-se-á a 
seguir a uma breve explicação acerca das noções de Direito e Estado em Kelsen, com o que 
ficarão também evidenciadas as razões pelas quais este autor rejeita a divisão do Direito em 
público e privado. 
 
Nota explicativa: Direito e Estado em Hans Kelsen 
 
“Justamente como a teoria pura do Direito elimina o dualismo de Direito e justiça e 
o dualismo de Direito objetivo e subjetivo, ela abole o dualismo de Direito e Estado.Ao fazê-
lo, ela estabelece uma teoria do Estado como uma parte intrínseca da teoria do Direito e 
postula a unidade do Direito nacional e do internacional dentro de um sistema que compreende 
todas as ordens jurídicas positivas. 
A teoria pura do Direito é uma teoria monista. Ela demonstra que o Estado 
imaginado como ser pessoal é, na melhor das hipóteses, nada mais que a 
personificação da ordem jurídica, e, mais freqüentemente, uma mera hipostatização de 
certos postulados político-morais. Ao abolir este dualismo através da dissolução da 
hipostatização habitualmente ligada ao ambíguo termo ‘Estado’, a teoria pura do Direito revela 
as ideologias políticas dentre da jurisprudência tradicional”29. 
 
Perseguindo firmemente o propósito de tratar cientificamente o Direito e assim 
purificá-lo de todo conteúdo que não lhe seja essencial, ao mesmo tempo em que com isso 
revela o que lhe é próprio, Kelsen descontrói (ou julga ter desconstruído) certos “mitos” 
cultuados pela jurisprudência tradicional. Assim o é no que toca à identificação entre direito e 
justiça (que todo direito deva ser justo ou que todo o direito, por ser direito, é já a realização 
da justiça), à distinção entre pessoa física e pessoa jurídica, à divisão do direito em público e 
privado, à separação entre os conceitos de Direito e Estado. 
 
27 RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 421, grifou-se. 
28 RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 422, grifou-se. 
29 KELSEN, Hans. Prefácio à ‘Teoria Geral do Direito e do Estado’, p. 04, grifou-se. 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
14
Especialmente no que tange a este último “mito”, bem ao estilo kelseniano, expõem-
se as doutrinas que julgam ser o Estado algo de diferente ou além do Direito, para depois 
rebatê-las todas em seus argumentos. Passemos a isto. 
• 
Supõe a visão tradicional que Estado e Direito designem realidades distintas (ainda 
que relacionáveis na moderna constituição do Estado como Estado de Direito). Assim como o 
homem comporta um conceito biofisiológico e um conceito jurídico (de “pessoa”), também 
“Estado” poderia aludir a um seu conceito sociológico ou a um seu conceito jurídico. 
Ademais, a unidade e individualidade do Direito (aqui concebido tão-somente como ordem 
jurídica nacional) seria dada pelo Estado, uma vez que é por este criado e válido nos limites 
deste. Dessa maneira, uma tal visão não apenas estabelece uma dualidade entre Direito e 
Estado, como também a prioridade deste sobre aquele. 
Para Kelsen, entretanto, não há argumentos que possam sustentar estas teses. E 
explica: o Estado é uma comunidade; como toda comunidade, só o é em função do 
reconhecimento que lhe é dado por uma ordem normativa, que regula a conduta recíproca dos 
indivíduos que a compõe. Aliás, 
 
“a afirmação de que os indivíduos são membros de uma comunidade é uma 
expressão metafórica, uma descrição figurada de relações específicas entre indivíduos, 
relações constituídas por uma ordem normativa”30. 
 
Em outras palavras, o Estado, como comunidade que é, constitui-se enquanto tal 
por força da ordem jurídica que lhe reconhece. 
 
“Como não temos motivo para supor que existam duas ordens normativas 
diferentes, a ordem do Estado e a sua ordem jurídica, devemos admitir que a comunidade a 
que chamamos de ‘Estado’ é a ‘sua’ ordem jurídica”31. 
 
