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190 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.190-201 ESTRATÉGIAS DESCOLONIAIS: NOTAS SOBRE A DESOBEDIÊNCIA EPISTÊMICA Luis Felipe Carvalho Resumo: O presente trabalho toma como ponto de partida a descolonialidade do saber tal como desenvolvida por Walter Mignolo (2008). O lugar do intelectual moderno, aquele que, numa posição de destaque, atua como mediador das reivindicações populares, perde terreno para a ação de outros agentes e perspectivas. A partir daí, seguem-se estratégias descoloniais, como a desobediência epistêmica, para questionar a hegemonia do pensamento ocidental com outros modos de saber próprios das culturas indígenas e afro-descendentes. Cria-se, desse modo, o que Mignolo denomina “pensamento fronteiriço” através de relações transversais que podem ser conciliadoras ou conflituosas. O questionamento que se segue é à perspectiva universal da epistemologia. O que se sugere aqui, em contraposição, é a discussão de autores e agentes culturais que lidam dentro de uma proposta pluri-versal. Palavras-chave: descolonialidade; epistemologia; relações étnico-raciais. DECOLONIAL STRATEGIES: NOTES ON EPISTEMIC DISOBEDIENCE Abstract: This paper takes as its starting point the decoloniality of knowledge as developed by Walter Mignolo (2008). The place of modern intellectual, who, in a prominent position, acts as mediator of popular demands, loses ground to the action of other agents and prospects. Thereafter, it follows decolonial strategies, such as epistemic disobedience, to challenge the hegemony of Western thought against others ways of knowing, such as the ones specific from indigenous and African-descent cultures. Is created, thereby, what Mignolo calls "border thinking" through transversal relationships that may be conciliatory or confrontational. The following question is the universal perspective of epistemology. What we suggested here, by contrast, is the discussion of authors and cultural agents who deal within a pluri-versal proposal. Keywords: decoloniality; epistemology; ethnic-racial relations. STRATÉGIES DÉCOLONIAUX: NOTES SUR LA DÉSOBÉISSANCE ÉPISTÉMIQUE Résumé: le présent article prend comme point de départ le decolonilité du savoir comme développée par Walter Mignolo (2008). Le lieu de l'intellectuel moderne, celui qui, dans une position de détache, agit comment médiateur de revendications populaires, perd du terrain par l'action des autres agents et des perspectives. De là, des stratégies se suivent décoloniaux, comme la désobéissance épistémique désobéissance, par questionner l'hégémonie du pensée occidentale avec d'autres modes de savoir propres des cultures indigène et afro descendant. Il crée, ainsi, ce Mignolo appelle “pensamento fronteiriço (pensée de la frontière)” à travers relations croisées qui peuvent être conciliante ou conflictuelle. La question suivante est la perspective universelle de l'épistémologie. Ce qui est proposé ici, en revanche, est la discussion des auteurs et des agents culturels qui traitent dans une proposition pluri-verselle. 191 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.190-201 Mot-clé: Decolinialité; épistémologie; relations ethno-raciales. ESTRATÉGIAS DESCOLONIALES: NOTAS SOBRE LA DESOBEDIÉNCIA EPISTÉMICA Resumen: El presente trabajo toma como punto de partida la descolonialidad del saber tal como desarrollada por Walter Mignolo (2008). El lugar del intelectual moderno, aquel que, en una posición de destaque, actúa como mediador de las reivindicaciones populares, pierde espacio para la acción de otros agentes y perspectivas. A partir de ello, estrategias descoloniales, como la desobediencia epistémica, para cuestionar la hegemonía del pensamiento occidental con otros modos de saber propios de las culturas indígenas y afrodescendientes. Se desarrolla, de este modo, lo que Mignolo denomina “pensamiento fronterizo” a través de relaciones transversales que pueden ser conciliadoras o conflituosas. El cuestionamiento que se sigue es la perspectiva universal de la epistemología. Lo que se sugiere acá, en contraposición, es la discusión de actores y agentes culturales que se organizan dentro de una propuesta pluri-versal. Palabras-clave: descolonialidad – epistemología – relaciones étnico-raciales APRESENTAÇÃO: AS ESTRATÉGIAS DESCOLONIAIS À globalização epistêmica se responde com a desobediência epistêmica e ela leva a outra opção de pensamento e de ação que é a opção descolonial. Opção em relação a que? Por um lado, aos grandes meta-relatos imperiais e, por outro, às formações disciplinares (Walter