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2º PERÍODO LINGUÍSTICA GERAL I AUTORAS Arlete Ribeiro Nepomuceno Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente é professora do Departamento de Comunicação e Letras da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). Liliane Pereira Barbosa Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente é professora do Departamento de Comunicação e Letras da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). *Cópia parcial da obra e título alterado em razão da disciplina ministrada pela professora Liliane P. Barbosa. Essa é a primeira unidade desse Caderno Didático. O objetivo principal é que continue a conhecer as questões básicas de linguagem e discuti-las ampliando seus conhecimentos. Agora, lidaremos com as noções de Lingüística (objeto de estudo, objetivos, método e componentes gramaticais de investigação), Semiologia e as diferenças entre essas duas ciências. Também, distinguiremos Gramática Tradicional de Lingüística, algo importante de se estabelecer nesse segundo momento de estudo. Essa primeira unidade, Lingüística, foi organizada com as seguintes subunidades: 1.2 O que é Lingüística e o que é Semiologia/Semiótica 1.3 Lingüística versus Gramática Tradicional 1.4 Objeto de estudo, objetivo e método investigativo da Lingüística 1.5 Lingüística e componentes da gramática 1.5.1 Fonética 1.5.2 Fonologia 1.5.3 Morfologia 1.5.4 Sintaxe 1.5.5 Semântica 1.5.6 Lexicologia Atenção: Não se esqueça de que as questões sugeridas junto ao texto são fundamentais para a sua compreensão! Continuemos a leitura. ‘1.1 O QUE É LINGÜÍSTICA E O QUE É SEMIOLOGIA/SEMIÓTICA Até então, discutimos Lingüística, especificamente, linguagem e noções de gramática; mas, para que continuemos, fazem-se necessárias a delimitação da Lingüística e a ênfase a seus pressupostos básicos. O que é Lingüística? Bem, a resposta a essa pergunta não é muito tranqüila se você responder que é uma ciência que investiga a linguagem. Por que não é uma resposta tranqüila? Pelo simples fato de termos linguagem verbal (pautada na palavra) e linguagem não-verbal 3 Introdução à Lingüística UAB/Unimontes 2UNIDADE 1LINGÜÍSTICA Figura 1: Ferdinand Saussure Fonte: http://en.wikipedia.org (pautada em outros sistemas de comunicação que não o da palavra). A resposta a essa indagação é que a Lingüística é uma ciência que investiga a linguagem verbal humana – apenas um dos tipos de linguagem que podemos usar em um ato de comunicação. Essa resposta poderia nos conduzir a um outro questionamento: Há uma ciência que trataria da linguagem não-verbal? Bem, na verdade, temos uma outra ciência de amplitude maior que estuda qualquer sistema de comunicação, tanto a linguagem verbal quanto a não-verbal. Segundo Ferdinand Saussure, denomina-se Semiologia; segundo Sanders Pierce, Semiótica. Pelo fato de a Lingüística tratar apenas da linguagem verbal, em razão de ser o sistema de comunicação mais bem desenvolvido e de maior uso, podemos considerar que a Lingüística está inserida na Semiologia/Semiótica. 1.2 LINGÜÍSTICA VERSUS GRAMÁTICA TRADICIONAL Podemos considerar que Lingüística e Gramática Tradicional (GT) são sinônimas? Esse seria um questionamento possível de ser formulado por iniciantes nessa área a um docente em razão do peso da tradição da gramática tradicional. Mas, a resposta do professor seria “não”. Por quê? Porque a Gramática Tradicional corresponde a um manual que descreve as regras da língua que devem ser seguidas pelos seus usuários, tanto para fala quanto para escrita – em razão de não diferenciar essas duas modalidades, mas considerar a escrita modelo. Essa gramática difundiu falsos conceitos e até preconceitos a respeito da linguagem. Que falsos conceitos seriam esses? Ÿ A difusão de que há uma variedade da língua melhor do que a outra (privilegia-se o falar do grupo social de prestígio em detrimento dos demais grupos); Ÿ A consideração de que a língua escrita é o modelo para a língua falada (segundo essa gramática, a fala deve espelhar a escrita); Ÿ O fato de propor que há línguas mais lógicas, mais ricas e melhores que outras (línguas clássicas); Ÿ A noção de que há línguas mais evoluídas que outras, consideradas primitivas. Além de preconceitos inúmeros, vejamos apenas dois: Ÿ O indivíduo que não usa as regras que a gramática tradicional Figura 2: Charles Sanders Pierce Fonte: http://en.wikipedia.org 4 PARA REFLETIR Você já refletiu sobre o fato de que nem sempre você segue as regras que a GT impõe? Analise uma regra sintática da GT (colocação dos pronomes átonos, uso do pronome você, concordância/regência verbal, por exemplo) e compare-a com o uso que você faz da língua. Introdução à Lingüística 5 prescreve fala/escreve errado; Ÿ O indivíduo que não segue a GT é inferior em relação a quem a segue... Essas falsas noções são desmistificadas pela Lingüística, segundo Petter (in FIORIN, 2002), sabe por quê? Porque a Lingüística, ciência que investiga a linguagem verbal humana, de qualquer língua indistintamente, não está interessada em propor regras lingüísticas para os indivíduos seguirem, em que muitas em nada correspondem ao uso. A Lingüística, em suas pesquisas, busca descrever/explicar as regras utilizadas naturalmente pelos falantes de uma língua (gramática descritiva) e revela- nos outros resultados. Em primeiro lugar, não há uma variedade da língua melhor que a outra, há diferentes maneiras de se expressar em uma mesma língua; a língua escrita, também, não pode ser modelo para a fala, em razão de a fala preceder a escrita e de suas organizações e usos serem diferentes; não se tem línguas mais evoluídas que outras, pois as línguas possuem os recursos necessários para que seus falantes estabeleçam comunicação; também, não há fala/escrita erradas apenas pelo fato de não seguirem a GT nem seu usuário é inferior. Em razão disso, na verdade, deve-se pensar em noções de adequações de uso da língua a contextos – situações comunicativas variadas. Por exemplo, imagine-se escrevendo um convite para uma festa junina seguindo as regras da gramática normativa. O convite ficaria descaracterizado. Nesse contexto, seria inadequado aplicar as regras da GT, pois o adequado seria escrever aproximando-o de uma linguagem caipira, ou seja, desobedecendo a regras impostas. Vejamos os exemplos que se seguem: Caderno Didático - 2º Período Figura 3: Modelo de convite de festa junina João Victor, Voismicê tá cunvidadu pruma festança nu arraiá du Gerardão nu dia 18 di novembru às 20h – casa du tiu Pedru. Vai tê miu verdi, canjica, bolu, aminduim i quentão. Num dexi di vim. Consulte, em uma biblioteca, uma gramática normativa e análise as partes de que é constituída. Faça um relato da abordagem feita em cada uma de suas seções e compare com os componentes gramaticais abordados pela Lingüística. DICAS 6 Esses dois modelos de textos estão adequados para o que se propõe, aos seus receptores e contexto comunicativo, apesar de apenas o modelo de memorando seguir as regras impostas pela gramática normativa – modelo tido por ela como correto. 1.3 OBJETO DE ESTUDO, OBJETIVO E MÉTODO INVESTIGATIVO DA LINGÜÍSTICA Como toda ciência, qual é o objeto, objetivo e método investigativo da Lingüística? O objeto de estudo da Lingüística é a linguagem verbal humana (oral ou escrita),a qual observa com a finalidade de descrever e explicar os princípios fundamentais que a regem, através da análise de sua estrutura e funcionamento. Em vista disso, a Lingüística definiu seu método de investigação: em uma dada pesquisa, o estudioso baseia suas descobertas na observação dos fatos lingüísticos (dados da realidade) os quais devem ser analisados por meio de uma teoria e de experimentações adequadas (MARTELOTTA, 2008). 1.4 LINGÜÍSTICA E COMPONENTES DA GRAMÁTICA Em razão de a Lingüística almejar descrever/explicar as regras utilizadas naturalmente pelos falantes de uma língua, suas investigações, geralmente, por questão de restrição, equacionamento da complexidade da língua, pautam-se em um ou outro aspecto lingüístico. O que isso quer dizer, professor? Quer dizer que, em uma investigação, se pode observar a linguagem verbal sob aspectos diferentes. Isso porque a gramática de uma língua é constituída de níveis: fonético/fonológico, morfológico, sintático e semântico. Daí a Lingüística ser constituída de partes para enfocar cada um dos componentes de uma gramática: Fonética e Fonologia, Morfologia, Sintaxe e Semântica, os quais serão descritos nas próximas subunidades, além de abordar outros domínios (como a Lexicologia, por UNIVERSIDADE DE SÃO PEDRO Montes Claros, 29 de julho de 2008. Memorando nº 24/ED Aos Srs. professores Assunto: Convocação Convocamo-los para uma reunião no dia vinte de novembro de dois mil e oito, às dezenove horas, na Universidade de São Pedro. Atenciosamente, João de Melo Chefe de Departamento Figura 4: Modelo de memorando ATIVIDADES Você fez a reflexão e análise solicitadas? Agora, faça uma pesquisa on-line e verifique o que a Lingüística aborda sobre o assunto escolhido e comente-o. Introdução à Lingüística 7 exemplo). Mas vale lembrar as palavras de Nida (1970):” nenhuma parte de uma língua pode ser descrita adequadamente sem referência a todas as outras partes”. Ou seja, seus componentes gramaticais articulam-se, pois são interdependentes. 