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A função do orgasmo no Direito Ocidental POR PAULO FERRAREZE FILHO E MAÍRA MARCHI GOMES Nenhuma civilização conheceu uma sexualidade mais charlatã que a nossa. – M. Foucault O homem ocidental tarda em média uns 8 minutos numa trepada. Na Índia oriental, com o tantrismo, sabedoria milenar de tempos arcaicos e matriarcais, uma trepada não é só uma trepada, mas um complexo ritual que não necessariamente começa e termina. O sexo tântrico é um processo sem fim. Claro, um processo diferente dos nossos de juristas, sem intimações, oficiais de justiça e escreventes feias com inveja da juíza… O tantra entende a vida como exercício erótico e como sexualidade contínua. Resumindo, afirma que, se quisermos, estamos sempre transando – transando com a vida, transando no ônibus, transando latas de sardinha, transando manequins, transando nossas namoradas e namorados, transando gatos pardos, árvores, transando durante o sono, durante um churrasco, durante uma partida de futebol. Assim como os filmes pornô são para maiores de 18, o tantrismo é para quem compreende além de uma certa graduação, que não pode ser medida cronologicamente. É uma espécie de experiência mágica do espírito. Se nada disso fizer sentido, é sinal de que você ainda é só o coelho da cartola. Mas não se entristeça – todo mundo um dia foi esse coelho. Dá pra se compreender que hoje, com dois ou três empregos, facebook, instagram, twitter, whatsapp, LinkedIn, filhos, banhos, cagadas, almoços, reuniões e academia, sobre pouco tempo para se fazer do sexo um ritual tântrico. O tempo para o sexo é agendado e deve durar o necessário para que se goze. A ejaculação precoce é, portanto, um fato ocidental. O gozo é um compromisso com hora marcada e, por isso, um ponto de partida para pensar o sujeito jurídico do ocidente. O desespero pela quantidade e, o que é pior, pela exposição dessa quantidade, tornam a coisa horrível. O que pode ser pior que uma ejaculação precoce? Talvez uma broxada. Além do desespero pela quantidade e sua exposição, há outro: o de ser causa do gozo alheio. Muito broxante a ideia de que devemos nosso gozo a alguém. Imposição de culpa que não cabe entre lençóis. Ideais de altruísmo e culpa devem ser reservados ao espaço religioso. Cláudio Pfeil fala que “os gatos sempre nos fascinaram e continuam a nos fascinar. Mas por que os gatos nos fascinam tanto? Eles nos fascinam porque não estão numa relação de demanda, de espera em relação ao seu dono. Eles são domésticos, mas não se deixam domesticar. Desde sempre são a imagem da independência, da liberdade, do gozo. O gato está sempre a nos dizer: o meu gozo, eu não devo a ninguém!”. Miemos e ronronemos, pois! Com a pressão pelas quantidades e a espetacularização do gozo, corre-se o risco tanto da ejaculação precoce quanto de broxar. Se o mundo broxar, não há útero que salve a humanidade. Por isso, é preciso reestabelecer contato com o masculino medroso de hoje. Dar um F5 nele. Os antidepressivos fazem o tesão ficar a um nível quase zero. Ter que tomar antidepressivo é, portanto, uma espécie de broxada forçada que se deve dar para que o sujeito não fique com a sanidade comprometida. O engraçado é que a Era das Quantidades e do Altruísmo Inventado está acabando com o tesão do mundo. O sexo exposto tem feito com que o sexo em si, geralmente guardado para o espaço privado, ou broxe, ou goze rápido demais. Claro que, no direito, as consequências são horríveis, como o leitor pode imaginar, afinal, os juristas também amam. Quem não transa com alguma regularidade geralmente é insuportável. Os cartórios e as varas (afinal, quando vamos mudar esse nome: varas?) estão cheias de gente assim. Funcionário público que faz sempre o mesmo trabalho, mecanicamente, por vinte ou trinta anos, ou é insuportável porque já não transa muito, ou então se agarra a alguma coisa: marxismo, bichinhos de pelúcia, coleção de selos, ciclismo, ioga, carros, seriados, torneios de canastra, boliche, mochilão, gastronomia, literatura, filmes, camping, bebida, suicídio, satanismo, caminho de Santiago de Compostela, dança de salão, parreiras de uva, seitas evangélicas. Todo mundo conhece alguma tia azeda que não transa desde que Ulisses disse que a Constituição de 88 ia nos salvar. Aquelas tias que, como a raposa das uvas verdes, lidam com sua frustração sexual desqualificando ou moralizando o desejo dos outros. O mundo é injusto, hierárquico e patriarcal. Por isso que essa castidade imposta atinge mais as mulheres. Elas sempre sofreram mais com a própria sexualidade por conta de uma sacanagem da história, por terem menos músculos e por gozarem mesmo não carregando um pinto no meio das pernas. Nos alegramos com a marcha das vadias porque elas tem essa função de democratizar o gozo livre do clitóris do mundo. Ficamos felizes com pichações na rua que dizem Meu clitóris, meu país. É um direito fundamental pichado num muro e não escrito na Constituição. O povo entende mais os direitos fundamentais escritos nos muros do que na Constituição. Em Viena, no século passado, se reuniram, durantes alguns anos, intelectuais que formaram o que ficou conhecido como Círculo de Viena. Imaginamos esse tal Círculo de Viena como uma reunião de velhos em pleno inverno europeu, fedendo