Mignolo). É possível ou mesmo desejável explicar ou decifrar os saberes indígenas? A quem interessa a interpretação desses saberes? A tradição da modernidade / colonialidade procurou analisar – e traduzir – os mitos, os ritos, os sonhos, os modos de vida, as relações sociais, econômicas e culturais dos povos fora do seu eixo geo-político à luz de suas próprias formas de conhecimento. Foi através do pensamento racional que criaram conceitos e teorias estranhas às culturas indígenas. Fica a questão: como essas formulações teóricas fabricados pela Ocidente dialogam, respeitam – e até mesmo se são úteis – para as diversas culturas indígenas que vivem na América Latina? A proposta deste artigo é uma reflexão teórica sobre os possíveis espaços de produção e troca de conhecimentos interculturais dentro da universidade e da sociedade. Algumas questões surgem: Será que existem de fato esses espaços? Como, então, criá- los dentro da sociedade brasileira, onde os estereótipos e os preconceitos em relação aos 192 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.190-201 povos indígenas são tão determinantes? Ou ainda, como construir terrenos férteis para outros modos de saber – as gnosiologias não-ocidentais1 – em nosso país onde a tutela deu o tom das políticas públicas indigenistas? A investigação desdobra-se em três momentos: no primeiro, algumas considerações sobre o conceito de desobediência epistêmica (Mignolo, 2008). No segundo, uma reflexão sobre o Estado e a doxa e a imposição de seu controle e agências de dominação reproduzindo a lógica da modernidade / colonialidade. No terceiro momento, apontarei alguns posicionamento políticos de artistas que tentam pensar desde um outro lugar – a subalternidade – seguindo uma opção descolonial onde os saberes nativos são potencializados e encontram um espaço para a sua produção e a sua circulação. Os pensadores da descolonialidade, como Walter Mignolo, se contrapõem à epistemologia da modernidade / colonialidade ao proporem um pensamento fronteiriço que segue uma lógica menos uni-versal e mais pluri-versal (Mignolo, 2008). Desse modo, questiona-se a relação desigual e hierárquica que sobrepõe a matriz europeia aos saberes indígenas. Um outro trabalho que investigasse a recepção dessas teorias da descolonialidade dentre os movimentos indígenas seria importante, embora esse não seja o objetivo deste artigo. De qualquer forma, é necessário questionar se essas propostas teóricas na prática mostram-se efetivas e úteis para os movimentos indígenas. Busca-se aqui trabalhar com os pontos de vista daqueles grupos marginalizados ou excluídos da lógica da modernidade / colonialidade – os “não incluídos nos fundamentos dos pensamentos ocidentais” (Mignolo, 2008, p. 305) – que se expressam através de seus idiomas, de seus conceitos e de seu saber periférico, seguindo a opção descolonial. Desse modo, questiono os termos universalizantes do pensamento ocidental que excluiu de seus enunciados e de sua doxa os selvagens, os loucos e os hereges. Para HaydenWhite (1994) essa exclusão aparece na divisão da humanidade segundo a tradição judaico-cristã. De um lado temos a: a civilização, a sanidade e a ortodoxia. Enquanto, de outro lado, suas antíteses dialéticas: wildness2, loucura e 1 Trabalho com a distinção entre epistemologia e as gnosiologias não ocidentais proposto por Walter Mignolo (2003). 2 O “estado selvagem” ou “selvageria”. 193 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.190-201 heresia. O final da Idade Média e o início do Renascimento foi marcado pela autodefinição aparente por negação, ou seja, o sentido da vida deveria ser estabelecido pela negação de sentido do seu antípoda. Valores como: graça, virtude, pureza, ortodoxia, sanidade e eleição prevaleciam sobre seus exemplos negativos: pecado, heresia, insanidade e maldição. As sociedades sentem-se na obrigação de preencher áreas do conhecimento que ainda não foram definidas pela ciência. Para isso, operam com o seguinte princípio: “Talvez eu não conheça o conteúdo exato da minha própria humanidade, mas certamente não sou assim” (White, 1994, p. 171). Quem poderia ser associado aos selvagens, aos loucos e aos hereges estaria desprovido de atividade cognitiva. Isto é, não são sujeitos do conhecimento, mas apenas objetos a serem conhecidos. Na opção descolonial, em contraposição, a tarefa é a de identificar esses agentes como sujeitos do conhecimento. São sujeitos políticos que fabricam expressões singulares de sua cultura e, por isso, não é possível encaixar e fixar seus saberes dentro das classificações formais da teoria do