1.4.1 Fonética A Fonética é o ramo da Lingüística que trata dos sons da fala (parte física e fisiológica do sistema sonoro), denominados de fone, cujas finalidades são: descrever o caminho percorrido pela corrente de ar na produção dos sons articulados de uma língua, como esses sons são produzidos, sua propagação no espaço e percepção do ouvinte em relação ao som articulado emitido pelo falante. Em decorrência de investigar os sons isoladamente, a Fonética mostra-nos as variações sonoras que uma língua pode apresentar. Por exemplo: 1.4.2 Fonologia A Fonologia é o ramo da Lingüística, interdependente da Fonética, que trata dos sons da língua (fonema), parte psíquica do sistema sonoro e se preocupa com a funcionalidade e organização desses sons em sistemas. Chamamos os sons da língua de funcionais. Por quê? Porque têm capacidade de, a partir de sons diferentes, gerarem significados distintos. A partir da técnica do par mínimo, que equivale a um par de palavras que apresenta apenas uma diferença sonora em cada uma de suas palavras (essa diferença sonora deve estar na mesma posição do contexto e, a tonicidade das palavras deve ser a mesma), podemos analisar se os sons distintos que aparecerem nesse par mínimo são funcionais ou não, ou seja, se geram significados diferentes ou não. Por exemplo: o par mínimo mesada e melada nos permite afirmar que os sons e são fonemas (sons funcionais) em razão de gerarem significados diferentes entre as palavras. As finalidades da Fonologia são: distinguir significações através de sons diferentes, descrever as combinações de fonemas possíveis em uma dada língua e inventariar o sistema fonológico – os sons que têm funcionalidade (vogais, consoantes e semivogais). 1.4.3 Morfologia A Morfologia é o ramo da Lingüística que trata das formas das C A B F E G GLOSSÁRIO Fone: sinônimo de som da fala, corresponde à parte física e fisiológica do sistema sonoro, ou seja, é a realização dos sons de uma língua. Fonema: sinônimo de som da língua (unidade mínima distintiva), corresponde à parte psíquica (abstrata) do sistema sonoro. Esses sons são chamados de funcionais porque, a partir de pares mínimos, geram significados distintos. Caderno Didático - 2º Período 8 palavras. Mas o que seria a forma de uma palavra? Bem... Seria seu aspecto, com a abstração de seu sentido e função (MONTEIRO, 2002). Ou melhor, a morfologia lida com a análise da estrutura interna das palavras, enfocando os morfemas, sua distribuição, variantes e classificação, conforme seu ambiente e ordem de ocorrência, além dos processos de formação de palavras e categorias gramaticais (LAROCA, 2005). Possui um objeto mínimo de análise: as unidades mínimas significativas (morfemas) e um objeto máximo, a palavra. 1.4.4 Sintaxe Como mais um ramo da Lingüística, a Sintaxe volta-se para a análise das relações entre as palavras e das relações entre as orações que compõem um dado período. Os processos seqüencial (coordenação) e sintagmático (subordinação) são apenas alguns aspectos que aqui são tratados, além da correlação, entre outros. 1.4.5 Semântica Segundo Perini (2004), a Semântica – outro ramo da Lingüística – é responsável por analisar o significado das formas lingüísticas, cuja interpretação é depreendida somente da estrutura formal da língua, ou seja, está ligada à sua estrutura morfossintática, o que desconsidera os fatores ligados ao contexto comunicativo, conhecimento prévio, intenções do falante, etc. Esse tipo de análise semântica preocupa-se com o significado literal das palavras através de regras semânticas. 1.4.6 Lexicologia Por fim, dentro de nossa estratégia de abordar primeiramente apenas os componentes de uma gramática (etapa já cumprida e encerrada na seção acima), faremos referência, agora, a um ramo da Lingüística que se distingue da gramática propriamente dita: a Lexicologia, que analisa o significado individual dos itens lexicais. Mas isso não seria o que a semântica faz? Não. Mas por quê? Porque a Semântica, conforme Perini (2004), analisa o significado das palavras relacionando-o às funções morfossintáticas exercidas pelas palavras numa frase. A Lexicologia não, trata o significado desvinculado da frase – os itens semânticos de uma palavra. Mas, então, como seria isso? Vejamos a frase: João feriu Maria. Numa análise à luz da Semântica, as suas regras especificam que, nessa frase, a palavra João é agente da ação e Maria é paciente; porém esses significados estão relacionados à função morfossintática que C A B F E G GLOSSÁRIO Morfema: unidade mínima significativa – objeto mínimo de análise da Morfologia. Sintagma: numa noção saussuriana, esse termo nomeia a relação entre dois elementos consecutivos, estando um elemento subordinado (dependente) a um outro (principal). Seqüência: termo utilizado para nomear a relação de coordenação entre elementos consecutivos. Correlação: construção sintática de duas partes relacionadas de tal maneira que a enunciação da primeira prepara a enunciação da segunda (GARCIA, 2000). Introdução à Lingüística 9 exercem nessa frase: sujeito e objeto direto, respectivamente. Basta uma inversão dessa frase: Maria feriu João e teremos os mesmos itens lexicais, porém com funções morfossintáticas diferentes, oque desencadeará significados diferentes para cada um. Agora, Maria é o agente e João, paciente, em razão de serem agora sujeito e objeto direto, respectivamente. Porém, numa análise à luz da Lexicologia, os itens lexicais Maria, feriu e João terão sempre os mesmos traços semânticos, por exemplo: Maria: nome de um ser humano, feminino, + animado, + concreto. João: nome de um ser humano, masculino, + animado, + concreto. Feriu: item lexical que indica ação. Além dos componentes gramaticais e da Lexicologia, descritos em Lingüística: componentes da gramática, a Lingüística possui outros domínios de estudos que, por causa de suas especificidades, serão vistos na Unidade 2. Caderno Didático - 2º Período 10 Esta é a segunda unidade desse Caderno Didático cujo objetivo principal é oferecer uma visão panorâmica da história da Lingüística. Para tanto, torna-se necessário, antes de tudo, colocá-la no seu contexto histórico, a fim de que saibamos quais os motivos e intuições do passado serviram de bases a teorias e orientações atuais e possamos formular uma série de propostas satisfatórias a respeito do que seja linguagem. Um exame, mesmo superficial da história da Lingüística, demonstra que, se, por um lado, ela se desenvolveu metodologicamente à sombra de outras disciplinas, por outro lado, procurar a natureza subjacente das línguas sempre esteve no centro das preocupações dos lingüistas. Salientamos que nosso enfoque são as investigações lingüísticas no Ocidente, de Platão às propostas do século XX. Faremos referência a poucas investigações lingüísticas ocorridas no Oriente, apenas àquelas que interferiram no pensamento ocidental. Essa segunda unidade, História Ocidental da Lingüística (século IV a.C ao século XX) foi organizada com as seguintes subunidades: 2.1 Na Antigüidade 2.1.1 Na Índia 2.1.2 Na Grécia antiga 2.1.2.1 No período alexandrino 2.1.3 Em Roma 2.2 Na Idade Média 2.3 Da Renascença ao fim do século XVIII 2.4 A Lingüística no século XIX 2.5 A Lingüística no século XX 2.5.1 Estruturalismo 2.5.1.1 Estruturalismo europeu 2.5.1.1.1 Estruturalismo funcionalista 2.5.1.2 Estruturalismo norte-americano Atenção: Não se esqueça de que as questões sugeridas junto ao texto são fundamentais para a sua compreensão! Continuemos nosso estudo. 3UNIDADE 2HISTÓRIA OCIDENTAL DA LINGÜÍSTICA (século IV a.C ao século XX) 11 2.1 NA ANTIGÜIDADE 2.1.1 Na Índia Segundo Leroy (1971, p. 16), os hindus – povos da civilização oriental –, por razões religiosas, foram os primeiros povos levados a estudar sua língua. Preocuparam-se com os textos sagrados, reunidos no Veda, pois não queriam que sofressem alteração alguma no momento de serem cantados ou recitados durante os sacrilégios. Depois, os gramáticos – dos quais o mais célebre é Panini (século IV a.C) – dedicaram-se ao estudo do valor e do empréstimo das palavras e fizeram de sua língua, com precisão e minúcias admiráveis, descrições fonéticas que são consideradas modelo no gênero. Por muito tempo esquecidas, foram elas descobertas pelos sábios ocidentais nos fins do século XVIII e constituíram, como veremos ainda nessa unidade, o ponto de partida indispensável à criação da gramática comparada. Na esteira de Laroca (2005, p.12), a descoberta do sânscrito possibilitou aos estudiosos reconhecer a estrutura interna das palavras, depreendendo unidades mínimas como raízes e afixos. Ademais, cumpre ressaltar que os estudos hindus eram puramente estáticos, relativos apenas ao sânscrito, efetuados por homens totalmente desprovidos de senso histórico, pois limitavam-se a classificar os fatos sem procurar-lhes a explicação. 