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O corpo que dói espelho do mundo em desespero

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Um corpo que dói: espelho do mundo em dês-espero
Rodrigues, Priscila Almeida�
Romera, Maria Lúcia Castilho�
Prochno, Caio César Camargo de Souza�
Resumo: 
Tendo por base as formações narcísicas e o corpo articulados com a sociedade contemporânea, considerar-se-á a problemática do corpo doído no universo da clínica. Investiga-se a complexidade dessa questão e a importância de uma análise cuidadosa sob a lente do método psicanalítico. No cotidiano da clínica não raro nos deparamos com a manifestação de condições que mais comumente são designadas de psicossomáticas. Tal designação nos remete a pensar em um estranhamento sem representação, ou num corpo que se manifesta sem mediação da palavra que toma a dimensão do corpo. Configura-se um estado ou uma condição: o corpo carrega o real que nele se concretiza. Uma psique que não é de nossa fabricação pessoal, mas é criada no real. O mundo se apresenta no corpo e o aprisiona. O mundo ou o pensamento do mundo atravessa o corpo e este o espelha de forma convexa escancarando como se fora um disfarce.
Palavras-chave: Corpo, Contemporaneidade, Dor. 
I – Introdução
“não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra”
(Paulo Leminski)
Estamos inseridos num contexto sócio-econômico-cultural caracterizado pelas crescentes exigências de produtividade e funcionalidade e constante apelo ao consumismo que configuram um regime de pensamento na atualidade. Tal regime traz consigo a idéia de que para ser livre é necessário produzir, consumir e aparecer ou parecer pelo que se produziu e consumiu.
	Assim vivemos em meio ao crescimento das tecnologias da informática, da medicina, da virtualidade, da informação, da mídia, entre outros que agem na formação da consciência do indivíduo. Uma ordem imperiosa constituinte da subjetividade do homem contemporâneo com uma organização espaço temporal muito peculiar. 
A ordem linear: passado-presente-futuro se desconfigurou. Os dias parecem estar mais curtos, o volume de compromissos, trabalho e a competitividade são crescentes e a ordem é de uma presentificação em bloco. O presente não se articula com o passado e o futuro, mas sim com o aparecer. Não ter tempo é fonte de aflição, mas também de conforto por sentir-se ajustado a rotina da vida contemporânea. Tudo precisa ser rápido e o mais prático possível.
E o corpo? Há uma tendência oriunda de uma forma mais positivista de pensar que nos leva a acreditar na existência de duas faces aparentemente distintas: de um lado o indivíduo adoecido e de outro, a sociedade contemporânea e de maneira análoga, de um lado o orgânico e de outro o psíquico. Nessa investigação também é muito freqüente privilegiar-se a psicogênese infantil como caminho para entendermos a neurose, psicose ou perversão e a investigação da sociedade fica a cargo das ciências sociais, antropologia e áreas afins.
Neste trabalho pretende-se tomar em consideração a problemática do corpo na contemporaneidade, do corpo doído, que não cessa de queixar-se de dor. Para essa investigação, considera-se a complexidade dessa questão e a importância de uma análise cuidadosa sob a lente do método psicanalítico, levando-se em conta o regime de pensamento na atualidade.
Por muito tempo a Psicanálise ficou restrita e mais reconhecida pela análise do indivíduo/sujeito que se apresentava nos consultórios. Estabeleceu-se como uma terapêutica alicerçada na relação transferencial entre analista-analisando emoldurada por número estabelecido de sessões semanais, técnica da associação livre, rememoração dos traumas infantis, etc. Alguns autores ou pensadores psicanalistas têm questionado tal forma de circunscrição da psicanálise. 
Maia (2000) coloca que “é cada vez mais difícil pensar numa dicotomia entre psique e soma.” (Maia, 2000, p.266). A autora nos atenta para a complexidade das relações entre corpo e mente e questiona “se lidamos com uma possibilidade dupla: dor corporal ou dor psíquica. Em larga medida, o corpo expressa e inclui o psíquico.” (p.267). A autora enfatiza o corpo considerando como estofo para as primeiras marcas e impressões psico-afetivas.
