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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Guerra e política nas relações internacionais Thiago Moreira de Souza Rodrigues Doutorado em Ciências Sociais (Relações Internacionais) São Paulo 2008 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. 2 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Guerra e política nas relações internacionais Thiago Moreira de Souza Rodrigues Doutorado em Ciências Sociais (Relações Internacionais) Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais (Relações Internacionais), sob a orientação do Prof. Dr. Edson Passetti. São Paulo 2008 3 ________________________________ ________________________________ ________________________________ ________________________________ ________________________________ 4 Resumo O tema da guerra é a questão central da área acadêmica das Relações Internacionais, tendo articulado as mais significativas escolas teóricas desse campo: liberalismo e realismo. Essas teorias são apresentadas regularmente como antagonistas, pois os liberais acreditariam na possibilidade de paz e cooperação duradouras nas relações internacionais, ao passo que os realistas apostariam somente em períodos de paz abalados por inevitáveis guerras entre Estados. No entanto, o estudo genealógico das procedências das teorias liberal ― a partir da obra de Immanuel Kant ― e realista ― a partir das reflexões de Thomas Hobbes ― evidenciaria a convergência de ambas na defesa do Estado, da ordem civil e da noção de política como paz. De inimigas, as teorias de Relações Internacionais passariam a ser notadas como adversárias, disputando espaços de influência, mas partilhando princípios e intenções políticas. Essa pesquisa pretende, no entanto, experimentar outra perspectiva de análise das relações internacionais exterior ao campo jurídico-político das teorias liberal e realista. Para tanto, procura ativar um estudo da guerra, da política e das relações internacionais, a partir de leituras de Pierre-Joseph Proudhon e Michel Foucault. Esse deslocamento permitiria observar a política não como paz civil, mas como a continuação da guerra por meio das instituições e das relações de poder. Por esse prisma, é possível pensar outra análise das relações internacionais que repara na formação do sistema internacional e nas suas transformações contemporâneas fora do referencial jurídico-político ― estatal ou cosmopolita ― e sem a pretensão de constituir nova teoria adversária das tradicionais. Ao contrário, esboça-se uma analítica das relações internacionais em aberta batalha ao monopólio das teorias de Relações Internacionais e que problematiza o imperativo de aderir a uma das duas escolas, ensaiando um método libertário de estudo da política internacional interessado nas resistências às autoridades teóricas e à lógica da soberania vinculada aos poderes políticos centralizados. Palavras-chave: guerra, política, relações internacionais, analítica foucaultiana, libertarismo. 5 Abstract The issue of war is the central question in the academic field of International Relations, which articulates the most significant theoretical perspectives in the area: liberalism and realism. These theories have been presented as antagonists. Liberals would believe in the possibility of lasting peace and cooperation in international relations, while realists would emphasize periods of peace disturbed by inevitable war between states. However, the genealogical study of the provenance of the liberal theories ― based on the work of Immanuel Kant ― and realist theories ― based on the thought of Thomas Hobbes ― would shed light on the convergence of both in the defense of state, civil order and the notion of politics as peace. Instead of enemies, the theories of International Relations would become opponents, struggling for space of influence, but sharing principles and political intentions. This research seeks, though, to experiment other analytical perspectives of international relations, apart from the legal-political field of liberal and realist theories. Toward this, it aims to activate a study on war, of politics and international relations, based on the contributions of Pierre-Joseph Proudhon and Michel Foucault. This shift would enable us to observe politics not as civil peace, but as the continuation of war through institutions and relations of power. Hence, a different approach which would take the focus on the development of the international system and its contemporary transformations away from the legal-juridical references ― both state-centered or cosmopolitan ― opens new possibilities for the analysis of international relations, without creating a new contending theory to the traditional ones. On the contrary, an analytics of International Relations turns the tables on the monopoly of the existing theories, and challenges the imperative of adhering to one of the traditional conceptual frameworks. It attempts to develop a libertarian approach to the study of international relations, interested in the resistances to theoretical authorities and to the idea of sovereignty attached to centralized political powers. Key words: war, politics, international relations, foucaultian analytics, libertarism. 6 Agradecimentos Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo auxílio fundamental à realização dessa pesquisa. Em primeiro lugar, pela Bolsa Capes II oferecida ao longo dos anos de investigação; depois, pela bolsa conferida pelo Programa Colégio Doutoral Franco-brasileiro que permitiu o cumprimento de um estágio doutoral, no período de fevereiro a julho de 2007, junto ao Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine (IHEAL) da Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris III). Gostaria de agradecer àqueles que na França ajudaram diretamente na pesquisa, tornando mais especial e produtiva minha estada em Paris. Um agradecimento à Profa. Dra. Renée Fregosi, do IHEAL, pela generosa acolhida, pela atenção e sugestões. Muito obrigado, também, a Alain Labrousse pelas indicações e conversas. Um abraço aos meus amigos da Maison du Brésil: Matheus Hidalgo, Rodrigo Czajka, Mili Garcia, Ana Malfitano e Mariana Barreto Lima. Ainda em Paris, obrigado a Sophie Boyriven Moreira de Souza, Françoise Boyriven, Alexis Paseyro e Sylvie Massat. Meus agradecimentos a Evelyne Maury e a Claire Guttinger, arquivistas do Services des Archives do Collège de France, pela atenção e acesso às fitas de áudio dos cursos de Michel Foucault. No Brasil, um agradecimento sincero à Faculdade Santa Marcelina, à sua diretora Ir. Ângela Rivero e à pro-diretora acadêmica Vera Ligia P. Gibert, pela confiança e apoio. Um abraço especial a Flávio Rocha de Oliveira, Gilberto M. A. Rodrigues, Walter Mesquita Hupsel e, principalmente, a Wagner de Melo Romão pela força constante no trabalhar junto. Aos meus amigos Alexandre Braga, Guilherme Ranoya, Paulo J. Guludjian e Renata de Barros Pereira abraços enormes de quem sabe que os tem ao lado sempre. Àqueles únicos que vivem, pensam e se reviram intensamente no Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol) da PUC-SP,um beijo forte. Beijos e abraços ainda 7 maiores para aqueles que mais diretamente combateram comigo o bom combate dos amigos: Acácio Augusto, Andre Degenszajn e Salete Oliveira. Por fim, agradecimentos mais que demais a Edson Passetti, amigo-guerreiro de fibra, que luta junto, fortalece e excita coragem; Cândida e Sidney; Nelly e Cecília, André e toda a família, trupe alegre plena de vida; Ana Bourse, mi Ani, presencia linda en toda palabra: sol nuevo a cada día. Dedico essa tese a Altair e José que travaram com honra seus combates. 8 Sumário A perspectiva da guerra 10 Política como paz 22 Primeiro Capítulo A política dos pacificadores: as teorias das Relações Internacionais contra as marcas da guerra 23 A paz pelas baionetas 23 Liberais, realistas e a disputa pelas Relações Internacionais 31 Em nome da paz civil: procedências liberais e realistas 48 A urgente paz de Thomas Hobbes 49 A urgente paz de Immanuel Kant 56 Elogios à paz e ao Estado 65 Segundo Capítulo Realistas, liberais e a guerra exterior à política 79 2.1 A guerra aos extremos 79 Guerra e política em Clausewitz 84 Clausewitz, um apologista da paz? 91 Clausewitz e Aron: pela guerra a serviço da paz 108 2.2 Política, paz e criminalização da guerra entre os liberais 114 A legalização contemporânea da guerra 114 As procedências do conceito contemporâneo de guerra justa 123 Cosmopolitismo e a criminalização da guerra 148 2.3 A guerra na ausência da política 162 9 Política como guerra 167 Terceiro Capítulo Proudhon: a vida e a política como incessante combate 168 O combate sem fim 168 A guerra, condição do homem 178 O direto da força: a guerra como julgamento supremo 187 Hobbes, filósofo da paz 194 A “guerra capturada” contra a honra do guerreiro 197 Penúria, a causa da guerra brutal 202 A federação e a política como luta 207 A perspectiva da luta permanente 224 Quarto Capítulo Foucault e o agonismo do poder nas relações internacionais 230 A guerra como cifra do poder 230 A infindável história das lutas 255 Quinto Capítulo História-política e política internacional 273 O discurso histórico-político contra a alegoria da paz 273 Thomas Hobbes contra a guerra das raças 282 A “guerra das raças”, discurso polivalente 298 A guerra