2.1.2 Na Grécia antiga Se, por um lado, os gregos – civilização ocidental – não deixaram de sua língua nenhuma descrição comparável à dos hindus, por outro, estudaram sua própria língua com muita atenção, não só no plano estético (os procedimentos de estilo), mas também no plano filosófico (adequação da linguagem ao pensamento). Nessa medida, esse último ponto de vista (sobre o qual falaremos nessa seção) interessa-nos particularmente, pois tais especulações dos antigos constituem, em boa parte, o ponto de partida do pensamento lingüístico moderno tanto nos seus desacertos como nos rumos de seus êxitos, conforme veremos ao longo dessa unidade. As primeiras discussões dos filósofos gregos sobre a linguagem centravam-se no problema da relação entre o pensamento e a palavra, isto é, discutiam se o que regia a língua era a natureza ou a convenção. Essa oposição da natureza e da convenção era um lugar-comum da especulação filosófica. Dizer que uma determinada instituição era natural equivalia a dizer que tinha sua origem em princípios eternos e imutáveis fora do próprio homem, e era por isso inviolável; convencional equivalia a dizer que era o mero resultado do costume e da tradição, isto é, de algum acordo tácito, ou contrato social, entre os membros da comunidade – contrato que, por ter sido feito pelos homens, podia ser violado por eles Dizem os historiadores que existiu, há uns 15.000 ou 20.000 anos, uma civilização muito desenvolvida no vale do Rio Sarasvati e, posteriormente, no vale do Rio Hindus (Índia). Ali é o berço da tradição dos Vedas com seus rituais, mantras e diálogos entre mestres e discípulos sobre o conhecimento do Ser Absoluto. A mais antiga evidência que se possui do sânscrito (língua sagrada da Índia) é o Rig Veda. Dessa língua Rig Veda há um desenvolvimento até o sânscrito clássico, conhecido e usado hoje sem sofrer qualquer mudança. Isso devido a gramáticos como Panini, que escreveu um tratado da língua sânscrita chamado Ashtadhyayi, constituído de oito capítulos, cada um dividido em quatro partes. Infelizmente, mesmo na Índia, o sânscrito é raramente usado como um meio diário de comunicação. No entanto, alguns grupos têm tentado reviver o sânscrito como uma língua falada. DICAS Caderno Didático - 2º Período 12 mesmos. A palavra gramática, no sentido amplo de sistematização dos fatos de uma língua (MELO, 1972, p. 7), começou a ser empregada no mundo ocidental a partir de Aristóteles: il faut se rappeller que les premières observations sur le langage furente faites par les sophistes à l'occasion de la critique d'Homère. Ce n'est qu'après Aristóteles que la grammaire se constitua em science independante (HARDY, 1984, p.10). Os sofistas (século V - IV a. C) tiveram da linguagem uma visão predominante utilitarista: eram professores de retórica e viam nas palavras, acima de tudo, um instrumento de persuasão; não lhes interessou um estudo aprofundado dos problemas da língua nem uma sistematização dos fatos lingüísticos. Já em Platão, filósofo grego, no século V a. C, podemos encontrar reflexões sobre a linguagem, questão central na época, nos diálogos conhecidos como Crátilo. Nesses diálogos, tomavam como parte três interlocutores – Crátilo, Hermógenes e Sócrates –, representando cada qual um ponto de vista a respeito da denominação ou designação, isto é, da relação existente entre o nome, a idéia e a coisa. A indagação central estava baseada na existência ou não da relação de similaridade entre a forma (código lingüístico) e o sentido por ela expresso. Para Crátilo, a língua é o espelho do mundo, o que significa que existe uma relação natural e, portanto, similar entre os elementos da língua e os serespor eles representados. Para Hermógenes, a língua é arbitrária, isto é, convencional, pois entre o nome e as idéias ou as coisas designadas não há transparência ou similaridade. Sócrates, por sua vez, tem o papel de fazer a integração entre os dois pontos de vista. Enquanto Aristóteles (século IV a.C.) levou mais longe a preocupação com a linguagem, embora não tenha escrito obras que tratem especificamente desse assunto; sua doutrina lingüística encontra- se esparsa em vários de seus tratados. Aristóteles, em seus tratados de lógica, cujo conjunto recebeu a denominação de Organon, “destaca um fato eminentemente humano que é o exercício da linguagem”, nas palavras de Neves (1987, p. 61). O Organon inclui vários capítulos, entre os quais destacamos o capítulo I (Categorias) e os capítulos II, III e IV (Sobre a Interpretação). Nesse contexto, Aristóteles aborda, logo de início, sinônimos, homônimos e parônimos (Categorias, cap. I); mais além, define o nome, verbo, o discurso (Sobre a Interpretação, cap. II-IV). Na sua obra Poética (cap. XX-XXII), da qual restou apenas fragmentos, esboça uma classificação das palavras, incluindo, além do nome, do verbo e Na Antigüidade, os termos língua e linguagem eram empregados indistintamente. Tradução da citação em francês ao lado: “É preciso lembrar-se de que as primeiras observações sobre a linguagem foram feitas pelos sofistas no momento em que criticaram Homero. Somente após Aristóteles, a gramática constituiu-se como uma ciência independente” (HARDY, 1984, p. 10). DICAS DICAS Figura 5: Platão Fonte: http://en.wikipedia.org C A B F E G GLOSSÁRIO Sofistas: contemporâneos de Sócrates que chamavam a si a profissão de ensinar a sabedoria e a habilidade (FERREIRA, 1999). Introdução à Lingüística dos artigos, conectivo, articulação e frase (cap. XX) e a metáfora (cap. XXII). É na obra Política, que é um conjunto de oito livros que não apresentam encadeamento lógico rigoroso, no Livro I, capítulo II, que vai ser explicitada a natureza da linguagem. Para Aristóteles, o animal político liga-se necessariamente à faculdade humana de falar, pois sem linguagem não haveria sociedade política. “O homem é um animal político mais do que as abelhas ou os outros animais gregários. A natureza não faz nada em vão e, entre os animais, o homem é o único que ela dotou de linguagem” (NEVES, 1987, p. 62). Em outras palavras: a linguagem está no homem suscitada pela vocação de animal político e operada pela sua natureza, a fim de que essa vocação se possa cumprir. Assim sendo, a base para as sociedades é a possibilidade de comunicação. Só a voz articulada, a palavra humana, tem um sentido, o qual é dado pela faculdade exclusivamente humana. No campo da lógica, Aristóteles estabelece as categorias, que constituem uma classificação de idéias humanas: “a substância, a quantidade, a qualidade, a relação, o lugar, o tempo, a posição, o estado, atividade, a passividade” (ARISTÓTELES, Categorias, cap. IV). Esses são, segundo ele, os dez gêneros ou idéias universais em que se encerram todos os seres contingentes. “Aristóteles apresenta assim a totalidade dos predicados que se podem afirmar do ser” (BENVENISTE, 2005, p. 71). Após isso, seus seguidores foram, aos poucos, estabelecendo as chamadas categorias gramaticais (no sentido de partes do discurso): nome (substantivo e adjetivo), verbo, etc. Outra importante contribuição de Aristóteles para os estudos gramaticais foi estabelecer, na lógica (Categorias, cap. II), o conceito de sujeito e predicado, elementos fundamentais em todo raciocínio e na oração. Além disso, o método que seria adotado pela chamada gramática tradicional foi inaugurado por Aristóteles: a partir dele, segundo Neves, aparece a definição das partes do discurso. Seu procedimento geral de investigação, que se baseia na definição e nas classificações, aplica-se também às formas de expressão e caracteriza, a partir daí, a apresentação das entidades da linguagem. Mais tarde, a gramática alexandrina vai estruturar-se sobre o procedimento de classificações e definições e, do mesmo modo, vai-se ver, pelo tempo afora assim apresentarem-se também as g r a m á t i c a s o c i d e n t a i s (NEVES, 1987, p. 207). Partindo, pois, de Aristóteles, os estóicos (cuja escola data do século III a.C.) começaram a organizar a gramática no sentido de estudo sistemático da língua, escrevendo obras especificamente gramaticais, em que trataram de fonética, de morfologia e de sintaxe; deles, porém, Para Aristóteles, a lógica não seria parte integrante da ciência e da filosofia, mas apenas um instrumento (Organon) que elas utilizam em sua construção. DICAS Figura 6: Aristóteles Fonte: http://en.wikipedia.org Caderno Didático - 2º Período 13 14 só nos chegaram notícias de fragmentos. Entre os estóicos que trataram de questões lingüísticas, temos Crates de Malo, que esteve em Roma em meados do século II a.C., e, com suas palestras, deu o primeiro impulso aos estudos sistemáticos dos romanos no campo da língua. Lobato (1986, p. 78) ressalta o fato de que, ainda que os estóicos tenham se dedicado ao estudo de questões gramaticais, eles não se interessaram pela língua em si mesma, o que coincide com o pensamento dos filósofos, visto que percebiam a língua como a expressão do pensamento e dos sentimentos. Essa é a característica compartilhada com os estudiosos do período anterior: todos desenvolveram o estudo sobre a língua no âmbito de pesquisas filosóficas ou lógicas. 