Resta ainda combater a idéia de que o Estado é algo mais que uma entidade jurídica, 
ou seja, a idéia de que é também (e primordialmente) uma realidade social. Se assim fosse, diz 
Kelsen, deveria ser possível identificar ao menos um elemento que conferisse unidade aos 
indivíduos que pertencem a um mesmo Estado e que nada tivesse a ver com o Direito. 
Contudo, não se encontra sequer um elemento desta qualidade dentre os já propostos: 1) 
interação; 2) vontade ou interesse comum; 3) organismo e 4) dominação. 
 
30 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 184, grifou-se. 
31 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, pp. 184-5. 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
15
 
1) interação: 
Propôs-se ser a interação o elemento sociológico que confere unidade aos indivíduos 
pertencentes ao Estado, independentemente de todo Direito. A interação consistiria na 
influência recíproca entre estes indivíduos, por laços de nacionalidade, raça, língua, religião 
etc... 
Aduz Kelsen neste ponto: indivíduos, suponhamos, de uma mesma religião podem 
interagir e pertencer a Estados distintos (a interação entre homens é de natureza psicológica, 
não geopolítica). 
 
“Em tempos normais, as fronteiras dos Estados não são empecilho para relações 
estreitas entre pessoas. Se, per impossibile, fosse possível medir com exatidão a intensidade 
da interação social, provavelmente se descobriria que a humanidade está dividida em grupos 
que não coincidem, em absoluto, com os Estados existentes”32. 
 
Há, ademais, interação em toda a natureza, sendo certo que nem tudo aquilo que 
interage constitui apenas por isto uma unidade. 
Por outro lado, a tentativa de salvar a interação como elemento que asseguraria ser o 
Estado algo mais que o Direito, no sentido de afirmar que, dentro de um mesmo Estado, a 
interação entre indivíduos é maior que a que se verifica entre indivíduos de Estados diferentes 
revela que, aqui, a própria formulação do problema sociológico é de natureza jurídica (por 
diversas expressões, primeiro pressupõe o Estado em seu conceito jurídico para depois “salvá-
lo” sociologicamente, por ficção política, como unidade social “independente” do Direito)33. 
 
2) vontade ou interesse comum: 
Aponta-se, além disso, para a vontade ou o interesse, comum ou coletiva(o) (ou ainda 
sentimento coletivo, consciência coletiva, alma coletiva) como o elemento sociológico que 
unificaria os indivíduos de um mesmo Estado. 
Porém, se por vontade coletiva quer-se designar a vontade dos indivíduos que 
pertencem ao Estado, não há como sustentar que todos eles sempre queiram, sintam e pensem 
de modo comum. Nesta acepção, então, estaria descartada a unidade real entre indivíduos. 
 
32 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 186. 
33 Ou, por diversas expressões: “Dizer que o Estado é uma unidade social concreta é dizer que os indivíduos que, 
num sentido jurídico, pertencem ao mesmo Estado também têm ma relação recíproca, i.e., que o Estado é uma 
unidade social real, além de uma unidade jurídica. Pressupõe-se o Estado como unidade jurídica quando se 
formula o problema da sua unidade sociológica” (KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 186). 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
16
Ao mesmo resultado (e por razão ainda mais forte) chega-se se por vontade coletiva 
entende-se a vontade do Estado, que está acima e além da vontade dos indivíduos. 
Compreende-se aqui que a chamada vontade do Estado sobrepuja a dos indivíduos. Mas isto 
simplesmente descortina a percepção de que a ordem jurídica nacional impõe-se com força de 
obrigatoriedade a seus membros. Logo, designa-se por vontade do Estado – a saber, àquilo 
que deveria ser estranho a todo Direito – o próprio Direito. Ademais e ainda neste caso, 
atribui-se a uma abstração uma força real (hipostasiação), ou, conformese prefira, declara-se 
a vontade do Estado como uma realidade psicológica ou sociológica, atribui-se “caráter 
substancial ou pessoal a uma relação normativa entre indivíduos”34. 
Por fim, se se fala em interesse coletivo, não se encontra igualmente nenhum 
elemento sociológico que atribua ao Estado uma natureza a-jurídica. É que, no interior dos 
Estados, o que há invariavelmente é uma população dividida por interesses mais ou menos 
opostos entre si. Tivessem todos os indivíduos, sempre e de fato, interesses comuns, o Direito, 
aliás, seria de todo dispensável35. 
 
