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OS HIGIENISTAS E A EDUCAÇÃO FÍSICA: A HISTÓRIA DOS SEUS IDEAIS por Edivaldo Gois Junior ___________________________ Dissertação de Mestrado Apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Gama Filho Como Requisito Parcial à obtenção do Título de Mestre em Educação Física Rio de Janeiro, Março de 2000 Dedico a Soraya e à minha família Homenagem ao professor Primeiramente eu gostaria de declarar meu amor a esta profissão. Algumas vezes desacreditada, outras creditada, não importa, o que interessa é que escolhi este ofício, e tenho muito orgulho dele. Contudo este amor não é por acaso, pois teve origem no trabalho daqueles outros, que um dia foram e são meus professores. Foram eles que ensinaram-me a gostar e optar pelo magistério. Eram e são tão talentosos, que me despertaram admiração. Então perguntei a mim mesmo: por que não? E estou aqui hoje escrevendo este texto cafona que antecede minha dissertação de mestrado. Pensei, desta forma, que seria justo homenagear aqueles que me ajudaram no caminho da Educação. Aos sete anos eu entrei em uma escola para até hoje, dezessete anos depois, nunca mais sair. Naquele ano, 1983, eu observava com certa preocupação aquelas crianças chorando copiosamente, não querendo de forma alguma deixar a mãe e ficar com uma senhora desconhecida. Esta senhora era uma professora, a primeira que tinha visto em toda minha vida, pelo menos que me lembre. Passado algum tempo, estávamos todos nós, chorões ou não, em uma sala de aula. Dentro daquele ambiente, aquela senhora, que me lembro o nome, era Yolanda, nos ensinava as coisas mais simples como escrever, ler, desenhar. Porém o mais simples é o mais complicado, que talento e paciência tinha aquela senhora, que por inúmeras vezes pegava na mão de cada um, sem excluir ninguém, mesmo aqueles que não tinham interesse. Eu tenho muitas lembranças para contar da Professora Yolanda, que certamente já faleceu, pena que o espaço e tempo sejam pequenos agora. Outro professor importante era o Joel. Sua disciplina era Educação Física, sua pedagogia era tecnicista, como era comum. Contudo o tecnicismo não o desqualificava, pois valores como cooperação, amizade, eram muito valorizados em sua aula. Lembro que quando disputávamos os campeonatos escolares, e um parceiro errava um passe, ou uma jogada simples, ele exigia que nós déssemos apoio ao menino. Ele foi um professor muito importante na formação de seus alunos, ensinando valores como a solidariedade. Já na faculdade, eu conheci um professor um pouco louco, um maluco beleza. Seu nome: Antônio Geraldo Magalhães Gomes Pires. Eu devo muito a este professor, pois ele acreditou mais do que ninguém em meu potencial. Fora este aspecto, que didática ele possui. É impossível não prestar atenção, não entender o tema mais complicado se ele está na frente do quadro-negro. Sua aula é um espetáculo, gestos, bocas e caras, andando o tempo todo para lá e pra cá. Transparências nem pensar, só o giz basta. Para ele, transparência sofisticada é estratégia de professor sem talento. Eu tento seguir seu exemplo, mas não é todo mundo que tem seu carisma. Na faculdade no interior de São Paulo, também, eu tive o prazer de ser orientado por um tal de Pedro Pagni. Quantas histórias eu tenho para contar desse cara. O fato é que em 1995, eu buscava, destemperadamente, alguém que me pudesse orientar em História da Educação Física, então me indicaram o Pedro, que não era meu professor. Então fui procurar o tal do Pedro, entrei no restaurante universitário, sentei na mesa do professor, e fiz todo um discurso e perguntei: e então, Professor? Ele respondeu: “Acho interessante, por que você não procura o Pedro?” Eu tinha me enganado de pessoa, o cara do cavanhaque era o Geraldo, que mais tarde foi meu professor e que já homenageei neste texto. O engano foi uma gafe, contudo ele me indicou que o Pedro ia palestrar naquele dia, foi quando o conheci. Disse ao Pedro que queria estudar a Educação Física na Grécia Antiga. Minha primeira leitura indicada por um orientador foi o Paidéia, umas mil páginas, acho que ele queria que eu desistisse, isto não aconteceu. Nos três anos em que ele me orientou eu aprendi muito. Existe muito do Pedro nesta dissertação. No mestrado, eu conheci melhor uma cidade e uma pessoa maravilhosa. Um sotaque muito reconhecível, jeito latino, um argentino meio desconfiado, fumando sem parar, me entrevistava na seleção do mestrado. Achava que ele não tinha ido com minha cara. Acho que me enganei, além de ter passado na seleção, acabei sendo seu orientando, e que sorte a minha. Não só pelo intelectual que ele é, pelo professor dedicado, pelo profissionalismo, qualidades que divide com o Antônio Jorge Soares, mas pelo amigo que se revelou. Eu só tenho palavras carinhosas para este amigo. Obrigado Hugo Lovisolo. Foi esta maneira muito simples que encontrei para dizer obrigado a estes profissionais, que piegas não? GOIS JUNIOR , E (2000) . Os higienistas e a Educação Física: a história de seus ideais. (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro: PPGEF, Universidade Gama Filho. 2 Orientador: Prof. Dr. Hugo Lovisolo RESUMO Esta dissertação tem como objetivo refletir sobre a homogeneidade ou heterogeneidade do discurso do “movimento higienista” e sua influência sobre a Educação Física. Para isto, enfatizamos a análise de discursos teóricos e propostas de intervenção dos higienistas. Chegamos à conclusão que havia uma mentalidade heterogênea e difusa entre os mesmos. Sendo que suas propostas iam da regulamentação dos casamentos entre indivíduos mais aptos, esterilização, até a democratização da saúde e da educação, ambas estratégias divulgadas por periódicos da Educação Física. Assim sendo, o que pode caracterizar os higienistas é o interesse comum na divulgação de hábitos higiênicos, normas profiláticas e cuidados com o corpo. Seus objetivos não eram simplesmente atender os interesses de determinada classe social, mas sim, fazer que seus conhecimentos científicos pudessem melhorar a vida de todos. Isto ficou claro a partir da análise de documentos que despertam a atenção pelo caráter reivindicatório do discurso de vários higienistas, que apontam a necessidade urgente da intervenção nos problemas sociais da sociedade em voga. 3 GOIS JÚNIOR, E (2000). The higienistas and the Physical Education: the history of its ideals. (Master Dissertation ). Rio de Janeiro: PPGEF, Gama Filho University. Adviser : Prof. Dr. Hugo Lovisolo ABSTRACT This dissertation has as objective to contemplate on the homogeneity or heterogeneity of the speech of the " movement higienist" and its influence on the Physical Education. For this, we emphasized the theoretical and proposed of intervention of the higienists analysis of speeches. We reached the conclusion that there was a heterogeneous and diffuse mentality among the same ones. And its proposals went of the regulation of the marriages among more capable individuals, sterilization, until the democratization of the health and of the education, both strategies disclosed by newspapers of the Physical Education. Like this being, what can characterize the higienistas it is the common interest in the popularization of hygienic habits, medics norms and cares with the body. Its objectives were not simply to assist the interests certain social class, but yes, to do that its scientific knowledge could improve the life of everybody. This was clear starting from the analysis of documents that you/they wake up the attention for the character chritical of the speech of several higienists, that aim the urgent need of the interventionin the social problems of the society in vogue. 4 ÍNDICE CAPÍTULO Página INTRODUÇÃO.................................................................................. - Problema e posição - Delimitando o objeto - Caminhando para uma hipótese - Metodologia - Relevância e Justificativa - Revisitando a historiografia da Educação Física - O que o leitor pode esperar desta dissertação 001 1– O “MOVIMENTO HIGIENISTA” NA EUROPA..................... - Do contexto - Industrialização - A urbanização e as epidemias - Uma nova filantropia - O paradoxo do Liberalismo - O idealismo do “movimento higienista” - O motor humano - Desenvolvimento e debates da Medicina 019 2 – OS HIGIENISTAS DO BRASIL............................................... - Brasil : início do século XX - Abandono do povo: as epidemias - Pessimismo em relação à raça e ao povo - A resposta nacionalista - Discussão intelectual sobre os problemas do Brasil - Os higienistas: crítica da sociedade e polêmica racial - O “movimento higienista”: seus contrastes e suas complexidade - Como mudar? A intervenção higienista 060 3 – A EDUCAÇÃO FÍSICA E OS HIGIENISTAS......................... - O exemplo francês - Os intelectuais brasileiros, os higienistas e os métodos ginásticos no Brasil - O melhor método - Outras propostas, os mesmos objetivos - A Educação Física e as teorias higienistas - Precisamos nos legitimar 142 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................... 166 BIBLIOGRAFIA BÁSICA.............................................................. 