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Autora: Profa. Marisa Rezende Bernardes Colaboradores: Profa. Valéria de Carvalho Profa. Mirtes Mariano Prof. Daniel Scodeler Raimundo Teoria dos Números Professora conteudista: Marisa Rezende Bernardes Possui graduação em Engenharia Civil pela Universidade Estadual de Maringá (1980), licenciatura em Matemática pela Universidade Estadual de Maringá (1988), mestrado e doutorado pelo programa de pós‑graduação da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, concluídos respectivamente em 2003 e 2009, e é vinculada ao Grupo de Pesquisa em História Oral e Educação Matemática (GHOEM). É professora da Universidade Paulista – UNIP, campus Bauru, desde 2003, ocupando atualmente a condição de titular. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) B521 Bernardes, Mariza Rezende Teoria dos Números. / Marisa Rezende Bernardes. ‑ São Paulo: Editora Sol. 132 p. il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XVII, n. 2‑067/11, ISSN 1517‑9230 1.Educação 2.Pedagogia 3.Matemática.Título CDU 51 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona‑Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Sueli Brianezi Carvalho Sumário Teoria dos Números APRESENTAçãO ......................................................................................................................................................7 INTRODUçãO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 ASPECTOS HISTÓRICOS DO CONCEITO DE NÚMERO .........................................................................11 1.1 Introdução ................................................................................................................................................11 1.2 Panorama cultural inicial ...................................................................................................................11 2 SENSAçãO NUMÉRICA E A FACULDADE ABSTRATA DE CONTAR ................................................ 17 2.1 O conceito de número em outras culturas ................................................................................ 18 2.1.1 Introdução ................................................................................................................................................. 18 2.1.2 Alguns sistemas de numeração ........................................................................................................ 21 3 COMO SE ESCREVEM OS NÚMEROS ....................................................................................................... 26 3.1 O sistema grego .................................................................................................................................... 27 3.2 O sistema romano ................................................................................................................................ 28 3.3 Numerais hindu‑árabes ..................................................................................................................... 29 3.4 A evolução da teoria dos números ............................................................................................... 30 3.4.1 Antecedentes ............................................................................................................................................ 30 3.4.2 Escola pitagórica ..................................................................................................................................... 30 3.4.3 Aritmética pitagórica ............................................................................................................................ 34 3.4.4 Os números figurados ........................................................................................................................... 35 3.4.5 Ternos pitagóricos .................................................................................................................................. 38 3.4.6 A descoberta das grandezas irracionais ......................................................................................... 40 4 INTRODUçãO .................................................................................................................................................... 41 4.1 Descrição de um conjunto................................................................................................................ 41 4.2 Pertinência entre elemento e conjunto ...................................................................................... 51 4.3 Partes de um conjunto ....................................................................................................................... 52 4.4 Operações sobre conjuntos .............................................................................................................. 52 4.5 União de conjuntos ............................................................................................................................. 52 4.6 Intersecção de conjuntos .................................................................................................................. 