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A FORÇA NORMATIVA DA CONSTITUIÇÃO: OS SENTIDOS E ESPÉCIES DE CONSTITUIÇÃO; PODER CONSTITUINTE NO SURGIMENTO E NA MODIFICAÇÃO DAS ORDENS CONSTITUCIONAIS Revista de Direito Constitucional e Internacional | vol. 72 | p. 335 | Jul / 2010DTR\2010\409 Arthur Zeger Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Juiz do Tribunal Paulista de Justiça Desportiva do Judô e Procurador do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Handebol. Advogado. Área do Direito: Constitucional Resumo: Neste artigo buscamos, com simplicidade mas sem perder a qualidade dos conceitos, abordar o sentido da existência de uma constituição e verificar não só o reconhecimento desta carta política mas também, suas características de acordo com os avanços doutrinários em matéria constitucional. Os sentidos e espécies de constituição são vistos sob os prismas sociológico, político e jurídicos exatamente contemplando os ideais dos patronos de cada uma dessas correntes, respectivamente: Ferdinand Lassale, Carl Shmitt e Hans Kelsen. Também neste artigo é verificada a teoria do poder constituinte desenvolvida por Emmanuel Joseph Siéyes e, por fim, o tema do neoconstitucionalismo e o surgimento das cortes superiores de justiça a partir da crítica feita por Konrad Hesse à teoria constitucional sociológica elaborada por Lassale. Palavras-chave: Força normativa da Constituição - Poder constituinte - neoconstitucionalismo - Pós-positivismo - Ferdinand Lassale - Konrad Hesse Abstract: In this article, we address with simplicity in mind but without compromising the quality of the concepts, the meaning of the existence of a Constitution in an attempt to verify not only its recognition but also its characteristics according to the doctrinal advancements of constitutional matters. The meanings and types of Constitutions are examined from the sociological, political and juridical perspectives exactly by considering the ideals of the supporters of each of such current of thought, respectively, Ferdinand Lassale, Carl Shmitt, and Hans Kelsen. We also examine in this article Emmanuel Joseph Sieyès's theory of the 'constituting power' and, finally, the subject of neo-constitutionalism and the advent of the superior courts of justice derived from Konrad Hesse's criticism of the sociological constitutional theory developed by Lassale. Keywords: Normative force of the Constitution - Constituent Power - neoconstitucionalism - Post-positivism - Ferdinand Lassale - Konrad Hesse Sumário: 1.Introdução - 2.Constituição: sentidos e espécies - 3.Poder constituinte - 4.Força normativa da constituição - 5.Referências Bibliográficas 1. Introdução Muitas Constituições 1 regeram o Brasil: uma após sua independência (1824), outra com o fim do governo imperial (1981), duas durante o período Vargas (1934 e 1937), uma com o retorno à normalidade da democracia (1946), duas no período militar (1967 e sua alteração por meio da Emenda n. 1, de 1969) e a atual, promulgada em 05.10.1988, caracterizada por representar o período pós-ditadura militar. Fruto da evolução constitucional brasileira, a carta política de 1988 é carregada de conteúdo principiológico. 2 Antigamente os princípios orientavam a interpretação das leis (por recomendações ético-morais). A partir do Século XX, desde que previstos no ordenamento jurídico, os princípios passaram a ser vistos como norma e após a Segunda Guerra como critério de verificação de constitucionalidade. A Constituição é a norma das normas. Mas o que são normas? Norma jurídica é uma previsão abstrata, comum (impessoal), imperativa ou coercitiva (sob pena de uma imposição estatal). Ronald Dworkin 3 e Robert Alexy 4 distinguem duas modalidades de normas jurídicas: princípios e regras. As A força normativa da Constituição: os sentidos e espécies de Constituição; poder constituinte no surgimento e na modificação das ordens constitucionais Página 1 regras seriam o preceito normativo fechado reduzido a um texto (denso, concreto e objetivo) e os princípios seriam um preceito normativo aberto (vago, abstrato, de baixa densidade e ampla subjetividade). Para Daniel Sarmiento, o direito brasileiro vem sofrendo profundas mudanças decorrentes de novos paradigmas doutrinários e jurisprudenciais. Essa tendência, chamada de neoconstitucionalismo, 5 se desenvolve sobre a Constituição de 1988 e é marcada: (i) pela valorização da aplicação de princípios; (ii) preferência da argumentação ao formalismo; (iii) repercussão dos valores constitucionais (sobretudo dos direitos fundamentais) sobre todos os demais ramos; (iv) reaproximação do direito e moral - filosofia; e (v) judicialização da política e das relações sociais (deslocando forças do Executivo e Legislativo ao Judiciário). 6 2. Constituição: sentidos e espécies O que é uma Constituição? Existem diversas respostas para essa pergunta, segundo as diversas correntes (sociológica, política e jurídica). Segundo a visão sociológica de Ferdinand Lassale: Se fizesse esta indagação a um jurisconsulto, receberia mais ou menos esta resposta: "Constituição é um pacto juramentado entre o rei e o povo, estabelecendo os princípios alicerçais da legislação e do governo dentro de um país". Ou generalizando, pois existe também a Constituição nos países de governo republicano: "A Constituição é a lei fundamental proclamada pelo país, na qual baseia-se a organização do Direito público dessa nação". Todas essas respostas jurídicas, porém, ou outras parecidas que se possam dar, distanciam-se muito de explicar cabalmente a pergunta que fiz. Estas, sejam as que forem, limitam-se a descrever exteriormente como se formam as Constituições e o que fazem, mas não explicam o que é uma Constituição. Dão-nos critérios, notas explicativas para conhecer juridicamente uma Constituição; porém não esclarecem onde está o conceito de toda Constituição, isto é: a essência constitucional. Não servem, pois, para orientar-nos sobre se uma determinada Constituição é, e porque, boa ou má, factível ou irrealizável, duradoura ou insustentável, pois para isso seria necessário que explicassem o conceito da Constituição. Primeiramente torna-se necessário sabermos qual é a verdadeira essência duma Constituição, e, depois, poderemos, saber se a Carta Constitucional determinada e concreta que estamos examinando se acomoda ou não às exigências substanciais. Para isso, porém, de nada servirão as definições jurídicas, que podem ser aplicadas a todos os papéis assinados por uma nação ou por esta e o seu rei, proclamando-as Constituições, seja qual for o seu conteúdo, sem penetrarmos na sua essência. O conceito da Constituição - como demonstrarei logo - é a fonte primitiva da qual nascem a arte e a sabedoria constitucionais. Repito, pois, minha pergunta: Que é uma Constituição? Onde encontrar a verdadeira essência, o verdadeiro conceito de uma Constituição? 