no Estado e entre os Estados 311 A política internacional como guerra 337 Fluxos 01010101 352 Libertarismo nas Relações Internacionais 353 Uma outra história-política 353 Método, atitude, guerra 368 Anarquia e parrésia: destemor na batalha 379 Analítica das relações internacionais, uma atitude de combate 385 Bibliografia 403 10 A perspectiva da guerra As marcas de uma guerra impulsionaram a formação de um novo ramo das ciências sociais, um desdobramento da ciência política que recebeu o nome de Relações Internacionais. O impacto da Primeira Guerra Mundial abriu espaço para uma reação pacifista que permitiu a um conjunto de intelectuais, juristas e políticos propor a constituição de um campo de estudos destinado a compreender as causas da guerra de modo a criar instrumentos para evitá-la. Essa nova área procurou destacar-se de suas procedências jurídicas e filosóficas afirmando a especificidade de seu objeto de estudos: as relações entre Estados. Procurou, também, defender um projeto de organização política do mundo baseado no princípio da cooperação entre Estados, no reforço do direito internacional e na superação da prática da guerra pelo conceito de solução pacífica de controvérsias. Essa ciência social com sua intelligentsia pacifista foi introduzida nos salões diplomáticos durante as negociações de paz em Paris, entre 1918 e 1919. Seu mais importante advogado foi o presidente dos Estados Unidos, Thomas Woodrow Wilson, que conseguiu incluir na pauta e aprovar a criação de uma associação, a Liga das Nações, destinada a efetivar tal projeto. A vitória de Wilson, contudo, conviveu com a decepção provocada pela não adesão dos EUA à Liga diante do veto do Congresso estadunidense. Apesar disso, Wilson e sua proposta liberal influenciaram não só a Liga, como as primeiras cátedras universitárias dedicadas às Relações Internacionais, na Europa e nos Estados Unidos. Esses centros, orientados pelo liberalismo wilsoniano, atualizavam, por sua vez, uma leitura da política internacional cuja voz mais audível era a de Immanuel Kant e seu projeto para a paz perpétua. 11 O liberalismo internacionalista, com sua utopia da paz perpétua, não fez cessar a guerra. Nos anos 1920 e 1930, os Estados seguiram com suas políticas de interesse nacional pela expansão territorial ― a Alemanha na Europa centro-oriental, a Itália na África, o Japão na China ― ou pela complacência interessada das democracias inglesa e francesa com o fascismo italiano, o franquismo espanhol e o nazismo alemão. Desse modo, a política internacional parecia estar muito afastada do modelo com que os Estados formalmente se comprometeram em Versalhes. Surgiram assim, autores que denunciavam o projeto liberal ― cristalizado na Liga das Nações ― como uma perigosa utopia porque, ao defender idealisticamente a paz, abria flancos para a recorrência da guerra. O primeiro autor de destaque nessa vertente crítica foi o historiador britânico Edward Carr, ainda nos anos 1930, seguido por Hans Morgenthau, judeu alemão que produziu nos EUA do pós-Segunda Guerra. A reação ao liberalismo internacionalista foi chamada por seus autores iniciais de realismo e evocava um panteão próprio de autores clássicos ― Tucídides, Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes ― a fim de amparar uma visão da política internacional como um estado de guerra, impossível de ser perpetuamente pacificado, mas passível de pacificações temporárias a partir de equilíbrios de poder entre os Estados. Ainda na primeira metade do século XX armou-se, entre liberais e realistas, essa disputa fundadora da área das Relações Internacionais que passou a ser tratada na literatura especializada como “primeiro grande debate”. A competição entre realistas e liberais tomaria as cátedras, os corredores e salões dos ministérios dedicados aos assuntos diplomático-militares, os centros e fundações de pesquisa, os livros sobre política internacional, os modelos de novas organizações internacionais. Essas teorias tiveram, desde o princípio, um caráter militante e instrumental: pretenderam formular visões de mundo a serem ofertadas aos estadistas de modo a contribuir para uma 12 determinada organização das relações internacionais que pudesse garantir o adiamento da guerra e, conseqüentemente, o prolongamento mais amplo possível da paz. Os liberais, atualizando Kant, vislumbravam essa paz prolongada por meio das instituições, do direito e da renúncia à guerra; os realistas, fiados nas noções de interesse nacional e de “anarquia” internacional, buscavam encontrar fórmulas de equilíbrio de poder entre os Estados que desestimulassem a guerra. De um lado ou de outro, a conquista da paz e a segurança do Estado pareciam ser as questões centrais a mobilizar, por ângulos distintos, realistas e liberais. Para ambas as escolas, a guerra deveria ser retardada ao máximo para a saúde do Estado e a preservaçãodo sistema de Estados. Realistas e liberais estavam de acordo que a guerra havia sido banida do interior dos Estados pelo processo de centralização política iniciado no final da Idade Média. O monopólio da violência pelo Estado teria feito parar as guerras internas, empurrando-as para seus limites, suas fronteiras. As guerras passariam a ser acontecimentos exteriores à política, possíveis de eclodir apenas no espaço extra-político das relações internacionais. Liberalismo e realismo, ainda que em competição, estariam de acordo com o princípio de que a política é paz e que as relações internacionais, possibilidade de guerra. Seria nessa “anarquia” internacional que a guerra encontraria seu exílio. Com tal premissa comum, realismo e liberalismo definiram o campo teórico das Relações Internacionais e se firmaram como as grandes alternativas à quais deveriam filiar-se os estudiosos da política internacional. Os internacionalistas realistas e liberais interessavam ao Estado porque auxiliavam na reflexão sobre como defender seus interesses políticos e estratégicos em época na qual o sistema interestatal organizava-se de forma nova ― a bipolaridade entre Estados Unidos e União Soviética ― enfrentando questões novas, como o aumento da dinâmica comercial e financeira e o despontar de guerras civis, revoluções políticas e guerras de libertação nacional no então Terceiro 13 Mundo. Desse modo, as teorias eram úteis instrumentos às necessidades de ajuste e inovação dentro do campo das práticas diplomático-militares dos Estados; e ganharam destaque não apenas junto às instâncias governamentais, como também, definiram a orientação dos centros de investigação e departamentos universitários de Relações Internacionais. O ambiente universitário estadunidense e europeu, na área das Relações Internacionais, converteu-se em um duopólio que expressava a disputa entre realistas e liberais. Gerações de estudantes foram formadas a partir da opção entre uma ou outra corrente teórica e seus desdobramentos e atualizações. Quando o ensino das Relações Internacionais lentamente se difundiu por outras regiões, como a América Latina, a escolha entre realismo ou liberalismo continuou a determinar as diretrizes curriculares e as perspectivas de pesquisa. No entanto, ao ter em mente as procedências destas teorias internacionalistas, seus inícios, intencionalidades políticas, motivações e vínculos com os aparatos de Estado dos países mais poderosos política e economicamente no século XX, seria possível colocar uma questão: as teorias das Relações Internacionais seriam as únicas possibilidades de estudo da política internacional? Dariam elas conta de um campo tão dinâmico e em transformação veloz como o da política internacional? Ao internacionalista não caberia outro destino que o de ser realista ou liberal? Ao lado dessas perguntas, poderia ainda haver outras: realismo e liberalismo poderiam ser compreendidos como escolas inimigas e inconciliáveis tendo ambas a paz como divisa e como meta? Não seriam, ao contrário, teorias adversárias dentro de um mesmo campo conceitual e político disputando espaço junto às instâncias de poder e procurando defender suas visões particulares como os melhores caminhos para atingir a situação de paz que garantisse a sobrevivência dos Estados e a ordem internacional? Ofereceriam, liberalismo e realismo, referenciais ampliados para a análise das relações internacionais 14 em tempos de transformação do conceito de soberania, de formação de blocos políticos e econômicos, de globalização da economia, de fragmentações e reconfigurações de territórios nacionais e, no plano das guerras, de diminuição das guerras interestatais e da emergência das guerras transterritoriais nas quais conglomerados de Estados combatem em várias partes do globo forças não-estatais como o terrorismo fundamentalista e o narcotráfico? Produzidas a partir da lógica jurídico-política, vinculadas às teorias da soberania e de justificação do poder estatal, talvez as escolas tradicionais não sejam mais instrumentos exclusivos de análise convincentes para compreender uma situação mundial na qual a soberania se redimensiona e, pelos fluxos transterritoriais, atravessam produtos, informações, dados eletrônicos, ilegalismos, terrorismos, guerras, resistências. As teorias de relações internacionais operam a partir da premissa de que há um dentro e um fora: um espaço político pacificado contraposto à “anarquia” exterior. A compreensão das relações de poder dessa