53 4.7 Diferença de dois conjuntos ............................................................................................................ 54 4.8 Complementação de conjuntos ..................................................................................................... 55 4.9 Relações ................................................................................................................................................... 56 4.9.1 Introdução ................................................................................................................................................. 56 4.9.2 Relação sobre um conjunto A ........................................................................................................... 59 4.9.3 Relações de equivalência ..................................................................................................................... 59 4.9.4 Classes de equivalência ........................................................................................................................ 63 4.9.5 Relações de ordem ................................................................................................................................. 63 4.10 Representação posicional dos inteiros ...................................................................................... 67 4.10.1 Introdução ............................................................................................................................................... 67 4.10.2 Representação posicional dos naturais e inteiros ...................................................................68 4.11 Números inteiros: propriedades gerais e aplicações ............................................................ 69 4.11.1 Operações de adição e multiplicação ........................................................................................... 69 4.11.2 Princípio do menor número inteiro ............................................................................................... 71 Unidade II 5 MÉTODO DA INDUçãO, CONCEITOS DE DIVISãO E NÚMEROS PRIMOS ................................... 76 5.1 Introdução ............................................................................................................................................... 76 5.2 Princípio da Indução (PI) ................................................................................................................... 76 5.3 Princípio forte da indução (PFI) ...................................................................................................... 80 5.4 Múltiplos e divisores ........................................................................................................................... 83 5.5 Algoritmo da divisão de Euclides ................................................................................................... 85 5.5.1 Representação de inteiros em uma base ...................................................................................... 88 5.6 Números primos ................................................................................................................................... 95 6 TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA .......................................................................................... 96 7 MAIOR DIVISOR COMUM E MENOR MÚLTIPLO COMUM; CONGRUÊNCIAS MÓDULO M EM Z; ARITMÉTICA MODULAR; EQUAçÕES DIOFANTINAS ....................................... 97 7.1 Introdução ............................................................................................................................................... 97 7.2 Maior divisor comum (MDC) .........................................................................................................101 7.3 Mínimo múltiplo comum – MMC ................................................................................................104 7.4 Congruências módulo m em Z – aritmética modular .........................................................105 7.4.1 Introdução ...............................................................................................................................................105 7.4.2 Congruências ..........................................................................................................................................105 7.4.3 Aritmética modular (aritmética módulo m) ..............................................................................113 8 EQUAçÕES DIOFANTINAS .......................................................................................................................... 114 8.1 Introdução ............................................................................................................................................. 114 8.2 Equações diofantinas lineares (a duas incógnitas) ............................................................... 114 8.3 Equações diofantinas lineares (a três incógnitas)................................................................. 