3) organismo: 
 
34 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 187. 
35 Embora se deva reconhecer que para Kelsen a validade das normas jurídicas depende de um mínimo de 
eficácia (no sentido de efetividade social), não é menos certo que depende também de um mínimo de ineficácia. 
Neste sentido: “Dizer que uma norma vale (é vigente) traduz algo diferente do que se diz quando se afirma que 
ela é efetivamente aplicada e respeitada, se bem que entre vigência e eficácia possa existir uma certa conexão. 
Uma norma jurídica é considerada como objetivamente válida apenas quando a conduta humana que ela regula 
lhe corresponde efetivamente, pelo menos numa certa medida. Uma norma que nunca e em parte alguma é 
aplicada e respeitada, isto é, uma norma que – como costuma dizer-se – não é eficaz em uma certa medida, não 
será considerada como norma válida (vigente). Um mínimo de eficácia (como sói dizer-se) é a condição da sua 
vigência. No entanto, deve existir a possibilidade de uma conduta em desarmonia com a norma. Uma norma 
que preceituasse um certo evento que de antemão se sabe que necessariamente se tem de verificar, sempre e em 
toda a parte, por força de uma lei natural, seria tão absurda como uma norma que preceituasse um certo fato que 
de antemão se sabe que de forma alguma se poderá verificar, igualmente por força de uma lei natural” 
(KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, pp. 11-2, grifou-se). Ou, mais precisamente: “O ilícito (delito) não é 
negação, mas pressuposto do Direito (...). Na designação de ‘não’-Direito (ilícito), ‘contradição’-com-o-Direito, 
‘quebra’-do-Direito, ‘violação’-do-Direito exprime-se a idéia de uma negação do Direito, a representação de 
algo que está fora do Direito e contra ele, que ameaça, interrompe ou mesmo suprime a existência do Direito. 
Esta representação induz em erro. (...). A existência ou validade (vigência) de uma norma que prescreve uma 
determinada conduta não é ‘quebrada’ pela conduta oposta como se quebra uma cadeia que prende um 
indivíduo; pois a cadeia do Direito prende também o indivíduo que ‘quebra’ o Direito. A norma não é ‘lesada’ 
como pode ser lesado, isto é, como pode ser prejudicado na sua existência, um indivíduo, pelo ato de coerção 
dirigido contra ele. (...). [Na proposição normativa], o ilícito aparece como um pressuposto (condição) e não 
como negação do Direito; e, então, mostra-se que o ilícito não é um fato que esteja fora do Direito e contra o 
Direito, mas é um fato que está dentro do Direito e é por este determinado; que o Direito, pela sua própria 
natureza, refere-se precisa e particularmente a ele. Como tudo o mais, também o ilícito (não-Direito) 
juridicamente apenas pode ser concebido como Direito (...)” (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, pp. 124-
6, grifou-se). 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
17
Indica-se ainda que o Estado apresenta-se ou se constitui como organismo, e não 
apenas como Direito. Por este caminho, intenta-se fundar uma sociologia do Estado na forma 
de uma biologia social. 
Na visão de Kelsen, “tal biologia poderia ser simplesmente rejeitada como absurda 
não fosse a importância política que possui”36. A teoria orgânica, que tem Otto Gierke como 
um de seus expoentes, como teoria, teria em si velado não o propósito de explicar 
cientificamente o fenômeno do Estado, mas sim o de confirmar a sua autoridade e a de seus 
órgãos, assegurando a obediência de seus cidadãos. Ao sustentar que o Estado não pode ser 
compreendido “apenas” como “instituição para o bem-estar dos cidadãos nascidos e por 
nascer”37, e que o povo não pode ser definido “tão-somente” como a soma de indivíduos – em 
suma, ao asseverar que deve haver um valor superior do todo em relação ao valor da soma das 
partes – o que se pretende é induzir as pessoas a cumprir melhor seus deveres para com o 
Estado, mantendo-as dispostas inclusive a dar por ele a própria vida. 
Também aqui, pois, restaria frustrado o intuito de assegurar cientificamente (e não 
ideologicamente) um domínio específico e extra-jurídico para o Estado. 
 