2.1.2.1 No Período Alexandrino Maior importância para a evolução dos estudos gramaticais tiveram os alexandrinos que (também a partir do século III a.C.) ocuparam- se desse assunto: as alterações introduzidas pelos sábios alexandrinos nas doutrinas dos estóicos é que deram à gramática a forma com que, posteriormente, chegou aos romanos e, através destes, à tradição européia. A sistematização da gramática efetuou-se no período alexandrino sob o influxo das condições políticas e culturais da época: a extensão do império criado por Alexandre motivou o surgimento de uma discrepância cada vez maior entre a língua grega culta e a língua corrente, que se contaminou com barbarismos devido à introdução de povos diversos na comunidade cultural helênica; o estudo da gramática foi um meio de preservar a língua como expressão de valores da cultura que os gregos desejavam conservar. Segundo Lyons (1979, p. 9), cumpre ressaltar o fato de que, com o estabelecimento da grande biblioteca da colônia grega de Alexandria, no início do séc. III a. C, essa cidade tornou-se o centro de intensa pesquisa literária e lingüística. Os manuscritos dos autores antigos, em particular os que traziam o texto dos poemas homéricos, encontravam-se bastante corrompidos. Comparando diferentes manuscritos das mesmas obras, os filólogos alexandrinos dos séculos III e II a. C procuraram restaurar o texto original e escolher, entre os trabalhos, os genuínos e os espúrios. Porque a língua dos textos clássicos diferia, em muitos aspectos, do grego contemporâneo de Alexandria, desenvolveu-se a prática de publicar comentários de textos e tratados de gramática para elucidar as várias dificuldades que poderiam perturbar o leitor dos antigos poetas gregos. A admiração pelas grandes obras literárias do passado encorajou a crença de que a própria língua na qual elas tinham sido escritas era em si mais pura, mais correta do que a fala coloquial corrente de Alexandria e de outros centroshelênicos. Assim, as gramáticas escritas pelos filósofos helenistas tinham dupla finalidade: combinavam a intenção de estabelecer e explicar a língua dos autores clássicos com o desejo de As obras de Aristóteles foram elaboradas para um auditório de discípulos, sendo apresentadas sob a forma de pequenos tratados. DICAS C A B F E G GLOSSÁRIO Estóicos: seguidores das doutrinas dos filósofos gregos Zenão de Cício (340-264) e seus seguidores Cleanto (séc. III a.C.), Crisipo (280 – 208) e os romanos Epicteto (c.55 – c. 135) e Marco Aurélio (121 – 180), caracterizadas sobretudo pela consideração do problema moral, constituindo, através do equilíbrio e moderação na escolha dos prazeres sensíveis e espirituais, o ideal do sábio (FERREIRA, 1999). Introdução à Lingüística 15 preservar o grego da corrupção por parte dos ignorantes e dos iletrados. Essa abordagem do estudo da língua cultivada pelo classicismo alexandrino envolvia dois erros fatais de concepção, os quais figuram como os erros clássicos no estudo da língua. Ora, o primeiro se refere ao fato de que a cultura lingüística grega valorizou a escrita em detrimento da fala. Quando se percebia diferenças entre a língua falada e a escrita, havia uma grande tendência em considerar a segunda como principal (independente) e a primeira como derivada (dependente), o que era reforçado pelo interesse do povo alexandrino pela literatura. Já o segundo erro era a suposição de que a língua dos escritores do século V a. C era mais bem elaborada do que a fala coloquial; e, em geral, a dedução de que são as pessoas cultas que mantém o uso correto da língua. Um dos sábios alexandrinos, Dionísio da Trácia, que viveu entre os séculos II e I a. C., é o autor da primeira descrição explícita da língua grega, contida num breve estudo intitulado Téchne Grammatiké (A Arte da Gramática). A grande contribuição de Dionísio para os estudos gramaticais foi fixar as classes de palavras, que, para ele, são oito: nome, verbo, particípio, artigo, pronome, preposição, advérbio e conjunção. Os estóicos haviam reconhecido apenas o nome (que distribuíam, aliás, em duas classes, a dos nomes próprios e a dos nomes comuns), o verbo, a conjunção, o artigo e o advérbio. Em verdade, nas primeiras classificações feitas na Grécia (ou seja, na de Platão, de Aristóteles e dos estóicos), as palavras são encaradas não em si, mas como partes do discurso. A fixação dessas palavras é importante para o desenvolvimento dos estudos gramaticais, pois: É especialmente na classificação das palavras “partes do discurso” que podemos apontar a construção de um sistema gramatical porque (...) é exatamente nesse campo que a gramática tem condições de mostrar um tratamento diferente, em natureza, do tratamento filosófico (NEVES, 1987, p. 201-202). Os filósofos classificaram as partes do discurso com um critério nocional, isto é, com base na significação. Em Dionísio, esse critério é ocasional, sendo muito mais importante o critério da forma (flexão). Nesse sentido, as partes do discurso passam a ser encaradas como classes de palavras: a gramática separa-se da filosofia e se estabelece como disciplina independente. Segundo Dionísio, a gramática é o conhecimento prático do uso da língua, baseado no estudo dos bons escritores; utiliza, pois, o método empírico, fundamentando-se nas observações dos fatos da língua. A obra de Dionísio serviu de base para a elaboração de gramáticas latinas até o século XIII e, através destas, influenciou também as gramáticas de diversas línguas modernas da Europa. C A B F E G GLOSSÁRIO Anomalistas: gramáticos gregos que insistiam na importância das irregularidades na língua grega. Para eles, a gramática é concebida como um conjunto de exceções. Analogistas: gramáticos gregos que discutiam a importância das regularidades no estudo dos fenômenos lingüísticos. Enquanto os analogistas afirmavam que a língua é fundamentalmente regular e excepcionalmente irregular, os anomalistas defendiam a tese contrária. Caderno Didático - 2º Período 16 2.1.3 Em Roma Em Roma, os estudos gramaticais consistiram, em grande parte, na aplicação da terminologia grega à língua latina. Destaca-se, porém, pela originalidade, o gramático Marco Terêncio Varrão (séc. I a.C.), autor de um tratado intitulado De Língua Latina; esta é a mais antiga obra gramatical romana da qual nos resta algo mais que fragmentos: dos vinte e cinco livros que a compunham, seis chegaram até nós mais ou menos completos e permitem ver que o autor elaborou toda uma teoria gramatical, procurando conciliar as idéias dos estudiosos gregos que o precederam. Varrão aceita que a língua tenha irregularidades, mas, por outro lado, esboça uma teoria normativa. Define gramática como o estudo sistemático do uso dos poetas, historiadores e oradores, o que é quase uma cópia da definição de Dionísio; mas, ao classificar as palavras, mostra-se original: distingue entre palavras variáveis e invariáveis e as divide em cinco classes (o nome, o verbo, o particípio, a conjunção e o advérbio). Apresenta, ainda, um estudo sobre flexão do nome, as vozes e os tempos do verbo. Contudo, Varrão teve menor influência sobre os estudos lingüísticos do período medieval do que os outros autores sem originalidade, que apenas adaptaram o latim às teorias de Dionísio; entre estes, interessa-nos o gramático Prisciano. Desse autor, que viveu entre os séculos V e VI d. C., chegou-nos uma obra intitulada Institutiones Grammaticae, na qual transpôs para o latim as classes de palavras estabelecidas por Dionísio; excluiu o artigo, inexistente em latim, acrescentou a interjeição e usou termos latinos em vez dos gregos: nomem (classe que compreende o substantivo e o adjetivo), verbum, participium, pronomem, adverbium, praepositio, interjectio e conjunctio (verbo, particípio, pronome, advérbio, preposição, interjeição e conjunção). Aí temos a origem da nomenclatura usada até hoje nas gramáticas das línguas européias em geral. Além disso, Prisciano estabeleceu a ordem seguida até hoje pelos gramáticos de linha tradicional: tratou primeiro da fonética, depois da morfologia e, por último, da sintaxe, da qual Dionísio não tinha apresentado um estudo sistemático. A obra de Prisciano constituiu, pois, uma ponte entre a Antigüidade e a Idade Média. Durante toda a Idade Média, destaca-se sua grande influência nos estudos da linguagem. 