117 7 APReseNTAção Caro aluno, esta apresentação tem a função de expor de forma mais elaborada os objetivos da disciplina Teoria dos Números e sua vinculação com o projeto pedagógico e político do curso. É uma perspectiva que defende não ser concebível estudar qualquer disciplina de uma licenciatura como algo estanque, sem vinculação pedagógica com disciplinas específicas e muito menos utilizá‑la como mero atrativo inicial para conteúdos específicos. Esse texto tem, sobretudo na primeira unidade, a preocupação de apresentar uma forma de orientação aos futuros profissionais docentes em uma perspectiva que busca a construção de conceitos teóricos e uma discussão sobre a formação de conceitos empíricos a que os métodos didáticos da moda têm induzido. Além disso, o objetivo aqui proposto é sistematizar o conhecimento que a humanidade acumulou nesta área, mas sem perder de vista as análises dos contextos social, histórico e cultural que proporcionam a possibilidade de compreensão da ciência de modo mais abrangente e, em consequência, uma ação política mais efetiva na esfera da educação. Outra perspectiva que este texto tem como premissa é o fato de ele ter sido elaborado para um curso de educação a distância. Esse é um posicionamento importante, uma vez que estabelece um ambiente de aprendizagem diferente daquele utilizado pelo ensino presencial e, portanto, tem exigências diferenciadas. Essa modalidade de educação caracteriza‑se por ser uma prática educativa que exige do estudante, mais do que em outra modalidade, construir conhecimentos e participar efetivamente de seu próprio crescimento. Esse modelo implica, obviamente, um processo de ensino próprio, uma vez que modifica, ou mesmo suprime, o físico e a estrutura do ensino presencial. Assim, a função docente sofre um deslocamento, seu papel é descentralizado e a forma de atenção ao aluno está mais próxima do que se entende por pesquisa em meios acadêmicos. É um novo formato de ensino‑aprendizagem na graduação, no qual os estudantes, assim como aqueles que se iniciam em pesquisas acadêmicas, devem aprender a estudar sozinhos, buscar informações com base em indicações do docente responsável pelo curso (orientador) e serem capazes de fazer inferências na produção do seu conhecimento. INTRodução Em Eves (2004), foram introduzidos textos intitulados “Panoramas Culturais” com o objetivo de que o leitor aprenda que a matemática se desenvolveu de acordo com condições e necessidades históricas. Acredito que esta ressalva seja importante porque há na sociedade uma visão arraigada – e inúmeros trabalhos acadêmicos comprovam isso – de que a abordagem defendida pela imensa maioria dos professores de matemática (conscientemente ou não) é a abordagem internalista, que privilegia somente o conhecimento (do ponto de vista interno) da própria matemática. No entanto, os professores, mesmo defendendo à exaustão alguns pontos de vista (inclusive o internalista), têm uma vida que transcende a defesa de seus pontos de vista sobre a matemática. Suas vidas em família, a relação com seus companheiros e filhos, com colegas de profissão, com amigos e parentes, acrescentam fatos novos ao que se sabe das relações individuais com a categoria docente e com a sociedade. Todos esses aspectos permitem uma reflexão sobre os condicionantes de práticas pedagógicas, o que coincide com a proposta do dispositivo estratégico de Foucault, segundo o 8 qual não se deve interrogar o discurso do outro segundo a ideologia no qual se inscreve: o discurso é muito mais. O discurso é o que se deve apreender a partir de posições assumidas, da fala, das práticas cotidianas e profissionais que denunciam os efeitos recíprocos do par saber‑poder e a sua integração estratégica na conjuntura de correlação de forças nos diversos confrontos produzidos na reprodução da vida (Bernardes, 2009). E, dentro dessa perspectiva, a matemática é uma forma de discurso e o panorama cultural da humanidade avaliza essa perspectiva. Como este texto foi produzido para a modalidade EaD, as leituras indicadas estão em sua maioria disponíveis on‑line. Essa preocupação está relacionada ao fato de alguns alunos da Unip Interativa serem de regiões onde o acesso a determinados materiais impressos é difícil. Porém, isso não os isenta do compromisso de fazer pesquisas de materiais pertinentes à área de interesse das disciplinas em bibliotecas locais. A divisão desse livro‑texto em duas unidades (e seus subtópicos), conforme o leitor poderá aferir nosumário, foi uma arbitrariedade da autora, já que o conteúdo aqui apresentado se desenvolveu de acordo com condições e necessidades históricas, ou seja, sua produção não foi linear e nem suas descobertas estiveram sempre relacionadas. Isso se deve ao fato de a história da matemática ser caótica, muitas vezes completamente anônima. Essa ressalva é importante porque nunca é demais lembrar que o desenvolvimento das diversas áreas da matemática nem sempre esteve pautado pela racionalidade e pelo modo defendido pelo positivismo, como assim defendem Bicudo & Garnica (2001): Permitem que se aceite como ciência procedimentos que conduzam à construção do conhecimento sustentados em critérios de rigor que digam dos modos de obter dados, de analisá‑los, de interpretá‑los, de generalizar resultados obtidos, de