169 5 INTRODUÇÃO " enquanto houver historiadores, suas explicações serão incompletas, pois nunca poderão ser uma regressão ao infinito”(Veyne, 1995, p.56.). Problema e posição Em meados do fim do século XIX e início do século XX, surgia um novo discurso. Suas propostas residiam na defesa da Saúde Pública, na Educação, e no ensino de novos hábitos. Convencionou-se chamá-lo de “movimento higienista”. O movimento tem uma idéia central que é a de valorizar a população como um bem, com capital, com recurso talvez principal da Nação (Rabinbach, 1992). O movimento se expandiu pelo mundo e chegou ao Brasil, embora mediante reapropriações e reinterpretações. Preconizando normas, hábitos, que colaborariam com o aprimoramento da saúde coletiva, do povo, da raça. Nas últimas décadas, a interpretação do “movimento higienista” foi abertamente crítica, sobretudo nas obras de história da Educação Física geradas a partir dos anos oitenta. O argumento central dos críticos baseou-se um duas operações: mediante a primeira o “movimento higienista” foi homogeneizado, considerado como um discurso e uma prática de caráter unitário; pela segunda, foi considerado como agindo em bloco a serviço dos interesses das 6 classes dominantes. De fato, a homogeneização estaria a serviço da segunda operação, de sua consideração em bloco como sendo funcional para os interesses das classes dominantes. A crítica depende da homogeneização, ela é seu pressuposto lógico. Esta dissertação pretende mostrar que o “movimento higienista” era altamente heterogêneo sob o ponto de vista teórico (fundamentos biológicos e raciais), ideológico (liberalismo e anti-liberalismo). Já no campo das medidas ou das políticas públicas de educação, saúde, habitação e trabalho, entre outras, encontramos uma maior unidade. Isto não é de se estranhar. É bem conhecido o fato que embora contrapostos em termos de adesão, as teorias “bacteriológica” e “dos miasmas”, na própria Europa, propuseram as mesmas medidas profiláticas. Sobre este exemplo voltaremos adiante, aqui apenas pretendemos indicar para o leitor que teorias explicativas diferentes podem levar a práticas de intervenção semelhantes. Outra preocupação nossa, mediante a descrição desse objeto de estudo, foi a questão do posicionamento. Embora sejamos críticos dos críticos, ou seja, reelaboremos as críticas, tentamos evitar as predefinições partidárias e ideológicas. Não porque as excluamos, mas porque tentamos controla-las metodologicamente. O envolvimento com o objeto de estudo não significa a assunção da parcialidade. As leituras de, entre outros, Eric Hobsbawn e Quentin Skinner fortaleceram em nós a confiança em podermos orientar-nos pela procura da imparcialidade, embora ela jamais seja absoluta. Autores, que se não nos deram um modelo metodológico, nos deram indicações de como realizar a tarefa de contar a História. Nosso orientador Hugo Lovisolo, por exemplo, sempre cita o argumento de Thomas Merton: se de fato é impossível um ambiente estéril, poderíamos fazer cirurgias nos esgotos. Contudo, 7 sábia e praticamente procuramos os ambientes cirúrgicos “mais estéreis possíveis”. Não acreditamos que as coisas sejam diferentes no campo da história e das ciências sociais Em Hobsbawn, primeiramente, percebemos a importância da imparcialidade ou isenção1. Este autor recomenda: “É muito importante que os historiadores se lembrem de sua responsabilidade, que é , acima de tudo, a de se isentar das paixões de identidade política - mesmo se também as sentirmos.” (Hobsbawn, 1998, p.20). O que ele nos quer ensinar é que uma história deve ter universalidade, e não identidade de um grupo político, racial. Por exemplo, uma história pode ser contada para os que pretendem revolucionar o mundo, outra para quem pretende reformar, outra para quem é conservador. Uma história para os judeus, outra para os alemães. Hobsbawn pensa que a construção dessas histórias de identidades (políticas, nacionais, raciais) podem fazer com que a História perca sua universalidade, tornando-se uma história de identidade. Muitos pesquisadores voltam-se ao passado procurando uma legitimação para seus atos no presente. Eles utilizam a história para justificar suas posições (Hobsbawn, 1998). Ensina-nos, também Quentin Skinner: “Quando digo que a tarefa do historiador é a do anjo registrador quero dizer que sua aspiração deve ser a de recapturar o passado nos seus próprios termos deixando de lado, no possível, as dúvidas pós-modernistas quanto à total viabilidade disso. (...) O que quero dizer é que nossos valores devem nos motivar a escolher os assuntos que queremos 1 Da mesma forma nos orientou Antônio Jorge nas suas aulas sobre Popper. 8 estudar. Mas, uma vez feita a escolha, a recuperação do passado exige grande imparcialidade.”(Skinner, 1998, p.7) Com esta passagem podemos entender que a escrita da história exige imparcialidade. Deste modo, ao descrevermos o discurso do “movimento higienista” brasileiro, optamos nem por defendê-lo, nem por atacá-lo, mas sim, vislumbrar sua complexidade, seus próprios termos no seio da sociedade que se formou entre as últimas décadas do século passado e as primeiras deste, ou seja, no seu próprio contexto. À medida que o trabalho se intensificava, percebíamos que havia matizes de valores da época que eram diversos dos da sociedade atual, o que ocasionou mais obstáculos na sua caracterização. Vimos que o discurso higienista, também era fruto de uma sociedade em processo de industrialização, o que acarretou certas ênfases na questão do preparação do trabalhador, na urbanização, no controle de novas doenças epidêmicas e ocupacionais. Ou seja, o discurso higienista voltava-se para questões pertinentes ao seu tempo, aos valores da época como trabalho, disciplina, intervenção. Como qualquer discurso é datado, por isso, sua interpretação descontextualizada apenas pode produzir anacronismos.Descobrimos que ignorar este contexto e valores da época, comprometeria esta narrativa. Segundo Gramsci, devemos ter historicidade, que é ter “a consciência da fase de desenvolvimento de nossos tempos e do fato de que ela está em contradição com outras concepções de outros tempos." (Gramsci, 1978, p.13) Enfim, nós não poderíamos julgar pensamentos e atitudes envolvidas por valores que às vezes são contrários aos valores de hoje. Tentamos olhar para o passado sem pré julgá-lo. 9 À partir destas dificuldades encontradas por nós, tentamos desenrolar nosso objeto de estudo. Vimos que os problemas estavam apenas começando. Delimitando o objeto A primeira dificuldade revelou-se na delimitação do recorte histórico. Seria muito difícil determinar uma data que fosse considerada como a inicial e a terminal na vigência do discurso higienista, estabelecendo sua periodização. Poderíamos ter adotado uma periodização determinada pela história política, isto seria possível caso considerássemos este discurso como específico das tendências ideológicas do século XIX e, menos ainda, como Ghirardelli entendeu, como específico produto do liberalismo (Ghiraldelli, 1988). Contudo, quando examinamos as fontes, esta prerrogativa não se manteve pois, no caso brasileiro, sua consolidação se deu em plena Ditadura Vargas, momento brasileiro caracterizado pelo domínio ideológico das tendências centralizadoras, não-liberais. Nos parece mais coerente, determinar um marco inicial baseado em ocorrências que tornaram possível a demanda do “movimento higienista” europeu, como a industrialização, a urbanização, a bacteriologia e a fisiologia, a filantropia e as diversas ideologias que militam na segunda metade do século XIX, como o liberalismo mas, também, o socialismo. Com isto, podemos adotar este recorte temporal inicial na segunda metade do século XIX e o corte final, por decisão da dinâmica da pesquisa, corte por certo arbitrário, em 1945. Pretendemos, no futuro, alongar a pesquisa para o nosso presente. 10 A segunda dificuldade foi definir o que era um higienista. As definições enciclopédicas eram muito restritas, definindo-os como estudiosos da Higiene, como médicos sanitaristas. Porém o “movimento higienista” era muito mais amplo. Contava com apoio de educadores, políticos, advogados, engenheiros, instrutores de ginástica. Enfim, uma gama bastante diversa de profissões foi influenciada pelos pressupostos higienistas. Assim, não entendemos os higienistas como apenas médicos. Então, pensamos em caracterizá-los como intelectuais que tinham em comum o desejo de melhorar as condições de saúde coletiva da população brasileira. Somente dentro deste modelo podemos dar uma certa unidade aos higienistas. Contudo a tarefa não era tão simples, pois o que é um intelectual? Em Gramsci é encontrada a definição mais usual de intelectual. Em sua obra “Os intelectuais e a organização da cultura”, ele defende a existência de dois tipos específicos de intelectuais: os intelectuais tradicionais e os orgânicos. Os primeiros teriam o papel de manter e justificar o constituído. Já os intelectuais orgânicos, defenderiam determinadas classes sociais, organizando seus interesses, aumentando seu poder.(Gramsci, 1978a) Esta tipologia acaba criando duas polarizações, uma entre o orgânico e tradicional, e outra entre os defensores das classes dominantes e das classes dominadas. Dentro desta lógica, um intelectual está à favor ou contra os interesses dos trabalhadores ou empregadores. Contudo, percebemos que seria muito difícil caracterizar o “movimento higienista” e seus intelectuais dentro desta perspectiva. Não poderíamos caracterizá-los como intelectuais orgânicos favoráveis ou contrários aos interesses dos trabalhadores, sem imputar-lhes uma homogeneidade de discurso inexistente. Em outras palavras, esta história não poderia ser narrada com “vilões” e “mocinhos”. 