7 A Constituição é a pedra fundamental de um Estado. Em outras palavras, conteúdo fundamental (possível de ser condensado por escrito), 8 cujo objetivo maior é estabelecer as regras, premissas e princípios de uma entidade política autônoma. A Constituição é um fenômeno da modernidade ou existe desde a antiguidade? Na antiguidade (Egito, Mesopotâmia etc.), não havia Constituição e sim leis reconhecidas por todos fundadas nos costumes e em jurisprudência, dotadas de forte caráter teológico; já as Constituições (fenômeno da modernidade) decorrem da vontade dos homens em detrimento da fundamentação divina verificada na antiguidade. A definição comum de Constituição remete a um conjunto unitário de normas jurídicas que, no sistema normativo geral do ordenamento ocupa o lugar da mais alta hierarquia. Tendo se consubstanciado no Estado moderno, é conceito jurídico inseparável da idéia de Estado e pode ser compreendido em sentido amplo 910 e estrito. 11 Diversas são as acepções sobre o significado das Constituições (sociológica, políticae jurídica). No sentido sociológico, cujo patrono é Ferdinand Lassale, a Constituição é um fato social (e não uma norma). Lassale defende que coexiste no Estado duas Constituições: uma real e outra escrita. A real seria efetiva e corresponderia à soma dos fatores reais de poder. Já a escrita ("folha de papel"), somente teria validade se refletisse os ideais da Constituição real, pois em eventual conflito entre a real e a escrita, a "folha de papel" sucumbiria à Constituição real, em razão dos fatores reais de A força normativa da Constituição: os sentidos e espécies de Constituição; poder constituinte no surgimento e na modificação das ordens constitucionais Página 2 poder (grupos dominantes, ou elite dirigente). A concepção política de Constituição tem como principal teórico Carl Schmitt. Para este jurista alemão, o aspecto político antecede o jurídico, pois a Constituição resulta de uma decisão política fundamental sobre a forma de ser do Estado. Logo, para Schmitt, a decisão política é a essência da Constituição. Em sentido político, Constituição é um documento formal e solene, um conjunto de normas jurídicas, que dispõem sobre a organização fundamental do Estado e orientam seu funcionamento, além de estabelecer garantias aos direitos individuais e coletivos. 12 Para Schmitt a Constituição é uma decisão política fundamental que possui quatro sentidos: absoluto (segundo o qual a Constituição é o próprio Estado, ou seja, a concreta situação de conjunto da unidade política e da ordem social), relativo (segundo o qual a Constituição representa a pluralidade de leis particulares), positivo (segundo o qual a Constituição é considerada decisão política fundamental) e ideal (segundo o qual a Constituição identifica-se com certo conteúdo político e social, só existindo Constituição quando o documento escrito corresponder ao ideal da organização política). Do ponto de vista jurídico, "Hans Kelsen é o representante deste sentido conceitual, alocando a constituição no mundo do dever ser e não no mundo do ser, caracterizando-a como fruto da vontade racional do homem e não das leis naturais". 13 Para Kelsen, a Constituição é um documento jurídico sem qualquer influência filosófica, política e sociológica. José Afonso da Silva, interpretando a concepção jurídica Kelseniana, comenta que, segundo essa perspectiva, "constituição é, então, considerada norma pura, puro dever-ser, sem qualquer pretensão a fundamentação sociológica, política ou filosófica. Kelsen interpretou a constituição em dois sentidos: lógico-jurídico e jurídico-positivo. De acordo com o primeiro, constituição significa norma fundamental hipotética, cuja função é servir de fundamento lógico transcendental da validade da constituição jurídico-positiva, que equivale à norma positiva suprema, conjunto de normas que regula a criação de outras normas, lei nacional no seu mais alto grau". 14 A interpretação lógico-jurídica considera a Constituição a norma hipotética fundamental, que serve de base para a existência e validade da Constituição jurídico-positiva. Do ponto de vista jurídico-positivo, a Constituição é a norma positiva suprema, o conjunto de normas que regulam as normas jurídicas gerais (Constituição no sentido material), e também como documento solene que abarca normas jurídicas alteradas somente por métodos diferenciados (Constituição em sentido formal). As Constituições podem ser classificadas: (1) em razão de seu conteúdo (materiais ou formais); (2) quanto à sua forma (escritas e não escritas); (3) quanto ao modo de elaboração (dogmáticas e históricas); (4) quanto à sua origem (promulgadas, outorgadas, czarista e pactuada); (5) quanto à sua estabilidade (rígidas, flexíveis, semi-rígidas e imutáveis); e (6) quanto à sua extensão (analítica e sintética). Para José Afonso da Silva, tratando-se do primeiro critério classificatório (quanto ao conteúdo), existem duas concepções de Constituição: formal e material. A constituição material é concebida em sentido amplo e em sentido estrito. No primeiro, identifica-se com a organização total do Estado, com regime político. No segundo, designa as normas constitucionais escritas ou costumeiras, inseridas ou não num documento escrito, que regulam a estrutura do Estado, a organização de seus órgãos e os direitos fundamentais. Neste caso, constituição só se refere à matéria essencialmente constitucional; as demais, mesmo que integrem uma constituição escrita, não seriam constitucionais. A constituição formal é o peculiar modo de existir do Estado, reduzido, sob forma escrita, a um documento solenemente estabelecido pelo poder constituinte e somente modificáveis por processos e formalidades especiais nela própria estabelecidos .15 Quanto à forma não existem maiores discussões: será escrita ou consuetudinária. A forma consuetudinária (de origem costumeira) não dispensa a existência de um texto constitucional escrito: significa que não há um texto condensando todas as leis, usos, costumes e jurisprudência em um documento único, a exemplo da Constituição inglesa. 