conhecimento eurocêntrica. “Descolonial significa pensar a partir de exterioridades e de uma posição epistêmica subalterna vis à vis à hegemonia epistêmica que cria, constrói, erige um exterior a fim de assegurar sua interioridade” (Mignolo, 2008, p. 304). A DESOBEDIÊNCIA EPISTÊMICA COMO OPÇÃO DESCOLONIAL La interpretación de nuestra realidad con esquemas ajenos sólo contribuye a hacernos cada vez más desconocidos, cada vez menos libres, cada vez más solitarios. (Gabriel García Marquez) O pensamento descolonial tem como ferramenta de luta a desobediência epistêmica que permite que as gnosiologias não-ocidentais pensem a partir de seus próprios enunciados e que essas diferentes perspectivas dialoguem entre si. Escapam, assim, das hierarquizações pré-estabelecidas do pensamento ocidental. Agora, será que a opção descolonial é suficiente para proporcionar essa mudança de rumo e transformação teórica, metodológica e pedagógica? Ela cria condições para o 194 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.190-201 surgimentos de um novo espaço de interação da diferentes gnosiologias que permita que elas escapem ao rigor controlador dos saberes e fazeres canônicos da universidade? O lugar de enunciação do pensamento, no caso da América Latina, coloca em questão relações de força desiguais e é nesse ambiente que emerge o pensamento fronteiriço, entre os saberes nativos – descoloniais – e os saberes da modernidade / colonialidade. A própria condição de existência latino-americana marca o conhecimento produzido nas regiões onde a colonização europeia se impôs. É a partir da subalternidade que o pensamento é construído e se insere na lógica da modernidade / colonialidade, entre a inevitável imposição imperial e a desobediência epistêmica. Uma outra geopolítica é ativada por Mignolo o que viabiliza alternativas aos traços classificatórios da geografia colonial e as gnosiologias não-ocidentais enunciam outros saberes e outras lógicas espaço-temporais. Na América Latina, diz Eduardo Subirats, proliferam “subúrbios simbólicos e políticos da exemplar modernidade e pós- modernidade do 1º. mundo” (Subirats, 2001, p. 134). As fronteiras são ambientes prolíficos para as trocas e os “tráficos legais e ilegais de mercadorias, seres humanos e símbolos” (SUBIRATS, 2001, p. 134). Por todo o território latino-americano disseminam-se as culturas afro-indígenas vinculadas, atualmente, à cultura globalizada, fragmentada e massificada. O pensamento fronteiriço, em sua opção descolonial, tem como objetivo pensar, nas palavras de Silviano Santiago (1978), num entre-lugar da produção do conhecimento nesses espaços historicamente subalternizados. Ao mesmo tempo, em que se insere num projeto global deve registrar e pensar a manutenção e a transformação das histórias e culturas locais. O trabalho é buscar enunciar outras existências, outros modos de saber, outras geografias e outras histórias. E, com isso, ativar uma existência fronteiriça: “a fronteira do Outro: do europeu, da teologia e da lógica da colonização, dos discursos redencionistas da conversão universal ou do progresso global e sustentável. Fronteira, limite e negação do próprio conceito de modernidade” (Subirats, 2001, p. 135). A tarefa não é fácil, sobretudo porque, segundo Mignolo (2008), vivemos marcados pela “ferida colonial”, isto é, somos herdeiros de um pensamento cujas duas faces são a modernidade e a colonialidade. A questão é: como superar ou, ao menos, conviver com, essa ferida colonial? Para Mignolo deve-se buscar “um pensamento desde outro lugar, imaginando uma linguagem outra, arguindo por uma lógica outra” 195 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.190-201 (Escobar, 2003, p. 64). O que se planteia para nós é a opção descolonial através da desobediência epistêmica. Porém, é preciso refletir se essa proposta do Mignolo é viável nas práticas interculturais. A força das gnosiologias não-ocidentais para Alejo Carpentier seguem um fluxo lateral e na sua literatura ele a expressou através do real maravilhoso. “Uma inesperada alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação não habitual [...], de uma ampliação das escalas e categorias da realidade” (Carpentier, 2006, p. 13). Com o “pensamento fronteiriço” manifestam-se diferentes modos de saber e de se expressar onde são criados outros espaços-tempos híbridos e sem hierarquizações pré-estabelecidas. Hoje, proliferam os ambientes, as atitudes, as performances de construção do conhecimento e de expressões artísticas. A internet oferece opções para os movimentos indígenas e sociais produzirem, divulgarem e trocarem