11 Neste sentido, tornou-se mais interessante o uso da definição de Hugo Lovisolo. Segundo ele, o que caracteriza um intelectual é seu desejo de formar mais intelectuais, ou seja, tornar a sociedade mais crítica e intelectualizada. Com esta definição, podemos considerar os higienistas como intelectuais, e muitos outros que não se adaptam à tipologia gramsciana. Deste modo, para Lovisolo, podemos compreender porque os educadores físicos, que também se consideram intelectuais, procuram que o atleta seja criticamente consciente de seus movimentos físicos e dos jogos sociais e políticos que participam. Na verdade, eles estão tentando intelectualizar aquela prática. Em seus termos, do mesmo modo: “Os médicos que insistem para que conheçamos e administremos criticamente nosso próprio organismo para crescermos em “autonomia”. Em todos os casos, o pensar por si mesmo, o ser intelectualmente adulto está presente. Parece- me que é este o bojo da tradição na qual os intelectuais são emotivamente formados e talvez seja esta a grande ligação com o cotidiano e com os diferentes segmentos da sociedade. Em definitiva, autores críticos dos intelectuais, como Foucault, Bourdieu ou Habermas procuram, nem sempre explicitamente, que pensemos por nós mesmos, autonomamente, de forma emancipada. Eles também querem reproduzir intelectuais.” (Lovisolo, 1998a, p.7) Se os intelectuais tem em comum o desejo de formar outros, seria difícil não considerar os higienistas como tal. Eles tinham um discurso heterogêneo, e às vezes oposto, contudo tinham algo em comum: o desejo de educar a população nas 12 normas higiênicas. Eles tinham a missão de convencer e racionalizar muitas práticas, por exemplo a Educação Física, a classe dirigente, da importância da Educação Higiênica. Fora esta caracterização, Lovisolo, ainda identifica outras categorias dentro do termo intelectual. Segundo ele, existem os intelectuais academicistas e os intervencionistas/cientificistas (Lovisolo, 1997). Os primeiros são aqueles interessados no saber pelo saber, não se preocupando imediatamente com a aplicação de suas descobertas teóricas, separando o político do científico. Já os intervencionistas propõem a reestruturação do mundo à partir da ciência, postulando a necessidade de um conhecimento útil para a sociedade. Estabelece formas de interação com o povo, tentando conduzi-lo, educá- lo, conscientizá-lo (Lovisolo, 1997). Os higienistas se definem como intervencionistas na medida que usam suas pesquisas para indicar as melhores formas de evitar a doença, quando procuram explicações econômicas, sociais, biológicas, para o estado de doença do povo. Quando propõe estratégias, ainda que de forma difusa, para o equacionamento de problemas da Saúde Pública. Podemos, então, desta forma, encarar os higienistas como intelectuais cientificistas que tinham como ideal o melhoramento das condições da Saúde coletiva e individual, através do encaminhamento de propostas de intervenção, que por muitas vezes iam em direções opostas, mas queriam alcançar este mesmo objetivo. 13 Caminhando para uma hipótese Se tivéssemos o intuito de analisar os higienistas como intelectuais dentro da tipologia gramsciana, teríamos que defini-los como intelectuais orgânicos, e então teríamos que enfrentar o problema de definir a favor de qual classe social teriam atuado. A historiografia dos anos oitenta optou por esse modelo e também optou, com argumentos pouco sólidos, em defini-los como intelectuais a serviço das classes dominantes. Nesta visão, os higienistas seriam defensores do capital. Seu discurso e ação, homogêneo ou unitário, seria determinadopelos interesses das elites sociais. Ainda em uma perspectiva gramsciana, poderiam ser montados argumentos que salientassem sua participação como defensores dos trabalhadores e opositores do Capital. Ou seja, a tipologia de Gramsci levaria na direção de um jogo no qual estamos obrigados a distinguir e agrupar os defensores de um e outros, opressores e oprimidos. Consideramos, a partir da leitura de seus escritos e da avaliação de suas ações, que a tipologia cria uma polarização que se torna difícil conceber na análise do discurso dos higienistas. Seria mais preciso caracterizá-lo como um discurso heterogêneo, que por muitas vezes, mediava os interesses entre as classes sociais, sem necessariamente assumir os interesses dos opressores ou dos oprimidos. Se as coisas ocorreram desse modo, teríamos, então, que pensar a possibilidade que além dos interesses dos oprimidos e opressores podiam também estar em jogo os interesses dos próprios intelectuais. Assim, os interventores intelectuais estariam interessados em construir uma sociedade que favoreça aos intelectuais. Acredito que seja esta a hipótese que pode ser derivada do trabalho de Lovisolo citado anteriormente. 14 Em termos concretos partiremos da hipótese de que os ideais do “movimento higienista” não eram determinados pelos interesses da camada dominante, embora em sua função de mediadores os levassem em conta. Desta forma, a hipótese central que será defendida neste estudo é que o discurso de vários higienistas, que influenciaram a mentalidade da época, chegando até nossos dias2, e de modo particular aos discursos e a intervenção da Educação Física, partilhavam do intuito de cuidar melhor da população através de uma intervenção estatal, melhorando sua saúde, tendo como estratégias às vezes a esterilização, regulamentação dos casamentos e, em outras, a conquista de direitos trabalhistas, a defesa da democratização da Saúde e da Educação, enfim, constituindo um ideário heterogêneo, que atingiu diversos setores da sociedade, como a Educação Física. No fundo, tratava-se de fazer uma população mais sadia, mais disciplinada, mais educada e, porque não, física e intelectualmente mais preparada. Metodologia Esta pesquisa qualitativa, de modelo bibliográfico, tem por objetivo estudar fontes primárias e secundárias sobre o tema. As técnicas de pesquisa consistem na análise de documentos do período: Adotamos como fontes primárias, trabalhos de intelectuais brasileiros da primeira metade do século XX, como Monteiro Lobato (1961, 1961a, 1961b), Fernando de Azevedo (1920, 1933, 1950, s.d.) Affonso Celso (1943), Manoel Bonfim (1905, 1926, 1996), Alberto Torres (1982, 1990), Oliveira Vianna (1959), 2 Nos dias de hoje o próprio movimento das saúde pode ser considerado como derivado do discurso higienista do início do século. 15 Pena Belisário (1923), Afrânio Peixoto (1913, 1938), Miguel Couto (1932, 1933), e outros. Assim como, atas de congressos de Higiene, manuais de Higiene, periódicos da época, traduções de Inezil Penna Marinho (s.d, s.da,) dos métodos ginásticos. Do mesmo modo adotamos, diversas fontes secundárias que deram suporte às nossas interpretações, principalmente na descrição do movimento higienista na Europa, onde tivemos como base principal, os trabalhos de Anson Rabinbach (1992), Jacques Donzelot (1980), Georges Vigarello (1985), George Rosen (1994). No caso brasileiro, nos interessaram, principalmente, trabalhos de Gilberto Hochman & Nízia Trindade (1996), de Thomas Skidmore (1989, 1998), Vera Marques (1997), Dante Moreira Leite (1976), e outros. Relevância e Justificativa Esta pesquisa torna-se justificável e relevante na medida que contrapõe a idéia dominante em nosso campo sobre o “movimento higienista”, que algumas vezes considera a Educação Física dita higienista como uma prática autoritária ligada ao militarismo e aos médicos. Tendo a idéia de progresso em mente, julgam que a Educação Física hoje e o “movimento de saúde” são melhores, progrediram. Ou seja, acredita-se que as orientações da Educação Física progrediram e ainda progridem. Há, no entanto, aqueles que quando escrevem a história da Educação Física, passam a idéia de que o “movimento higienista” representou um mal e, que o mal ainda persiste, embora possam postular que o progresso ainda deve ser alcançado no desenvolvimento, por exemplo, de uma consciência crítica. 