16 A doutrina esclarece, que "hoje, contudo, A força normativa da Constituição: os sentidos e espécies de Constituição; poder constituinte no surgimento e na modificação das ordens constitucionais Página 3 mesmo a Inglaterra (exemplo normalmente lembrado de país regido por uma constituição não escrita) assenta princípios constitucionais em textos escritos, em que pesem os costumes formarem relevantes valores constitucionais". 17 Quanto ao modo de elaboração será dogmática quando derivar de um órgão constituinte, obedecer a lei e respeitar os princípios fundamentais do Estado. A Constituição dogmática será sempre escrita. Em contrapartida, a elaboração histórica remete ao processo lento e contínuo de uma evolução continuada do texto constitucional, remetendo ao modelo consuetudinário, quando uma vez mais será exemplo a Constituição inglesa. Quanto à origem podem ser as Constituições outorgadas, promulgadas, czaristas ou pactuadas. 18 Serão outorgadas 19 quando impostas. O sentido de imposição aqui referido é aquele unilateral, de cima para baixo, por governante ou grupo de poder político que não tenha sido eleito pelo povo para, em nome dele, ditar a lei. Isto é, não recebeu do povo a legitimidade para legislar. Nem sempre pelo fato de serem outorgadas não são democráticas: o povo pode se identificar com seu conteúdo, apesar de não ter legitimado o constituinte para legislar a Constituição. Diz-se que constituições promulgadas têm origem democrática, pois o povo elege uma constituinte a quem caberá o papel fundamental de elaborar um novo texto constitucional segundo os ideais do eleitorado. Mas não se pode confundir a origem democrática com uma Constituição democrática. Será democrática na origem, a Constituição que resultar de uma Constituinte escolhida pelo povo, ainda que seu resultado não seja um texto democrático (aceito pela maioria do povo), ao passo que uma Constituição outorgada, se resultar em texto com identidade da maioria do povo, poderá, apesar de sua origem imposta, ser considerada "democrática". A origem czarista denota situação na qual não houve a outorga nem promulgação, ainda que exista participação popular: este modelo pressupõe um plebiscito sobre o projeto de Constituição elaborado por um absolutista que pode ser, por exemplo, um imperador (i.e. plebiscitos napoleônicos) ou o ditador (i.e. plebiscito de Pinochet). Nesta hipótese (czarista), a participação popular não confere ao processo caráter democrático, pois objetiva apenas ratificar a vontade daquele que concentra o poder. A doutrina empresta à classificação quanto à estabilidade (adotada por José Afonso da Silva e Alexandre de Moraes), outras denominações: Leda Pereira Mota e Celso Spitzcovsky preferem alterabilidade. Michel Temer, Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior utilizam estabilidade e Pinto Ferreira consistência.Independente da forma como a doutrina classifica o caráter mais fácil ou menos fácil de alterar a constituição, temos dentro dessa classificação os padrões rígido (ou plástico), flexível, semi-rígido (ou semi-flexível) e imutável. As Constituições rígidas 20 exigem, para sua alteração, índices de aprovação mais elevados que os necessários para aprovação ou modificação de leis infraconstitucionais (quando a dificuldade for igual, a Constituição será "flexível"), enrijecendo a letra da Constituição. À exceção da Constituição de 1824 (semi-rígida), 21 todas as demais foram rígidas, inclusive a de 1988. 22 Imutáveis as Constituições que não admitem qualquer forma de alteração. 23 Quanto à extensão são analíticas (dirigentes) ou sintéticas. As primeiras são mais extensas e buscam examinar e regulamentar todos os assuntos considerados relevantes para a formação e funcionamento do Estado. As sintéticas prevêem apenas princípios e normas gerais de regência (i.e. Constituição norte-americana). Que organizam e limitam o poder com base nos direitos e garantias fundamentais. Por fim, importante trazer à tona a classificação ontológica proposta por Karl Loewenstein, filósofo e cientista político alemão. Essa classificação baseia-se no fundo fático, real, pela qual o foco de relevância migra do texto constitucional para a sua utilização prática. Assim, temos como classificação: Constituição normativa, nominal e semântica. A Constituição normativa pressupõe que todos a cumpram fielmente e que esteja integrada na sociedade. Na Constituição nominal, o caráter normativo não deve ser considerado verdade absoluta (deve ser confirmado na prática). Assim, se o processo político não se adaptar à Constituição, esta A força normativa da Constituição: os sentidos e espécies de Constituição; poder constituinte no surgimento e na modificação das ordens constitucionais Página 4 não terá cunho normativo. A função da Constituição nominal, portanto, é educativo (visa converter-se em Constituição normativa). A Constituição semântica, por sua vez, tão somente reflete a vontade exclusiva dos titulares do poder. Para Gisela Maria Bester, mestre e doutora em Direito Público pela UFSC: "se fizermos uma reflexão destas classificações sobre a história constitucional brasileira, podemos dizer que em várias Constituições anteriores tivemos a predominância do qualificativo semântica, e que em relação à atual lutamos ainda para que muitos dos seus dispositivos deixem de ser apenas nominais". 24 3. Poder constituinte Poder constituinte é o poder de elaborar uma nova Constituição (estabelecer uma nova ordem jurídica fundamental para o Estado) ou de reformar a constituição vigente (simplesmente alterar o texto, adaptando-o e refletindo as necessidades dos cidadãos que compõem o Estado naquele momento). Goffredo Telles Júnior define poder constituinte como "o Poder do Povo de decidir sobre a constituição fundamental do Estado. É o Poder de elaborar e promulgar a Constituição - a Carta Magna ( LGL 1988\3 ) do País". 25 Já em Atenas existia a ideia de poder constituinte: "Aristóteles, em um trabalho intitulado Athenaton Politéia, estudava a estruturação de poder e a forma de utilização do seu exercício no governo da cidade grega de Atenas. Neste trabalho, nota-se uma diferenciação entre as leis referentes à delineação do poder-politéia e as demais criadas pelo governo, forma rudimentar de separar as leis constitucionais das leis ordinárias". 