época chamada por Gilles Deleuze de sociedade de controle passa pela impossibilidade de separar de forma estanque a política doméstica da internacional. Os fluxos atravessam as fronteiras, produzem ações políticas que não se fixam aos territórios nacionais, anunciam uma planetarização econômica e política na qual a distinção entre política (o dentro) e não-política (a “anarquia” do fora) não corresponde às correlações de força entre conglomerados de Estados, coalizões militares, fluxos financeiros, grupos terroristas, tráficos, resistências ativas e reativas. Assim, com a intenção de compreender as relações internacionais no presente, propõe-se aqui problematizar os princípios partilhados entre realistas e liberais de política como paz e relações internacionais como guerra. Uma problematização que se dá na perspectiva da anarquia contra a dicotomia paz/“anarquia” das teorias internacionalistas, e se formula a partir de um anarquista, Pierre-Joseph Proudhon que, no século XIX, se contra-posicionou em relação a Kant, afirmando que a política era 15 fundada e mantida pela guerra incessante, não havendo separação entre Estados pacificados e relações interestatais em guerra, nem possibilidade de uma pacificação perpétua por meio de uma federação centralizadora universal. Proudhon borrou a distinção entre guerra e paz chamando a atenção para a política como petite guerre, guerra continuada e insuperável na política: a guerra como situação do homem. Com especial atenção ao tema em A guerra e a paz, livro de 1861, Proudhon confrontou a tradição da filosofia política e dos juristas do direito das gentes ― exatamente as séries nas quais se inscrevem as teorias internacionalistas ― para mostrar que tanto Kant quanto Thomas Hobbes e Hugo Grotius se esforçaram para demonstrar que o amálgama social somente seria garantido se um poder político centralizado instaurasse a paz. A ausência de política, desse modo, seria sinônimo de caos, desordem, guerra. Esse esforço, sustenta Proudhon, visava apagar da história o fato de que todo direito era derivado da força, da violência do mais forte que determinava o justo e o injusto, o legal e o ilegal. Sob a grandiloqüência dos discursos jurídicos e políticos produzidos por magistrados e soberanos, operaria, para Proudhon, o direito da força que fazia da guerra seu meio de efetivação: “direito” inadmissível para aqueles que buscavam as formas de legitimar e justificar a existência benévola, incontornável e necessária do Estado. Para Proudhon, a política não seria paz, mas uma guerra permanente que nem a superação do Estado por ele defendida poderia eliminar. O fim da propriedade privada e estatal e o despontar das federações agrícola-industriais indicadas por Proudhon não implicariam na abolição das tensões entre os homens, das divergências de opinião e de posições políticas e éticas que fazem da vida uma batalha constante. Um século depois de Proudhon, Michel Foucault afirmou que a história da política era a história da guerra continuada por outros meios e não a de sua superação. Sendo a política conformada por infindáveis correlações de força, não haveria16 possibilidade de pensar uma sociedade sem relações de poder, a vida fora da política ou a vida fora da guerra. A hipótese de Foucault para compreender a política é a hipótese da guerra. Hipótese oposta à de Clausewitz, como propõe Michel Foucault em seu curso no Collège de France de 1976, por meio da qual o filósofo se perguntava se a guerra, o fato da batalha, a luta e as resistências, não poderiam ser maneiras de analisar as relações de poder. Caso pudessem, haveria que abandonar a lógica da soberania jurídica e do poder de Estado, operando um deslocamento para a análise dos dispositivos, técnicas e tecnologias de poder atuantes pelo aparato de Estado, mas não exclusivamente a partir dele. Para Foucault, as teorias tradicionais do poder estavam vinculadas à preocupação de explicar o poder a partir do Estado, do direito, de sua legitimidade, limites e origem. Tal prisma, para o filósofo, não permitiria compreender como as relações de poder se exerciam efetivamente nas sociedades ocidentais. A perspectiva da guerra, no entanto, permitia pensar as relações de poder a partir da lógica do enfrentamento. Assim, contra a lógica do soberano, uma perspectiva do agonismo das relações de poder ― noção desenvolvida por Foucault a partir do princípio grego de combate. Tomando as relações de poder como combate, a política passaria a ser vista como um campo de batalhas incessantes, continuadas por meio das instituições e exercidas nas relações cotidianas entre homens com seus embates de interesses, vontades de governo e resistências ao comando superior. A política como agonismo se afastaria, desse modo, da tradição jurídico-política que define a política como paz ― o espaço pacificado criado pelo contrato social e mantido pela autoridade superior do Estado. Nessa tese, procura-se experimentar essa hipótese da guerra no campo das relações internacionais, a fim não de deslocar seu estudo das teorias realista e liberal para a perspectiva da política como guerra, mas ensaiar outra analítica que ao penetrar na luta entre discursos de verdades provoque conexões entre fluxos de resistências. 17 O campo teórico das Relações Internacionais, fazendo parte dessa série da teoria da soberania, partilha ― pelo viés realista ou pelo prisma liberal ― o princípio de que a política está isenta de guerra. Assumindo a perspectiva proudhoniana da petite guerre e a hipótese foucaultiana da urgência em compreender a política pelo agonismo, seria possível notar como as teorias internacionalistas transitam pelo mesmo trajeto que, para Foucault, não daria conta de compreender como acontecem outras dimensões das relações de poder, como se exerce e se resiste ao poder, como se dá a política. Assim, a pergunta que aqui se faz é: não seria possível problematizar as teorias de Relações Internacionais a partir de uma perspectiva agonística que permitisse esboçar outra forma de estudar as relações internacionais? Uma forma de estudo que tomasse efetivamente a guerra ― tema central e fundador da área acadêmica das RI ― como instrumento de análise da política internacional, sem a pretensão de anulá-la sob o comando do Estado ou isolá-la na “anarquia internacional”, mas, ao contrário, tomá-la desvencilhada da utopia da paz que atravessa tanto liberais quanto realistas? Uma analítica das relações internacionais que não buscasse reformar as teorias em vigor ou apresentar uma teoria alternativa, mas ensaiar um método de análise, voltado ao combate e interessado em um saber sobre as relações internacionais liberado da obrigação de filiar-se às teorias tradicionais? E, por meio de tal liberação, constituir-se como instrumento interessante para o estudo da política internacional contemporânea? Tratar-se-ia, ao menos, de indicar uma virada metodológica sem pretensão de formular conceitos universais; virada que seria mais uma atitude de investigação interessada numa história política das relações internacionais do que o estudo das Relações Internacionais como história do poder de Estado, do poder soberano, da lógica do Príncipe. Uma história dedicada à análise do presente, buscando para tanto as procedências dos saberes e práticas no campo das Relações Internacionais de modo a 18 problematizá-los, destacando a luta permanente não só da política, como a dos saberes e teorias produzidos para tentar compreender a política internacional. Para ensaiar essa analítica, escolheu-se caminhar ao lado de Proudhon e Foucault, dois autores que, em momentos diferentes e com intenções distintas, afirmaram a perspectiva de estudo da política como guerra. As noções de Proudhon e Foucault servem como armas na problematização das teorias de Relações Internacionais; são instrumentos analíticos no campo de uma história política que confronta a universalidade pretensamente desinteressada das teorias políticas por meio de estudos locais, perspectivistas e comprometidos com lutas pontuais. O método de Foucault interessa-se exatamente pelos saberes que foram sujeitados, derrotados e desqualificados por outros que não são nem mais verdadeiros ou científicos, mas apenas circunstancialmente vitoriosos. Esses saberes sujeitados, no entanto, podem provocar abalos e insurgências; podem ressurgir do soterramento a que foram submetidos. Por isso, a analítica foucaultiana assume uma perspectiva de luta, rechaçando vivamente a pretensão de constituir-se em teoria. Ela é, assim, uma atitude analítica contra os saberes que sujeitam e buscam afirmar discursos de verdade sobre os corpos sujeitados de inúmeras outras práticas e saberes. Trata-se de uma corajosa decisão de interpelar os saberes aliados ao poder político central, provocando-os ao combate de modo a explicitar que também são parciais, também defendem interesses, vontades e posições políticas. Uma analítica das relações internacionais pretenderia estar ao lado desse Foucault libertário, que fala franca e destemidamente aos saberes hegemônicos não para denunciá-los como hipócritas, mas para lutar por espaços de liberdade para outras formas de compreender as relações de poder. A analítica de Foucault combate pela insurgência de saberes. Uma possível analítica das relações internacionais ensaiaria uma insurgência no campo de estudos da política