2.2 NA IDADE MÉDIA Seguindo a tradição greco-romana, os gramáticos medievais adotaram a nomenclatura estabelecida por Dionísio e adaptada ao latim por Prisciano. As gramáticas medievais da primeira fase foram obras meramente didáticas, quase sem nenhuma originalidade, destinadas, sobretudo, ao ensino do latim. Já na segunda metade da Idade Média, C A B F E G GLOSSÁRIO Método empírico: método baseado na experiência, discordando da noção de idéias inatas. Introdução à Lingüística 17 caracterizada pelo intenso estudo da filosofia, surgiram obras que procuraram aplicar a lógica às questões lingüísticas buscando as razões filosóficas das teorias estabelecidas por Prisciano. A partir do século XII, graças à atividade docente de Santo Tomás de Aquino, a influência de Aristóteles sobre o pensamento medieval intensificou-se e a chamada filosofia escolástica chegou ao seu apogeu. Nessa época, prevaleceu a idéia de que Prisciano fizera um trabalho superficial, pois lhe faltava uma base filosófica. Surgiu, então, a chamada gramáticaespeculativa, que constituiu a integração da descrição gramatical do latim, realizada por Prisciano, à filosofia escolástica. Os gramáticos especulativos conservaram, pois, quase sem alteração, a morfologia de Prisciano, mas apresentaram pensamento mais profundo, mais filosófico, buscando dar validade universal às regras da gramática latina, e criaram uma grande quantidade de termos técnicos para formalizar suas teorias. Assim, passa a vigorar a concepção de uma gramática universal subjacente e admite-se a existência dos universais lingüísticos (princípios aplicáveis a todas as línguas); afirma-se que a gramática é, em essência, a mesma para todas as línguas e as diferenças são apenas variações acidentais, idéia retomada no século XVII pelos chamados gramáticos de Port-Royal, como veremos mais adiante. Os gramáticos especulativos, porém, exageram o aspecto lógico da língua, voltando-se mais para a teoria do que para os dados; por isso, e também porque na Idade Média a literatura pagã era mal vista – com exceção de algumas obras, como as de Aristóteles, já assimiladas pelo cristianismo – esses gramáticos formularam seus próprios exemplos, em vez de extraí-los dos textos clássicos. Os filósofos nominalistas reforçaram ainda mais o espírito logístico da Alta Idade Média, conforme Robins: O ponto de vista nominalista, segundo o qual os universais só se encontram nas próprias palavras ou nomes, não tendo existência real fora da linguagem, tornou-se famoso com o trabalho de um de seus maiores representantes, Guilherme de Occam (primeira metade do século XIV) (ROBINS, 1979, p. 68). A excessiva valorização da palavra levou esses pensadores a construir esquemas teóricos distanciados da realidade; assim, por exemplo, Jean Buridan (século XIV) reduziu a gramática a uma construção puramente teórica, exemplificada por proposições que não se encontram na linguagem real. Buridan inclui seus estudos de gramática numa obra chamada Compendium Totius Logicae; reconduz, pois, a gramática ao campo da filosofia, desligando-a do estudo dos textos. Deve-se notar que tanto os primeiros gramáticos medievais como os gramáticos especulativos da Alta Idade Média, baseando-se na sistematização de Dionísio e de Prisciano, rendem-se à linha aristotélica; os exageros logicistas, porém, representam um desvio da tradição greco- romana, segundo a qual o estudo da língua deve apoiar-se nos textos dos C A B F E G GLOSSÁRIO Gramática especulativa: gramática que procura encontrar as razões filosóficas das regras gramaticais. O termo especulativo não deve ser compreendido no seu sentido moderno, mas num sentido particular, derivado da concepção de que a língua é como um espelho que reflete a realidade subjacente aos fenômenos do mundo físico (LYONS, p.15, 1979). Caderno Didático - 2º Período 18 escritores consagrados. 2.3 DA RENASCENÇA AO FIM DO SÉCULO XVIII A nossa gramática, ao nascer, em Portugal, obedece ao modelo latino. A primeira obra é a Grammatica da Lingoagem Portuguesa, de Fernão de Oliveyra. Em que pesem, como reconhecem os críticos, as observações originais do autor, não se pode negar a sua forte base latina. Suas partes limitavam-se a Ortografia, Acento, Etimologia e Analogia, esta referente às flexões, sobretudo de gênero e número. O segundo de nossos gramáticos, João de Barros, não hesita em imitar a gramática latina, ao apresentar declinados artigos, substantivos e pronomes. Aliás, a definição de gramática que ele acolhe é sintomática: “um modo certo e justo de falar e escrever, colhido do uso e autoridade dos barões doutos” (BARROS, 1557, p. 1). Barros (1557, p. 1) divide sua gramática em quatro partes, à imitação dos latinos: “ortografia, que trata da letra; prosódia, que trata de sílaba; etimologia, que trata de dicção; sintaxe que responde à construção”. Reafirmando a fidelidade ao padrão latino, propõe tratar destas “não segundo a ordem da gramática especulativa, mas como requer a perceptiva, usando os termos da Gramática Latina, cujos filhos nós somos, por não degenerar dela” (BARROS, 1557, p. 1). Essa posição não é gratuita e parece representar, da parte de João de Barros, a renúncia à tradição medieval, que herdara dos gregos a gramática científica ou especulativa. Opondo-se aos gramáticos especulativos da Idade Média, os renascentistas estudaram o latim e o grego, bem como as línguas vernáculas, com base na literatura, na língua escrita das classes cultas, mais do que na lógica. Entre os gramáticos dessa época salienta-se, ainda, Pierre Ramée (século XVI), para quem tudo o que Aristóteles disse está errado: “quaecumpe ab Aristotele dicta essent commentitia esse” (ROBINS, 1979, p. 80). Ramée foi um dos defensores do ensino das línguas através da literatura e não do aristotelismo escolástico. Escreveu gramáticas do grego, do latim e do francês, procurando basear suas teorias nas relações entre as palavras e não na significação ou nas suas categorias lógicas. Conservou as oito classes de Fonte: http://purl.pt Figura 7: Grammatica da Lingoagem Portuguesa, de Fernão de Oliveyra Figura 8: Grammatica da Lingua Portuguesa, de João de Barros Fonte: http://purl.pt Introdução à Lingüística 19 palavras de Prisciano, mas procurou identificá-las por critério de divisão: de um lado as palavras que têm flexão de número (nome, pronome, verbo e particípio) e, de outro lado as demais (advérbio, preposição, conjunção e interjeição). Cumpre observar que Pierre Ramée e os renascentistas em geral, embora criticassem Aristóteles, não se afastaram muito do aristotelismo que norteava os estudos de gramática, pois continuaram aceitando, entre outros pontos, a classificação das palavras que Prisciano havia estabelecido com base em Dionísio da Trácia, cujo sistema gramatical se prende, em última análise, a lógica aristotélica; afastaram-se do que se pode chamar de aristotelismo escolástico, isto é, do logicismo que dominou os pensadores na segunda metade da Idade Média. Voltam, porém, à postura logicista, os estudiosos reunidos, no século XVII, em redor da abadia francesa de Port-Royal, entre os quais Antoine Arnauld e Claude Lancelot, cuja Grammaire Générale et Raisonée (1660) teve grande sucesso: essa obra, que durante dois séculos servirá de base à formação gramatical, explica os fatos partindo do postulado de que a linguagem, imagem do pensamento, exprime juízos e que as diversas realizações que se encontram nas línguas são conformes a esquemas lógicos universais (DUBOIS et al, 2001, p. 314). Assim, o século XVII marca, na França a revivescência dos ideais da gramática especulativa pelos mestres de Port- Royal. Em linhas gerais, o pensamento desses autores prende-se mais a seu contemporâneo Descartes do que a Aristóteles. Assim, exageram o papel da razão e, em sua gramática, estabelecem teorias muito rígidas, que nem sempre correspondem à realidade. Por exemplo, o grego não tem o caso ablativo, que existe em latim, mas os gramáticos de Port-Royal apresentam uma teoria segundo a qual o grego possui, sim, o caso ablativo, que se confunde, porém, com o dativo por ter forma sempre igual à forma deste. Tal afirmação contraria a realidade de ambas as línguas, pois o ablativo latino equivale ora ao dativo, ora ao genitivo grego. De certo modo, os gramáticos de Port-Royal ligam-se ainda a seus predecessores medievais, pois admitem a existência de uma estrutura universal do pensamento e, portanto, de universais lingüísticos, e adotamas tradicionais classes de palavras, que, para eles, são nove: incluem novamente o artigo, excluído por Prisciano, e conservam a interjeição. Além disso, aproximam-se de Aristóteles quando, por exemplo, admitem que a função das línguas é comunicar o pensamento, termo que abrange a simples apreensão, o juízo e o raciocínio (as três operações do espírito Figura 9: Gramática de Port-Royal, de Arnauld e Lancelot Fonte: http://submarino.com.br Caderno Didático - 2º Período 20 humano, segundo a lógica aristotélica); voltam ainda à análise sugerida por Aristóteles (Sobre a Interpretação, cap.II), em que todos os verbos equivalem lógica e gramaticalmente ao verbo ser mais predicativo: Pedro vive é o mesmo que Pedro é vivente e, portanto, essa frase é estruturalmente análoga à frase Pedro é homem. Há, porém, nessa análise dos gramáticos de Port-Royal, uma inovação, que será retomada por lingüistas contemporâneos, como veremos a seguir: Chomsky reconhecerá que, sob a frase concreta, existirá um nível estrutural mais profundo. Em resumo, os gramáticos de Port-Royal prendem-se ainda, em alguns pontos, ao pensamento aristotélico, mas apresentam inovações decorrentes de sua formação racionalista, que os leva a procurar a unidade lingüística subjacente às diferentes línguas e a construir esse universalismo com base na razão: ao contrário dos escolásticos, fizeram prevalecer a razão sobre a autoridade. Outra obra que representa um marco na evolução dos estudos lingüísticos é a Grammaire Générale de M. Bauzée, publicada em 1767. Esse autor se aproxima dos estudiosos de Port-Royal, pois admite a existência de princípios universais que decorrem da própria natureza do pensamento humano, mas afasta-se da linha racionalista ao tomar uma atitude menos rígida, não pretendendo impor a todas as línguas um sistema único; assim, por exemplo, ele critica a teoria dos sábios de Port-Royal sobre o ablativo grego, mencionado anteriormente. Além disso, Beauzée deixa de lado a divisão das classes de palavras em dois grupos, estabelecida pelos gramáticos de