26 O titular do poder constituinte é o povo, muito embora este poder seja exercido diretamente por seus representantes, apesar de situações como golpes de Estado e revoluções sangrentas necessitarem do exercício do poder constituinte para oficializar seus regimes de exceção. Existem duas maneiras de se alterar o conteúdo da Constituição: do ponto de vista formal, ou seja, por meio do poder constituinte originário e derivado (inclui emendas e revisão constitucional), e do ponto de vista informal, caracterizado pela mutação constitucional. 27 Uadi Lammêgo Bulos traz os doutrinadores que classificaram a mutação constitucional em quatro categorias: "Hsü Dau-Lin, seguido por Pablo Lucas Verdú e por Manuel García Pelayo, esboçou quatro categorias: 1.ª mutação constitucional através de prática que não vulnera a Constituição; 2.ª mutação constitucional por impossibilidade do exercício de determinada atribuição constitucional; 3.ª mutação constitucional em decorrência de prática que viola preceitos da Carta Maior; 4.ª mutação constitucional através da interpretação" .28 3.1 Poder constituinte originário e o surgimento da constituição A doutrina de Goffredo Telles Júnior evidencia dois momentos nos quais é notada a elaboração e a promulgação do texto constitucional: "a elaboração e promulgação da Constituição se verifica em dois momentos, a saber: 1) no caso de abolição do absolutismo, e conseqüente instalação do Estado de Direito; e 2) no caso de rompimento com as estruturas constitucionais de um estado de direito vigente, e conseqüente criação de novas estruturas constitucionais". 29 Manoel Gonçalves Ferreira Filho entende que "o poder constituinte é aquele que institui todos os outros". 30 A Constituição certamente deve refletir o desejo do povo. Neste sentido, Thomas Jefferson defendia que a cada dezenove anos deveria ser realizada uma nova constituinte. O que pretendia, com isso, era compatibilizar a Constituição ao povo a cada troca de geração, garantindo que o povo não ficasse vinculado à vontade de gerações passadas. Emmanuel Joseph Siéyes foi o precursor da teoria de que o poder constituinte deveria ser separado do conceito de Constituição. O resultado de uma assembleia representativa deverá ser o mesmo caso a própria população pudesse se reunir e deliberar em um mesmo lugar. Para Siéyes, três momentos caracterizam a formação das sociedades políticas: "No primeiro momento, um número considerável de indivíduos manifesta intenção de agrupar-se: aí já surge a nação e os direitos próprios dela. O poder tem origem nesse momento, em razão do jogo de A força normativa da Constituição: os sentidos e espécies de Constituição; poder constituinte no surgimento e na modificação das ordens constitucionais Página 5 vontades individuais. No segundo momento, surge a vontade comum, que é a de dar consistência à associação. Para isso, tais indivíduos escolhem entre eles alguns para atuarem como um corpo de delegados, porquanto, por serem numerosos e geograficamente dispersos, não detêm condições de implementar a vontade comum. A esse corpo de delegados é conferida porção necessária do poder total da nação para que estabeleçam mecanismos necessários à manutenção da boa ordem. O terceiro momento é caracterizado pela manifestação da vontade comum representativa, a qual não é exercida, portanto, por direito próprio, mas como direito de outrem" .31 É no segundo momento desse processo que nasce a Constituição, obra do poder constituinte originário, cuja principal função é positivar a vontade comum da nação. Portanto, por meio do poder constituinte originário é que ocorre efetivamente a elaboração de uma nova Constituição em substituição à anterior. 32 São características do poder constituinte originário: ser inicial, ilimitado e incondicionado. Inicial, pois cria uma nova ordem constitucional: detém o atributo de iniciar a nova base jurídica que servirá de parâmetro fundamental para todas as espécies normativas subordinadas, também denominadas infraconstitucionais. Ilimitado, pois não está subordinado a nenhuma ordem jurídica preexistente (logicamente, se está sendo posta uma nova Constituição para refletir a vontade do povo, não há que ser respeitado qualquer limite anteriormente posto). 33 Incondicionado, pois qualquer formalidade determinada pela "antiga" Constituição não condiciona o exercício do poder constituinte originário, que se auto-regulamenta. Seria o poder constituinteoriginário absoluto? Para os positivistas o poder constituinte é ilimitado, pois antes dele inexiste direito. Para os jusnaturalistas, o limite estaria no direito natural. Ponderando as posições positivistas e jusnaturalistas, Paul Bastid 34 sugere limites de fato e de direito ao poder constituinte, onde os limites de fato estariam ligados à inaplicabilidade da Constituição toda vez que conflitar com os interesses da comunidade e não for por ela (comunidade) reconhecida. Já os limites de direito seriam de ordem internacional (posição minoritária), uma vez que o Direito Internacional não é superior ao direito interno, nem subordina o poder constituinte às suas normas (ainda que se verifique uma tendência mundial das constituições incorporarem aos seus textos os princípios e mandamentos da Declaração Universal dos Direitos Humanos). O poder constituinte originário teria, na doutrina de José Horácio Meirelles Teixeira, três etapas: A primeira seria o período de construção ou de fundação do Estado e é exteriorizada quando a nação, tomando consciência de sua vontade política, transforma-se em Estado (exemplo: processo de independência de colônias e os tratados internacionais que sucederam a primeira Guerra Mundial pelos quais a geopolítica dos Estados Europeus foi alterada). A segundo etapa seria o período pré-constituinte: o governo é provisório e inexiste Constituição. O governo provisório promove eleições livres para que se forme uma assembléia constituinte. Por fim, a terceira e última etapa seria o período constituinte: eleita a assembléia constituinte, dotada de liberdade e soberania deverá elaborar a Constituição. 