suas experiências artísticas, culturais e políticas. O ESTADO E A DOXA As outras gnosiologias falam desde a subalternidade e possuem seus próprios signos para subverter a “ferida colonial” e construir um pensamento fronteiriço. No entanto, estão inseridas em práticas políticas que se sustentam nos Estados. É na relação com ele que as alternativas interculturais vão sendo forjadas dentro de uma imposição da doxa e dos valores universais próprios da dinâmica do campo político da modernidade / colonialidade. O Estado, comparado a outras formas de organização política, mantém uma singularidade. Para Marc Abélès (1996), é necessário estudar a natureza dessa diferença para que possamos entender o que distingue esse sistemas políticos. Existem dois estados de sociedade: “um primitivo e baseado nos vínculos de parentesco e outro com um estado: a aparição da propriedade e o significado da territorialidade marcam a passagem de um modo de organização para o outro” (Abélès, 1996, p. 667). O Estado é o responsável por estabelecer as operações universais e unificadoras. Para Pierre Bourdieu, ele o faz moldando as visões de seus cidadãos, conformando-as às suas perspectivas. A escola exerce um papel fundamental nessa ação ao “impor e 196 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.190-201inculcar universalmente [...] uma cultura dominante assim constituída em uma cultura nacional legítima” (Bourdieu, 1996, p. 106). A monopolização do universal em todos os âmbitos (cultural, político, econômico e social) pelo Estado e por alguns poucos eleitos remete todas as outras culturas, modos de existência, de relacionamento e de saber à particularidade e, também em alguns casos, à marginalidade. Os médicos, os professores, os juízes tem o poder de nomeação, pois se utilizam de uma capital simbólico acumulado e reconhecido ao longo de uma extensa cadeia de atos de consagração. O último anel dessa cadeia, segundo Bourdieu, é o Estado que nomeia “o que está autorizado a ser, o que tem direito a ser, o ser social que ele tem o direito de reivindicar, de professar, de exercer” (Bourdieu, 1996, p. 114). Nas nossas sociedades, o Estado produz estruturas de organização e regulação da realidade e das práticas sociais. “Ele exerce permanentemente uma ação formadora de disposições corporais e mentais que impõe, de maneira uniforme, ao conjunto dos agentes” (Bourdieu, 1996, p. 116). A obediência a esse poder criador do Estado não é mecânica e nem uma submissão consciente a uma ordem ou a uma força. Seria, no entender de Bourdieu, uma disposição do corpo intimamente enraizada e que não passa, portanto, pela consciência; são, na verdade, chamados à ordem. “A evidência das injunções do Estado só se impõe de maneira tão poderosa porque ele impôs as estruturas cognitivas segundo as quais é percebido” (Bourdieu, 1996, p. 117-118). Esse é o fundamento da eficácia simbólica dos ritos do Estado. Desse modo, ele não precisa necessariamente dar ordens ou infundir-se coercitivamente para que o mundo social aja em consonância com o seu ordenamento. Ele produz estruturas cognitivas incorporadas que se adequam à doxa – que é uma ortodoxia – ou visão correta e dominante. No entanto, essa visão se consagrou vitoriosa dentre inúmeras outras visões concorrentes a partir de vários confrontos entre elas. Não há para o sociólogo francês uma atitude natural, apenas relações politicamente construídas que permitiram que certo ponto de vista em particular, depois de um série embates, inflija sua dominação a outros pontos de vista também particulares. A doxa seria, portanto, um projeto particular que se impõe como projeto universal e dominante. Em outras palavras, é “o ponto de vista daqueles que dominam dominando o Estado e 197 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.190-201 que constituíram seu ponto de vista em ponto de vista universal ao criarem o Estado” (Bourdieu, 1996, p. 120). A opção descolonial, através do pensamento fronteiriço, força o caráter universalista do Estado a aceitar as alternativas e os modos de saber locais. Possibilita a criação constante de outros saberes que se opõem a uma ideia cristalizada do Estado e a um empenho de generalização da doxa. Será que esse pensamento fronteiriço, tal qual proposto por Mignolo, é suficiente para engendrar a produção e, sobretudo, a circulação dos saberes nativos? Será que a presença hegemônica do capital simbólico do Estado não ofusca ou abafa esses outros saberes? OUTRAS LINGUAGENS LATINO-AMERICANAS – ALTERNATIVAS Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino. (Glauber Rocha) Tentarei responder