internacional; uma atitude metodológica voltada para a análise do presente, e 19 inimiga das adversárias teorias internacionalistas. E, como inimiga, reconhecendo a força das teorias e a impossibilidade de superar a guerra permanente contra elas. Uma analítica interessada em perscrutar como se dão as relações de poder na política internacional no início do século XXI; como se busca prolongar a paz numa época em que o sistema westfaliano cede rapidamente lugar a novas formas de organização política que não são nacionais, mas regionais e transterritoriais e como se transforma e se conduz a guerra quando ela age em fluxos sem respeito às fronteiras estatais. *** Essa tese propõe uma analítica em três movimentos. Em Política como paz, elabora-se uma problematização das teorias liberal e realista interessada em analisar suas procedências na filosofia política, com destaque para as leituras que os liberais fazem de escritos de Immanuel Kant e que realistas empreendem da obra de Thomas Hobbes. Interessa investigar como num ramo teórico ou noutro, a premissa fundamental é de que o Estado institui a política como espaço de paz em contraposição à “anarquia” tomada como guerra: “anarquia” existente antes do contrato social e que, depois dele, teria sido expulsa para as relações internacionais. Assim, a guerra ― sujeitada pelo Estado ― restaria além-fronteiras, apenas como instrumento depolítica externa. As teorias liberal e realista não seriam, assim, antagônicas em seus princípios e interesses, mas convergentes e adversárias, transitando no campo do discurso jurídico-político preocupado com a defesa do Estado, sua justificativa e legitimidade. Esse movimento dedica-se à lógica do soberano, do território, do posicionamento: ao pensamento fixado em fronteiras e na utopia da paz. 20 Contra esse movimento, outro em que se procura ativar leituras de combate às da lógica da soberania e da pacificação da política. Em Política como guerra, busca-se a companhia de Proudhon em sua afronta direta aos juristas e filósofos políticos que procuraram evitar a guerra, não reconhecendo nela o acontecimento elementar da vida humana e das sociedades. As noções de Proudhon levam à genealogia da história política exercitada por Foucault que se interessa em mostrar como é possível experimentar uma análise das relações de poder a partir da lógica da guerra, do agonismo. O agonismo é um ataque direto à lógica jurídico-política, aos saberes que visam justificar o poder de Estado a partir da afirmação de que a política faz cessar a guerra. É, portanto, um ataque frontal à posição na qual se perfilam as teorias realista e liberal. A partir da perspectiva agonística esboça-se uma analítica das relações internacionais que procura afirmar outro ângulo de estudo sem pretensões teóricas, mas que, ao contrário, se assume perspectivista, local, voltado ao combate e as resistências. Nesse movimento, a partir de um contra-posicionamento à lógica jurídico-política, opera-se um deslocamento de perspectiva que sugere uma analítica desvencilhada da fixação e fixidez territorial das teorias internacionalistas sem ficar restrita a outra posição estanque: uma atitude metodológica voltada para as relações de poder que se dão nos fluxos e na velocidade incessante de uma política contemporânea que redimensiona espaços de poder, abala as fronteiras modernas e anuncia uma política propriamente planetária, sem distinção entre dentro e fora, atravessada por relações de força em incontáveis fluxos. Essa analítica, interessada no presente, ensaia em Fluxos 01010101 sua pertinência para o estudo das relações internacionais na sociedade de controle, com sua política, economia e guerras em fluxo. Época de desterritorializações e nova territorializações para além e aquém do Estado nacional; período em que novos projetos 21 de pacificação são construídos a partir de unidades políticas ampliadas como a União Européia e projetos para um direito global que atualiza o cosmopolitismo anunciando reformas no direito internacional que ainda se reporta à lógica do Estado; tempos de uma política planetária na qual os poderes políticos visam controlar os fluxos de resistências que, de forma reativa, ambicionam criar Estados teocráticos e, de forma ativa, desafiam os poderes centrais e a convocação a participar como fluxo inteligente no capitalismo globalizado e na democracia que se universaliza como regime político. Esse ensaio analítico procura indicar a possibilidade de um estudo das relações internacionais atento ao que não mais se restringe ao território do Estado-nação, exercitando uma perspectiva de resistência contra o duopólio das teorias internacionalistas e, também, às formas contemporâneas de pacificação política que não mais se confinam ao Estado, transformando-se em projeto planetário. As teorias realista e liberal operam pela distinção entre dentro e fora, entre paz e guerra, como absolutos inconciliáveis; a analítica, na perspectiva genealógica, atua na indistinção entre o dentro o e o fora, entre guerra e política e na dissolução das dicotomias. A analítica das relações internacionais se pretende uma metodologia em combate nos fluxos e não um contra-posicionamento fixo; modo de problematizar as relações de poder nas relações internacionais que deixam de ser inter-nacionais e inter-estatais para tornaram-se globais ou planetárias; uma analítica voltada para o presente e que compreende a guerra não como força domesticada pelo Estado, mas como princípio das relações de poder, sendo assim uma perspectiva plena de potências para o estudo de uma política internacional que esgarça os limites do jurídico-político, abrindo fendas pelas quais se pode ousar outras miradas. Política como paz “Como alguém escaparia diante do que nunca se põe?” Heráclito 23 Primeiro Capítulo A política dos pacificadores: as teorias das Relações Internacionais contra as marcas da guerra A paz pelas baionetas Uma multidão acompanhava a carruagem pelas avenidas parisienses, lançando vivas e aclamações. Pelos postes, faixas de boas-vindas e de agradecimento eram ladeadas por bandeiras em azul, branco e vermelho. Principiava o mês de dezembro de 1918. Admirado, Thomas Woodrow Wilson deleitava-se com a calorosa acolhida que recebia dos franceses, gratos que estavam pela decisiva intervenção dos Estados Unidos na Grande Guerra. Quatro anos antes, auelas mesmas ruas, de modo similar ao de outras nas principais cidades da Europa, foram tomadas por diferente onda de entusiasmo que comemorava o início de uma guerra que para a maioria parecia ser uma aventura patriótica necessária e redentora. Passados os anos de trincheiras, epidemias, gases tóxicos, destruição e fome, com seus milhões de mortos, toda disposição perecia ser, então, a de celebrar a paz. Paz conquistada pelo auxílio das baionetas da mais nova potência mundial, que trouxe seus exércitos do Novo Mundo com o intuito declarado de pacificar o Velho. Wilson, presidente que rompe o isolamento de seu país levando-o à Europa, em 1917, estava pronto para participar da conferência de paz que se seguiria à guerra que, em suas palavras, teria colocado fim a todas as guerras. Mais do que um representante da pujança militar e industrial, Wilson se auto-declarava o portador da 24 esperança de um novo ordenamento do mundo em termos pacíficos. Chegava à Europa não apenas como líder do país determinante na vitória dos Aliados, mas como o porta- voz de um novo mundo, de uma nova e duradoura paz. É interessante notar como foi possível que se associasse de modo tão intenso a imagem de pacifista a um chefe de Estado que rompeu os obstáculos políticos domésticos à entrada do seu país na guerra. No entanto, a aparente contradição se dissolve quando se repara que a plataforma a partir da qual Wilson constrói seu discurso residia num liberalismo interpretado à maneira do messianismo estadunidense. Wilson defendera a entrada de seu país na guerra com o argumento de que era urgente levar aos europeus, e por extensão ao mundo, valores que estavam consolidados nos EUA, mas que não lhes eram exclusivos. Segundo MacMillan, Wilson “julgava falar pela humanidade” entendendo “seu governo e sociedade como modelos para todos” (2004: 23). O presidente, eleito em 1912 e reeleito em 1916, era cientista político renomado e presbiteriano de formação. Filho de um pastor conhecido no Sul dos Estados Unidos, Wilson foi educado com base na fé de que a salvação individual dependeria da devoção e obediência irrestritas à lei divina. Essa carga moral foi fundamental para cristalizar em Wilson, desde jovem, a idéia de que ele era um homem que “Deus havia designado para guiar, direta ou indiretamente, a nação americana na missão sagrada que ele atribuía a ela (...): dar o exemplo ao mundo” (Aunchincloss, 2003: 11). A confiançana própria capacidade estava de acordo com a crença difundida entre os estadunidenses do destino manifesto da nação, concepção moral e política, surgida no século XIX, que atribuía aos Estados Unidos o dever de defender a liberdade no mundo e a inevitabilidade da expansão territorial do país. Esse homem, talhado no messianismo, governou um país que emergia no cenário internacional, despontando como potência econômica e militar num concerto mundial 25 ainda dominado por Estados europeus. Em seus mandatos, Woodrow Wilson desenvolveu diretrizes de política externa que os