4) dominação: 
Procurou-se por fim antever o Estado em termos de dominação. Eis então que 
haveria Estado quando fosse possível identificar relações entre pessoas dentre as quais 
algumas delas comandam e outras delas obedecem. Dito de outro modo, reconhece-se no e 
como Estado a dominação que suas expressões de vontade determinam sobre a conduta de 
outros indivíduos. 
Ora, diz Kelsen, em todo lugar as relações entre pessoas procuram ser tais que a 
expressão da vontade de um indivíduo procura sempre motivar a que a conduta do outro se 
lhe seja conforme. 
 
“Na vida social concreta, verifica-se uma infinitude de tais relações de motivação. 
Dificilmente haverá qualquer relação que, às vezes e em algum grau, não assuma esse 
caráter. Mesmo o relacionamento que chamamos de amor não está de todo livre desse 
elemento, pois mesmo nesse caso sempre há alguém que domina e alguém que é 
dominado”38. 
 
 
36 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 187. 
37 GIERKE, Otto. Das Wesen der menschlichen Verbände (1902), 34 e ss. apud KELSEN, Hans. Teoria Geral 
do Direito e do Estado, p. 187. 
38 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 188. 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
18
 Nem por isso, contudo, confere-se o caráter “estatal” a todas os comandos 
individuais. Para valer-se do exemplo de Kelsen: nem por isso ao amante que domina confere-
se o nome “Estado”. De modo mais geral, isto equivale a dizer que não é em toda relação de 
dominação que há Estado, mas apenas naquelas que são ditas legítimas. Ou: os comandos 
estatais não são simplesmente aqueles emitidos por quaisquer pessoas, senão aqueles de que 
se afirma serem “comandos em nome do Estado”. 
Mas quando a dominação é legítima – ou, como se prefira, quando se pode dizer que 
tais e tais comandos são emitidos em nome do Estado? A resposta a esta pergunta não pode 
ser outra senão aquela que faça depender a legitimidade da dominação de uma ordem jurídica 
que a estabeleça como tal. E assim, a exemplo do raciocínio que se verificou em 1), tenta-se 
identificar um elemento sociológico, extra-jurídico, que caracterizaria o Estado como algo de 
marcadamente distinto do Direito, mas não sem antes pressupor este próprio Direito. 
 
“Consideremos o caso relativamente simples de um Estado em que um único 
indivíduo governa de modo autocrático ou tirânico. Mesmo em tal Estado, há vários ‘tiranos’, 
muitas pessoas que impõem sua vontade aos outros. No entanto, apenas um é essencial para 
a existência do Estado. Quem? Aquele que comanda ‘em nome no Estado’. Como distinguir 
então os comandos ‘em nome do Estado’ dos outros comandos? De nenhum outro modo a 
não ser por meio da ordem jurídica que constitui o Estado. Comandos ‘em nome do 
Estado’ são aqueles emitidos em conformidadecom uma ordem cuja validade o 
sociólogo deve pressupor quando distingue comandos que são atos do Estado e 
comandos que não têm esse caráter. (...). 
(...) sempre [há] um grande número de relações efetivas de dominação, numerosos 
atos de comando e obediência, a soma dos quais representa o ‘Estado sociológico’. O que dá 
unidade a essa diversidade e nos justifica quando consideramos o Estado como uma relação 
de dominação? Apenas a unidade da ordem jurídica segundo a qual têm lugar os 
diferentes atos de comando e obediência. 
(...) mesmo a partir de um ponto de vista sociológico, apenas uma dominação 
considera ‘legítima’ pode ser concebida como ‘Estado’ (...). Mesmo o sociólogo reconhece a 
diferença entre um Estado e uma quadrilha de ladrões39. 
A descrição sociológica do Estado como um fenômeno de dominação não é 
completa se for estabelecido apenas o fato de que homens forçam outros homens a certa 
conduta. A dominação que caracteriza o Estado tem a pretensão de ser legítima e deve ser 
efetivamente considerada como tal por governantes e governados”40. 
 