3.2 Poder constituinte derivado e a alteração da Constituição Toda Constituição individualiza um Estado pela imposição de seus elementos e características. Uma vez elaborada a Constituição, esta não pode se revestir de imutabilidade, pois a Constituição é reflexo da vontade comum de certo grupo social e tal vontade está em constante progresso, de forma que a Constituição igualmente pode precisar ser, de tempos em tempos, ajustada para estar sempre adequada à realidade. Os critérios e limites para alterar o texto constitucional devem estar previstos na própria Constituição, pois, caso contrário, não seria possível compatibilizar o texto constitucional com as novas concepções da sociedade e então toda vez que a Constituição necessitasse ser alterada haveria automaticamente uma ruptura constitucional e uma nova Constituição obrigatoriamente teria de ser editada. Portanto, como o poder constituinte originário pretende que sua criação constitucional se perpetue no tempo, ele mesmo contempla formas de alterar o texto original (por meio de revisão e emendas) para que ele sempre reflita fielmente o anseio do povo sem que uma nova Constituição precise ser A força normativa da Constituição: os sentidos e espécies de Constituição; poder constituinte no surgimento e na modificação das ordens constitucionais Página 6 elaborada. O poder constituinte derivado recebe esta denominação pois deriva do poder constituinte originário. É subordinado, pois, curva-se aos limites materiais impostos pelo poder constituinte originário 35 e é condicionado, pois sujeito a limites formais cujas regras foram estabelecidas pelo poder constituinte originário. O poder constituinte derivado pode ser decorrente ou reformador. O poder constituinte derivado decorrente é aquele segundo o qual os Estados membros têm autonomia para se auto-organizarem, respeitada a Constituição Federal ( LGL 1988\3 ) . Assim como no Brasil, os Estados Unidos da América também confere aos seus estados membros a liberdade de, por meio de Constituições Estaduais, se auto-organizarem. Quanto ao reformador, duas são suas formas de manifestação: revisão (realizada cinco anos após a promulgação da Constituição de 1988) e emendas (que não encontram qualquer limitação temporal). Via de regra, a reforma constitucional pode ocorrer a qualquer tempo. 36 Paulo Bonavides explica que a razão da limitação temporal de modificação de uma Constituição recém produzida "é proporcionar a consolidação da ordem jurídica e política recém estabelecida, cujas instituições, ainda expostas à contestação, carecem de raiz na tradição ou de base no assentimento dos governados". 37 4. Força normativa da constituição Uma das grandes mudanças de paradigma ocorridas ao longo do século XX foi atribuir à norma constitucional o status de norma jurídica. Luís Roberto Barroso explica que "superou-se, assim, o modelo que vigorou na Europa até meados do século passado, no qual a Constituição era apenas um documento político que legitimava a atuação dos poderes públicos. A concretização de suas propostas ficava invariavelmente condicionada à liberdade de conformação do legislador ou à discricionariedade do administrador. Ao judiciário não se reconhecia qualquer papel relevante na realização do conteúdo da Constituição". 38 Conforme já falamos, a Constituição pode ser vista como um fenômeno sociológico (Lassale), Político (Schmitt) ou Jurídico (Kelsen). Lassale definiu Constituição como "folha de papel". Não reconhecia nem sua força nem sua capacidade normativa. Estando o poder concentrado nos detentores dos fatores reais de produção, a lei somente seria (estaria sendo) seguida se for semelhante a seus atos, pois, caso contrário, estaria em desacordo com a realidade vigente e, portanto, não passaria de uma simples folha de papel (note-se que sequer as forças armadas eram vinculadas pela Constituição). O pensamento de Lassale foi certamente influenciado pelo momento histórico que vivenciou na Alemanha: naquela época, a Alemanha era dominada pelos donos dos meios de produção cujos interesses eram preservados em detrimento da grande maioria de trabalhadores. A perspectiva de Lassale é partilhada de forma semelhante por Marx, que, ao observar os Estados europeus de seu período, afirma que seu papel seria defender os detentores dos meios de produção. Após a segunda guerra mundial, o movimento a favor da constitucionalização resultou no reconhecimento da força normativa de suas disposições. Isso quer dizer que as normas constitucionais, assim como todas as demais, são dotadas de imperatividade e, portanto, devem ser cumpridas sob pena de deflagrar mecanismos de coação ou cumprimento forçado da Lei Maior. Konrad Hesse, em crítica à teoria sociológica, afirma que o embate entre a Constituição e os fatores reais de poder não penderão sempre em favor do poder desde que presentes os pressupostos responsáveis pela força normativa da Constituição. Tais pressupostos seriam a origem popular ou comunitária do texto constitucional como expressão clara do pacto social, o que conferiria legitimidade às disposições constitucionais. Por ter vivenciado a derrotada Alemanha pós-segunda guerra mundial, Hesse reconheceu a necessidade de o povo alemão ter acomodada a situação de seus problemas sociais e, neste A força normativa da Constituição: os sentidos e espécies de Constituição; poder constituinte no surgimento e na modificação das ordens constitucionais Página 7 contexto, o ativismo da população legitimou a Constituição representativa dos ideais do povo. A mudança de paradigma pós-guerra foi, então, primeiro notada na Alemanha, e mais tarde na Itália; tempos depois em Portugal e na Espanha. Tanto a força normativa da constituição passou a ser reconhecida, que as nações passam a gozar de uma Corte Superior responsável pela guarda e proteção das disposições constitucionais. Eros Grau e Gilmar Mendes, em votos proferidos recentemente, assim manifestaram-se: "A Constituição é, contudo, uma totalidade. Não um conjunto de enunciados que se possa ler palavra por palavra, em experiência de leitura bem comportada ou esteticamente ordenada. Dela são extraídos, pelo interprete, sentidos normativos, outras coisas que não somente textos. A força normativa da Constituiçãoé desprendida da totalidade, totalidade normativa, que a Constituição é. A serviço dessa totalidade que aqui estamos, neste tribunal. 39 "Na realidade, a restrição do alcance da norma constitucional expressa defendida pela Fazenda Nacional fragiliza a própria força normativa e concretizadora da Constituição, que claramente pretendeu a disciplina homogênea e estável da prescrição, da decadência, da obrigação e do crédito tributário. "A propósito, Konrad Hesse afirmou: '(...) Um ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição depende não apenas do seu conteúdo, mas também da sua práxis. De todos os partícipes da vida constitucional, exige-se partilhar aquela concepção anteriormente por mim denominada vontade de Constituição (Wille Zur Merfassung). Ela é fundamental, considerada global ou singularmente' ." 