16 Diferentemente dessas perspectivas, queremos entender o “movimento higienista” destacando seus ideais, motivações, interações sociais. Para, então, observarmos até que ponto esta idéia de progresso se sustenta. Nosso trabalho busca a crítica do que já foi contado na historiografia da Educação Física, respaldando outras interpretações para sua a história. Revisitando a historiografia da Educação Física Na década de noventa algumas críticas foram elaboradas com o intuito de relativizar muitas das teses da historiografia da Educação Física da década de oitenta. Pedro Ângelo Pagni (1995), Alberto Pillati (1994), Ademir Gebara (1994), e mais recentemente, na ocasião da orientação deste trabalho, Hugo Lovisolo (1998)3 apontaram muitas lacunas na produção da “História crítica” (como ficou conhecida a historiografia da década de oitenta). A tese principal desta historiografia representada, principalmente, por Lino Castellani Filho (1988), Paulo Ghiraldelli Júnior (1988) e Carmem Lúcia Soares (1990), com os seguintes textos: “Educação Física no Brasil: uma história que não se conta”; “Educação Física Progressista”; “O pensamento médico higienista e a Educação Física no Brasil: 1850-1920”, é que a teoria e a prática dos higienistas e dos professores/instrutores de Ginástica/Educação Física era 3Ademir Gebara (1994) e Luís Alberto Pillati (1994) questionaram a questão da periodização política adotada pela “História Crítica”. Pedro Ângelo Pagni no “História da Educação Física no Brasil: notas para uma avaliação”(In: FERREIRA NETO, As Ciências do Esporte no Brasil) faz uma crítica sobre a produção de Fernando de Azevedo, Inezil Penna Marinho e Lino Castellanni Filho sobre história da Educação Física, ressaltando lacunas na historiografia destes autores. Hugo Lovisolo no “História Oficial e história crítica: pela autonomia do campo” ( In: Coletânea do VI Congresso Nacional de História da Educação Física, Rio de Janeiro, UGF, 1998) vê semelhantes essas duas formas de escrever história na Educação Física Brasileira, pois estiveram da mesma forma preocupadas mais com a legitimação de uma pedagogia do que com a reconstrução da história. 17 determinada pelos interesses das classes dirigentes. A este respeito Francisco Caparroz, afirma, com propriedade que, "Não que as condições a este respeito estivessem totalmente equivocadas ou que não se devessem operar análises neste sentido, não se trata disso, mas sim de mostrar que operar análises única e exclusivamente nesta perspectiva pode levar fatalmente a certos reducionismos, como acreditar que o processo histórico é totalmente determinado pela macroestrutura, o que levaria então a crer, que não há espaços para as contradições e conflitos, já que há apenas e tão somente um movimento (paradoxalmente) estático e linear de reprodução da ideologia dominante." (Caparroz, 1997, p.74-5) Concordamos com a análise de Caparroz. Não precisamos desconsiderar as interpretações desses autores, mas devemos testa-las, não simplesmente, aceitá-las como verdades absolutas. Por exemplo, Castellani considerou,baseado em um livro de Jurandir Freire Costa, que os higienistas colaboravam em um projeto racista de supremacia da raça branca e, também, de opressão da classe trabalhadora. Com comprovamos nesta passagem: “Os médicos higienistas, então, através da disciplinarização do físico, do intelecto, da moral, e da sexualidade, visavam ‘...multiplicar os indivíduos brancos politicamente adeptos da ideologia nacionalista...’ ‘É por isso 18 que nos cumpre – dizia o Dr. Joaquim José dos Remédios Monteiro, citado por Jurandir – envidar todos os esforços para o melhoramento da geração atual pela garantia da procriação, pela educação física...’ Educação Física associada à Educação Sexual, a qual segundo os higienistas ‘ deveria transformar homens e mulheres em reprodutores e guardiões de proles e raças puras...’4 Castellani baseado nesta citação considerou o “movimento higienista” unido na questão da superioridade da raça branca, atribuindo a este movimento um discurso unívoco e homogêneo. Demonstraremos nesta dissertação, que por muitas vezes, higienistas como Fernando de Azevedo, Miguel Couto e outros, teceram duras críticas a esta ideologia. Outra crítica, desta vez da autoria de Hugo Lovisolo, caminha no mesmo sentido à medida que considera que uma história narrada sem uma maior imparcialidade, como foi feito na década de oitenta, está sujeita a acreditar que questões como: de que lado está a história narrada? a quem defende? quais são seus heróis? qual sua moralidade ou sua política? tem mais importância, enquanto critérios de aceitabilidade, do que a consistência da narrativa, das provas fatuais, da originalidade no tratamento dos materiais da história. O problema, então, não é porque ou com qual intencionalidade se pensa que os ideais higienistas alienavam o povo ou eram funcionais ao liberalismo. O problema é como se demonstra essa convicção. Não se trata de expulsar as convicções, trata-se de afinar o como. Nos termos de Lovisolo: 4 CASTELLANI FILHO. Op. cit., p.44. COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 19 Os autores e as produções da "história crítica" da educação física tornaram-se parte dos dogmas e seus autores, citados e recitados, por vezes contra sua vontade, parece que estão além da crítica teórica e empírica. A citação dogmática pode ser resultado de que estamos, alguns dos de dentro, com disposições favoráveis para aceitar como válida e boa sua narrativa da história dos esportes e da educação física. Uma narrativa altamente ideologizada pelas preocupações de denunciar "projetos" e "ações" de dominação e de justificar os contraprojetos, por vezes supostos, de emancipação dos grupos historicamente subordinados ou dominados. Esta é sem dúvida uma dimensão da história, contudo, não é a única nem sempre a mais relevante. Assim, a história crítica inventa sua própria redução histórica para se contrapor a outros reducionismos. Reproduz, em espelho deformado, aquilo que pretende combater. (Lovisolo, 1998, p.57) Esta historiografia, segundo Lovisolo, preocupou-se mais em revisar trabalhos da historiografia da Educação5 que fossem de encontro às suas interpretações, do que a reconstrução da história de uma forma consistente. Assim, por exemplo, ainda segundo Lovisolo, a história crítica não poderia ter ignorado que os fisiologistas e higienistas, no século passado na Europa e no Brasil, foram aliados importantes da classe trabalhadora (Lovisolo, 1998). Pois, despertaram o público para a idéia de que um povo sadio e educado é um capital de inestimável valor para o país, dando fundamento a reivindicações dos trabalhadores, ajudando-lhes a Rio de Janeiro, Graal, 1983, p.213. 20 consolidar a idéia de que Saúde e Educação deveriam ser prioridades do Estado. Defenderam a redução da jornada de trabalho como medida profilática no combate às doenças ocupacionais. Enfim, por diversas vezes, colaboraram na melhoria das condições de vida da população em geral, como demonstraremos nesta dissertação. A historiografia comentada nesta crítica, também, parte do pressuposto de que a população em geral não pode resistir a ideologia dos governos. Se o governo é liberal, todos passam a ser influenciados a ter um pensamento liberal. Se transportarmos esta lógica para nossos dias entenderíamos que o pensamento dos professores de Educação Física era autoritário até 1985 e passou a ser neo-liberal? Neste sentido, Max Weber pode nos ensinar que o indivíduo deve estar no centro da problemática. No seu trabalho mais paradigmático mostra, por exemplo, que o desenvolvimento do capitalismo vai depender da mentalidade das pessoas. Temos que entender que o protestantismo não foi criado para ser funcional ao capitalismo, mas em uma lógica de interação entre os atores sociais contribuiu na consolidação do espírito capitalista. Nas suas palavras: "...o racionalismo econômico, embora dependa parcialmente da técnica e do Direito Racional, é ao mesmo tempo determinado pela capacidade e disposição dos homens em adotar certos tipos de conduta racional." (Weber, s.d., p.11) Finalizando, ressaltamos que uma interpretação comum à todos os autores é que o “movimento higienista” atendia aos interesses da camada dominante da população. Defenderemos a tese que esta relação é mais complexa, mais “weberiana”, procurando afinar esta reflexão. 5 Demerval Saviani (1983), Maria Luísa Santos Ribeiro (1982), Otaíza Romanelli (1984), Libâneo (1985), Alcir Lenharo (1986), Jurandir Costa (1983 ), Edgar de Decca (1988). 21 O que o leitor pode esperar desta dissertação No primeiro capítulo, faremos uma revisão de literatura com o intuito de construir o cenário europeu em que o “movimento higienista” se moldou. Portanto usaremos as interpretações de historiadores europeus que discutiram o tema. Nestes autores procuraremos a descrição das condições de vida na Europa antes do “movimento higienista”. Perceberemos, então, que a crise que vivia esta sociedade produziu uma mentalidade de mudança. Descreveremos este discurso, enfocando seus objetivos, seus ideais. Também saberemos como a Saúde Pública era tratada, para entendermos que o Estado não atendia as demandas da Saúde, sendo assim, o povo encontrava-se em um estado de abandono. Então surgem diversos movimentos sociais defendendo e exigindo a intervenção do Estado nas questões sociais. Entre estes, existia um movimentos de intelectuais reformadores, médicos, educadores, que constituía o grupo “higienista” agindo em diversos setores da sociedade. Em segundo lugar, veremos se no Brasil as condições do trabalho, do ensino, da sociedade se diferenciavam das condições européias. O quadro que será descrito não é diverso do europeu, porém observaremos determinadas ênfases no discurso higienista brasileiro. Encontraremos outros postulados, como a idéia de que o “povo estava doente e abandonado” que substituiria a mentalidade que pregava que o povo brasileiro era debilitado racialmente por suas característica genéticas herdadas de raças inferiores. Estas teses eram discutidas entre os intelectuais brasileiros, que influenciaram o “movimento higienista” no Brasil. Como era este debate? Como influenciou os higienistas? São indagações respondidas nesta dissertação.22 Então, finalmente, analisaremos as fontes primárias da Educação Física, onde destacaremos o discurso higienista. Finalmente, ratificaremos outras interpretações sobre a história da Educação Física relacionada ao “movimento higienista”. 