construir argumentações e de dispor de argumentos contrários, incompletos e insatisfatórios de maneira a articulá‑los em torno de uma ideia sustentada pelo autor, explicitando sua lógica e convencendo o leitor quanto à sua plausibilidade (BICUDO & GARNICA, 2001, p. 16). Outro aspecto que deve ser mencionado com clareza nesta introdução é a identificação da perspectiva a partir da qual foi desenvolvido este texto: ele está atrelado ao projeto pedagógico do curso, formador de professores em matemática. Porém, entrelaçada a essa diretriz fornecida pela instituição está a perspectiva atual da comunidade de educadores matemáticos. Na introdução do livro de Bicudo & Garnica (2001), há uma observação que nos mostra a complexidade atual do fazer docente, daqueles profissionais que trabalham tanto com pesquisas quanto com o ensino da matemática: O amadurecimento de uma área faz‑se sentir pela zona de densidade que a envolve, quando são encontrados concepções, conceitos, questões que se superpõem, entrelaçam‑se, criando a impossibilidade de ver‑se com clareza do que e de qual perspectiva se fala. É essa a situação que percebemos na educação matemática, no momento (BICUDO & GARNICA, 2001, p. 09). Essa forma de pensar caracteriza‑se por ser analítica, crítica, reflexiva e abrangente e, segundo a perspectiva aqui defendida, o caro leitor precisa desenvolver ferramentas para a gestação do futuro 9 professor e, com essa iniciativa, obter a liberdade de propor ações, intervenções e decisões em seu ambiente formativo e, posteriormente, profissional. É dessa forma que é possível contribuir efetivamente para o conhecimento do mundo cultural, científico, tecnológico, religioso, artístico, enfim, do mundo humano. Deverá analisar também a função do mecanismo que normalmente liga os estudantes e professores às crenças fortemente arraigadas ao pensamento dos dois grupos de que a matemática é independente do humano, portanto, independente dos âmbitos cultural e social. É uma pesquisa que sugere analisar e refletir propostas e ações educacionais nos diferentes contextos em que ocorrem. O futuro professor, ao educar o olhar sob essa perspectiva, não só terá condições de observar a escola, mas buscar a finalidade e a intenção dos procedimentos na área de educação. 11 Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Teoria dos números Unidade I 1 AsPeCTos HIsTÓRICos do CoNCeITo de NÚMeRo 1.1 Introdução O estudante que já cursou a disciplina História da Matemática foi alertado para a tendência das novas gerações a negligenciar as manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibição e a censura exercem sobre a memória individual e, consequentemente, refletem na memória coletiva. Daí a necessidade de sempre se renovar o alerta para a importância do contexto histórico, mas não como mero atrativo inicial para conteúdos específicos. 1.2 Panorama cultural inicial Quando o interesse é pela história da matemática, normalmente se arbitra seu início em função de outra arbitragem que é a divisão da história da humanidade em intervalos (Idade da Pedra, Idade Média, etc.). Para tanto, a opção é o início da narrativa a partir da Idade da Pedra e do movimento dos primeiros povos. Segundo Eves (2004) não é possível precisar ao certo tanto o início quanto o final da Idade da Pedra. Algumas culturas persistiram na Idade da Pedra em algumas partes do mundo até o século XIX ou XX. Apenas por uma convenção histórica, situa‑se o fim dessa fase aproximadamente em 3000 a.C., quando no Oriente Médio, na Índia e na China apareceram cidades com culturas capazes de fundir metais. Desse período o que se pode apreender de importante é a mudança de estilo de vida dos primeiros povos, face aos problemas climáticos e à escassez do tipo de alimento ao qual estavam acostumados. Um momento de reflexão para o futuro professor Eves (2004) faz uma observação curiosa que, no contexto de um curso de licenciatura, vale a pena ser comentada: [...] Ou se deve recuar ainda mais no tempo e iniciar com os primeiros esforços tateantes feitos pelo homem pré‑histórico visando à sistematização das ideias de grandeza, forma e número? Ou se pode dizer que a matemática teve início em épocas pré‑humanas com a manifestação do senso numérico e reconhecimento de modelos, embora muito limitadamente, por parte de alguns animais, pássaros e insetos? Ou mesmo antes disso, nas relações numéricas e espaciais das plantas? Ou até antes, nas nebulosas espiraladas, nas trajetórias de planetas e cometas e na cristalização de minerais em épocas pré‑orgânicas? Ou será que a matemática, como acreditava Platão, sempre existiu, estando meramente a aguardar sua descoberta? (EVES, 2004). 