Port-Royal, segundo a qual o nome, o artigo, o pronome, o particípio e o advérbio relacionam-se com os “objetos” de nossos pensamentos, enquanto o verbo, a conjunção e a interjeição relacionam-se com a “forma ou modo”. A classificação de Beauzée separa definitivamente o adjetivo do substantivo; fixa, pois, em dez as classes gramaticais (substantivo, adjetivo, artigo, pronome, particípio, advérbio, verbo, preposição, conjunção e interjeição) que, a partir daí, assim aparecem na gramática francesa clássica, fiel à tradição derivada de Aristóteles. Entre as inúmeras gramáticas “racionais”, surgidas no Século das Luzes, destaca-se, para nós, a Grammatica Philosophica da Língua Portugueza (1803 ou 1782?, cf. GENOUVRIER e PEYTARD, 1972, p. 137), de Jerônimo Soares Barbosa. Na introdução de sua gramática, o autor discorre, com muita propriedade, sobre a evolução da gramática (Grammática quer dizer Litteratura), ressaltando, ao referir-se às suas C A B F E G GLOSSÁRIO Universais lingüísticos: similaridades existentes em todas as línguas do mundo (DUBOIS et al, 2001). Figura 10: Grammaire Générale, de M. Bauzée Fonte: http://purl.pt Introdução à Lingüística 21 partes, a precedência histórica do que chama parte mecânica da língua (Ortografia e Ortoepia) sobre a parte da Lógica (Etimologia e Sintaxe). Concebe a gramática como “a arte de fallar e escrever correctamente a propria lingua” (BARBOSA, 1875, p. 1). Na defesa da parte lógica, em que se esmera e cuja paternidade atribui ao gênio de Aristóteles, Soares Barbosa apela para as leis psicológicas, que orientam as operações mentais. Comuns a todos os homens, essas leis devem comunicar às línguas, que são expressões daquelas operações, os mesmos princípios de regras gerais. Todas as gramáticas particulares, acrescenta, têm de ter por fundamento a gramática geral e razoada. A reforma operadora, no seu tempo, nas gramáticas das línguas vivas, que ele enaltece, foi precedida da introdução, na gramática latina, das luzes da filosofia. Primeiro, estabeleceram-se princípios gerais e razoados da linguagem e, depois, foram eles aplicados a cada língua. Deve-se ressaltar, ainda, na obra de Soares Barbosa, frente às gramáticas anteriores, o reconhecimento da sintaxe oracional, até então ignorada. Quando as palavras deixam de ser consideradas em si mesmas (Etymologia) e passam a ser olhadas “unidas em discurso para formarem os diferentes painéis do pensamento, descobre- se a Syntaxe que quer dizer coordenação de partes”(BARBOSA, 1875, p. 10). Embora ainda um tanto preso à tradição do ensino gramatical, o século XIX, tem na pessoa de Augusto Epifânio da Silva Dias, cuja Gramática Prática da Língua Portuguesa data de 1870, um inovador, que consegue ir rompendo com a preocupação logística, impregnada na pretensa análise lógica, herdada de Jerônimo Soares Barbosa. Enquanto isso, dentro de uma linha de renovação, surge, no Brasil, em 1881, a Grammatica Portugueza de Julio Ribeiro, criando acirrada polêmica nos meios intelectuais. Em abono de seu espírito inovador, foi o primeiro, na 2ª edição, a substituir a tradicional divisão quadripartite de gramática pela bipartite: lexiologia e sintaxe. O início do prefácio dessa mesma edição soa como uma condenação à gramática Caderno Didático - 2º Período Fonte: http://purl.pt Figura 11: Grammatica Philosophica da Língua Portugueza, de Jerônimo Soares Barbosa Figura 12: Grammatica Portugueza, de Julio Ribeiro Fonte: http://submarino.com.br 22 filosófica, que a priori aplicava princípios lógicos a fatos gramaticais: as antigas “gramáticas portuguesas eram mais dissertações de metafísica do que exposições de uso da língua“ (RIBEIRO, s/d, p. 1). Sem desmerecer, por omissão, nessa linha de atualização metodológica e de melhor precisão sintática, o papel desempenhado, entre nós, por Maximino Maciel (1887), João Ribeiro (1887), José Oiticica e outros, destaca-se a contribuição singular de Eduardo Carlos Pereira (1907). Esse gramático sintetiza toda a herança dos séculos anteriores não só no sentido inovador de atualização metodológica e de melhor precisão de conceitos, como também no conservador de manter, paradoxalmente, as tendências que marcaram toda essa evolução gramatical. Isso tanto em Portugal como no Brasil, por mais contraditórias que elas sejam. No prólogo da 1ª edição de sua Gramática Expositiva (1907), Carlos Pereira refere-se à desorientação da hora presente: “depois que Julio Ribeiro imprimiu uma nova direção aos estudos gramaticais, romperam-se os velhos moldes e estabeleceu-se largo conflito entre a escola tradicional e a nova corrente” (PEREIRA, 1955, p. 7). Esclareça-se que a corrente tradicional é a “que se preocupa com o elemento lógico na expressão do pensamento, como o próprio autor assinala mais tarde condenando o exclusivismo de uma e outra, ou melhor, a confusão de ambas” (PEREIRA, 1955, p. 7). 2.4 A LINGÜÍSTICA NO SÉCULO XIX Até fins do século XVIII, conforme vimos anteriormente, os estudos lingüísticos eram baseados na gramática greco-latina, isto é, na língua como reflexo do pensamento e da lógica e não como objeto de uma ciência específica, procurando deduzir os fatos da linguagem e estabelecer normas de comportamento lingüístico. Nesse sentido, pressupunha-se uma fixidez da língua; conseqüentemente, as descrições gramaticais possuíam um caráter essencialmente normativo e filosófico. Contudo,contra essa concepção estática, alguns estudiosos da linguagem rebelaram-se no final do século XVIII, enfatizando a mudança incessante da língua, por meio de um processo dinâmico e coerente. Iniciada pelo movimento de ruptura com o passado que foi a Revolução Francesa, o século XIX viu esboçar-se uma nova etapa nos estudos lingüísticos, pois viu nascer o estudo científico da língua no mundo ocidental. Tal asserção será verdadeira se dermos ao termo científico o sentido que ele geralmente tem hoje; foi no século XIX que os fatos da língua começaram a ser investigados com cuidado e objetivamente e depois explicados por hipóteses indutivas. Introdução à Lingüística Figura 13: Gramática Expositiva – curso elementar, de Eduardo Carlos Pereira Fonte: http://purl.pt 23 Nesse contexto, para essa nova etapa, contribuiu, por um lado, o clima de liberalismo ligado às mudanças políticas, por outro, já na segunda metade do século XIX, o desenvolvimento científico, que resultou na extensão aos fatos psíquicos e sociais do método de observação usado nas ciências físicas e naturais. Assim, a gramática passa a ser encarada como um conjunto de fatos, independente de uma base lógica, afirmando-se e prevalecendo aquela postura empírica, já observável em Dionísio da Trácia. Além disso, um fato novo nos estudos de língua influenciou a gramática histórico-comparativa: no final do século XVIII, o inglês William Jones estabeleceu o parentesco do sânscrito com o latim, o grego e as línguas germânicas, dando o primeiro impulso ao desenvolvimento do estudo comparativo e histórico das línguas. Desse modo, segundo Leroy (1971, p. 29), foi o conceito do parentesco das línguas que racionalizou os estudos lingüísticos; o ponto de partida foi a revelação do sânscrito aos sábios ocidentais: o conhecimento dessa língua – além de possibilitar facilmente, pelo menos em certos casos, a análise da palavra em seus elementos constituintes – dava acesso à obra dos gramáticos hindus, tesouro de observações preciosas, particularmente instrutivas no tocante à classificação dos fonemas e à teoria da raiz da formação das palavras. Jones declarou que o sânscrito mostrava em relação ao latim e ao grego, tanto nas raízes dos verbos como nas formas gramaticais, uma afinidade tão grande que não seria possível considerá-la casual: tão forte, em verdade, que nenhum lingüista poderia examiná-la sem crer que se tinham originado de uma fonte comum que talvez não mais exista. A redescoberta do sânscrito no final do século XVIII permitiu um exame da gramática dos hindus que, ao contrário da greco-romana, valorizava a estrutura interna das palavras. Assim, podemos reconhecer as s emen t e s da s f u t u r a s pe squ i s a s estruturalistas nos domínios da ciência da linguagem. O grande nome desse período é Bopp, que publicou em 1816 o seu Sistema de conjugação do sânscrito em comparação com o grego, latim, persa e germânico, reunindo as provas indiscutíveis do parentesco de tais línguas e fundando ao mesmo tempo a gramática comparada das línguas indo-européias. Partindo, geralmente, do sânscrito, Bopp segmenta as palavras e mostra sua variedade de combinações, expõe suas transformações sofridas e esforça-se por buscar-lhes a origem. Seu objetivo básico era chegar à origem, não por especulações filosóficas, mas pela comparação dessas formas em seu arranjo histórico. Vê-se, assim, Figura 14: Sir William Jones Fonte: http://en.wikipedia.org Caderno Didático - 2º Período 24 que o seu método é o indutivo. Com isso, Bopp compreendeu que as relações entre as línguas de uma mesma família podiam converter-se em matéria de uma ciência autônoma e, ainda mais, que o estudo do desenvolvimento histórico de uma língua e seu parentesco com outras não pode ser feito pela mera coincidência de alguns termos isolados, mas pela observação metódica da constituição