40 Para o Min. Luiz Fux, do STJ: "A exegese Pós-Positivista, imposta pelo atual estágio da ciência jurídica, impõe na análise da legislação infraconstitucional o crivo da principiologia da Carta Maior, que lhe revela a denominada 'vontade constitucional', cunhada por Konrad Hesse na justificativa da força normativa da Carta Maior. Sob esse ângulo, assume relevo a colocação topográfica da matéria constitucional no afã de aferir a que vetor principiológico pertence, para que, observando o princípio maior, a partir dele, transitar pelos princípios específicos, até o alcance da norma infraconstitucional." 41 José Joaquim Gomes Canotilho, constitucionalista português, contribui com sua percepção sobre o tema: "a força normativa da Constituição é um princípio de interpretação da Constituição, segundo o qual "na solução dos problemas jurídico-constitucionais deve dar-se prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da Constituição (normativa), contribuem para uma eficácia óptima da lei fundamental" .42 Podemos então concluir que a Constituição brasileira vigente tem força normativa? Estariam as tarefas nela impostas sendo cumpridas, ou seriam apenas um escrito perdido num pedaço de papel? Há um senso comum na nação brasileira pelo qual se reconhece a existência e a submissão a uma Constituição (principalmente nos momentos de crise)? O fato de estarmos a 21 anos sob a regência da mesma Constituição, e por ter o Brasil superando, neste tempo, situações de tormenta, é possível acreditar que a Constituição brasileira de 1988 tem força normativa. 5. Referências Bibliográficas AGRA, Walber de Moura. Fraudes à Constituição: um atentado ao Poder Reformador. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista Trimestral de Direito Público n. 44/2003. São Paulo: Malheiros, 2003. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. BESTER, Gisele Maria. Direito Constitucional: fundamentos teóricos. São Paulo: Manole, 2005. vol. A força normativa da Constituição: os sentidos e espécies de Constituição; poder constituinte no surgimento e na modificação das ordens constitucionais Página 8 1. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. BULOS, UADI LAMMÊGO. MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL. SÃO PAULO: SARAIVA, 1997. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2002. CHIMENTI, Ricardo Cunha; CAPEZ, Fernando; ROSA, Marcio Fernando Elias; SANTOS, Marisa Ferreira dos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2004. COELHO, Luiz Fernando. Direito constitucional e filosofia da Constituição. Curitiba: Juruá, 2007. CRETELLA JÚNIOR, José; CRETELLA NETO, José. 1.000 perguntas e respostas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 1. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. ______. O poder constituinte. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição. 3. ED. SOROCABA: MINELLI, 2006. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 8. ed. São Paulo: Método, 2005. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 4. ed. Coimbra: Coimbra, 1990. PINTO FERREIRA, Luiz. Princípios gerais do direito constitucional moderno. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1983. SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidade. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais - RBEC, n. 09. Belo Horizonte: Fórum. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. TEIXEIRA, José Elaeres Marques. O poder constituinte originário e o poder constituinte reformador. Revista de Informação Legislativa, vol. 40, n. 158, abr.-jun. 2003. TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na ciência do direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. 1. Ensina o professor Goffredo Telles Júnior, que as constituições resultam de uma longa evolução histórica, de uma longa luta do povo contra o absolutismo dos monarcas. "As Constituições são o coroamento das insurreições dos governados contra a prepotência e o arbítrio dos governantes. Para Telles Júnior, a compreensão da definição de constituição deve considerar que o governo no estado moderno não é uma pessoa física e, portanto, não se confunde com a pessoa do governante. Nesse estado moderno o governo é uma instituição. Num dado momento da história das nações, o governo deixa de ser o governante, o rei, o imperador, o chefe e passa a ser uma instituição permanente, onde governantes são agentes transitórios que devem observar certo regulamento, sua lei interna, seu estatuto, modernamente chamado de "Constituição". TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na Ciência do Direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 124. 2. A respeito do movimento de migração para um modelo constitucional principiológico, chama atenção a referência feita por Luís Roberto Barroso sobre uma frase que certa vez encontrou grafada no muro de Berlim, enquanto dividida: "Chega de ação. Queremos promessas". Comentando essa situação, diz Luís Roberto: "A espirituosa inversão da lógica natural dá conta de uma das marcas dessa geração: a velocidade da transformação, a profusão de idéias, a multiplicação das novidades. Vivemos a perplexidade e a angústia da aceleração da vida. Os tempos não andam propícios para doutrinas, mas para mensagens de consumo rápido. Para jingles, e não para sinfonias. O Direito vive uma grave crise existencial. Não consegue entregar os dois produtos que fizeram sua reputação ao longo dos séculos". BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do A força normativa da Constituição: os sentidos e espécies de Constituição; poder constituinte no surgimento e na modificação das ordens constitucionais Página 9 Direito (O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil) in Revista Trimestral de Direito Público n. 44/2003. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 18. 3. Para Dworkin, as regras seriam aplicadas na forma do "tudo ou nada" ( all or nothing): ocorrendo o fato por elas regulado, ou a regra é válida (e sua resposta será aceita) ou é inválida. Portanto, havendo colisão de regras uma será considerada inválida. De outra sorte, os princípios possuem dimensão de peso, verificável em caso de colisão, quando um princípio de peso "maior" sobrepõe-se ao outro de menor relevância, sem que um ou outro perca validade. 