12 Unidade I Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 O comentário do autor é interessante porque ele reitera uma perspectiva que não pode passar despercebida ao futuro professor e deve ser explorada em contextos de ensino e aprendizagem fundamentais: a matemática é uma criação humana e a forma como ela é apropriada difere conforme o contexto em que é utilizada. A ideia é mostrar aos estudantes imagens como as apresentadas a seguir e incentivar uma problematização a respeito delas. Ou seja, as relações de diferentes áreas da matemática, perceptíveis aos alunos, já existiam ou os seres humanos as criaram para descrever a natureza? A matemática tem origem divina? Nas condições atuais, a escola perpetua a condição de disseminadora da forma de apropriação de conhecimentos organizados segundo a lógica formal. Uma reelaboração possível de métodos em relação à escola usual é propiciar oportunidades de análise dos conteúdos como proposta aos estudantes, levando‑os à formação de pensamento teórico. Figura 1 –2–3–4 –1 –1 1 2 3 4 –2 –3 –4 1 2 3 4 5 60 0 Amor Earth ApolloAten Figura 2 – Elipse de Kepler 13 Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Teoria dos números De fato, nos primórdios da sociedade humana, a ênfase da matemática primitiva ocorreu na aritmética e na mensuração, como uma ciência prática para assistir a atividades ligadas à agricultura e à engenharia. Mas foi exatamente esse contexto que criou as condições para que se desenvolvessem tendências no sentido da abstração. Uma forma de se perceber isso é o alerta de Ifrah (1996) em relação à importância de se diferenciar a forma como o número é concebido por diferentes grupos humanos, ou seja, as pessoas nem sempre são capazes de conceber qualquer número abstrato. Essa questão da capacidade de seres humanos conseguirem ou não conceberem resultados abstratos, ou seja, não concretos, imagináveis – que será tratada adiante neste texto – articula‑se com a capacidade de controlar a própria conduta. Somente quando essa capacidadeestá presente em uma pessoa é possível falar em capacidade de exercer seus direitos de cidadão. A formação do pensamento teórico vincula‑se à apropriação dos conhecimentos mais elaborados desenvolvidos pela humanidade. Segundo a Psicologia Histórico‑Cultural, o sujeito que forma um nível adequado do pensamento teórico, forma um pensamento capaz de controlar o próprio pensamento, o que articula com controlar a própria conduta. Ou seja, a formação do pensamento teórico articula‑se com a formação do sujeito autônomo (MAGAGNATO, 2011, p. 5). Por isso, é desejável que todo material didático de uma licenciatura considere as conclusões de Davýdov & Márkova (1987), ao analisarem o trabalho desenvolvido pela psicologia pedagógica soviética. Esses autores acreditam ter base para afirmar que a atividade de estudo, em relação às capacidades e hábitos de estudo, necessita de uma sistematização que não se encerre quando os estudantes finalizam um ciclo escolar. Ou seja, que os conteúdos de cada disciplina sejam articulados para formar estudantes que buscam ampliar as perspectivas limitadas – em decorrência do tempo disponível, do número de alunos e do próprio conteúdo programático – de salas de aulas. Se ha realizado un gran trabajo, en principio nuevo, de sistematización de las capacidades y hábitos de estudio que deben adquirir los alumnos al finalizar el aprendizaje escolar. El criterio cualitativo para juzgar los resultados del estudio son la generación de las capacidades, la plasticidad, la capacidad de modificación y otras. Valorando altamente este trabajo [...] las capacidades y los hábitos son sólo uno de los eslabones de la actividad integral de estudio de los escolares; junto con las capacidades y los hábitos (y los procedimientos, acciones, operaciones de los alumnos con el material didáctico, que están detrás de aquéllos) el estudio incluye también la asunción de la tarea escolar por los alumnos, el cumplimiento de diferentes tipos de autocontrol, autoevaluación, etc. […]. Entonces los indicadores de eficiencia no serán sólo las acciones de estudio del escolar, sino también el planteo, por él mismo, de las tareas y objetivos de estas acciones (Davýdov & MÁRKOVA, 1987, p. 316‑317). 14 Unidade I Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Em decorrência do exposto anteriormente à interrupção para um “um momento de reflexão para o futuro professor” é que nesse texto será considerado o mesmo ponto arbitrário proposto por Eves (2004). Esse autor julga mais apropriado considerar como a matemática mais antiga aquela resultante dos primeiros esforços dos seres humanos para sistematizar os conceitos de grandeza, forma e número. O início será, então, o surgimento no homem primitivo do conceito de número e do processo de contar: O conceito de número e do processo de contar desenvolveram‑se tão antes dos primeiros registros históricos (há evidências arqueológicas de que o homem, já há uns 50.000 era capaz de contar) que a maneira como ocorreram é largamente conjectural. É razoável admitir que a espécie humana, mesmo nas épocas mais primitivas, tinha algum senso numérico (EVES, 2004, p. 25). Os povos da Idade da Pedra eram nômades e viviam da caça de pequenos animais selvagens, das frutas, castanhas e raízes, segundo Eves (2004). Habitavam, em geral, porções menos inóspitas da África, sul da Europa, sul da Ásia e América Central. A sociedade e a cultura dessa época, como em todas as outras épocas históricas, adaptaram‑se a um mundo em transição. Inicialmente, em decorrência do estilo de luta pela sobrevivência ser muito difícil, as