Estados Unidos praticavam desde o final do século XIX, principalmente a partir da guerra hispano-americana, de 1898, quando a vitória sobre a Espanha garantiu aos EUA territórios (Porto Rico, Filipinas, Guantánamo, Guam) e uma posição de destaque diante do restrito clube europeu de nações. A mais bem acabada tradução desse período de ativo intervencionismo estadunidense, continuado por Wilson, foi o Corolário Roosevelt, de 1904, doutrina de política externa que inaugurou a época das intervenções militares estadunidenses no continente americano e que ficou conhecida como política das canhoneiras ou do big stick1. Durante o governo do democrata Woodrow Wilson, os Estados Unidos levaram adiante a política intervencionista iniciada pelo governo republicano de Theodore Roosevelt, mantendo a presença na América Central, as pressões sobre o México e a América do Sul e invadindo o Haiti, em 1915. O despontar dos Estados Unidos como uma potência com pretensões extra- americanas esbarrou, no entanto, nos interesses coloniais europeus, principalmente na Ásia, e em resistências domésticas. No momento em que os EUA decidem conquistar posições vantajosas do ponto de vista estratégico e comercial naquele continente, a Ásia estava já esquadrinhada, divida entre Estados europeus que gerenciavam protetorados, colônias ou tutelavam países formalmente independentes como a China. A tática estadunidense no oriente foi a da aproximação comercial, aliada às pressões diplomático-militares diretas sobre países como o Japão e o apoio a regimes débeis 1 O Corolário Roosevelt é considerado como um complemento da Doutrina Monroe, delineada em 1823, e que estabelecia o continente americano como zona de influência dos Estados Unidos, devendo, portanto, ser defendida contra a presença européia para que permanecesse sob a órbita estadunidense. Os EUA do início do século XX, no entanto, fortalecidos econômica e militarmente no processo de modernização com centralização do poder de Estado aprofundado com a vitória dos unionistas na Guerra de Secessão (1861-65), passam a intervir militarmente, ocupando países ou pressionando governos no Caribe, América Central e do Sul sob a justificativa de defender os interesses estratégicos e de particulares estadunidenses nessas regiões. 26 como o chinês em suas querelas com os Estados ocidentais2. Por outro lado, havia grande oposição nos EUA, por parte de grupos sociais e forças políticas isolacionistas, quando o tema era o da atuação militar e ingerência em regiões fora das Américas; posição que estendeu quando colocada em questão a pertinência ou não dos Estados Unidos mandarem forças militares à guerra em curso na Europa. Apenas após uma série de torpedeamentos de navios mercantes estadunidenses por submarinos alemães, em 1916, que o cenário tornou-se mais propício às propostas de envolvimento na Grande Guerra. Wilson passou a defender a intervenção na guerra, alegando a necessidade de defesa do país e de seus interesses. A declaração de guerra às potências centrais (Alemanha, Áustria-Hungria, Bulgária, Império Otomano) marcaria não apenas um desequilíbrio no confronto que transcorria na Europa em favor dos Aliados, como também, apontaria a ascensão dos Estados Unidos como uma potência internacional, com capacidade de ação diplomática e militar em escala mundial. Segundo Döpcke, “a entrada dos Estados Unidos na guerra foi decisiva”, pois desequilibrou o estancado conflito nas trincheiras do front ocidental, abalando em definitivo o Império alemão que, com isso, e já depois de deflagrada a revolução liberal em Berlim, em novembro de 1918, foi levado a “aceitar as condições do cessar-fogo e, com isso, sua derrota” (1997: 156). A nova configuração das relações de poder no mundo pós-guerra, passado o armistício, deveria ser definida na conferência de paz à qual acorreram Wilson e líderes de outros vinte e seis Estados que declaram guerra às potências centrais (Taylor, 1966). No entanto, havia um problema de fundo colocado justamente pela tensão que se estabelecera entre os Estados Unidos e seus enfraquecidos aliados europeus. O debate 2 Exemplo dessa abordagem foi o apoio que os Estados Unidos ofereceram à China em sua demanda por um maior controle sobre o comércio do ópio contra os interesses de ingleses, franceses, holandeses e portugueses. Como resultado desse suporte, foi realizada a Conferência de Xangai, em 1907, primeiro encontro internacional destinado a restringir a produção e circulação de uma droga psicoativa que reuniu as potências coloniais européias, China e os Estados Unidos (McAllister, 2000). 27 surge, à primeira vista, como uma incompatibilidade entre visões de mundo que colocariam em lados opostos a realpolitik dos europeus e a “nova ordem mundial” estadunidense. Em contraposição às práticas da diplomacia secreta e do equilíbrio de poder alimentadas pelos Estados europeus, Wilson postulava “a possibilidade de uma revolução nas concepções e nas práticas da política internacional e da diplomacia, com o intuito de inaugurar uma nova era de entendimento e paz entre as nações” (Cervo, 1997: 166). As balizas da posição da delegação estadunidense em Versalhes haviam sido apresentadas em 09 de janeiro de 1918 quando Wilson, em discurso no Congresso, defendeu metas para uma reconfiguração voltada para a paz mundial que ficaram conhecidas como Os 14 Pontos. Em linhas gerais, os catorze pontos versavam sobre: a necessidade em abandonar a diplomacia secreta, abrindo as negociações entre Estados ao controle da opinião pública; a urgência em controlar a produção de armamentos, limitando as forças militares às exigências mínimas para manutenção da ordem e da segurança do Estado; o valor de assegurar o direito de independência e autodeterminação aos povos que as reclamassem (na Europa, isso significava atender demandas nacionalistas que poriam fim aos grandes impérios multinacionais, como o Império Otomano e o Austro-Húngaro); a relevância em defender o livre fluxo comercial em todo o mundo, garantindo a passagem constante das frotas mercantes em regiões estratégicas como os estreitos de Bósforo e Dardanelos e, por fim, a importância de uma mudança na “arquitetura” das relações de poder entre os Estados que substituísse a lógica do equilíbrio de poder por outra baseada no conceito de segurança coletiva (Henig, 1991). Esse último imperativo postulado por Wilson significava o deslocamento da busca pela segurança nacional calcada na autonomia plena (econômica, política e militar) e nos jogos voláteis de alianças defensivas e ofensivas por uma outra disposição 28 na qual todos os Estados buscassem sua segurança (em termos de bem-estar e sobrevivência nacional) apostando na recusa à guerra de agressão e na solução pacífica de controvérsias. Para tanto, Wilson defendia a criação de uma associação de nações, reunidas formalmente e sob um estatuto jurídico comum que pudesse se firmar como uma assembléia permanente dedicada a equacionar litígiosentre os Estados a partir da regra fundamental da abdicação do recurso à guerra como instrumento de política externa. Seria uma liga de povos livres irmanados no objetivo de alcançar a paz mundial. As posições defendidas pelo presidente estadunidense acabaram por pressionar pela abertura de um fórum paralelo às negociações de paz em Versalhes, que se dedicaria a pensar essa associação de nações. Assim, o documento fundador da Liga das Nações, apresentado em 1919, deve sua existência, em grande medida, à pressão da delegação estadunidense (Taylor, 1991). O texto final do tratado responde às demandas de Wilson delineadas nos 14 Pontos, principalmente no que diz respeito ao compromisso que deveria ser assumido entre os Estados signatários de não recorrer à guerra de agressão, mas à arbitragem da própria Liga por meio de “solução judicial ou investigação pelo Conselho” da organização (Dinstein, 2004: 112). O tratado trazia, ainda, as premissas defendidas por Wilson referentes à autodeterminação dos povos, (Art. 10), redução de armamentos nacionais “ao mínimo compatível com a segurança nacional e com a execução das obrigações internacionais impostas por uma ação comum” (Art. 08, par. 1º)3, publicidade dos tratados (Art. 18) e o princípio da segurança coletiva (Art. 16), segundo o qual o recurso à guerra por um dos membros da Liga seria “considerado como (...) um ato de guerra contra todos os outros membros”, o que 3 O texto do Pacto da Liga das Nações utilizado aqui como referência é o que se encontra publicado em Seitenfus (1997), pp. 258-269. 