23 MOVIMENTO HIGIENISTA NA EUROPA Do contexto Para entender a influência do “movimento higienista” no Brasil e na própria Educação Física, deveremos começar descrevendo, de forma sintética, o contexto no qual suas idéias tiveram origem e ganharam repercussão. Pareceu-nos pertinente consultar obras de historiadores europeus que revelassem os aspectos do 24 movimento para, posteriormente, estabelecer suas relações com o movimento no Brasil, tentando aprender tanto semelhanças quanto diferenças. O que podemos perceber, inicialmente, é que o movimento surgiu em um contexto de crescimento do capitalismo industrial, manufatura e grande indústria, na Inglaterra, França e Alemanha. O quadro de constante crescimento da indústria e da pobreza constituíram um cenário propenso às reformas de vários setores da sociedade. Nesse mesmo contexto, Marx, no Capital, elaborou sua famosa lei da “pauperização” crescente do proletariado.6 Assim, as relações entre trabalhadores e industriais, com alta exploração e sérios problemas de saúde, influenciaram na construção de um ideário que pretendia torná-las mais justas (Rabinbach, 1992). Mas este não é o único aspecto que caracteriza o contexto até o século XVIII. Inicia-se, também, um novo discurso de valorização da população, caracterizando uma mudança na filantropia, que começa a ser adotada por novos governos liberais na Inglaterra e França. Posteriormente, analisando o século XIX, constataremos que o “movimento higienista” já se encontrava em alicerces sólidos. Vários profissionais de diversas áreas começam a disseminar seu discurso de melhoria dos padrões de vida. O argumento de autoridade deste ideário eram as pesquisas científicas que comprovavam a urgência na intervenção da sociedade nos problemas da população. Como resultado deste processo, o surgimento da ciência do trabalho colaborou na redução da jornada, intervalos, melhores condições de vida para o trabalhador (Rabinbach, 1992). 6 Lembramos que a primeira edição do Capital é de 1868. Sobre a “manufatura” e a “grande indústria” e suas condições de operação e vida dos trabalhadores sua obra continua sendo uma excelente fonte. 25 Outro aspecto relevante neste contexto é o resultado da urbanização, que causa novas doenças e epidemias (Rosen, 1994). Uma demanda que não é ignorada pelos médicos, que defendem diferentes formas de prevenir e tratar as moléstias. E, isto, exige pesquisas, que contribuíram para o desenvolvimento da ciência no campo da medicina e da Saúde Pública. Sendo assim, a ciência passa a determinar a melhor forma para cada um cuidar de seu corpo, em um projeto de mudanças de hábitos em relação à ele (Rabinbah, 1992). Todos estes aspectos colaboraram na efetivação da idéia de que a população era a grande riqueza da nação. Industrialização O século XVIII marcou na Inglaterra o desenvolvimento das tecnologias industriais. Modificando profundamente o panorama social e econômico do país. Segundo o historiador francês Andre Alba (1986), a Inglaterra passou de país agrícola, onde predominava a média propriedade, para um país de grandes propriedades, de agricultura renovada, para por fim tornar-se a potência industrial daqueles anos. Os ingleses que trabalhavam, principalmente, com lã, com o desenvolvimento do comércio internacional, começaram a trabalhar com tecidos de algodão. Ao mesmo tempo, uma série de aperfeiçoamentos técnicos aumentaram cada vez mais a produção. Com o surgimento dos teares, nasce o maquinismo. A indústria metalúrgica, também, teve um crescimento considerável. O ferro é 26 trabalhado de forma cada vez mais eficaz. As tecnologias iam se aperfeiçoando, até que, aproximadamente, em 1780, Watt pautando-se em pesquisas anteriores de Papin e Newcomem, cria a máquina à vapor (Alba, 1986, p. 210). O desenvolvimento dessas tecnologias possibilitaram à Inglaterra a supremacia no campo da indústria. Fato que gerou riquezas, aumento da produtividade e da produção. Principalmente, a Inglaterra, mas também a França, tinham a sua disposição a tecnologia necessária para o desenvolvimento da indústria. E, foram os dois países que primeiro sentiram as conseqüências sociais da industrialização. Ainda não preparados para o trabalho industrial, os trabalhadores do campo perderam seus empregos na zona rural. As pequenas propriedades também perderam representação econômica. Muitos trabalhadores rurais migraram para as cidades na Inglaterra. Segundo Alba (1986, p.257), se fazia uma imensa concorrência entre os trabalhadores, portanto os salários eram muito baixos. O desemprego tornar-se-ia um problema de proporções imensas, aumentando a pobreza. Este aumento da pobreza, que assolava a Inglaterra desde o fim da Idade Média, passou a ser a preocupação central de alguns autores na Europa. George Rosen nos mostra que vários projetos foram elaborados para amenizar o problema. Em 1601 a lei Elisabetiana tornou-se a base da administração inglesa da Lei dos Pobres. (Rosen, 1980) Inicialmente, ela delegava o cuidado dos pobres às comunidades locais. Como as paróquias, que tiveram a incumbência de atender esta demanda. Segundo Rosen: 27 “A despeito de várias ações, porém, o problema da massa de trabalhadores, permaneceu sem solução. Na segunda década do século XIX, a pobreza e o infortúnio social se espalhavam mais do que nunca, em virtude das mudanças na agricultura e na indústria.”(Rosen, 1994, p.153) No século XVIII, a pobreza cada vez mais passou a ser encarada como uma doença social. Interessante é observarmos que o trabalho nesta época é visto como uma virtude moral, e o ócio um vício. Se o indivíduo está ocioso, é por falta de vigor moral. A pobreza era encarada como um vício individual e eticamente condenável. No Antigo Regime, os Hospitais Gerais eram reclusões para os vagabundos. A esmola, as companhias de caridade eram ineficazes no combate à pobreza. Existiam projetos, datados desde o século XVII, propondo a utilização da força de trabalho dos pobres. Rosen cita os mais relevantes da Inglaterra. Estes são os trabalhos de Samuel Hartlib, Willian Petty e Jonh Graunt. Samuel Hartlib, segundo Rosen, estava interessado em propostas de reforma econômica e social. Em 1641, publica “A Description of the Famous Kingdom of Macaria”. Nesta obra o autor demonstra vários experimentos sobre remédios obtidos através das experiências científicas. Ele também defendia que alguns padres teriam mais utilidade às comunidades se adquirissem mais conhecimentos sobre a arte de curar. Hartlib vê no padre, que atende aos pobres, a possibilidade de dar uma atenção médica mais preparada às classes populares. E porque não o médico? Esta classe era inacessível aos pobres, pois seus serviços tinham um alto custo econômico, sem falar que existiam em pequeno número. 28 Autores da esquerda também adotaram esta proposta de atenção médica por conta dos padres, como exemplifica Rosen com Gerrard Winstanley. Este era membro do Partido Democrático Popular conhecido como “levellers” (Rosen, 1980). Hartlib também desenvolveu outro plano de atenção aos pobres, onde propunha uma lista de médicos dispostos a prestar serviçosgratuitamente. Outro autor citado por Rosen é Petty. As propostas de Petty estavam coerentes com uma tendência do puritanismo de esquerda e direita, que era um desejo pragmático de aplicar os conhecimentos às necessidades práticas e imediatas da sociedade. Ele propõe um hospital onde os médicos dariam e receberiam instruções. Este seria bem equipado, comandado por um médico mais experiente, que dissecaria os corpos e supervisionaria às pesquisas experimentais sobre às doenças. Esta inclinação para a elaboração de projetos é o início da composição de uma estrutura teórica e prática dentro do qual os problemas sociais da saúde seriam enfocados no século XVIII e XIX no “movimento higienista”. Petty também foi pioneiro em estudos aritméticos de medição dos fatores sociais e econômicos da população. Graunt também seguiu esta orientação estatística de análise dos fatores sociais. Ele começou a considerar os números de morte e nascimento em relação às doenças, chegando à várias conclusões. Entre suas descobertas percebeu que o número de mortes no campo era menor em comparação com a cidade. Fazendo estas descobertas, demonstrou a utilidade da aritmética política de Petty. Todavia, ainda foi este último que deu a maior contribuição a esta área. Petty percebeu que não bastava considerar a fertilidade natural e a população como condições primordiais de alcance da prosperidade econômica, era preciso ultrapassar os obstáculos ao 29 desenvolvimento da população. Achava necessário criar condições sociais necessárias ao desenvolvimento da população, capazes de promover a saúde e prevenir a doença. E para ele, o Estado tinha o dever de criar estas condições. Vimos que as políticas de Saúde Pública até o início do século XVIII na Inglaterra eram inestruturadas, entregues aos poderes locais sem recursos para investir na saúde. A urbanização e as epidemias Outro problema gerado pela industrialização era a urbanização sem planejamento. A medida que os trabalhadores do campo migravam paras as cidades encontravam condições higiênicas precárias. Antes estavam isolados no campo, portanto a transmissão das doenças era dificultada. Mas agora estavam todos juntos em ambientes insalubres. Para os médicos isto significou uma maior proliferação das enfermidades. Não havia saneamento básico apropriado. Somente à partir do século XVII, o Estado passou a cuidar deste problema. Anteriormente, isto cabia aos indivíduos. Mesmo assim o Estado não cumpria seu dever, segundo Jonh Stow, “há muito negligenciada e forçada a ser um canal, muito estreito e imundo, ou por completo obstruído” (STOW apud ROSEN, 1994, p.100) De fato as epidemias se proliferaram pelas cidades. Surgindo novas doenças. Segundo Rosen, Rudolf Vircow elaborou uma teoria segundo a qual a doença epidêmica seria uma manifestação de desajustamento social e cultural. Ele defendia que com o novo contexto histórico apareciam novas doenças epidêmicas. 