Garcia-Roza (2000) por sua vez, nos auxilia a refletir que o mundo psíquico é constituído muito mais além do que os traços mnêmicos ou memória, mas há algo da ordem sensorial que também o constitui.
Herrmann (2004) retomando a história da Psicanálise desde a época em que Freud expôs suas idéias psicanalíticas e a construção do edifício clínico-teórico psicanalítico, coloca que a psicanálise ao longo dos tempos passou a ser mera repetição de uma técnica – associação livre, atenção flutuante e interpretação da transferência. Houve, assim, uma deterioração e esvaziamento dos conceitos psicanalíticos. 
Birman (2003) traz a discussão dos caminhos tomados pela psicanálise nos últimos anos e coloca que esta “deve repensar seus fundamentos para ficar sensível e ser potente no que tange ao mal estar na atualidade.” (BIRMAN, 2003, p.26). Para o autor, um desses fundamentos é a Psicanálise continuar indagando sobre “as relações turbulentas do sujeito com seu desejo.” (BIRMAN, 2003, p.26).
Assim, mostra-se a falência de uma análise centrada no indivíduo sem articulação com sua condição de sujeito da representação, o que implicaria em uma articulação com a sociedade e a cultura.
Para Herrmann (2001) “o estado presente da psicanálise é um estado de crise” (HERRMANN, 2001, p.14), uma crise que se relaciona à crise da realidade cotidiana. Uma realidade homogeneizadora e repetitiva que produz uma adesão à padronização técnica e produz uma psicanálise que se caracteriza por uma baixa produção teórica, repetição e restrição de modelos considerados psicanalíticos, divisão em escolas assim como, uma prática clínica explicativa que projeta nos pacientes as teorias escolásticas.
Em contraposição a essa forma padronizada de pensar a Psicanálise e o cotidiano, a Teoria dos Campos, fundada por Fábio Herrmann, propõe-se a uma reflexão sobre a essência da Psicanálise - o método psicanalítico de Freud concebido como uma forma de produção de conhecimento, um ponto de vista sobre o mundo. 
E por falar em mundo, a Teoria dos Campos nos convida a vê-lo com outros olhos, com a lente do método psicanalítico. Assim também, a adotar uma postura que tome em consideração a cultura e a sociedade nas quais os indivíduos estão imersos - indivíduo e sociedade como duas faces de uma mesma moeda. 
Herrmann (2003) coloca que a Teoria dos Campos “(...) recusa a distinção taxativa entre indivíduo e sociedade, e, na esteira de Freud, como não poderia deixar de ser, utiliza o método interpretativo para compreender criticamente a psique do real.” (HERRMANN, 2003, p.8). O autor também coloca que a “Psicanálise é, em essência, um método de conhecimento, cujo horizonte de aplicação inclui a análise da psique social, ou melhor, dizendo, da psique do real” (HERRMANN, 2003, p.2)
O conjunto dos campos da vida social e individual é o que organiza a topografia da psique. E como coloca Herrmann (2001) a psique foi confundida “com uma espécie de cérebro metafórico, o aparelho psíquico individual. O cérebro é um só, feito de neurônios, sinapses de correntes eletroquímicas; já a psique é produção viva de sentido.” (HERRMANN, 2001, p.161).
Para Herrmann (2001) o mundo em que vivemos participa de cada pensamento do indivíduo, ele determina como o sujeito está constituído. “O pensamento vem do mundo e ao mundo se dirige: o mundo pensa-se através de mim, e o modo de meu pensar é o modo de ser deste mundo em que vivo.” (HERMANN, 2001, p.156).
	E prossegue dizendo: 	 
 A psique que nos usa como lugar de sua ação, mas que nós temos a ilusão de dominar como a um instrumento, não é de nossa fabricação pessoal, cria-se no real, desenvolve suas propriedades historicamente e é infundida no indivíduo por seu tempo e sua cultura, moldando-o ao estilo presente de pensar. (HERRMANN, 2001, p.158).
	O autor também colocaque uma psicanálise do cotidiano precisa considerar o regime de pensamento do mundo “sob pena de fazer ciência abstrata e, pior, desarraigar o sujeito individual, eliminando o próprio objeto de estudo.” (HERRMANN, 2001, p.158).