a uísque e charuto, e sem muito interesse em sexo. Wilhem Reich, que participou desse círculo, escreveu um livro chamado “A função do orgasmo”. Reich provavelmente deve ter se dado melhor com as mulheres do que os outros tios do tal círculo. Ele deve ter se dado melhor que Freud que, apesar de falar bem, transava pouco: “A moral sexual, tal como ela é definida pela sociedade, sobretudo em sua forma extrema como a da América, parece-me muito desprezível. Sou partidário de uma vida sexual infinitamente mais livre, mesmo tendo eu usado muito pouco de tal liberdade” (Freud, 1937, p.331). Para Reich (1990, p.14), “a saúde psíquica depende da potência orgiástica, do ponto até o qual o indivíduo pode entregar-se e experimentar o clímax de excitação no ato sexual natural. Baseia-se na atitude de cunho não neurótico da capacidade do indivíduo para o amor. As enfermidades psíquicas são o resultado de uma perturbação da capacidade natural de amar.” Uma reviravolta só pode acontecer se recuperarmos a sensibilidade do corpo, liberto de noções classificatórias ou categorias maniqueístas e agonizantes. Luis Alberto Warat reconhecia que o direito tinha roupado o corpo dele porque sabia que a origem da justiça no ocidente passava pela negação do arrepio, do prazer e do orgasmo livre. Agostinho, o monge chato do medievo, defendia que o sexo devia ser feito sem prazer. Imagine você lá, no bem bom, pensando no Imposto de Renda, só pra não ter prazer. Também Ambrósio, na Idade Média, alinhou mil razões para sustentar o seu Discurso sobre a Castidade. O sexo virou um negócio estético – uma modelo linda de revista que é frígida na cama porque não foi educada pra ter prazer, afinal, sexo descabela, faz suar, suja, gruda, borra e até tira maquiagem. O jurista não foge do cabresto e é formado nessa mesma estrutura de castração. O ímpeto por julgar vem da miopia em relação à própria sexualidade. Este instinto de dizer que “algo é…” vem de um canto escuro não sabido pelo jurista-tipo-normalpata. E todo julgamento precisa dizer que algo é…ou que não é. E Warat sabia que só as partes podem dizer, mas nunca um terceiro como o juiz. Precisamos da mentira para que a nossa vida política, jurídica e íntima fique de pé. Estupradores, pedófilos, dementes sexuais e outros personagens do direito penal são produto da nossa incompetência com o sexo, do entendê-loao fazê- lo. Da teoria à prática, somos analfabetos dos poderes curativos das sensações laicas que vêm do respeito ao tesão. São pedófilos latentes julgando pedófilos manifestos. E dizendo no final: cumpra-se! Daí se explica a delicadeza de elefante de alguns promotores quando perguntam para crianças de 8 anos se elas foram ou não penetradas pelo pai bêbado e, se dessa penetração, restaram fissuras anais. Na concepção técnica deles a criança deveria saber a distinção entre encostar o pênis, penetrar, tentar penetrar… Qual a pertinência jurídica da penetração? Qual a diferença jurídica entre penetração e toque peniano? Faltam teses de doutorado sobre essas relevantíssimas diferenças conceituais… Não há como não pensar nos conflitos sexuais latentes do operador do direito que se apega à perfeição do que é transcrito numa ata de audiência, quando pensa que ela é um livro sagrado capaz de vingar a maldade dos homens maus, com a confissão pura de criancinhas boas. Quais os monstros sexuais de uma promotora que pergunta a uma menina de 7 anos, vítima de estupro gravado por câmeras, se ela havia gostado? Ou de um delegado que se diz tarado por investigar crimes sexuais? Coisas assim acontecem todos os dias, ora explícitas, ora veladas, nas salas de audiência de todo o Brasil. Freud, em geral um desconhecido da burocracia jurídica, em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (Freud, 1905), desvela a sexualidade infantil, informação útil para operadores do direito que teimam em não encarar seus fantasmas sexuais sedutores. “Podemos dizer simplesmente à sociedade que isso que ela chama sua moral custa sacrifícios maiores do que ela vale e que faltam aos seus procedimentos tanto sinceridade quanto sabedoria” (FREUD, 1916-1917, P.411) De noite, caçadores lançam sobre o animal que encontram, um canhão de luz que vem de um celebrim potentíssimo. A luz, diretamente nos olhos do bicho, além de iluminar o local, o deixa estático, esperando pela bala da morte. É a luz em excesso que causa medo e que o paralisa completamente, deixando-o indefeso e coitado diante do caçador. O foco de luz colocado no grão do olho da nossa sexualidade também a deixa cega, parada e medrosa. Nos desumaniza. Nos afasta do amor. Nos impede de ver. Nos impede de dar uma boa transada tântrica. Paulo Ferrareze Filho é Doutorando em Direito (UFSC). Mestre em Direito (UNISINOS/RS). Professor de Psicologia Jurídica (AVANTIS). Advogado. Maíra Gomes Marchi é Doutoranda em Psicologia (UFSC). Mestre em Antropologia (UFSC). Psicóloga da Polícia Civil de Santa Catarina. REFERÊNCIAS FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Rio de Janeiro: Imago, 1996. FREUD, Sigmund. Introduction à lá psychanalyse (1916-1917). Paris: Payot, 1991. REICH, Wilhem. A função do orgasmo: problemas econômico-sexuais da energia biológica. Círculo do Livro: São Paulo, 1990
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