30 Nos séculos XVI e XVII, entre estas novas doenças estavam o suor inglês, o tifo exantemático, o escorbuto, e outras (Rosen, 1994) O suor inglês apareceu repentinamente no meio dos soldados ingleses, e rapidamente espalhou-se pela população. Os principais sintomas eram febre alta, dores no corpo, profunda angústia. Incidiu em muitos ingleses. Em Londres, segundo Rosen, matou em uma semana dois prefeitos e seis vereadores. Da mesma maneira que surgiu a doença desapareceu de repente, para retornar em outras ocasiões (Rosen, 1994) O raquitismo foi outra doença que se alastrou pela Inglaterra. Rosen observa que esta doença transformou-se em uma ameaça para a saúde das crianças. Não se tem certeza de que o raquitismo teve origem no século XVII, mas a causa da manifestação e aumento da incidência da doença, nos conta Rosen, tem origem “na severa pressão econômica e à terrível pobreza, em especial no sul da Inglaterra” (Rosen, 1994, p.80). O raquitismo poderia ser evitado pelo consumo de cálcio, fósforo e vitamina D. Mas como o leite (rico nestes componentes) estava sendo pouco consumido, pois os preços estavam altos e o desemprego aumentava abruptamente, a população se absteve de seu consumo, possibilitando a incidência da enfermidade. Na França a industrialização começa efetivamente no século XIX, trazendo os benefícios, mas também os problemas enfrentados na Inglaterra. Durante o século XIX este país enfrentou muitos problemas referentes à saúde pública. A urbanização apressada e sem estrutura condicionou os novos operários a péssimas condições de vida. Rosen observa a semelhança dos sótãos lotados de pessoas em Manchester e Liverpool aos de Lille e Ruão. 31 Essas paupérrimas condições de vida despertaram uma mentalidade de reação contra este quadro. Diversos escritores, médicos, filósofos, começaram um discurso de melhoria de vida da população. Sem duvida esta mentalidade que começa a ser construída vai dar suporte ao “movimento higienista”. Como podemos observar até agora neste capítulo, os governos praticamente não se preocupavam com a população. Não existe uma política nacional de saúde que pudesse cuidar dos problemas da prevenção, da nutrição, da habitação, do saneamento. Neste momento surge uma mentalidade de intervenção nesta situação de extrema pobreza . Este discurso cria os alicerces do “movimento higienista”, que usaria a autoridade científica para convencer governos, industriais e a própria população. Observem este discurso do poeta francês Charles Baudelaire: “Como pode alguém seja de que partido for, e sejam quais forem os preconceitos sobre os quais se criou, não se sensibilizar diante dessa multidão doentia que respira a poeira das fábricas, engole a penugem de algodão, tem seus organismos saturados com chumbo branco, mercúrio e todos os venenos necessários à criação de obras de arte, e dorme, em meio a vermes, em bairros onde a maior e a mais simples das virtudes humanas se aloja ao lado dos vícios mais emperdernidos e do vômito do penitenciário?” (BAUDELAIRE apud ROSEN, 1994, p.188) Esta mentalidade parece atingir diversos segmentos profissionais. A busca do melhor por meio da intervenção, influenciou a Filantropia em novas maneiras de cuidar do povo, como veremos à seguir. 32 Uma nova filantropia O crescimento da pobreza constrangia o Antigo Regime. E, a pobreza continuou depois da Revolução Francesa. Contudo, a estratégia para cuidar da população mudou no discurso da filantropia. Se antes a filantropia se resumia a um assistencialismo, ela busca agora o aconselhamento. O objetivo prometido pela Filantropia é ensinar o povo a se cuidar. Para exemplificar como se procede o tratamento do cuidar do povo, tomemos as metáforas de Paul Veyne. Ele dá o exemplo dos motivos que levaram ao fim dos espetáculos dos gladiadores no Império Romano. Por que os combates entre os gladiadores terminaram no século IV? A resposta evidente para isto aponta para o fato dos imperadores tornarem-se cristãos, portanto não aceitariam a gladiadura. Mas o autor responde: "não é nada disto" (Veyne, 1995) . Na opinião de Veyne não é o cristianismo a causa do fim das lutas, mas sim, a mudança das práticas governamentais em relação ao povo. Estas práticas poderiam considerar o povo como um rebanho: que morava nas terras do dominador. O povo vive bem se as circunstâncias forem favoráveis ao imperador, levando seu rebanho em uma determinada ordem, ao mesmo tempo, embrutecendo seus súditos. Ele não quer que seu rebanho enfraqueça. Outra prática seria tratar seu povo como crianças: O imperador iria considerar seus súditoscomo indefesas crianças. 33 E a última é tratar o povo como um fluxo de águas, que guiam-se por si próprias. A função do Estado é só fiscalizar este fluxo. Veyne identifica esta prática no Welfare State. No caso do Império Romano, o líder deste considerava o povo como um rebanho, e não queria que este enfraquecesse, determinando o que era melhor para o povo. Sendo assim, permitia as lutas que familiarizavam a população com o sangue e a morte. Até que o Senado de Roma é desfeito. Isto pode ter originado pavor na população. Deste modo, o imperador não consegue ver limites em seu governo, e começa a agir de forma paternalista. Considera seu povo como crianças que devem ser afastadas da imoralidade. Estes imperadores paternalistas julgam o assassinato gratuito da gladiatura uma imoralidade mais grave que o teatro. Dá-se desta maneira o fim da gladiatura no decorrer do século IV. Portanto, segundo Veyne, são três formas de cuidar do povo por parte dos governos. (Veyne, 1995) Aqui está nosso problema. A Filantropia vê o povo europeu do século XVIII como imorais. Ela quer afastá-lo dos vícios, educar, modificar seus hábitos. O povo passa a ser pensado como uma criança que não sabe o que é bom, então, o filantropo pretende ensiná-lo a viver. Racionaliza que isto fará o povo crescer e ganhar autonomia, podendo se sustentar sem o auxílio financeiro dos governos. Para isto usa duas estratégias: ensinar, principalmente, a criança; e plantar o hábito de poupar dinheiro. Jacques Donzelot nos mostra que a Filantropia incorporava uma mentalidade de economizar gastos públicos e conservar energias humanas em prol 34 do Estado. Era preciso convencer o Estado a intervir efetivamente sobre a pobreza, gerando uma riqueza nacional. Na extremidade mais pobre do corpo social, o que é denunciado é a irracionalidade da administração dos hospícios. Estes cuidavam de muitas crianças abandonadas. O Estado por sua vez, segundo os filantropos, se beneficiava pouco da criação de uma população que só excepcionalmente chegaria a uma idade onde poderia reembolsar os gastos que provocou. Trata-se, neste caso, da ausência de uma economia social. (Donzelot, 1980) O Poder judiciário denunciava que existiam um número considerável de crianças mal cuidadas e que escapavam de toda e qualquer autoridade. Não queriam colocá-las na prisão. Orientavam seus funcionários para fazerem o necessário para que os pais cumprissem seus deveres. “Eles não poderão vos rechaçar pois acabamos de promulgar uma série de leis de proteção a infância que vos autorizam a passar por cima da autoridade paterna.”7 Conservar as crianças significaria por fim aos malefícios da imoralidade. Poderíamos agrupar sob a etiqueta de "economia social" todas as formas de direção da vida dos pobres com o objetivo de melhorar suas condições de vida, de obter um número desejável de trabalhadores com o mínimo de gastos públicos. Em suma, o que se convencionou chamar de filantropia. A filantropia preocupava-se em formar moralmente o homem. Por exemplo, segundo Donzelot, o que perturbava a moralidade das famílias eram os filhos adulterinos, os menores rebeldes, as moças de má reputação, enfim, tudo o que poderia prejudicar a honra familiar, sua reputação e sua posição. Em compensação, o 7 Donzelot cita uma fala de um juiz, 1980, p.138. 