29 implicaria em sanções diplomáticas, comerciais e até mesmo militares (a mencionada “ação comum” descrita no Art. 10). A importância e o peso político das posições de Woodrow Wilson não devem, no entanto, sugerir que o presidente estadunidense fosse um enunciador original. Wilson dava expressão a discursos amplamente divulgados na década de 1910 e que foram potencializados pela reação pacifista à Grande Guerra. Já em princípios dessa década, organizou-se um difuso “movimento idealista pela paz que tentou atacar a irracionalidade dos gastos com armamentos e que alcançou certa notoriedade nas conferências de paz de Haia” (Krippendorff, 1985: 28). Proliferaram, a partir dos anos 1910, sociedades sem fins lucrativos e institutos de pesquisa dedicados a decifrar as causas da guerra e encontrar caminhos para o estabelecimento de um concerto duradouro entre os Estados. A primeira cadeira de Relações Internacionais foi criada, em 1917, na Universidade do País de Gales e foi denominada, sintomaticamente, Cadeira Woodrow Wilson de Política Internacional (Sarfati, 2005; Nogueira e Messari, 2005). Os próprios governos de Estados envolvidos na Primeira Guerra Mundial promoveram fundações como a inglesa Royal Institute of International Affairs, a estadunidense Council of Foreing Relations e a alemã Deutsche Hochschule fuer Politik, todas criadas em 1920 (Krippendorff, 1985). As primeiras iniciativas para a formação de uma área exclusiva de estudos das relações internacionais nascem, assim, embebidas em uma perspectiva pacifista que investia no pressuposto que era necessário constituir uma ciência da política internacional que pudesse apontar os meios para evitar uma nova guerra como a iniciada em 1914. Segundo Bonanate, “seria possível dizer que a disciplina acadêmica das relações internacionais nasceu no final da Primeira Guerra Mundial, justamente para abordar de forma científica apenas este problema: por que a guerra na política 30 internacional? As duas têm a mesma essência?” (2001: 148). Portanto, a disciplina das Relações Internacionais toma forma num contexto de crítica à realpolitik — os cálculos de força, alianças estratégicas e equilíbrios de poder — tão fortemente identificadas com os Estados continentais europeus, e que era atravessado pela emergência de uma nova potência internacional, os Estados Unidos — que trazia um outro discurso e novas maneiras abordar a projeção de poder político, diplomático, econômico e militar. Apesar da frustração de Wilson em não conseguir a ratificação do Tratado de Versalhes (e, com ele, do Pacto da Liga das Nações) por um oposicionista Congresso dos Estados Unidos (Renouvin e Duroselle, 2001), a demarcação de um campo específico de estudos da política internacional acompanha o final da Primeira Guerra. O despontar da iniciativa teorizadora das relações internacionais — que configuraria uma nova ciência social com sua vontade de verdade e vocação normativa — teve o tema da guerra como grande e primeiro motivador. A guerra, nesses movimentos iniciais da disciplina acadêmica, foi tratada como um “grande flagelo” a ser controlado por organizações internacionais, pela construção de normas internacionais e conseqüente renúncia de soberania por parte dos Estados. A emergência das Relações Internacionais se deu, portanto, num contexto bastante específico, de corte liberal como se verá abaixo. No entanto, a predominância do liberalismo e dos discursos pacifistas, nesses momentos iniciais, seria circunstancial, anunciando disputas visando a supremacia cognitiva sobre os “fatos internacionais”, a conquista de nichos acadêmicos e a influência sobre os centros de decisão diplomático-militares dos Estados Unidos, Inglaterra e França, as principais potências militares de então. 31 Liberais, realistas e a disputa pelas Relações Internacionais A Liga das Nações nascera enfraquecida pela ausência dos Estados Unidos. No entanto, o discurso pacifista centrado na idéia de que regras e instituições supranacionais seriam a senha para a superação das guerras não arrefeceu. A Liga manteve a estrutura delineada pela delegação estadunidense, com apoio inglês, e que criava uma estrutura voltada para a segurança coletiva e não uma associação militar de defesa anti-alemã como pretendiam os franceses. Segundo Taylor, “haveria aumentado o prestígio da Liga das Nações se os Estado Unidos dela fossem membros, no entanto, a política britânica em Genebra indicava que a participação de uma segunda potência anglo-saxônica não teria necessariamente transformado a Liga no instrumento de defesa pretendido pelos franceses” (1991: 56). Ao contrário, a Liga permaneceu atravessada pelos propósitos pacifistas que, na década de 1910, eram projetados nos institutos e centros de pesquisa dedicados ao tema da política internacional. Ganhavam repercussão autores críticos aos jogos de alianças, à corrida armamentista, ao recurso à guerra, ou seja, ao conjunto de práticas diplomático-militares destinado a aumentar o poder dos Estados consagrado sob o nome de política do poder. Um dos autores mais importantes desse período e perspectiva foi o jornalista inglês Norman Angell (1872-1967), que publicou seu mais influente escrito, o livro A grande ilusão, em 1910. Em suma, o argumento de Angell era que os europeus permaneciam enredados na percepção de que a conquista de bem-estar, riqueza e grandeza para os Estados viriam com políticas calcadas no isolamento e protecionismo econômico, na expansão colonial, na corrida armamentista e nas eventuais guerras de agressão destinadas a manter zonas estratégicas, fontes de matérias-primas e rotas comerciais. Angell previa que a era da mobilização total de forças nacionais em nome da autonomia e supremacia dos Estados 32 europeus conduziria a uma guerra catastrófica a opor nacionalismos radicais. No entanto, para Angell, tais concepções expansionistas eram como uma “ilusão de ótica” (2002: 22) em tempos de interdependência financeira e econômica entre economiase de interesses transnacionais; época na qual, agentes privados de diversas procedências borravam fronteiras nacionais deixando consolidar um capitalismo propriamente mundial. Assim, a maioria dos estadistas, políticos, intelectuais, estrategistas e cidadãos estariam iludidos. Para Angell, “a idéia de que é possível eliminar a competição dos rivais conquistando-os é uma das manifestações da curiosa ilusão” (2002: 24) que acometia seus contemporâneos. Tal idéia, para ele, era falsa pelo simples fato que ao incorporar um outro território, o Estado vencedor incluiria necessariamente em suas fronteiras agentes econômicos do país anexado, gerando competição para seus nacionais (ao menos que toda a população conquistada fosse eliminada). Do mesmo modo, a tese da riqueza nacional pela posse de colônias era equivocada já que o colonialismo era uma prática afinada à economia mercantilista e, portanto, pré-industrial e não- interdependente. As colônias, em pleno século XX, só trariam despesas às metrópoles, uma vez que não seriam mercados consumidores interessantes se presas a um pacto colonial que apenas as espoliasse. Para que fossem lucrativos mercados, as colônias deveriam ser tratadas como se fossem países independentes, com uma diversificação das atividades econômicas locais e com a permissão de acumular dinheiro, gerando consumo. Angell sustentava que não seria viável manter uma colônia à força porque essa decisão era “do ponto de vista econômico (...) ineficaz e pueril” (2002: 93). Assim teriam percebido os britânicos ao criarem sua Commonwealth, dando autonomia em diversos aspectos aos territórios que, formal e politicamente permaneciam sob o Império. Por fim, o poder político (medido em território, população e capacidade 33 militar) não seria sinônimo de riqueza material, como atestaria a “prosperidade mercantil e o bem-estar social das pequenas nações [européias], desprovidas de poder político” (2002: 24). Sem deter-se em críticas aos argumentos do autor, pretende-se aqui apontar como ele alinhava um discurso que mantinha a clara intencionalidade de comprovar que as políticas expansionistas (do ponto de vista político-militar) e protecionistas (do ponto de vista econômico) eram contrárias à paz e, portanto, ao bem- estar dos povos. Angell não se considerava um utópico, já que estaria apenas indicando fatos de integração e dinamismo econômicos mundiais que, segundo ele, poderiam ser percebidos nas relações internacionais. O que é possível notar, no entanto, é que os elementos levantados e a tese defendida pelo autor estão em um terreno liberal que associa liberdade de trânsito, interdependência econômica, autodeterminação dos povos, livre iniciativa e contenção dos gastos militares com sucesso econômico e bem-estar social. No que diz respeito ao tema da guerra, a abordagem de Angell é clara: protecionismo, nacionalismo e expansionismo levam à guerra; e com ela, viria a penúria dos povos. A tese de que a soma de nacionalismo e imperialismo conduziria à guerra já havia sido trabalhada pelos socialistas desde o século XIX e, à época em que Angell publica, despontava em reflexões de socialistas como Vladmir Lenin e Rosa Luxemburg. A diferença substancial entre a abordagem de Angell e a dos socialistas está no fato de que para o primeiro a conduta nacionalista e protecionista poderia ser corrigida pela melhor aplicação das lições do capitalismo liberal, evitando, pelo desenvolvimento da livre iniciativa e da economia de mercado, o choque entre Estados em competição; já para os socialistas, a fricção inevitável entre Estados imperialistas seria parte fundamental da crise do capitalismo, levando a guerras de grandes proporções que marcariam o passo 34 para verdadeira superação da guerra que viria após a tomada e conversão dos Estados em ditaduras do proletariado. A ênfase que Angell dá às forças econômicas não significa que, para o autor, a questão da segurança do Estado tivesse deixado de ser central. Segundo Paradiso, Angell “admitia que a defesa era um fator predominante no comportamento externo dos Estados [e] que a auto-preservação era a primeira e última de suas exigências” (2002: XXXV). O tema de fundo para Angell, conforme aponta Paradiso, é