• 
Por estes argumentos e ainda por outros Kelsen sustenta que “o Estado carece de 
toda realidade substancial e prévia ao Direito”41. 
 
39 Sobre a querela instaurada por Kelsen acerca da primazia do Direito sobre a Sociologia, consulte: Der 
soziologische und der juristische Staatsbegriff: Kritische Untersuchungen der Verhaltnisses von Staat und Recht 
(Aalen: Scientia, 1981). 
40 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, pp. 188-9, grifou-se. 
41 AMADO, Juan Antonio Garcia. Estudio preliminar a ‘El Estado como integración: una controversia de 
principio, p. X, traduziu-se. 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
19
 
“A teoria do Estado da Escola de Viena sustenta que a unidade do Estado só pode 
ser fundada na esfera normativa, que é simplesmente a unidade de um ordenamento do dever-
ser, que a existência e a realidade do Estado consistem na validade de um ordenamento 
jurídico que se afirma como esquema de interpretação para uma variedade de atos humanos, 
os quais encontram a sua unidade apenas na unidade sistemática de normas que lhes confere 
o sentido específico de atos estatais. Sem essa referência, suposta como válida, ao 
ordenamento normativo não seria possível escolher, entre as inúmeras ações (e omissões) 
humanas, aquelas que devem valer como atos do Estado e que devem ser imputadas a ele; e 
nem ao menos seria possível colocá-las naquela unidade específica que chamamos Estado”42. 
 
Sendo assim, contra a autora da tese de que nos ocupamos, pode-se dizer que em 
Kelsen não há de modo algum a defesa de uma “oposição real entre Direito e Estado”, na 
exata medida em que o Estado e Direito não são postos como coisas estranhas ou distintas. 
Repita-se: em Kelsen, não há dualismo entre Direito e Estado; como se viu no início deste 
tópico, a teoria pura do Direito se afirma, a este respeito, uma teoria monista. 
 
Assim como Direito e Estado erroneamente são apresentados pela jurisprudência 
tradicional em separado, Direito privado e Direito público são apresentados por ela como 
categorias aplicáveis à sistematização geral do Direito. 
Não se trata de coincidência. É que, para Kelsen, a divisão do Direito em privado e 
público corresponde perfeitamente ao raciocínio que demanda distinguir Direito e Estado. 
Assim é que, em conformidade com um tal raciocínio, o Direito privado é estabelecido como 
o Direito propriamente dito, ou seja, aquele em que, a exemplo do que ocorre nos contratos, a 
vontade dos indivíduos que a norma sujeita adere à formação da própria norma. O Direito 
público, por outro lado, resta caracterizado como o domínio das relações de puro poder e 
discricionariedade, em que os indivíduos que são submetidos à norma em nada contribuem 
para a sua formação. Neste sentido, o Direito público afigura-se quase como um não-Direito. 
 
“Também se costumam designar as relações jurídicas de Direito privado (...) como 
relações ‘de Direito’ no sentido próprio e estrito da palavra, para lhes contrapor as relações de 
Direito público como relações ‘de poder’ ou ‘de domínio’. Assim, em geral, a distinção entre 
Direito privado e público tem tendência para assumir o significado de uma oposição entre 
Direito e poder não jurídico ou semijurídico, e, especialmente, de um contraste entre Direito e 
Estado”43. 
 
E, em excerto um pouco mais adiante: 
 
 
42 KELSEN, Hans. O Estado como integração: um confronto de princípios, p. 45. 
43 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, pp. 310-1. 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
20
“Na oposição, aceite pela teoria jurídica tradicional, entre Direito público e privado, 
ressalta já com maior clareza o forte dualismo que domina a moderna ciência do Direito e, 
como conseqüência, todo o nosso pensamento social: o dualismo de Estado e Direito”44. 
 