as questões mencionadas acima refletindo sobre a produção cultural e artística desde a subalternidade, especificamente, da América Latina. Essa produção tem permanecido, no mundo globalizado fora dos centros de poder. A questão aqui é a mesma colocada por Alfredo Bosi (2002), como aqueles cujos pontos de vista estão submetidos a doxa entram nos circuitos culturais? "O que me move é pensar o excluído como agente virtual da escrita, quer literária, quer não-literária. Como o excluído entra no circuito de uma cultura cuja forma privilegiada é a letra de fôrma?" (Bosi, 2002, p. 261). Existem pelo menos duas maneiras de considerar a relação entre a escrita e os excluídos para Bosi. Por excluídos retomo a ideia de White, pois estes seriam aqueles agentes sociais que são identificados como selvagens, loucos e hereges. Eles podem ser vistos como objetos da escrita ou enquanto sujeitos do processo simbólico (Bosi, 2002, p. 257). O esforço intelectual desse artigo e desse livro é o de pensar não sobre os excluídos – neste caso, objetos da investigação – mas, junto com os sujeitos cujos pontos de vista buscam alternativas à perspectiva universal do Estado e da doxa. Durante o “Seminário do Terceiro Mundo”, realizado em 1965, em Gênova, na Itália e que reuniu artistas latino-americanos, o cineasta Glauber Rocha apresentou a 198 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.190-201 “Eztetyka da Fome” diante de uma plateia europeia fascinada pelo exótico. Todavia, colocando-se contrário a essa visão, o cineasta alertava para a existência de uma cultura da fome, situação particular da América Latina em relação à Europa. Essa fome não poderia ser compreendida, apenas sentida e somente a partir dela é que a arte seria possível. A condição de subalternidade do artista latino-americano é expressar essa fome. Para o europeu, que olha a América Latina com um sentimento de nostalgia do primitivismo perdido, a fome não passaria de um surrealismo tropical. O Cinema Novo, segundo Glauber, trouxe para a tela a galeria de famintos – os excluídos dos centros de poder – “personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras” (Rocha, 1981, p. 30). Em oposição aos filmes com “tendência ao digestivo”, que trazem “gente rica, em casas bonitas, andando em automóveis de luxo: filmes alegres cômicos, rápidos, sem mensagens, de objetivos puramente industriais” (Rocha, 1981, p. 30). A condição de expressão dessa “cultura da fome” é a violência – que não é ódio – isto é, a elaboração de discursos da subalternidade e da constituição dos excluídos em agentes virtuais da escrita, como propõe Alfredo Bosi. Essa é a chave de leitura da desobediência epistêmica proposta por Mignolo, onde os saberes nativos encontram sua possibilidade de existência e um terreno fértil para pensar enunciados e composições que lhe sejam próprias. O escritor colombiano Gabriel García Márquez, ao receber o Prêmio Nobel em 1982, profere um discurso marcante, “A solidão da América Latina”. Nele, o escritor delineia a exclusão e os problemas do nosso continente em decorrência do domínio da modernidade / colonialidade. Segue, também, o mesmo intuito de Glauber Rocha, ao colocar em questão a visão paternalista e exótica que Velho Mundo costuma olhar para nós. Como enfatiza, espera que o prêmio seja devido à qualidade de sua poesia ou da poesia de Neruda e de toda a poesia latino-americana e não mais um debruçar caridoso sobre nós. Os progressos da navegação que reduziram em larga medida as distâncias entre nossas Américas e a Europa, parecem ter aumentado, em contrapartida, nossa distancia cultural. Por que a originalidade que eles nos permitem sem reservas na literatura, eles nos negam com toda ordem de suspeitas em nossas tentativas de mudança social? Por que pensar que a justiça social que os avançados europeus impõem em seus países não pode ser também um objetivo latino- 199 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.190-201 americano com métodos distintos e em condições diferentes? (Márquez, 1982, s/n). O que está em jogo, como comenta Geraldo Sarno, ao analisar o texto de Glauber – mas que também pode ser lido no discurso de García Márquez ou naentrevista e Ríos Ávila – é “refundar, restabelecer nossa identidade latino-americana frente ao colonizador” (Sarno, 1995, p. 43). Enfim, eles procuraram meios para “superar o subdesenvolvimento com os meios do subdesenvolvimento” (Rocha, 1981, p. 119). Em outras palavras, encontrar entre as gnosiologias não-ocidentais e sua opção descolonial os meios para que os saberes nativos criem outros mundos, outros