pessoas viviam demasiadamente ocupadas para se aterem aos problemas científicos e intelectuais. No entanto, no decorrer do período, afastaram‑se de um tipo de economia centrada no caçar e colher para outra que envolvia modos primitivos de agricultura e domesticação de animais. As mudanças climáticas obrigaram os homens e mulheres a se adaptarem a um ambiente progressivamente hostil e seguir os animais em fuga para lugares com condições para todas as formas de vida. No entanto, nesses lugares, a densidade populacional tornara‑se alta demais para que as pessoas sobrevivessem como caçadores ou colhedores. Emergem, assim, após 3000 a.C., comunidades agrícolas densamente povoadas ao longo do rio Nilo na África, dos rios Tigre e Eufrates no Oriente Médio e ao longo do rio Amarelo na China, nas quais a ciência e a matemática começam a se desenvolver. observação A grande valorização do trabalho se dá na cidade. Esta é uma das funções históricas fundamentais da cidade: nela são vistos os resultados criadores produtivos do trabalho (LE GOFF, 1998, p. 49). Essa espécie de “revolução agrícola”, observa Eves (2004b), criou novas necessidades, tais como o desenvolvimento da engenharia em construções de sistemas de barragens e irrigações e também registros das estações das chuvas e das enchentes e traçados de mapas que especificavam as valas de irrigação. Segundo o autor, “os agricultores rezavam aos deuses para que as cheias e as chuvas pudessem vir conforme as tabelas e, no processo, observavam o movimento das estrelas. Todas essas atividades deram origem a novas classes de homens educados: sacerdotes, escribas e astrólogos” (Ibidem, p. 53). No interior desses agrupamentos, fixados em cidades sem precisar se deslocar atrás de alimento, surgiram pessoas – reis, sacerdotes, mercadores e escribas – que tinham tempo para ponderar sobre os mistérios da natureza e da ciência. 15 Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Teoria dos números Em suma, o período de 3000 a 525 a.C. testemunhou o nascimento de uma nova civilização humana cuja centelha foi uma revolução agrícola. Novas sociedades baseadas na economia agrícola emergiram das névoas da Idade da Pedra nos vales dos rios Nilo, Amarelo, Indo, Tigre e Eufrates. Esses povos criaram escritas; trabalharam metais; construíram cidades; desenvolveram empiricamente a matemática básica da agrimensura, da engenharia e do comércio; e geraram classes superiores que tinham tempo bastante de lazer para se deter e considerar os mistérios da natureza. Depois de milhões de anos, afinal, a humanidade tomava a trilha das realizações científicas (EVES, 2004b, p. 56). Para Le Goff (1998) uma das funções essenciais de uma cidade é a informação... Segundo o autor, a universidade encontrou na cidade medieval o húmus e as instituições. Isto é, de um lado, os mestres e os estudantes e, de outro, as formas corporativas, que lhes permitiram existir, funcionar e adquirir poder e prestígio. [...] Mas as relações entre a cidade e a universidade nunca foram fáceis, mesmo hoje quando se considera a universidade necessária para criar um “polo de excelência” nas cidades. Há uma animosidade entre ambas desde o início da história da universidade porque essa última, originalmente veiculada à Igreja, protegida por ela, colocava restrições à liberdade urbana. Como a universidade preserva a faculdade de julgar a si mesma, de julgar seus resultados, ela sempre resistiu às intervenções externas. A partir do século XIII, complementa o autor, surgiu um slogan que afirmava que o verdadeiro poder, aquele que os juristas chamavam de potestas no direito romano, apresentava três aspectos: regnum, o poder público; sacerdotium, o poder religioso e studium, o saber, isto é, a universidade. Assim, em decorrência da cristalização desse entendimento, as cidades se veem forçadas a ouvir as opiniões, autorizadas, da universidade. Mas, ainda hoje, essas instituições não parecem dispostas a se curvar aos desejos das coletividades locais (Ibid., p. 60‑67). Assim, afirma Eves (2004, p. 57), a ênfase da matemática primitiva ocorreuna aritmética e na mensuração, como uma ciência prática para assistir a atividades ligadas à agricultura e à engenharia. Essas atividades necessitavam de uma forma de cálculo para um calendário utilizável, o desenvolvimento de um sistema de pesos e medidas para ser empregado na colheita, no armazenamento e na distribuição de alimentos, a criação de métodos de agrimensura para a construção de canais, reservatórios e para dividir a terra, e a instituição de práticas financeiras e comerciais para o lançamento e a arrecadação de taxas para propósitos mercantis. No entanto, foi nesse contexto, todavia, que se desenvolveram tendências no sentido da abstração e, até certo ponto, passou‑se então a estudar a ciência por si mesma. Assim, a álgebra evolveu‑se no fim da aritmética e a geometria teórica originou‑se da mensuração, conclui o autor. Há dificuldades em localizar no tempo as descobertas em matemática. As comunidades não se comunicavam com facilidade e os materiais de escrita sobre as descobertas na antiguidade não se preservaram, em decorrência da