Romera (2006) coloca: “a imediatez ganha espaço privilegiado e segue a nova ordem da temporalidade momentânea do “tudo deve ser para ontem”!” (ROMERA, 2006, p.11). Ou tudo deve ser para amanhã. As comidas fast, as dietas devem ser rápidas e eficazes, o sexo prazeroso e casual, as relações descompromissadas.
Atualmente, os pacientes que chegam para tratamento almejam soluções rápidas, indolores, que tragam alívio para suas angústias, mas que não exija grandes mudanças no modo como têm vivido. “Parece que a indagação, a reflexão e a dúvida perderam o espaço para a resolutividade imediatista a qualquer preço.” (ROMERA e TORRECILLAS, 1998, p.339).
Estes autores também discorrem sobre a solidão como uma condição psíquica do homem atual, onde os vínculos se escasseiam e impera-se a idéia do homem dono absoluto de si mesmo. Uma solidão que não lhe permite dobrar-se ou refletir sobre si mesmo e o mantém protegido de sua condição de fragilidade e precariedade.
O impasse se configura com pessoas com urgência de soluções imediatas, ao mesmo tempo, impossibilitadas de refletirem sobre si mesmas. Trazem consigo a ausência de uma substancialidade capaz de lhes conferirem o sentido da vida, alienados de sua condição identitária e desejante. 
Barone (1999) situa o mundo em que vivemos como caótico e fragmentado. Presenciamos os avanços tecnológicos nas várias áreas, concomitante à crise nos valores, nos relacionamentos, nas relações de trabalho. A autora considera:
 Não é a toa que se diz, hoje, em tom de brincadeira, que não se fazem histéricas como antigamente. Basta olharmos para nosso consultório para constatar que nossos pacientes são outros. As demandas são diferentes. O sofrimento também. Cada vez mais nos procuram pacientes com queixas psicossomáticas. Ou que expressam a fragmentação, a impossibilidade de organização identitária e da realidade minimamente confiáveis. A falta de sentido da vida. (BARONE, 1999, p.170)
Um sujeito expropriado de si mesmo, numa condição de existência caracterizada pelo enquistamento/fechamento psíquico. É neste mundo ou é este mundo que o corpo doído traz!
Mendes (2005), apoiada em autores como Ávila (2004) entre outros, fala sobre o perfil clínico dos pacientes que chegam aos consultórios dos analistas atualmente. Um perfil caracterizado por dores que se expressam no corpo, queixas psicossomáticas que podem ser notadas nas depressões, por exemplo. Sintomas que não encontram expressão verbal ou uma via que possa nomeá-los. 
Como será possível então, cuidar do sujeito em meio a essa fragmentação? Como será possível ouvir sua dor? 
II – Corpo: decifra-te ou te devoro!
Decifra-me ou te devoro!
(enigma da esfinge)
O corpo se evidencia e nos incita a tomá-lo em consideração. 
Birman (1998) coloca que houve “um esquecimento da presença do corpo na experiência do sujeito (...), se esqueceu de que a subjetividade sofrente tem um corpo e que é justamente neste que a dor literalmente se enraíza”. (Birman, 1998, p.21)
O autor afirma que a intervenção da Psicanálise sobre o corpo foi excluída e assim, o corpo foi colonizado pela Medicina e o psiquismo desencarnado. Um saber médico que concebe o corpo como um organismo de ordem estritamente biológica e que reflete no modo como as doenças no corpo são entendidas e tratadas pela Medicina. 
	A Psicanálise é convidada na medida em que a Medicina confronta-se com seus limites de um corpo que pode ser treinado, moldado, transformado através da farmacologia, da reeducação corporal, da manipulação física através de estímulos elétricos, entre outros, mas um corpo que mesmo recebendo todos esses cuidados, não cessa de sentir dor, de clamar por socorro de sentidos. Há de se considerar a palavra que perpassa esse corpo que dói sem, no entanto, prescindir de sua materialidade.