35 que inquieta o Estado é o desperdício de forças vivas, são os indivíduos inutilizados ou inúteis. (Donzelot, 1980) A filantropia tenta dar conta dos dois aspectos. Ela tenta conter um excesso de liberdade, o abandono nas ruas. Instauram técnicas que consistem em limitar esta liberdade, em dirigir as crianças para espaços de maior vigilância, ou seja, a escola e a habitação familiar, tendo o objetivo de controlar e inculcar novos hábitos. Essa estratégia de educação, além da conservação das crianças, pretendia ensinar o povo a poupar. Assim, ao invés de um direito à assistência do estado, cujo papel seria aumentado, vindo a perturbar o jogo dessa sociedade, ela pretendia fornecer os meios para o povo alcançar uma futura autonomia através do ensino da virtude da poupança. Por parte do Estado, o papel seria sancionar, através de uma tutela cuidadosa, as demandas de ajuda que ainda permanecessem, já que elas constituiriam indício flagrante de falta de moralidade. (Donzelot, 1980) A filantropia prega o conselho eficaz em vez da caridade humilhante, norma preservadora no lugar de repressão destruidora. É isso que os filantropos se propõe a mudar, fazendo da incitação a poupança a chave mestra do novo dispositivo da assistência. O Paradoxo do Liberalismo Podemos, agora, refletir um pouco sobre os paradoxos desta mentalidade que vem se construindo aos poucos até desembocar no “movimento higienista”. Temos um problema aqui. Como fica o papel do Estado na intervenção? Vimos que começa a se sedimentar um discurso de melhoria das condições de vida, o 36 que só se sustentaria com a intervenção do Estado. Já a Filantropia quer reduzir o papel do Estado assistencialista, quer que o povo aprenda a se cuidar sozinho, mesmo que para isto seja necessária a intervenção do Estado através de uma Educação moralizadora. Mesmo de maneiras diferentes, os dois convidam o Estado a modificar uma realidade caracterizada pelas más condições de vida. Eles fazem isto porque o Estado não cumpre seu papel de atender as necessidades básicas da população. Ele não intervém. Com a Revolução Francesa, que significou o advento do Liberalismo Econômico, as políticas públicas de saúde estavam fadadas ao abandono. Se antes em governos absolutistas, o Estado não se manifestava efetivamente em relação a estas questões, imaginem agora com o Estado Mínimo do Liberalismo, onde os gastos dos governos devem ser reduzidos. Mas é aqui que a História se torna surpreendente. O Liberalismo promoveu o crescimento do Estado, quando atendeu às solicitações do “movimento higienista” para a construção de políticas públicas de saúde. Segundo Rosen, Robert Owen tinha antevisto, nos primeiros anos de Revolução Industrial, a necessidade de ação do Estado para pôr freio em algumas das conseqüências da liberdade econômica: “A difusão geral de manufaturas em um país gera um novo caráter em seus habitantes; e como esses caráter se molda sobre um princípio muito nocivo à felicidade individual ou geral, produzirá os males mais lamentáveis e permanentes, a não ser que essa tendência seja neutralizada pela interferência de leis.” (Owen apud Rosen, 1994, p.172) 37 O discurso higienista vai convencer os governos da necessidade da intervenção do Estado. Mesmo este sendo Liberal. Estas interpretações mostram que somente a História Política não dá conta da descrição de todo o contexto histórico. Parece-nos que revela, neste caso, a ponta desta montanha de gelo. Contudo, toda a história tem seus limites. Não queremos criar um antagonismo entre história política e história social. Até mesmo quem começou com a “micro-história” (uma das possibilidades da história social) contando a realidade por baixo em “O queijo e os vermes”8, como Carlo Ginzburg9, se preocupa com o fato deste modelo se efetivar como o único modo de escrever história10, segundo ele, não podemos esquecer a história política. Contudo devemos admitir que a história social tem mais a contar sobre o objeto Saúde pública. Conforme o objeto de estudo, tanto a história social como a história política dão conta de determinados aspectos. Todos importantes para compreendermos a realidade.8 Publicado no Brasil pela Companhia das Letras em 1976. 9 Carlo Ginzburg, historiador italiano, é autor da obra O queijo e os vermes onde inaugura uma concepção de história preocupada com a visão de determinado ator social sobre a realidade, o que se convencionou chamar micro-história. Este modelo ganhou força dentro da história social, o que preocupa este autor que considerar este modismo perigoso, pois não podemos esquecer a história política. 38 O idealismo do “movimento higienista” No início do século XVII, as doenças ocupacionais começaram a ser temas de obras médicas. Ramazzini11 publicou o primeiro tratado geral sobre doenças dos trabalhadores. A classe trabalhadora da indústria crescia vertiginosamente na Europa. Devido este fato, estes trabalhadores foram os primeiros, juntamente com os mineiros e marinheiros, a terem seus ofícios investigados pela Medicina. Mas o clássico de Ramazzini foi “De Morbis Artificum Diatriba” (Discurso sobre as doenças dos artífices). Este autor dedicou-se a chamar a atenção para necessidade de prevenir as enfermidades dos trabalhadores, estudando mais de quarenta profissões. As jornadas de trabalho eram intensas e tomavam quase todo o dia. O trabalhador esgotava-se em pouco tempo, ocasionando várias enfermidades, falta de disposição, que eram encarados como tendência à ociosidade, como falta de virtude para o trabalho, e não uma doença. A produção industrial era, na Inglaterra, central para a atividade econômica. Portanto, o trabalho ocupava posição de destaque nas preocupações da sociedade. No século XVIII e XIX, o trabalho industrial já representava o centro das preocupações sociais e econômicas. Era ele que iria garantir a riqueza da nação. E qualquer infortúnio que fosse causado ao trabalho era fonte de discussões. Neste 10 Cf. Ginzburg apud Maria Pallares-Burke. Descobertas de um Espectador, Folha de São Paulo, caderno mais, 13 de junho de 1999. 11 George Rosen cita este autor por sua obra “A doença dos trabalhadores”, São Paulo, Fundacentro, 1985. 39 quadro o trabalhador passa a ser importante, o gerador das riquezas, portanto deveria ser cuidado: “Uma população grande e sadia estava no centro do interesse dos aritméticos políticos porque era um meio, essencial, para se aumentara riqueza e o poder da nação do Estado. Em conseqüência, estadistas, legisladores, administradores, médicos, homens de negócio reconheceram suas responsabilidades ante o povo. Responsabilidade, por exemplo, pelos cuidados da saúde, pela prevenção das doenças, pela assistência médica aos necessitados.” (Rosen, 1994, p.95) O século XIX, como nenhum outro, colocou em pauta o corpo e seus cuidados. Foi neste século que o homem tentou identificar a importância e os limites do corpo. Mais do que isto, foi a época de debate em defesa de uma melhoria das condições de vida do trabalhador industrial. Para retratarmos esta época explicaremos os ideais populacionistas e a idéia da fadiga. São todos tópicos que levam o homem a cuidar de seu corpo, buscando novas formas de preservá-lo. No século XIX, dois pensamentos colaboram com o discurso do corpo como uma máquina. São estes: a idéia populacionista; e a descoberta da fadiga. Estes dois eventos apoiados pelas descobertas científicas no campo da fisiologia sustentaram o discurso do “movimento higienista” na Europa. Mas em que consistem estas representações que constituíram a base do pensamento higienista? Começaremos pela a idéia populacionista. 40 Cada homem fazia parte da força social, que por sua vez dependeria da qualidade e quantidade dos trabalhadores. Então, a riqueza de uma nação media-se pelo número de trabalhadores que ela poderia ter. A idéia populacionista defendia a livre procriação, que garantiria uma maior força social. Portanto, cada mulher e cada homem é visto como um capital da nação. Imaginem uma máquina que por falta de cuidados quebra-se, isto representa um prejuízo. Se o corpo do homem passa a ser visto como uma riqueza, qualquer adversidade que faça este homem adoecer ou falecer representa um prejuízo irreparável para a força social da nação. Com isto, surgem discursos que defendem o cuidado e a relevância de cada trabalhador para o país. Se os seres humanos passam a ser vistos como o capital da nação, como recursos, devem ser cuidados. É neste contexto que é descoberto o conceito de fadiga, que é fundamental para a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores. A fadiga parece ser o termo do século XIX para expressar o que sentimos hoje quando dizemos que estamos com “estresse”. Estamos esgotados, a vida conturbada nos deixa abatidos. Da mesma forma, o trabalhador industrial do século passado sentia a fadiga, que parecia limitar a produção. Anson Rabinbach em “The Human motor” nos explica como deu-se esta descoberta dos limites do homem. Segundo ele, os primeiros sinais de uma mudança na percepção de trabalho aparecem na literatura médica em 1887. Os médicos começaram a considerar o excesso de trabalho como causa de degenerações físicas. Esta literatura apontou a fadiga como o sinal principal da recusa do corpo em aceitar as disciplinas da sociedade industrial moderna. Se a fadiga existiu antes da sociedade moderna, ainda não havia aparecido como um termo médico, nem recebeu atenção 41 significante. Em 1870, porém, um discurso médico novo começou a desenhar a topografia de fadiga e colocar marcos em seu terreno previamente inexplorado. (Rabinbach, 1992) Rabinbach cita médicos que começaram a publicar artigos tematizando a fadiga. A definição de fadiga do francês Carrieu defende que o uso exagerado dos elementos anatômicos causam