Então, rejeitando Kelsen o dualismo Direito e Estado, coerentemente tem também, 
como de fato o faz, de afastar a divisão do Direito em privado e público. Para tanto, mobiliza 
os argumentos que a seguir passamos a expor. 
A diferença entre o que se convencionou chamar “Direito privado” e “Direito 
público” repousa apenas na técnica de sua elaboração. Como se disse, enquanto naquele 
encontram-se normas que vinculam os próprios indivíduos responsáveis pela sua elaboração, 
neste as normas são criadas ‘autocraticamente’. 
Nem por isso, contudo, deve-se subscrever a oposição absoluta feita tradicionalmente 
entre Direito privado e Direito público. É que, vista a questão de um outro ponto de vista, esta 
oposição se relativiza e se enfraquece. Explicando: é perfeitamente possível encarar as normas 
contratuais (‘de Direito privado’) como realização de normas do Código Civil; como também 
é possível identificar num comando de autoridade a vinculação a uma lei administrativa 
superior que lhe confira validade. Em ambos os casos, a norma menos geral (norma contratual 
e comando de autoridade) pode ser vista como o prolongamento de normas mais gerais cuja 
formação é, de qualquer modo, atribuível ao Estado. 
 
“Se concebermos a distinção decisiva entre Direito público e privado como distinção 
de dois métodos de criação do Direito, se reconhecermos nos chamados atos públicos do 
Estado aqueles mesmos atos jurídicos que nos aparecem nos negócios jurídicos privados, 
sobretudo se nos dermos conta de que os atos que formam o fato produtor do Direito apenas 
são, em ambos os casos, o prolongamento do processo da chamada formação da vontade 
estatal, e de que, precisamente como no comando da autoridade, também no negócio jurídico 
privado apenas se realiza a individualização de uma norma mais geral – acolá, de uma lei 
administrativa, aqui, do código civil -, então não se nos afigurará de forma alguma paradoxal 
que a Teoria Pura do Direito, do seu ponto de vista universalista – sempre dirigido ao todo da 
ordem jurídica como sendo a chamada vontade do Estado – veja também no negócio jurídico 
privado, tal como no comando da autoridade, um ato do Estado, quer dizer, um fato de 
produção jurídica atribuível à unidade da ordem jurídica. Por esta forma, a Teoria Pura do 
Direito relativiza a oposição, tornada absoluta pela ciência jurídica tradicional, entre 
Direito privado e público, transforma-a de uma oposição extra-sistemática, quer dizer, de 
uma distinção entre Direito e não-Direito, entre Direito e Estado, numa distinção intra-
sistemática (...)”45.44 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 315. 
45 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 312. 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
21
Também porque cristalizam posições ideológicas – e não científicas – as oposições 
tornadas absolutas entre (I) Direito público e Direito privado e (II) Estado e Direito devem ser 
ser negadas. 
A ideologia latente no que tange à oposição (I) cuida da concepção segundo a qual, 
no Direito público, no qual direito constitucional e administrativo sobrelevam-se em 
importância política, não vige com a mesma força que no Direito privado o princípio da 
legalidade, já que a este o interesse do Estado ou o bem público teriam plena liberdade de se 
sobrepor. A doutrina que sustenta um Direito público (em contraste absoluto a um Direito 
privado) intenta, pois, assegurar uma liberdade (desvinculação) do governo e do aparelho 
administrativo para com o Direito, caindo, assim, na contradição de sustentar como princípio 
de Direito e critério de sua divisão principal a desvinculação para com o Direito. 
Quanto à oposição (II), a sua necessidade ideológica (a-científica, portanto) está na 
justificação do Estado pelo Direito, sendo certo que, para tanto, é preciso que Estado não 
signifique o mesmo que Direito. 
 