Corpos doídos que evidenciam ou denunciam algo do mundo em que vivemos? Um mundo que exige potência para produzir, consumir o que se produziu, e onde o corpo também é incluído nesse regime de produção e consumo, “o corpo entra no mercado como capacidade de consumir e ser consumido”. (VAZ, 1999, p.162)
Ao mesmo tempo, apresentam-se corpos doídos, impotentes, anoréxicos incapazes de se sustentar. Potência e impotência se imbricam como opostos que habitam o corpo. Aquilo que era para funcionar paralisa, dói, dês-funciona e não se ajusta aos “ditames” da funcionalidade a todo preço. Um corpo que, colocado numa condição de superpotente, falha, entra em falência e denuncia ou apresenta sua condição de falibilidade e, ao mesmo tempo, abre uma fenda narcísica numa sociedade intolerante às falhas. O corpo máquina falha.
Dentro dessa perspectiva podemos pensar numa doença chamada Fibromialgia, caracterizada por persistentes dores no corpo. Não há sinais ou lesões que justifiquem a sensação de dor e nenhum exame é capaz de detectar a doença. Os exames são feitos na tentativa de realizar um mapeamento anátomo-fisiológico da doença, mas que encontram registros, nada aparece nas imagens. Não há um lugar anatômico que referencie ou que aponte onde se encontra a dor.
Tal doença impele os profissionais da área de saúde, dentre eles, médicos, psicólogos e fisioterapeutas, a se questionarem sobre quem são e o quê fazer com esses pacientes que estão, freqüentemente, nos consultórios, prontos-socorros, centros de saúde, e não cessam de queixar-se de dor. Um sujeito, portador de um corpo que parece reconhecer como seu, a partir de terríveis dores e sofrimento. Um corpo em evidência que denuncia um sujeito em busca de sentidos que possam nomeá-lo. 
A Fibromialgia durante muito tempo, e ainda é para muitos médicos que a desconhece, motivo de descrédito para os pacientes, considerados como se “nada” tivessem. Os exames não detectam nada, não há lesões aparentes, o que há é um sofrimento “sem nome” expresso pela dor. Uma dor que se apresenta como recurso para expressar uma incompetência. O corpo anuncia-se pelo negativo, ou seja, através da doença ele encontra possibilidade de expressar-se.
Um corpo que fala da dor da perda. E o que está se perdendo? O que está sendo vivido como perda? A potência, a funcionalidade... Uma falência narcísica, um rombo onde os ideais e a fragilidade humana ficam expostos em um corpo que porta uma condição de perda, da perda de si mesmo.
Um sujeito que circulam em função da dor num movimento em busca de si mesmo. Caminham de clínica em clínica, profissionais e profissionais numa tentativa de esgotamento de todas as possibilidades de restituição daquilo que perderam.
Depois de passar por várias modalidades de tratamentos, os pacientes chegam ao psicólogo. Eles chegam meio que cansados e desesperançados por ainda não saberem que nome dar e o que fazer com suas persistentes dores. Procuram nos profissionais e na ciência, representativa de cada área, um nome e um saber que dêem conta de nomear sua dor. Um sujeito que sofre e está expropriado de si, deverá ser tomado em consideração para não sucumbir.
Uma clínica que nos convoca a interrogar a partir do corpo, numa escuta em que se possa ouvir, até ouvir o a-mais da dor. “Um psíquico que explode de maneira ruidosa no somático. O silenciado, não-expressivo por palavras e que vem do corpo.” (Birman, 2003, p.01).
Birman (2003) coloca "o corpo como um território ocupado do organismo, isto é, como um conjunto de marcas impressas sobre e no organismo pela inflexão promovida pelo Outro" (BIRMAN, 2003, p.62). Assim, o eu foi concebido como sendo corporal e como projeção de uma superfície.
Herrmann (2004) situa o homem contemporâneo vivendo os traumas em meio a uma “crise de insegurança sobre a continuidade de nossa espécie e cultura, talvez a relação do homem com sua forma corporal possa ser contada entre os mais notórios” (HERRMANN,2004, p.2). O autor coloca que a desconformidade com a forma do corpo sempre foi perpassado pelos ideais religiosos, estéticos, entre outros. No entanto, 
 É difícil reconhecer outro período histórico em que fosse tão problemática e tão declaradamente artificial a relação com o corpo próprio. O homem, hoje, está literalmente, posto diante de seu corpo, e não dentro dele ou num estado imanente e, condicionado à autocontemplação. (HERRMANN, 2004, p.3)
Dietas, exercícios físicos, cirurgias plásticas, medicamentos, complementos alimentares ingeridos em busca de um corpo perfeito e potente que consuma, produza beleza estética, bens de consumo, imagem... 