fragilidade dos materiais utilizados para esse fim. Os babilônios usavam tábuas de argila cozida, os egípcios usavam pedra e papiros e os primitivos chineses e indianos usavam casca de árvores e bambu. Além disso, algumas civilizações foram extintas e com elas suas descobertas. Em decorrência desse tipo de dificuldades, e também da matemática ter seu desenvolvimento relacionado 16 Unidade I Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 com a história das necessidades e preocupações de grupos sociais, Ifrah (1996) considera sua história completamente anônima, apesar da sua importância. Feita por e para as coletividades, ela não concedeu certificados, apenas alguns nomes são conhecidos, mas mesmo assim de pessoas que transmitiram, exploraram, comentaram algarismos e sistemas de numeração. Mas sobre os próprios autores, observa o autor, as informações estão certamente perdidas para sempre. Talvez porque algumas invenções remontem a uma antiguidade muito mais remota do que se supõe ou porque foram feitas por homens relativamente humildes a quem a história não deu direito a registro, conclui. Mas estas descobertas nunca estão para sempre asseguradas: uma civilização se apaga, a dos babilônios ou a dos maias, e, junto com sua casta de sacerdotes rigorosamente recrutados, é um pouco da técnica dos números que desaparece, toda uma invenção a refazer. Trata‑se, pois, de uma história caótica e tumultuada, cheia de avanços fulgurantes e de recaídas, em que o passo incerto, errático, feito de tentativas e de erros, de impasses, de esquecimentos e de renúncias da espécie humana, parece (para nós, que conhecemos seu coroamento, pelo menos em relação a esse ponto) com o de um bêbado (IFRAH, 1996, p. 11). A figura a seguir mostra o quão danificados os documentos produzidos na antiguidade chegaram aos nossos dias: Figura 3 – Papiro artemidoro Segundo Ifrah (1996, p. 12), a invenção dos algarismos é anterior à escrita e estes estiveram relacionados no decorrer da história com o pensamento místico e religioso do homem. A lógica não foi, assim, o fio condutor da história da matemática. Foram as preocupações de contadores, mas também de sacerdotes, de astrônomos‑astrólogos e somente em último lugar de matemáticos, que presidiram à invenção e à revolução dos sistemas de numeração. Muitos nomes de números, notações e símbolos distintos existiram ao longo da história da humanidade, mas apenas alguns acabaram por ter influência na civilização ocidental, daí serem denominados de “berços da civilização” as regiões agrícolas do Oriente Médio, China e Egito. À revolução agrícola precederam formas de governo mais complexas, que necessitaram de novas realizações intelectuais. 17 Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Teoria dos números Apesar de, segundo Conway & Guy (1999), a mais antiga ocorrência conhecida de numerais é talvez a que aparece nas tábuas de argila dos sumérios, que datam da primeira metade do 3º milênio a.C. – o sistema sumério foi posteriormente adotado pelos babilônios –, foram os problemas políticos e sociais que fizeram aparecer nos séculos de 600 a 600 a.C. o emprego do raciocínio dedutivo em matemática com Tales de Mileto (640?‑564? a.C.) e Pitágoras (586?‑500? a.C.) e a lógica foi sistematizada num tratamento de Aristóteles (EVES, 2004b). saiba mais GIMENEZ, K.; NUNES, R. Sumérios, os inventores da história. Guia do Estudante. São Paulo: Abril. Disponível em: <http://guiadoestudante.abril. com.br/estudar/historia/sumerios‑inventores‑historia‑433550.shtml>. Acesso em: 20 nov. 2011. 2 seNsAção NuMéRICA e A fACuldAde ABsTRATA de CoNTAR Segundo Ifrah (1996), é importante diferenciar a forma como o número é concebido por diferentes grupos humanos. Nem sempre se é capaz de conceber qualquer número abstrato. Inúmeras hordas “primitivas”, observa o autor, como os zulus e os pigmeus da África, os aranda e os kamilarai da Austrália, os aborígenes das ilhas Murray e os botocudos do Brasil percebem o número de modo um tanto qualitativo. O número se reduz para esses grupos a uma “pluralidade material” e assume o aspecto de uma realidade concreta indissociável da natureza dos seres e objetos em questão. O traço comum de diferentes agrupamentos de possuírem a mesma quantidade de objetos, tais como cinco carneiros, cinco árvores, reduz‑se a uma espécie de capacidade natural chamada de “percepção direta do número” ou “sensação numérica”. Expressões tais como “muito”, “vários” são utilizadas para caracterizar agrupamentos, em verdade, avaliá‑los. Essa aptidão natural não pode ser confundida com a “faculdade abstrata de contar” que diz respeito a um fenômeno mental mais complicado e constitui uma aquisição relativamente recente da inteligência humana. Essa capacidade humana está relacionada às funções psíquicas superiores que possibilitam o interno estar em unidade com os meios externos de pensamento (linguagem conceitual, esquemas simbólicos, gráficos, algoritmos, entre outros). O conceito de “desenvolvimento das funções psíquicas superiores” [...] [abarca] dois grupos de fenômenos que a primeira vista parecem completamente heterogêneos, mas que de fato são dois