“O Estado deve ser representado como uma pessoa diferente do Direito para que o 
Direito possa justificar o Estado – que cria este Direito e se lhe submete. E o Direito só pode 
justificar o Estado quando é pressuposto como uma ordem essencialmente diferente do 
Estado, oposta à sua originária natureza, o poder, e, por isso mesmo, reta ou justa em 
qualquer sentido. Assim o Estado é transformado, de um simples fato de poder, em Estado de 
Direito que se justifica pelo fato de fazer o Direito. Do mesmo passo que uma legitimação 
metafísico-religiosa do Estado se torna ineficaz, impõe-se a necessidade de esta teoria do 
Estado de Direito se transformar na única possível justificação do Estado. Esta ‘teoria’ torna o 
Estado objeto do conhecimento jurídico, a saber, da teoria do Estado, na medida em que o 
afirma como pessoa jurídica, e, ao mesmo tempo e contraditoriamente, acentua com todo vigor 
que o Estado, porque e enquanto poder e, portanto, algo de essencialmente diverso do Direito, 
não pode ser concebido juridicamente. Esta contradição, porém, não lhe faz a menor mossa. 
Aliás as contradições em que necessariamente as teorias ideológicas se enredam não 
significam para elas qualquer obstáculo sério. Com efeito, as ideologias não visam 
propriamente o aprofundamento do conhecimento mas a determinação da vontade. Aqui não 
se trata tanto de apreender a essência do Estado como antes fortalecer a sua autoridade”46. 
 
• 
Fundamentalmente, são estes os argumentos científicos erigidos por Kelsen contra o 
dualismo Estado e Direito que, como se mostrou, inclui a oposição entre Direito público e 
privado. 
Mas a autora da tese objeto da presente análise insiste em afirmar – pura e 
simplesmente, sem maiores explicações ou ressalvas – que Kelsen rejeita a divisão “Direito 
 
46 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 316, grifou-se. 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
22
público / Direito privado” porque, em última instância, todo Direito seria público, posto que 
emanado do Estado. 
Ora, para colocar as coisas assim, seria preciso, no mínimo, a) que Kelsen não 
definisse o Estado em termos puramente jurídicos (o Estado como fonte do Direito não 
poderia, evidentemente, ser já em si uma ordem normativa – o que é a própria tese de Kelsen) 
e b) que para este filósofo só pudesse haver Direito na pressuposição da existência de um 
Estado. 
Estando já suficientemente demonstrado que a) não cabe dentro da teoria do Estado 
de Kelsen (que nada mais é que a própria teoria do Direito), cumpre-nos agora, a fim de 
igualmente afastar b), desfazer um equívoco que parece comum aos leitores e comentadores 
de Kelsen. 
É que, ao se afirmar que Kelsen defende a identidade do Estado e do Direito, pode-se 
até com alguma coerência supor que isto signifique que, da mesma forma que não há Estado 
sem Direito, também não haveria Direito sem Estado. 
Entretanto, enquanto a primeira inferência é correta (ou melhor, corresponde 
efetivamente ao pensamento de Kelsen), a segunda não o é (ou não lhe corresponde). 
Reconhece Kelsen a existência de ordens jurídicas pré-estatais (não perdem a qualidade de 
jurídicas porque não constituem um Estado). E, mais importante que isto (dada a sua tese da 
primazia do Direito Internacional): há uma ordem jurídica que suplanta os Estados e não 
constitui um outro Estado. 
 
“Como organização política, o Estado é uma ordem jurídica. Mas nem toda ordem 
jurídica é um Estado. Nem a ordem jurídica pré-estatal da sociedade primitiva, nem a ordem 
jurídica internacional supra-estatal (ou interestatal) representam um Estado”47. 
 
“[Segundo Kelsen], existiriam direitos pré-estatais, ordenamentos jurídicos carentes 
do grau de centralização institucional que caracteriza os Estados, e também, em nossa época, 
o ordenamento jurídico internacional seria um exemplo de direito sem Estado. O que Kelsen 
rechaça é que exista uma realidade de Estado prévia ou distinta da de um ordenamento 
jurídico. Onde não há ordenamento jurídico não há Estado de nenhuma forma”48. 
 