problemas, muitas vezes irreversíveis ao organismo. A imagem moderna da fadiga revela a crescente preocupação do homem com sua saúde e com a saúde do trabalhador. A doença, a invalidez, ou a morte representam imediatamente uma perda para a economia do país. A fadiga era o grande mal, com ela não se produzia, desanimando os trabalhadores, representando prejuízo. Lovisolo encontra na obra de Comênio (1592-1670), no século XVII, a idéia de fadiga. Ele preocupado com os processos educacionais, via que a fadiga atrapalhava a absorção dos conteúdos. Observava que longas horas de estudo sem descanso comprometia a eficiência e produtividade do estudo. Dois séculos antes da fadiga se tornar o centro das pesquisas sobre o trabalho, este pedagogo já a identificava como um mal que deveria ser evitado na Escola que idealizou. (Lovisolo, 1999). Rabinbach busca em Nietzsche explicações para esta idéia de fadiga no século XIX. Segundo este último, e outros pensadores desta época, a fadiga foi identificada com a própria modernidade. A desintegração caracteriza este tempo, e também a incerteza: nada está firmemente em seus pés ou em uma fé dura, um vive para o amanhã porque o dia após o amanhã é duvidoso. Tudo em nossa vida é 42 escorregadio e perigoso, e o gelo que nos suporta tornou-se finamente arriscado, onde nós andamos, logo ninguém poderá andar (Rabinbach, 1992). No pensamento do século XIX, a noção de fadiga representava um pessimismo em relação ao futuro da humanidade. A idéia de conservação da energia e da entropia, também, acarretaram uma grande preocupação com o esgotamento destas energias, que resultaria em uma situação apocalíptica. Por exemplo, Balzac planejou escrever “uma patologia da vida social”, para mostrar como o estoque de forças dos homensé diminuída por demasiada despesa do esforço. A descoberta da entropia atestou uma visão pessimista da natureza, em que, a quantidade disponível de energia estava diminuindo continuamente. Esta idéia de energia que deve preservada, também foi apoiada pelas descobertas científicas da fisiologia. As descobertas da termodinâmica. Anson Rabinbach explica que no século XIX, depois de controvérsias entre fisiologistas da época, aplicou-se o princípio de conservação de energia no corpo humano. Este princípio mostrou que através da respiração e ingestão de substâncias químicas (como gorduras e proteínas), os músculos absorviam calor do meio externo, transformando este combustível em energia, ou seja, transformando energia em energia a ser utilizada. O músculo é uma ferramenta por meio da qual a transformação de força é efetuada. Mas não é a própria energia, esta será absorvida do meio externo. Então, uma nutrição apropriada cuidaria da melhoria das forças, a capacidade de produzir aumentaria. 43 Da mesma forma que a máquina precisava de um combustível para seu funcionamento, não seria diferente com a máquina mais complexa da história, ou seja, o motor humano. A mesma metáfora que tinha sido inaugurada no século XVI por Descartes, que dizia que o corpo do homem era como uma máquina. Vejamos a seguinte passagem deste filósofo: “O que não aparecerá de maneira alguma estranho a quem, sabendo quão diversos autômatos, ou máquinas móveis, a indústria dos homens pode produzir, sem aplicar nisso senão pouquíssimas peças, em comparação à grande quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras partes existentes no corpo de cada animal, considerará esse corpo uma máquina que, tendo sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente mais bem organizada e capaz de movimentos mais admiráveis do que qualquer uma das que possam ser criadas pelo homem.” (Descartes, 1999, p.11) As novas descobertas da física, especialmente a termodinâmica, e da fisiologia do século XIX legitimaram o discurso higienista, que adotou a estratégia da metáfora do motor humano para realizar seus objetivos. Foram os higienistas que pregaram novidades no cuidar do corpo. Novidades que prometiam alcançar um melhor bem-estar para a vida quotidiana, que afastariam as epidemias, que tornariam os homens mais dispostos para o trabalho, que buscariam riquezas para o país. A metáfora da máquina humana formou parte de uma estratégia de popularização dos novos hábitos higiênicos. Que pretendiam responder questões 44 como: Como atingir os trabalhadores da indústria? Como melhorar as condições de vida da população em geral? Um dos papéis centrais da metáfora do “homem-máquina” foi o de convencer os capitalistas a cuidar de seus recursos humanos. O motor humano O contexto histórico legitimou a necessidade de cuidar do trabalhador. Rabinbach elenca várias comprovações empíricas desta tese na Europa, como veremos neste capítulo. Durante as últimas décadas do século XIX, o liberalismo europeu alinhou-se com as doutrinas científicas da conservação da vida. Seus pilares gêmeos eram medicamento e biologia. A higiene social sancionou a visão de que a sociedade seria melhor através da noção de equilíbrio. Para os reformadores, era a sociedade um delicado organismo, cujas funções dependiam da intervenção estatal. Estatísticas sociais poderiam atestar o custo da negligência em relação às condições sociais, como também para os benefícios potenciais de remover seus efeitos danosos. Teorias científicas foram adotadas através dos estudos estatísticos para enfatizar as raízes sociais da doença. O discurso higienista pregava a melhoria na saúde, a longevidade, e a conservação do trabalhador, que poderiam aumentar as forças produtivas da nação. Na obra de Louis Querton (1905), o catecismo da energia social era patente. Reunindo argumentos biológicos, estatísticos, e sociológicos, para apoiar o aumento da intervenção estatal para a construção, conservação, e encarecimento da máquina humana. 45 O Solidarismo, uma doutrina desenvolvida por Léon Bourgeois, enfatizava a moral mútua e coletiva, as obrigações sociais de todos os sócios produtivos da sociedade. Reformas que poderiam reduzir a exploração, promover a produtividade, aumentando a justiça social. Em 1900, em uma exposição em Paris, o ministro socialista do comércio, Alexandre Millerand, apontou os resultados positivos de tais agrupamentos incentivadores da defesa social, aumentando a solidariedade social. Segundo ele, as reformas reduziram as fraquezas individuais, permitindo superar os obstáculos do ambiente. Economistas do Solidarismo, inclusive Charles Guide, Charles Rist, Paul Cauwès, e Raoul Jay, fundaram uma revista onde enfatizavam os custos sociais da saúde debilitada do trabalhador. Este periódico criticava os baixos padrões de vida da população, o que causava uma queda na produtividade pessoal do trabalhador. O Solidarismo era a base ideológica dos reformadores republicanos, que acreditaram que melhorando a saúde dos trabalhadores, melhorariam a produtividade e preservariam o capital da nação. Raoul Jay resumiu o cálculo essencial do positivismo social francês em 1904. Para ele, uma nação que permitisse a destruição ou redução das forças mentais e físicas dos trabalhadores manuais faziam um péssimo planejamento. Essas forças físicas e morais são uma parte do capital nacional como as máquinas. O industrial que para reduzir os custos de produção, não faz a manutenção das máquinas, seria considerado um tolo. Segundo ele, se nós não pensamos o mesmo de um industrial que impõe um trabalho excessivo aos trabalhadores, paga um salário insuficiente, é porque nós sabemos que ele nunca terá 46 que consertar o dano causado pela negligência criminal de deteriorar a saúde do indivíduo. O dano é assumido pela nação. (Rabinbach, 1992) O interessante é observarmos, que o “movimento higienista” elabora uma estratégia para convencer os governos e empresários baseada no produtivismo. Mas seu interesse não é colaborar em uma maior exploração do povo. Eles estavam preocupados, também com a saúde da população. Pois se não fosse assim, o quadro de exploração do século XVII poderia ser mantido. Quando um trabalhador adoecesse, e tivesse sua produção diminuída era fácil substituí-lo devido às altas taxas de desemprego. Deste modo, a produtividade se manteria. Mas os higienistas querem regular esta exploração com o objetivo de diminuir a pobreza, melhorando as condições de vida. O poder operário deveria ser visto, segundo os higienistas, como um capital da nação. Em meados de 1900, a ciência de trabalho se tornou uma arma intelectual poderosa no arsenal dos reformadores de classe-média. Na atmosfera de intenso debate sobre a duração da jornada de trabalho, nos riscos à saúde do trabalho industrial, nas controvérsias em cima de salários e normas de trabalho, a ciência do trabalho começou a representar um papel importante nos esforços dos reformadores liberais em mediar o conflito social. Armand Imbert, em um estudo, tentava estabelecer uma solução mais eqüitativa do conflito entre trabalho e capital. Em 1903, no Congresso de Bruxelas de Higiene e Demografia, os líderes do movimento de higiene social americano e europeu uniram-se para debater como a ciência de trabalho poderia ultrapassar os limites do laboratório, formando políticas e legisladores com argumentos em defesa dos métodos específicos para a organização 47 de trabalho. Quatro anos depois quando o delegados
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