pontos- de-vista, outras maneiras de estar e agir no mundo. CONSIDERAÇÕES FINAIS – A OPÇÃO DESCOLONIAL COMO PRÁTICA INTERCULTURAL Sou de onde penso (Walter Mignolo) Qual seria o espaço de produção e de circulação dos saberes nativos? Será que a desobediência epistêmica através da sua opção descolonial é suficiente para criar ambientes propícios para que as gnosiologias não-ocidentais produzam textos e subjetividades que questionem a eficácia simbólica da doxa e do Estado? Talvez a resposta a essa questão, que caberia explorar em outro artigo explorar, seja o caso dos rappers indígenas Bro MC’s3, que cantam em português e em guarani, questionando o Estado e suas políticas indigenistas. O desafio deles na produção de alternativas a doxa esbarra no controle social exercido pelo poder que, segundo Michel Foucault, manifesta-se nas mais variadas instâncias. 3 Bro MC’s é uma banda indígena de rap. O grupo é formado por Bruno Veron, Kelvin Peixoto, Clemersom Batista, Charlie Piexoto. Os integrantes são todos Guarani-Kaiowá e pertencem a Aldeia Jaguapirú Bororó, de Dourado, Mato Grosso do Sul. Pode-se conhecer mais sobre a banda e o projeto de seus integrantes no Facebook – “Bro MC’s Rap Indígena” (https://www.facebook.com/pages/Brô-MCs- Rap-Ind%C3%ADgena/215295601893140). “Mais uma flecha lançada! O primeiro grupo de rap indígena do Brasil o ‘Brô MC´s’ visa com suas rimas que mesclam o Português com o idioma Guarani, amplificar suas músicas por meio das redes sociais e aproximar os não-índios para os assuntos, lutas, anseios, conquistas e vitórias dos povos indígenas de todo o Brasil. Os integrantes do Brô MC`s vivem na Aldeia Jaguapirú Bororó em Dourados - MS. Seja bem vindo (a) a nossa pagina, porã!” (retirado do perfil da banda no Facebook no dia 14 de marco de 2014). 200 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.190-201 Onde há poder ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros de outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui. (Foucault, 2000, p. 75) E quem não possui esse poder fala desde a subalternidade e constrói um saber na fronteira, simultaneamente dentro da doxa e paradoxal. Dentre as demandas indígenas das licenciaturas interculturais está a inserção na grade curricular dos seus próprios saberes. Os acadêmicos indígenas querem aprender o conhecimento científico e filosófico do Ocidente para se inserirem no mundo hegemônico, ao mesmo tempo em que acessam as ferramentas conceituais que os brancos usam contra eles. Paralelamente a esse conhecimento, eles reivindicam o ensino dos saberes nativos. Como ordenar no disciplinado pensamento ocidental os saberes nativos? Alternativas e sobretudo práticas políticas estão sendo experimentadas. Porém, há um perigo iminente que é o silêncio imposto aos movimentos indígenas. E para romper como ele é necessário um dispêndio de energia para que as agentes das gnosiologias não-ocidentais ousem falar. A internet contribui para a circulação das ideias e das práticas. Para Edward Said, “o papel do intelectual4, de modo geral, é elucidar a disputa, desafiar e derrotar tanto o silêncio imposto quanto o silêncio conformado do poder invisível, em todo lugar e momento em que seja possível” (Said, 2003, p. 35). A fala subalterna já é uma desobediência epistêmica, um outro saber que tensiona a estreiteza da lógica da modernidade / colonialidade. Esse artigo visou levantar questões para que possamos avançar nos debates e pensar estratégias e metodologias para contribuir com a produção e o aumento da circulação dos saberes nativos. Para que não permaneçam à margem da hegemônica epistemologia ocidental. Para que contribuição mútua entre os diferentes tipos de saber ocorra de fato, é necessário que os saberes nativos encontrem espaços alternativos e originais onde sua sabedoria possa se manifestar e onde possam se afirmar enquanto agentes virtuais de escrita com seus registros, metodologias e pensamentos diferenciados. REFERÊNCIAS 4 Por intelectual incluo as lideranças e os acadêmicos indígenas. 201 Revista da ABPN • v. 7, n. 17 • jul. – out. 2015, p.190-201 ABÉLÈS, Marc: State In: BARNARD, Alan & SPENCER, Jonathan, eds. Encyclopedia of Social and Cultural Anhtropology. London & New York: Routledge, 1996, p. 527-530 BOSI, Alfredo: Literatura e Resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. BOURDIEU, Pierre: Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. CARPENTIER, Alejo: O reino deste mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. MÁRQUEZ, Gabriel García. La soledad de América Latina, 1982. 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