a necessidade de evitar a “anarquia” no cenário internacional: a ausência de ordem ou autoridade que conferisse previsibilidade ou segurança aos Estados. Essa “anarquia” só poderia ser superada eficazmente se fossem abandonados os jogos de alianças entre Estados, sempre efêmeros e prenhes de guerras futuras, pela lógica da segurança coletiva, mais adiante defendida publicamente por Woodrow Wilson e que seria a pedra de toque do projeto de Liga das Nações. A combinação de liberdade comercial, renúncia à guerra de agressão, confiança na sua própria segurança por meio de um acordo coletivo e do respeito a normas comuns seria uma combinação não “ilusória”, mas “concreta”, para evitar as guerras no futuro. Junto ao espectro da Primeira Grande Guerra, referencia fundamental para o pacifismo desse momento, havia o assombro causado pela revolução bolchevista na Rússia, em outubro de 1917, e que atravessava, de modo silencioso, as preocupações dos liberais e de Wilson em particular relativas ao re-ordenamento das relações internacionais. Em outras palavras, o pacifismo liberal atentava para a criação de dispositivos e normas que evitassem a guerra entre Estados capitalistas e que, simultaneamente, pudessem criar condições para evitar a proliferação de sublevações socialistas em Estados já constituídos ou a combinação perigosa entre nacionalismo (nas colônias e nos Estados multi-étnicos europeus) e socialismo bolchevista. Tão importante quanto criar uma nova ordem liberal era evitar a difusão do socialismo russo que, já 35 então, afirmava-se como modelo inimigo do capitalismo liberal. Projetos para a paz internacional, para a formação de uma Liga das Nações, para a criação de um sistema de segurança coletiva, com a defesa da autodeterminação dos povos e o fortalecimento do direito internacional de matriz ocidental não podem ser entendidos, portanto, sem considerar a Revolução Russa e as novas correlações de força por ela introduzidas. Em tal contexto, a argumentação de Angell conquistou ampla audiência, notadamente no período pós-Primeira Guerra Mundial. Sua popularidade e influência nos círculos internacionalistas impulsionaram sua candidatura vitoriosa ao Prêmio Nobel da Paz após a reedição de seu livro, em 1933. As posturas defendidas por Norman Angell, assim como a instrumentalização de idéias similares propostas por Wilson, são amostras bastante significativas do conjunto de conceitos e pressupostos que forjaram a disciplina acadêmica das Relações Internacionais em sua emergência (Arraes, 2005). O pacifismo liberal deu o tom do despontar dessa área e foi predominante no campo de estudos da política internacional nos anos 1920 e 1930, até começar a ser castigado por críticas que acompanharam os sucessivos fracassos da Liga das Nações, quando ela foi chamada a lidar com crises de segurança internacional4. O predomínio da realpolitik no estudo da política internacional, presente no século XIX e até a Primeira Guerra Mundial, foi interrompido no período entre-guerras, mas ensaiou sua volta antes mesmo do início da Segunda Grande Guerra (Bedin, 2004). O autor mais significativo da onda crítica que se agiganta sobre o internacionalismo liberal é outro inglês, o historiador Edward Hallet Carr (1892-1982), apontado pela literatura dedicada ao estudo das Relações Internacionais como o primeiro a evocar a necessidade de uma análise da política internacional que não fosse4 Taylor (1991) aponta que os principais fracassos da Liga das Nações foram justamente aqueles relacionados aos Estados que comporiam o Eixo Berlim-Roma-Tóquio durante a Segunda Guerra Mundial. A Liga foi impotente para impedir as anexações territoriais da Alemanha nazista na Europa central e do leste ao longo dos anos 1930, reticente no caso da invasão japonesa à Manchúria, em 1933, e omissa quando da invasão da Etiópia, em 1936, pela Itália fascista. 36 moldada por preceitos morais e normativos que desconsideram a realidade dos fatos, em nome da projeção de um “dever ser” (Braillard, 1990; Dougherty e Pfaltzgraff Jr, 2001; Nogueira e Messari, 2005; Roche, 2006). Diplomata entre 1916 e 1936, Carr participou da Conferência de Paz de Versalhes, fez parte da delegação britânica na Liga das Nações nos anos 1920 e serviu na embaixada inglesa em Riga, Letônia. Abandonou o serviço diplomático para assumir a Cátedra Woodrow Wilson de Política Internacional, na Universidade do País de Gales, batizada ironicamente com o nome do principal representante das idéias sobre política internacional que tanto criticaria. Carr foi, também, um simpatizante da Revolução Russa e um dos mais importantes historiadores do socialismo, publicando obras que se tornaram referências, com destaque para as biografias de Karl Marx (publicada em 1934), Mikhail Bakunin (1937) e História da Rússia Soviética, em 14 volumes, publicada entre 1950 e 1978 (Griffiths, 2004). No entanto, o livro pelo qual é lembrado pelos estudiosos das relações internacionais, e que marca uma posição francamente contrária ao internacionalismo liberal que qualifica como “utopismo”, é o Vinte anos de crise 1919-1939, editado em 1939. Na obra, Carr dedica-se a criticar a crença na possibilidade de um ordenamento das relações internacionais baseado no compromisso livre e espontâneo dos Estados com valores universais pacifistas regulados pelo direito internacional. Segundo Griffiths, Carr via a jovem ciência social das RI como “um tanto prescritiva, subordinando a análise dos fatos ao desejo reformador do mundo” (2004: 19). Para Carr, essa ciência da política internacional desenvolvida pelos liberais desde os anos 1910 vivia uma espécie de “infância utópica” caracterizada pela aposta na conquista de uma “harmonia geral de interesses que via no comércio internacional o melhor meio de alcançar a paz” (Roche, 2006: 31). Haveria um a priori — a crença na paz universal — 37 que seria efetivada, inevitavelmente, como o resultado da evolução da razão (contra a bestialidade e irracionalidade da guerra). A fim de reforçar essa percepção, Carr lembra uma passagem na qual Woodrow Wilson, que estava a caminho da Conferência de Paz de Paris, responde à questão se seu plano de uma Liga das Nações tinha chances de vingar com um lacônico: “se não funcionar, teremos que fazê-lo funcionar” (2001: 12). Essa postura de um dos ícones do liberalismo do entre-guerras era a constatação, para Carr, de que os estudos internacionais estavam presos a um “utopismo” paralisante, uma vez que “nenhuma ciência merece tal nome até que tenha adquirido humildade suficiente para não se considerar onipotente, e para distinguir a análise do que é, da aspiração do que deveria ser” (2001: 13). A fé no direito internacional e na Liga das Nações, portanto, teria levado o estudioso da política internacional para longe da realidade que é conformada pela interminável correlação de forças e interesses dos Estados nacionais. Os Estados, essas entidades políticas que convivem com uma questão incontornável e que define todo seu comportamento na relação com os pares: a urgência em sobreviver num mundo em que não há um poder político-militar regulador que seja superior aos Estados e efetivo na aplicação de qualquer norma. Desse modo, para o autor inglês, o projeto wilsoniano assentado na Liga das Nações fracassou não porque tivesse tido algum problema de execução. Sua falha era genética, pois deitava raízes na decisão em não reconhecer as relações de poder e de interesse como as que de fato moldariam as relações interestatais: “o colapso da década de trinta foi contundente demais para ser explicado meramente em termos de ações ou omissões individuais. Sua ruína envolveu a falência dos postulados em que estava baseada” (Carr, 2001: 55). Exemplo maior desse descolamento com a realidade da política internacional seria a pretensão dos liberais “utópicos” de que a regra do pacta sunt servanda — a de que os signatários devem cumprir os tratados que 38 assinaram sem questioná-los — fosse para sempre observada sendo que nunca havia sido (desde a formação do Estado moderno) porque o que rege as movimentações dos Estados teria sido sempre a dupla urgência em sobreviver e aumentar a quantidade de situações vantajosas para o exercício do poder sobre outros Estados (entendendo-se “exercer poder” como a capacidade de moldar o comportamento de outrem, gerando uma relação de mando e obediência). Desse modo, e diante da ausência de um Estado mundial, os tratados seriam apenas intenções morais sujeitas ao cumprimento ou descumprimento segundo as vontades e capacidades de cada Estado. Carr discorda, no entanto, do realismo de tipo realpolitik que desconsidera toda e qualquer forma de valor ou moral nas relações entre Estados. Para o historiador, os Estados não são desprovidos de moral, mas, ao contrário, tem uma moral própria porque são entidades distintas dos indivíduos que os compõem. Se sobreviver é uma necessidade de cada Estado, a realização de acordos ou o seguimento de regras que auxiliem na busca dessa meta tem o seu porquê e se efetivam em acertos pontuais, não em projetos utópicos. O direito internacional, então, seria o conjunto de códigos morais voláteis, traçados por entidades — os Estados — que os negociam e assinam dentro de sua luta primordial pela sobrevivência. Carr alinhava essa reflexão com um elogio ao Estado afirmando que “está claro que a sociedade humana terá de sofrer uma transformação substancial antes de descobrir alguma outra ficção igualmente conveniente para substituir a personificação da unidade política [o Estado]” (2001: 196). Ser realista na perspectiva de Carr significa, portanto, evitar o “utopismo liberal” da era wilsoniana e também a política amoral à moda de Richelieu ou Bismarck, reconhecendo que a realidade da política internacional compreende competição, mas também cooperação, e que ambas tem que ver com egoísmo e necessidade de sobrevivência em um mundo de relações de mando e submissão. 