gramatical da(s) língua(s) em questão. Outro nome a ser acrescentado ao dos promotores da gramática comparada é de Jacob Grimm que, ao introduzir em lingüística a noção de perspectiva histórica, aplicou-se ao estudo dos dialetos germânicos e publicou pesquisas pormenorizadas sobre a história fonética dos falares germânicos; entretanto a lei que leva o seu nome (a lei de Grimm) já tinha sido indicada por Rask em 1818 e por J. H. Bredsdorff em 1821. Assim, nessa lei, em 1822, Grimm observou, por exemplo, que a s l í n g u a s g e r m â n i c a s t i n h a m freqüentemente: ! onde outras línguas indo- européias (por exemplo, o latim ou o grego) tinham p; ! p onde outras línguas tinham b; ! o fonema th onde outras línguas tinham t; e ! t onde outras línguas tinham d. Nesse contexto, tal descoberta dita mutação consonântica foi importante, pois foi o primeiro modelo das leis fonéticas (traduzindo a regularidade das transformações fônicas da linguagem). Mas o mais original lingüista do século XIX – cujas idéias, baseadas na observação dos fatos, se opõem cabalmente a linha seguida pela gramática tradicional – é Wilhelm von Humboldt. Para ele, a linguagem é uma atividade criadora e não um mero produto: nenhum fator do ambiente poderia fazer surgir uma língua. A faculdade da linguagem está na essência da mente humana, que é capaz de fazer uso infinito de recursos lingüísticos finitos, o que será retomado no pensamento chomskiano, conforme já vimos na unidade I (Aquisição da Linguagem) e discutiremos nessa unidade. Em outras palavras, já naquela época, Humboldt tenta determinar o mecanismo e a natureza da linguagem por meio de raciocínios gerais que se aplicam ao funcionamento das línguas em particular. Ele partia do t Figura 15: Franz Bopp Fonte: http://en.wikipedia.org Figura 16: Jacob Grimm Fonte: http://en.wikipedia.org Introdução à Lingüística 25 princípio de que a língua é uma atividade interessante, um trabalho mental do homem, constantemente repetida para expressão do pensamento. Como um conjunto de atos de fala, o que importa nela é seu lado dinâmico. Nessa perspectiva, a língua não é um mero produto para ser utilizada pelos falantes, pelo contrário, é a força criadora de cada um. Como se sabe, a gramática especulativa da Idade Média afasta-se da tradição filosófica na medida em que, procurando princípios constantes e universais, preconizava o método dedutivo. Assim também pensavam os gramáticos racionalistas do século XVII, na França. Já, no século XIX, Humboldt propunha a análise de todas as línguas do mundo – vale ressaltar que tal fato é impossível – a fim de se compararem as diferentes maneiras pelas quais a mesma noção gramatical é expressa nas várias línguas. Isso quer dizer que ele pretendia usar o método indutivo na descrição das línguas, o que refuta o pensamento desses gramáticos especulativos e racionalistas e corrobora o pensamento de Bopp. Porém, esse pensamento revolucionário não teve influência na época (primeira metade do século XIX); os estudiosos estavam mais preocupados com questões de gramática comparativa e histórica do que com o estabelecimento de uma nova maneira de encarar a língua. As idéias de Humboldt somente foram valorizadas em fins do século XIX e no século XX; e foi no início deste século que a influência de Aristóteles sobre os estudos de língua teve, realmente, acentuado declínio. Na segunda geração de comparativistas, um homem se revelou um grande mestre e exerceu influência profunda no desenvolvimento da ciência lingüística: Schleicher, cujas idéias se afastam da orientação historicista decunho filosófico, reclamando para a Lingüística a posição de ciência natural porque o desenvolvimento da linguagem não é como o histórico, mas como o de uma planta com suas leis fixas do nascimento, crescimento e morte, o que se justifica pelo fato de ele ser botânico. Dito de outra forma, o ponto de vista original por ele introduzido em Lingüística consistiu em considerar as línguas como organismos naturais que, independentemente da vontade humana, nascem, crescem e desenvolvem-se segundo regras determinadas, e depois envelhecem e morrem, manifestando essa série de fatores que englobamos na palavra vida. Assim, nessa perspectiva, a Lingüística aparece como uma ciência natural, e Schleicher tentava definir-lhe as leis com o rigor que caracterizou as leis físicas e químicas, e explicar-lhe a evolução aplicando-lhe as teorias de Darwin, novas na época. Uma reação a tais concepções formou-se por volta de 1878 na Universidade de Leipzig com um grupo de estudiosos reunidos em torno de Fonte: http://en.wikipedia.org Figura 17: Wilhelm von Humboldt Caderno Didático - 2º Período 26 Brugmann e Osthoff. Esses dissidentes foram c h a m a d o s d e n e o g r a m á t i c o s e concent ravam-se no pr inc íp io da infalibidade das leis fonéticas. Segundo eles, as alterações que podemos observar na história lingüística pelos documentos escritos baseiam-se em leis fixas que não variam (leis fonéticas regulares), salvo por força de outras leis (analogias). A assertiva de qualquer alteração fonética poderia explicar- se por leis que não admitiam exceções foi muito discutida, mas, na época, parecia mais razoável do que teria sido nos dias de Grimm. O que se sabe é que esses neogramáticos impulsionaram os estudos fonéticos, mas, como ainda se colocavam na perspectiva histórica, não contribuíram para mudar o quadro geral das técnicas de análise. Assim, até o século XVIII, a gramática foi, pode-se dizer, um prolongamento da lógica. Já no século XIX e começo do século XX, embora dominasse ainda o ponto de vista histórico-comparativo, alguns lingüistas já se preocupavam com a idéia de que, ao lado de um estudo evolutivo da língua, deveria haver também um estudo descritivo. Quem realmente rompeu com a visão historicista e estática foi Saussure, ao conceituar a língua como sistema e ao preconizar o estudo descritivo desse sistema, denominado de sincrônico. Nasce, assim, o estruturalismo como método lingüístico; e, a partir daí, a lingüística contemporânea afasta-se da trilha aberta por Aristóteles. 2.5 A LINGÜÍSTICA NO SÉCULO XX Conforme temos visto ao longo de todo nosso estudo, a linguagem desempenha um papel central na vida humana, permeando nossas atividades, mediando nossas interações, servindo como meio de expressão do pensamento. E a capacidade exclusivamente humana de comunicação verbal sempre despertou a atenção e a curiosidade dos homens nas mais diferentes épocas e culturas, possuindo uma longa história. No entanto, foi no Ocidente (século XX) que vimos nascer o estudo científico da linguagem – na Lingüística – com a publicação do Curso de Lingüística Geral (1916), do mestre suíço Saussure. Weedwood (2002, p. 125) afirma que, na Lingüística do século XX, ainda vamos encontrar a mesma tensão dos séculos anteriores entre o foco universalista e o particularista na abordagem dos fenômenos da língua e da linguagem. Essa tensão aparece estampada nas dicotomias de Saussure e de Chomsky (língua/fala; competência/desempenho, respectivamente), em que a língua é vista em si mesma e por si mesma, no que serão duramente criticados pelos lingüistas e filósofos da linguagem C A B F E G GLOSSÁRIO Leis fonéticas regulares (leis fixas): mudanças sonoras das línguas que são regulares (naturais) e atingem todas as formas que passam por um mesmo estágio evolutivo. Analogias: mudanças sonoras que constituem exceções às leis fonéticas regulares (leis fixas), se dão em razão de associações estabelecidas pelo homem entre formas distintas e interferem no desenvolvimento natural do sistema sonoro, contrariando uma lei fonética regular. Fonte: http://en.wikipedia.org Figura 18: August Schleicher Introdução à Lingüística 27 que se dedicarão a conceber a língua como uma entidade não suficiente em si mesma, vista como uma atividade social, susceptível às pressões do uso, tendo como propósito a interação comunicativa em um dado momento. Ainda segundo Weedwood, há de se levar em consideração o fato de que nesse século, surgirão grandes campos de investigação que avançarão em direção a uma interdisciplinaridade crescente, a uma intersecção com a filosofia e com as outras ciências humanas como a sociologia, a antropologia, a semiologia, etc. (WEEDWOOD, 2002, p. 126). Para tanto, procuramos oferecer, num primeiro momento, um esboço geral da evolução dos estudos lingüísticos no século XX, passando pelo Formalismo (Estruturalismo e Gerativismo), o qual tem como expoentes Saussure, Hjelmslev, Jakobson, Troubetzkoy, Bloomfield, Sapir e Chomsky, até as abordagens pragmáticas (Funcionalismo, Teoria da Enunciação, Teoria dos Atos de Fala, Teoria da Atividade Verbal, Teoria Conversacional de Grice, Semântica Argumentativa, Análise do Discurso, Lingüística do Texto, Análise da Conversação, Sociolingüística, Neurolingüística, Psicolingüística, entre outros). Desse modo, focalizaremos as abordagens formalistas, que se caracterizam pela tendência a analisar a língua como um objeto autônomo; bem como as abordagens pragmáticas, que analisam a língua como um lugar de interação entre sujeitos sociais, isto é, de sujeitos ativos empenhados em uma atividade sociocomunicativa. Apresentadas as questões introdutórias, passemos ao estruturalismo. 