Vaz (1999) coloca:
 As tecnologias biomédicas pesquisam e propõem aos indivíduos que há mecanismos tecnológicos para se regrar a forma do corpo, reduzir a distância entre o que quer o pensamento e o que quer o corpo – moderadores de apetite, óleos sem colesterol ou caloria, drogas para se controlar a impotência sexual, a insônia, a angústia, a depressão, etc – e estender, para o indivíduo, a duração do pensamento na matéria (VAZ, 1999, p.161)
Diferentes manifestações psicopatológicas e modos de subjetivação estão surgindo atualmente. Abalam-se as configurações psicopatológicas comumente pensadas e isso nos incita a adotarmos uma postura indagativa-investigativa a fim de discutir/refletir sobre o modo de pensar no mundo do homem contemporâneo. Um mundo onde as referências institucionais como família, Estado, igreja, etc, também sofreram seu abalo.
 Diante das novas formas de estruturação psíquica que hoje presenciamos, Herrmann (2004) coloca que hoje é forçoso pensar na psicopatologia como “expressão pontual dessa mesma sociedade, como sintoma de campos culturais inconscientes.” (HERRMANN, 2004, p.4). Mais do que valorizar somente a psicogênese infantil, faz-se necessário, de acordo com o autor, levar a sério as relações dialéticas que vinculam os três eixos tradicionais: constituição, cultura e relação infantil. 
III - O mundo que não é mais vasto e parece ter solução já que não tem rima
“Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria solução”
(Carlos Drummond de Andrade)
Mendes (2005) tomando em consideração o contexto do mundo contemporâneo se refere à perda do lugar da palavra falada que antes assumia um lugar de destaque. O contato nas relações interpessoais era mais intenso, o investimento de tempo era maior, bem como, a possibilidade da conversa e conseqüente reflexão sobre os acontecimentos da vida.
Na rotina da vida contemporânea, caracterizada pela virtualidade e imagem, o homem perdeu a capacidade de narrar. A palavra narrada parece ter perdido sua função expressiva e reflexiva da subjetividade e substancialidade do sujeito. De ser de linguagem, o homem contemporâneo passou a ser máquina. 
A vida assume um funcionamento maquinal, como diz Herrmann (2001), ou seja, a ação vislumbra outra ação que provoca outra e assim sucessivamente. Um encadeamento de ações impossibilitadas de serem pensadas fora dessa lógica da pura ação, do puro fazer. Impossibilitado do diálogo, a distância entre o pensamento e a ação diminui tornando-se essa a única via possível de expressão. Reconheço-me por aquilo que faço e pelo que os outros percebem de minhas ações. 
 Herrmann (2003) formulou a idéia de ato puro:
 Atos que não se cumprem em vista de um objetivo racional, meditado e debatido de antemão, que não se alia a outros atos socialmente deliberados, mas cuja realização apenas cumpre o mandato de produzir efeitos e mais meios, para maiores efeitos. (HERRMANN, 2003, p.3). 
Permanece desprovido do pensamento criativo que dê sentido a sua existência.
Diante dos vários estímulos vivenciados pelo homem contemporâneo, como os já citados acima, Mendes (2005) coloca que a “narrativa foi substituída pela ação.” (MENDES, 2005, p.47). 
Birman (2003) faz referência à crescente procura pelas terapias corporais, tratamentos farmacológicos e o consumo progressivo da literatura de auto-ajuda. Tais possibilidades fascinam as pessoas, pois são terapêuticas que se propõem rápidas e com custos menores. As conseqüências disso podem ser percebidas sobre os analisandos: “o discurso vazio, as depressões severas, o freqüente recurso aos psicotrópicos e até a busca por tratamentos corporais” (BIRMAN, 2003, p.57).
E o corpo virou massa a ser modelada para uma vida que passou a ser “ensaio fotográfico”. 