39 O livro de Edward Carr foi o primeiro grande golpe a iniciar um período de desqualificação sistemática do internacionalismo liberal das primeiras décadas do século XX. A crise do cosmopolitismo liberal, no entanto, não deve ser entendida apenas como uma decorrência dos sistemáticos fracassos da Liga das Nações em sua pretensão de arbitrar os conflitos entre Estados. Há que se reparar como o ressurgimento da realpolitik, transformada naquilo que seria conhecido como teoria realista das relações internacionais, foi um recurso de análise interessante para a academia e os centros de decisão diplomático-militares dos Estados capitalistas europeus e também dos Estados Unidos diante do crescimento político, militar e econômico da União Soviética e dos movimentos socialistas no mundo. Apoiados diretamente por Moscou, como no caso dos partidos comunistas criados na vaga da III Internacional, ou com intensas nuances e especificidades, como na Guerra Civil Espanhola, os movimentos socialistas ganhavam fôlego atrelados a um Estado-matriz, a URSS, que despontava como modelo alternativo ao Estado democrático-liberal.Assim, é preciso investigar até que ponto a emergência do realismo não se limita ao campo de uma resposta ao internacionalismo liberal, sendo também, uma produção de saber voltada à capacitação conceitual e estratégica de Estados democrático-capitalistas dispostos a enfrentar o socialismo de Estado em ascensão. O acontecimento crucial a marcar o fortalecimento da interpretação realista da política internacional, levando em consideração tanto a hipótese da resposta ao liberalismo quanto ao socialismo, foi a Segunda Guerra Mundial. Ao acontecer, a Segunda Guerra parecia demonstrar, para os primeiros críticos realistas, que uma ordem mundial baseada nos conceitos de segurança coletiva, de confiança no direito internacional e na observância escrupulosa dos deveres e normas por parte dos Estados era impossível e irrealizável diante da natureza das unidades 40 soberanas e do sistema interestatal. Os Estados eram ciosos de sua sobrevivência e não poderiam efetivamente contar com outro apoio para assegurar sua continuidade que suas próprias forças. Essa era sua natureza: entidades políticas autônomas, irredutíveis umas às outras, zelosas de sua soberania inquestionável (celebrada desde o Tratado de Vestfália, de 1648). A inexistência de uma entidade política mundial ou supranacional com poder militar que garantisse eficácia como governo seria a característica fundamental, para os realistas, do sistema internacional. Essa situação foi classificada pelos realistas de “anarquia internacional”, a partir da lógica contratualista que alimenta suas reflexões e que será analisada na próxima seção. Essa “anarquia” em sentido contratualista, e nessa leitura realista, significaria simplesmente a ausência de um poder central supranacional que, na prática, faz com os Estados sejam unidades sem qualquer constrangimento para buscar suas aspirações e metas. Esse cenário leva à preocupação maior dos Estados — a sobrevivência em um mundo inseguro — que os realistas batizaram de dilema da segurança (Nogueira e Messari, 2005). Com a Segunda Guerra Mundial e com o novo arranjo geopolítico com os Estados Unidos e a União Soviética despontando como líderes mundiais, os realistas pareciam encorajados a avançar na destruição dos pressupostos liberais e na construção de um arcabouço teórico que, na sua avaliação, seria mais qualificado para compreender a dinâmica mundial. Esse passo, mais amplo e pretensioso em termos teóricos ao já esboçado por Carr, foi dado por Hans Morgenthau (1904-80). Judeu alemão exilado nos Estados Unidos, nos anos 1930, para escapar à perseguição nazista, Morgenthau estudara direito e diplomacia e se formara admirando a obra de seu conterrâneo Max Weber. Nos EUA, foi professor na Universidade de Chicago, entre 1943 e 1971, e colaborou diretamente com o governo estadunidense em duas oportunidades: no final dos anos quarenta foi consultor da equipe de Planejamento 41 Político do Departamento de Estado e, no começo dos anos 1960, foi conselheiro do Pentágono. Data da época em que trabalhava para o Departamento de Estado seu livro mais influente na área das Relações Internacionais: A política entre as nações: a luta pelo poder e pela paz, editado em 1948. A obra refletia a crença de Morgenthau no papel dos Estados Unidos como país-chave para a manutenção da ordem internacional; fato que fez com que a intenção de aconselhar e instruir as instâncias estadunidenses formuladoras de política externa atravessasse o texto. Essa intenção foi acompanhada de uma crítica à falta de racionalidade que Morgenthau enxergava nas ações diplomático- militares dos EUA, permeadas, segundo ele, por valores morais, crença no poder do direito e na harmonia de interesses entre as nações. Enfim, a política externa estadunidense estaria, ainda, embebida no “utopismo” wilsoniano (Griffiths, 2004). Para Morgenthau, as metas fundamentais a serem perseguidas pelos Estados só poderiam ser alcançadas por meio de práticas de política externa racionais, balizadas por uma teoria extensiva que pudesse conferir sentido “à massa de fenômenos (...) desconexos e incompreensíveis” (2003: 03) que conformam as relações internacionais. O dever ser do internacionalismo liberal não só desconheceria a realidade dos fatos e dos concretos interesses dos Estados, como também seria perigoso para a manutenção da ordem internacional (entendida como ausência de guerra e equilíbrio de poder entre os Estados), pois indicaria caminhos para a organização das relações internacionais que, ao não serem factíveis, impediriam a efetivação de modos possíveis para a manutenção da paz. Para Morgenthau, uma “política externa racional é uma boa política externa, visto que somente uma política externa racional minimiza riscos e maximiza vantagens” (2003: 16). Assim, para o alemão, seria necessário apresentar uma teoria que observasse e procurasse compreender o real, estando atenta “mais a precedentes históricos do que a princípios abstratos” e que tivesse “por objetivo a realização do mal menor em vez do 42 bem absoluto” (2003: 04). Logo, havia que se formular uma teoria realista da política internacional que se opusesse à escola liberal, com sua crença na cooperação, na lei internacional e na importância das instituições supranacionais. O conceito básico apresentado pelo autor é o de “interesse traduzido em termos de poder” (2003: 06). Na visão utilitarista de Morgenthau, todos os Estados buscam o mesmo: maximizar ganhos e minimizar perdas, que são medidos na quantidade de relações de poder favoráveis produzidas e desfavoráveis evitadas. O interesse nacional, portanto, é o conceito que põe em marcha toda e qualquer estratégia de política exterior. Ele se resume aos temas já mencionados da sobrevivência nacional e da expansão de influência política. Se interesse nacional e poder são conceitos intrinsecamente ligados, suas potencialidades conceituais viriam pelo fato de serem universalmente válidos: todos os Estados, independente do tamanho e força política, econômica e militar, enfrentariam esses mesmos problemas. Todo Estado tem sua pauta de interesses nacionais e todos exercem poder e sofrem efeitos do poder exercidos por outros. Para Morgenthau, esse poder significa “tudo que estabeleça e mantenha o controle do homem sobre o homem” (2003: 18). Portanto, as relações de poder entre os Estados se circunscrevem à situação de mando e obediência e ao estabelecimento (e sustentação) de variados níveis de hierarquia que são correlatos às relações de poder que se dão entre homens. Os “homens artificiais” que são os Estados emulam os embates e situações de dominação que ocorrem entre os homens reais. Em suma, poder e exercício do poder são entendidos, exclusivamente, como forças negativas, supressivas, instauradoras de submissões e modeladoras do comportamento dos entes sujeitados. As relações de poder, em Morgenthau, pressupõem uma fonte da qual emana poder sobre um alvo a ele sujeitado. Trata-se de um modo de pensar as relações de poder a partir da lógica da soberania do Estado, com efeitos de poder sobre os súditos ou cidadãos. 43 Além dessa onipresença dos interesses e do conceito de poder, todos os Estados estariam submetidos a uma mesma situação, a um mesmo ambiente: a condição de existirem em um mundo sem autoridade central, o que faria do sistema internacional um espaço caracterizado pela “instabilidade extrema e pela ameaça sempre presente de violência em larga escala” (Morgenthau, 2003: 19). Desse modo, o tema da segurança nacional (da sobrevivência do Estado) era crucial, uma vez que nenhum poder superior poderia assegurar a vida de uma unidade soberana. A ausência
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