2.5.1 Estruturalismo 2.5.1.1 Estruturalismo europeu A Lingüística do século XIX, em suas pesquisas de ordem eminentemente histórico-comparativa, deixou um importante legado teórico, sobretudo por intermédio dos neogramáticos e dos lingüistas como, por exemplo, Humboldt. Entretanto, a partir do século XX, a denominamos de Lingüística Moderna, período que é normalmente identificado com o aparecimento do Cours de Lingüistique Générale de Saussure, em 1916, marcando o início da corrente lingüística do Estruturalismo. São três as noções básicas que passaram a caracterizar a evolução da Lingüística no século XX: sistema, estrutura e função. A noção de sistema deve-se a Saussure, pois, para ele, a língua é um sistema, ou seja, um conjunto de unidades que obedecem a certos princípios de funcionamento, constituindo um todo coerente. Considerando a linguagem verbal como um fenômeno unitário no C A B F E G GLOSSÁRIO Tensão nas investigações lingüísticas Foco universalista: a linguagem sendo vista em seu aspecto coletivo ou universal (por exemplo, língua – Saussure; faculdade da linguagem – Chomsky). Foco particularista: a linguagem sendo vista em seu aspecto individual/particular (por exemplo, fala – Saussure; desempenho – Chomsky). Caderno Didático - 2º Período 28 qual os elementos se inter-relacionam, Saussure estabeleceu, do ponto de vista metodológico, dicotomias básicas: língua-fala, sincronia-diacronia, sintagma-paradigma, significado-significante (PIETROFORTE in FIORIN, 2002). A partir de agora vamos observar algumas delas: Língua versus fala A língua é ao mesmo tempo um sistema de valores que se opõem uns aos outros e um conjunto de convenções necessárias adotadas por uma comunidadelingüística para se comunicar. Ela está depositada como produto social na mente de cada falante de uma comunidade, que não pode criá-la, nem modificá-la; é, pois, de natureza homogênea. A fala é a realização, por parte do indivíduo, das possibilidades que lhe são oferecidas pela língua. É, pois, um ato individual e momentâneo em que interferem muitos fatores extralingüísticos e se fazem sentir a vontade e a liberdade individuais, portanto heterogênea. Mesmo que tenha reconhecido a interdependência entre língua e fala, Saussure considerava como objeto da lingüística a língua – por seu caráter homogêneo – procurando não só entender, mas também descrevê- la do ponto de vista de sua estrutura interna. Sincronia versus diacronia Para Saussure (2001, p. 96), “é sincrônico tudo quanto se relacione com o aspecto estático da nossa ciência”, ou seja, esse ponto de vista vê a língua como uma estrutura cujos elementos constitutivos se opõem; “diacrônico tudo o que diz respeito às evoluções”, ou seja, analisa as mudanças que ocorrem nas línguas através do tempo. “Do mesmo modo, sincronia e diacronia designarão, respectivamente, um estado de língua e uma fase de evolução.” Nessa perspectiva, o estruturalismo proposto por Saussure não apenas aponta as diferenças entre essas duas formas de investigação, mas, sobretudo, prioriza o estudo sincrônico. Ou seja, para Saussure, o lingüista deve estudar principalmente o sistema da língua, observando como se configuram as relações internas entre seus elementos em um determinado momento do tempo. Esse tipo de estudo é possível porque os falantes não possuem informações acerca da história de sua língua e não precisam ter informações etimológicas a respeito dos termos que utilizam no dia-a-dia: para os falantes, a realidade da língua é seu estado sincrônico. Linguagem, língua e fala são entidades lingüísticas distintas, mas interdependentes, a partir da Lingüística Moderna (século XX). DICAS Introdução à Lingüística 29 Caderno Didático - 2º Período Paradigma versus sintagma As relações entre os elementos lingüísticos, segundo Saussure, podem ocorrer em dois domínios distintos, mas que se completam. Essas relações dependem de uma seleção (escolhe-se um elemento em detrimento de outros que poderiam ocupar um mesmo ponto do enunciado) desses elementos e, ao mesmo tempo, de uma combinação entre os elementos selecionados. Dessa maneira, podemos dizer que a linguagem possui dois eixos: um eixo paradigmático (seleção) e um eixo sintagmático (combinação). Nesse exemplo, temos, na vertical, o eixo paradigmático (com as palavras que poderíamos selecionar para ocupar as posições indicadas) e, na horizontal, o eixo sintagmático (com as combinações estabelecidas entre as palavras selecionadas): Significante versus significado Saussure definiu como objeto de estudo do Estruturalismo a língua – um conjunto de signos lingüísticos convencionados por uma dada sociedade. E foi nessa última dicotomia que se estudou o conceito de signo lingüístico. O signo lingüístico, uma entidade abstrata e psíquica, é constituído de significante e significado. Mas a que essas palavras equivalem? Se o signo lingüístico é uma unidade abstrata, as partes que o compõem também o são, mas a que correspondem? O significante é a imagem acústica de um signo, isto é, som psíquico (mentalizado) e não som articulado (aspecto físico). Para identificá-lo, pense em uma palavra. Esses sons combinados que mentalizou correspondem ao significante desse signo lingüístico. E o significado? O significado é a imagem conceitual de um signo lingüístico, isto é, é a imagem da coisa, arquivada em nossa memória; seu todo significativo. Por exemplo: significante = /'kaza/ significado = ------------------------------------------------------------------------------® Eu amo José. Maria machucou o joelho. Mamãe fez um bolo. eixo sintagmático e ix o p a ra d ig m á ti c o 30 Com base nisso, podemos questionar: um signo é uma palavra? Como o signo lingüístico é uma entidade constituída de significante e significado, não apenas as palavras são tidas como signo lingüístico, mas também os morfemas (unidades mínimas significativas recorrentes de uma língua). Saussure também propõe dois princípios para os signos lingüísticos: a sua arbitrariedade e a linearidade do significante. O que querem dizer? Saussure afirma que o signo lingüístico é arbitrário, ou seja, não há relação necessária (natural) entre o seu significante e o seu significado, pois é convencionado por um grupo social, não cabendo a um indivíduo alterá-lo. Isso é comprovado pela diversidade das línguas (em português, temos o significante casa e, em inglês, house para o significado moradia), isto é, em sociedades diferentes, as convenções lingüísticas dos grupos sociais são, também, diferentes. Propõe, além disso, que o significante é linear, uma vez que os sons (psíquicos) ocorrem um após o outro, sucessivamente, em forma de linha. Entre outros, esses são pressupostos lingüísticos do pensamento saussuriano, os quais figuram como alicerce da lingüística estrutural. A propensão a analisar a língua do ponto de vista de uma unidade encerrada em si mesma, como uma estrutura sui generis, também está presente no Grupo Copenhague que tem Hjelmslev à frente. Assim considerado, a língua apresenta um caráter abstrato e estático, já que é dissociada do ato comunicativo. A Escola de Copenhague focalizou o aspecto formal das línguas, deixando sua função num plano secundário. Ou seja, essa escola adotou a concepção saussuriana de língua como um sistema autônomo e, através de Hjelmslev, desenvolveu uma teoria chamada de Glossemática, aprofundando principalmente os conceitos de forma e substância (expressão e conteúdo). Hjelmslev, partindo do princípio de que a língua é uma estrutura, isto é, uma entidade de dependências internas, constrói uma teoria que se realiza numa rede abstrata de inter-relações. O expediente de análise utilizado é o da comutação aplicável tanto ao plano da expressão (substância fônica) como ao plano do conteúdo (substância semântica), admitindo-se que há o mesmo tipo de relações operando nesses dois planos. As unidades são isoláveis pela comutação, mas são definidas formalmente, isto é, por meio de relações combinatórias. Nesse ponto, o tratamento é puramente dedutivo. Sabe-se que durante a primeira metade do século XX, privilegiando diferentes aspectos das idéias de Saussure, surgem na Europa, pelo menos três importantes grupos lingüísticos: a Escola de Genebra, a Escola de Londres e a Escola de Copenhague. As duas C A B F E G GLOSSÁRIO Glossemática: designa a teoria lingüística proposta por Hjelmslev que considera a língua como fim em si e não como meio. Essa teoria, em razão de seguir os pressupostos básicos de Saussure, pertence ao Estruturalismo europeu. Introdução à Lingüística 31 primeiras não se limitaram ao estudo meramente formal, adotando a visão de que a língua deve ser vista como um sistema funcional, no sentido que é utilizada para um determinado fim: a comunicação; ao contrário da Escola de Copenhague. 2.5.1.1.1 Estruturalismo funcionalista O conceito de funcionalismo nasceu no Círculo Lingüístico de Praga, um dos grupos mais importantes para as investigações da lingüística teórica e o desenvolvimento da filologia das línguas eslavas. Assim, podemos afirmar que a abordagem da Escola de Praga é caracterizada como um Estruturalismo Funcional, pois
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