Daí porque não se pode dizer, como se faz nesta tese, a pretexto de citar e explicar 
Kelsen, que “todo o Direito [tenha] como princípio o Estado”49 ou que “o Estado encontra-se 
sempre presente, na origem e na aplicação do Direito, uma vez que é a fonte de todo o 
 
47 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 317. 
48 AMADO, Juan Antonio Garcia. Obra citada, p. X, traduziu-se. 
49 RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 421. 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
23
Direito”50, ou ainda que “o Estado (...) [represente] a totalidade da ordem legal e 
constitucional”51. 
 
Considerações finais 
 
Em primeiro lugar, faz-se mister ressaltar o caráter parcial desta análise. Fruto de um 
recorte – visto não ser seu objetivo voltar sua atenção a todas as 537 páginas da tese de 
doutoramento (o que em si já lhe atribui ao menos o mérito da eloqüência) -, não é inocente 
(nenhuma escolha é isenta). 
Tendo em vista os interesses e preocupações próprios da autora desta análise, 
ocupamo-nos em alguns poucos assuntos específicos: a delineação básica do conceito de 
soberania em Bodin; a sua distinção entre Estado e governo; o papel da história e da ciência 
política (segundo as suas idéias); a sua concepção de Direito e de justiça; a sua explicação 
sobre a origem ou formação do Estado; o nascimento do Direito público em paralelo com a 
evolução da idéia de soberania e, por fim, as alusões que na tese são feitas ao jusfilósofo de 
nossas pesquisas, Hans Kelsen. 
Embora capaz de suster a pena por tão longas páginas, por vezes a autora passa a 
impressão de ter feito questão de fazer nela repousar a integralidade de seus fichamentos. 
Explicamo-nos: uma quantidade realmente avultosa de pensadores é citada, seja como críticos 
diretos do pensamento de Bodin, seja como expoentes da filosofia e / ou ciência política. 
Talvez seja esta a razão pela qual, na tentativa de passá-las em revista, à explanação tenha 
escapado a essência dasidéias de cada um deles. Pelo menos, é o que ocorreu com relação às 
menções a Kelsen. 
Também os conceitos parecem titubeantes. Sem deixar de conceder que cada 
conceito tem forjado seu conteúdo semântico (seu caráter referencial) pela história e daí, não é 
fixo e imutável (como na concepção platônica) – já se disse que todo conceito é cicatriz de 
uma ferida -, deve-se, por outro lado, reconhecer na tese uma certa falta de clareza. Assim, a 
título de exemplos, restou-nos impossível esclarecer se em Bodin lei natural e lei divina se 
confundem; se é ele e em que medida um defensor de um direito natural; o que exatamente 
ele pretendia significar por universalidade do direito (ou por leis humanas comuns a todos os 
povos, se é que correspondem à mesma coisa) ou se Estado e soberania se equivalem. 
 
50 RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 421, grifou-se. 
51 RISCAL, Sandra Aparecida. Obra citada, p. 422. 
 
 Carolina Muranaka Saliba 
 
 
24
De qualquer forma, como trabalho intelectual, reputou-se, em conclusão, útil esta 
análise, mormente porque foi-nos possível (re)encontrar categorias recorrentes no pensamento 
político e, em especial, na Teoria do Direito: soberana, Estado, Direito, justiça, ser e dever 
ser. 
 
Referências Bibliográficas 
 
KELSEN, Hans. Direito Internacional e Estado soberano. Organização de Mario G. Losano e 
Tradução de Marcela Varejão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 
____________ . El Estado como integración: una controversia de principio. Estudo 
preliminar e tradução de Juan Antonio Gacia Amado. Madrid: Tecnos, 1997. 
____________ . Estado como integração, O: um confronto de princípios. Tradução de Plínio 
Fernandes Toledo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 
____________ . Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. São 
Paulo: Martins Fontes, 1992. 
____________ . Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: 
Martins Fontes: 1999. 
RISCAL, Sandra Aparecida. O conceito de soberania em Jean Bodin: um estudo do 
desenvolvimento das idéias de Administração Pública, Governo e Estado no século XVI. 
Campinas: [s.n.], 2001. Disponível na World Wide Web em 
http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000225862 (acesso em 11/06/2004).

Continue navegando