4. Alexy divide as normas jurídicas em regras e princípios, onde princípios seriam "mandamentos de otimização" podendo ser preenchidos em graus distintos, dependendo das situações fáticas e jurídicas, e os conflitos entre eles são resolvidos pela ponderação; e as regras seriam normas são cumpridas ou descumpridas, sem que exista um meio termo e, portanto, a elas não se aplica a ponderação, mas a subsunção. 5. Trata-se de conceito debatido na Espanha e Itália (ausente nos EUAe Alemanha). São vários os juristas que inspiram essa linha (Ronald Dorkin, Robert Alexey, Peter Häberle, Gustavo Zagrebsky, Luigi Ferrajoli e Carlos Santiago Nino), de forma que se verifica uma ampla diversidade de opiniões entre eles: há positivistas e não positivistas, há defensores e opositores do uso do método na hermenêutica jurídica, adeptos do liberalismo político, do comunismo e do procedimentalismo. Tal diversidade compromete uma definição mais precisa e unânime. 6. SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidade. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais - RBEC, n. 09. Belo Horizonte: Fórum, p. 95. 7. LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição. 3. ed. Sorocaba: Minelli, 2006, p. 10 a 12. 8. Para Lassale, "todos os países possuem ou possuíram sempre, e em todos os momentos da sua história uma Constituição real e verdadeira. A diferença nos tempos modernos - e isto não deve ficar esquecido, pois tem muitíssima importância - não são as Constituições reais e efetivas, mas sim as Constituições escritas nas folhas de papel". LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição. 3. ed. Sorocaba: Minelli, 2006, p. 52. 9. Lato sensu, designa o conjunto dos princípios reguladores da organização básica do estado e, sob este aspecto, não precisa necessariamente ser um texto unitário, mas um complexo de normas, costumes e tradições políticas. Esta acepção liga-se a uma compreensão igualmente ampla de Estado, equivalente a toda forma de organização da sociedade dotada de um mínimo de coordenação política e administrativa. As cidades e impérios da antiguidade foram estados, como também os burgos medievais que precederam o atual modelo, o qual teve moldada sua feição jurídica ao final da guerra dos trinta anos, pelo Tratado de Westphalia, de 1648. COELHO, Luiz Fernando. Direito Constitucional e Filosofia da Constituição. Curitiba: Juruá, 2007, p. 25. 10. Considera-se que a Inglaterra tem uma constituição em sentido amplo, e tal entendimento se estende às monarquias européias medievais, cuja organização política espraiava-se por um conjunto indefinido de preceitos costumeiros ou esparsos em compromissos escritos. Esse direito difuso regulava a forma de governo, o modo de sucessão da monarquia, as prerrogativas da coroa, os privilégios da nobreza e do clero e as franquias das cidades e conselhos. COELHO, Luiz Fernando. Direito Constitucional e Filosofia da Constituição. Curitiba: Juruá, 2007, p. 26. 11. Stricto sensu, a constituição identifica um corpo unitário de prescrições jurídicas que delimitam os poderes do Estado e determinam o respeito aos direitos dos indivíduos. Embora nem todos os direitos estejam textualmente declarados, entende-se que alguns deles devem ser formulados expressamente. Pelo fato de constarem da constituição, são tidos por fundamentais e assegurados mediante um sistema definido de divisão e harmonia dos poderes de governo. Note-se que o sentido estrito também se articula com um conceito igualmente restrito de Estado. Hoje em dia os pressupostos basilares de uma constituição são inseparáveis da noção de Estado de Direito, e esta s articula com a de democracia, doutrina que estabelece a união entre governantes e governados e transfere para o povo a titularidade do poder. Ainda que o direito moderno tenha assimilado o princípio da supremacia do interesse público, uma das características mais marcantes da democracia é o respeito aos direitos dos cidadãos, os quais devem permanecer resguardados de ilegalidades e A força normativa da Constituição: os sentidos e espécies de Constituição; poder constituinte no surgimento e na modificação das ordens constitucionais Página 10 arbitrariedades. COELHO, Luiz Fernando. Direito Constitucional e Filosofia da Constituição. Curitiba: Juruá, 2007, p. 27. 12. CRETELLA JÚNIOR, José; CRETELLA NETO, José. 1.000 perguntas e respostas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 1. 13. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 8. ed. São Paulo: Método, 2005, p. 62. 14. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 39. 15. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 40 e 41. 16. Para Jorge Miranda, afirmar que a Constituição inglesa é uma unwritten constitution só é verdadeiro no sentido de que grande parte das regras sobre a organização do poder político tem origem consuetudinária; mas o principal argumento é que sua unidade fundamental não repousa em nenhum texto ou documento, mas em princípios não escritos, assentes na organização social e política dos britânicos. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 4. ed. Coimbra: Coimbra, 1990, p. 126. 17. CHIMENTI, Ricardo Cunha; CAPEZ, Fernando; ROSA, Marcio Fernando Elias; SANTOS, Marisa Ferreira dos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 9. 18. "A constituição pactuada é aquela que exprime um compromisso instável de duas forças políticas rivais: a realeza absoluta debilitada, de uma parte, e a nobreza e a burguesia, em franco progresso, doutra. Surge então como termo dessa relação de equilíbrio a forma institucional da monarquia limitada. Entendem alguns publicistas que as Constituições pactuadas assinalam o momento histórico em que determinadas classes disputam ao rei um certo grau de participação política, em nome da comunidade, com o propósito de resguardar direitos e amparar franquias adquiridas. Na constituição pactuada o equilíbrio é precário. Uma das partes se acha sempre politi¬camente em posição de força. O pacto selado juridicamente mal encobre essa situação de fato, "e o contrato se converte por conseguinte numa estipulação unilateral camuflada', conforme se deu com a Magna Carta ( LGL 1988\3 ) ou a constituição francesa de 1791: ali a supremacia dos barões; aqui, a supremacia dos representantes da Nação reunidos em assembléia constituinte" BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 72. 19. No Brasil foram outorgadas as Constituições de 1824 (Império), 1937 (Vargas) e 1967 e 1969 (período militar). 20. Para Pinto Ferreira, "a rigidez constitucional traz à tona a afirmação da Constituição como norma suprema do Estado, sendo ela uma pedra angular, em que assenta o edifício do moderno direito político". PINTO FERREIRA, Luiz. Princípios gerais do direito constitucional moderno. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 90. 21. O modelo semi-rígido guarda característica híbrida entre o flexível e o rígido. O exemplo de constituição semi-rígida é a Constituição Imperial de 1824, que, em seu art. 178, dizia: "É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e atribuições respectivas dos poderes políticos, e aos Direitos Políticos, e individuais dos cidadãos. Tudo, o que não é Constitucional, pode ser alterado, sem as formalidades referidas, pelas legislaturas ordinárias". 22. A rigidez da atual Constituição brasileira está prevista em seu art. 60. O quorum de votação, para ser aprovada uma emendas constitucional, é de três quintos dos membros de cada casa legislativa (Senado e Câmara dos Deputados), em dois turnos de votação, enquanto leis ordinárias e complementares são votadas em um único turno, precisando da maioria simples e absoluta para a aprovação de uma lei ordinária e complementar, respectivamente. 23. Para Celso Bastos, "hoje em dia já se toma por absurdo que um texto Constitucional se pretenda perpétuo, quando se sabe que é destinado a regular a vida de uma sociedade em contínua mutação". BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, A força normativa da Constituição: os sentidos e espécies de Constituição; poder constituinte no surgimento e na modificação das ordens constitucionais Página 11 p. 163. 24. BESTER, Gisele Maria. Direito constitucional: fundamentosteóricos. vol. 1. São Paulo: Manole, 2005, p. 94. 25. TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na ciência do direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 133. 26. AGRA, Walber de Moura. Fraudes à Constituição: um atentado ao Poder Reformador. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000, p. 78. 27. Não há alteração de lei e sim mudança no entendimento da lei em razão da evolução social. É como, por exemplo, uma alteração na composição do STF emprestará à Constituição interpretação distinta da que estaria sendo praticada na referida Corte Constitucional. 28. BULOS, Uadi Lammêgo. MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 63. 29. TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na ciência do direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 134. 30. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 20. 31. TEIXEIRA, José Elaeres Marques. O poder constituinte originário e o poder constituinte reformador in Revista de Informação Legislativa, vol. 40, n. 158, abr-jun de 2003, p. 204. 32. Historicamente nota-se que diversas foram as formas de exercício do poder constituinte originário: a Constituição do Império (1824), resultou da ruptura com o cenário político-jurídico até então existente; já a Constituição Federal de 1988 foi elaborada por uma Assembleia Nacional Constituinte, composta por representantes do povo designados para estabelecer o novo texto constitucional. 33. Sieyès dá a entender que estaria o poder constituinte originário limitado pelo direito natural. Com efeito, ao mesmo tempo em que assevera que a "nação existe antes de tudo, ela é a origem de tudo", e que a sua vontade é a própria lei, também admite que antes e "acima dela só existe o direito natural". Desse pensamento compartilha Jorge Miranda, quando afirma categoricamente que o poder constituinte está sujeito a limitações. Para ele, o poder constituinte não é um poder soberano, absoluto, no sentido de atribuir à Constituição todo e qualquer conteúdo, sem observar quaisquer princípios, valores ou condições. Ao contrário, está sujeito a limites transcendentes, provenientes "de imperativos de direito natural, de valores éticos superiores, de uma consciência jurídica coletiva", que não podem ser ultrapassados. Aponta os direitos fundamentais como parte desses limites e sustenta que não se poderia admitir como válido e legítimo "decretar normas constitucionais que gravemente os ofendessem". Carl Schmitt já não é desse entendimento. Segundo ele, o poder constituinte originário é soberano. E, no exercício dessa soberania, não está sujeito a limites outros que não aqueles estabelecidos por ele próprio. Assim, pode adotar todas as decisões que entender necessárias para o momento, como o faria uma ditadura. A propósito, atribui ele à assembléia constituinte a característica de uma "ditadura soberana", na medida em que substitui todas as anteriores leis constitucionais por outras. Mas ressalva que, como não é soberana por si mesma, porque comissionada pelo povo, pode, a todo momento, por uma ação política, ser desautorizada a prosseguir seu trabalho. Identifica-se, na doutrina brasileira, como partidário dessa última posição, Paulo Bonavides, para quem o poder constituinte originário é dotado de "competência ilimitada e soberana". (TEIXEIRA, José Elaeres Marques. O poder constituinte originário e o poder constituinte reformador. Revista de Informação Legislativa, vol. 40, n. 158, abr.-jun. de 2003, p. 204 e 205). 34. Apud FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. O poder constituinte. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 124. 35. O limite material que subordina o poder constituinte derivado brasileiro está disposto no art. 60, § 4.º, da CF/1988 ( LGL 1988\3 ) . A força normativa da Constituição: os sentidos e espécies de Constituição; poder constituinte no surgimento e na modificação das ordens constitucionais Página 12 36. A Constituição Francesa de 1791 proibia a reforma no período das duas primeiras legislaturas seguintes à sua promulgação. A Constituição dos Estados Unidos, em seu artigo V, estabeleceu que "(...) Nenhuma emenda poderá, antes do ano de 1808, modificar, de qualquer forma, as cláusulas primeira e quarta do capítulo 9, do artigo I (...)". 37. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 176. 38. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista Trimestral de Direito Público n. 44/2003. Malheiros: São Paulo, 2003, p. 21. 39. Rcl 6.568/SP, rel. Min. Eros Grau, j. 21.05.2009. 40. RE 556.664/RS, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 12.06.2008. 41. TJPR, AgRg nos EDiv em REsp 836.200, rel. Min. Luiz Fux, j. 27.06.2007. A força normativa da Constituição: os sentidos e espécies de Constituição; poder constituinte no surgimento e na modificação das ordens constitucionais Página 13
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