IV – Algumas considerações
	
	E o corpo passou a ser massa de modelagem em sujeitos modelados pela lógica de consumo, onde há um imperativo por apropriar de bens, de beleza, de relações descompromissadas. Ao mesmo tempo, um sujeito que parece expropriado de si mesmo, em busca de restituir o que perdeu: a si mesmo, seu corpo, sua capacidade narrativa. De narrar sua história
Desde sua fundação com Freud, a Psicanálise parece andar na contramão do ideário sócio-científico. Busca a verdade do sujeito e isso não implica necessariamente descobrir algo em consonância com seu Eu. Atenta-se para a lógica do Inconsciente e através do método psicanalítico caminha em direção a rupturas e isso não obedece a lógica da rotina compartilhada. Toma em consideração o corpo perpassado pelo campo representacional e a lógica que o conduz.
Os avanços tecnológicos trouxeram confortos e soluções antes impensáveis, no entanto, não foram capazes de livrar o homem de sua condição de desamparo. Ilusoriamente, prometeram a fórmula da felicidade com o Prozac e cia, mas não puderam suprir a falta de sentido da vida. Podemos pensar que é na falta de sentido da vida ou no sentido esvaziado da linguagem por imagens, que a Psicanálise vem tentar provocar rupturas.
Referências
ANDRADE, C.D. (1930). Poema de sete faces. In: ANDRADE, C.D. (1930). Alguma poesia. Belo Horizonte: Edições Pindorama.
BARONE, L M.C. (1999). O homem sofre e a realidade está doente. E o que a Psicanálise tem com isso? Jornal de Psicanálise, São Paulo, 32 (58/59), nov., pp.163-176.
BIRMAN, J. (2003). Mal-estar na atualidade. 4a ed. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, p.53-72.
BIRMAN, J. (2003). Corpos e formas de subjetivação em Psicanálise. Estados Gerais da Psicanálise. Segundo Encontro Mundial, Rio de Janeiro.
GARCIA-ROZA, L.A. (2000). Introdução a Metapsicologia freudiana. 5ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
HERRMANN, F. (2001). O mundo em que vivemos. In: HERRMANN, F. Andaimes do Real: Psicanálise do quotidiano. 3a ed. São Paulo: Casa do Psicólogo.
HERRMANN, F. (2003). Psicanálise Política no mundo em que vivemos. Revista Trieb da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, vol II, no 2, p.235-263.
HERMANN, F. (2004). Apesar dos pesares – uma breve contribuição ao estudo da obesidade. Trabalho apresentado na II Jornada Psicanalítica sobre Transtornos Alimentares, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, São Paulo/SP.
LEMINSKI, P. (1996). Melhores poemas de Paulo Leminski. (seleção Fréd Góes) São Paulo: Global.
MAIA, M.S. (2001). A questão do sentido da clínica psicanalítica. In: B. Bezerra. Jr e C. A. Plastino (org). Corpo, afeto, linguagem: a questão do sentido hoje. (pp.263-284). Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos.
MENDES. E.D. (2005). Os significantes da escuta psicanalítica na clínica contemporânea. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia.
ROMERA, M.L.C e TORRECILLAS, F.G. (1998). Bloco da solidão: a angústia no desamparo. Alter- Jornal de Estudos Psicodinâmicos, vol XIX, n.2.
ROMERA, M.L.C. (2006). Corpo marcado em relações des-marcadas: a clínica psicanalítica na atualidade. Trabalho apresentado em Reunião Científica na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, São Paulo/SP.
VAZ, P. (1999). Corpo e risco. Fórum Media, Viseu, v.1, n.1.
� Psicóloga, Especialista em Clínica Psicanalítica, Aluna do Programa de Pós-graduação em Psicologia Aplicada-Mestrado do Instituto de Psicologia da UniversidadeFederal de Uberlândia
� Psicóloga, Psicanalista, Membro Associado da SBPSP, Membro do Centro de Estudos da Teoria dos Campos-CETEC, Professora Associado do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Aplicada da Universidade Federal de Uberlândia, Doutora em Psicologia Escolar pelo Instituto de Psicologia da USP e Pós-Doutorado pelo Centro de Estudos da Teoria dos Campos-CETEC PUC-SP. 
� Psicólogo, Professor Associado do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Aplicada da Universidade Federal de Uberlândia. Doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP e Pós-Doutorado pelo Instituto de Filosofia da Universidade de Leipzig (Alemanha).

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