ramos fundamentais, dois leitos de desenvolvimento das formas superiores de conduta que jamais se fundem entre si ainda que estejam indissoluvelmente unidos. Trata‑se, em primeiro lugar, de processos de domínio dos meios externos do desenvolvimento cultural e do pensamento: a linguagem, a escrita, o cálculo, o desenho; e, em segundo, dos processos de desenvolvimento das funções psíquicas superiores especiais, não limitadas nem determinadas com exatidão, que na psicologia tradicional denominam‑se atenção voluntária, memória lógica, formação de conceitos, etc. Tanto uns como outros, tomados em conjunto, formam o 18 Unidade I Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 que qualificamos convencionalmente como processos de desenvolvimento das formas superiores de conduta da criança1 (VYGOTSKY, 1983, p. 29 apud SCARPIM, 2010, p. 19. Tradução livre). Determinadas espécies animais também são dotadas de um tipo de percepção direta dos números. Em alguns casos, são capazes de reconhecer as modificações de conjuntos numericamente reduzidos. No entanto, é curioso notar que as faculdades humanas de percepção direta dos números não ultrapassa a de certos animais, pois não vão além do número quatro. Para que o ser humano pudesse progredir no universo dos números, observa Ifrah (1996), foi necessário que certos procedimentos mentais fossem agregados à sensação numéricainata. saiba mais O artigo de SENNA & BEDIN (2011) trata da Formação do conceito de número em crianças da educação. Disponível em: < http://www.anped.org. br/reunioes/30ra/trabalhos/GT07‑3370‑‑Int.pdf>. Acesso em: 8 dez. 2011. 2.1 o conceito de número em outras culturas 2.1.1 Introdução Domingues (1998) inicia sua preleção sobre alguns sistemas de numeração existentes a partir da necessidade das sociedades em desenvolvimento. Se dois conjuntos finitos e não vazios podem ser colocados em correspondência biunívoca, ou seja, se a cada elemento do primeiro é possível associar, de alguma maneira, um único elemento do segundo, e vice‑versa, então há entre esses conjuntos, sob o aspecto quantitativo, algo em comum. Diz‑se que ambos têm o mesmo número de elementos ou a mesma cardinalidade. Os símbolos usados para indicar os números chamam‑se numerais. Com o desenvolvimento de uma sociedade, vai‑se tornando necessário contar conjuntos cada vez mais numerosos, efetuar cálculos, o que ficaria muito difícil sem a sistematização do processo de contagem e, paralelamente, 1 El concepto de “desarrollo de las funciones psíuquicas superiores” y el objeto de nuestro estudio abarcan dos grupos de fenómenos que a primera vista parecen completamente heterogéneos pero que de hecho son dos ramas fundamentales, dos cauces de desarrollo de las formas superiores de conducta que jamás se funden entre sí aun que están indisolublemente unidas. Se trata, em primer lugar, de processos de dominio de los medios externos del desarrollo cultural y del pensamiento: el lenguaje, la escritura, el cálculo, el dibujo; y, en segundo, de los procesos de desarrollo de las funciones psíquicas superiores especiales, no limitadas ni determinadas con exactitud, que en la psicología tradicional se denominam atención voluntária, memoria lógica, formación de conceptos, etc. Tanto unos como otros, tomados en conjunto, forman lo que calificamos convencionalmente como procesos de desarrollo de las formas superiores de conducta del niño. 19 Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Teoria dos números do procedimento de escrever os números. O expediente de que o homem fez uso nesse sentido, desde os tempos imemoriais, foi [...] a escolha de uma base para formar grupos de elementos (DOMINGUES, 1998, p. 3). A escolha de uma base, segundo o autor, esteve sempre relacionada, de algum modo, ao conjunto tomado como referência em relação ao qual todos os demais são relacionados. O sistema de base 10, segundo Aristóteles, é decorrente da relação com os dez dedos das mãos. Inclusive, afirma Domingues (1998), o vocábulo dígito (usado para indicar qualquer dos algarismos de 0 a 9) é originário do termo latino dígitos, que significa dedo. Figura 4 – Representação do número 2 com os dedos de uma mão Um momento de reflexão para o futuro professor A história dos números propicia um instrumento interessante para que o futuro professor questione qual o tipo de generalização a escola atual tem possibilitado aos estudantes. Em uma pesquisa que busca justamente um encaminhamento para essa questão Magagnato (2011) faz uso de Sforni (2004) para apresentar o quadro atual da escola, a partir da análise do tipo de pensamento que o conteúdo escolar permite ao aluno desenvolver. A autora baseia‑se então na possibilidade de que a forma do estudante pensar sobre os diversos assuntos, tanto escolares quanto de sua realidade, é extremamente revelador da qualidade do ensino efetivado. E referindo‑se ao ensino que está em vigor na maioria das escolas, utiliza o mesmo autor: É priorizada uma forma de ensino em que a introdução de novos conceitos segue sempre a mesma estrutura: um pequeno texto, às vezes, com apenas uma frase, acompanhado de vários exemplos. Após a apresentação do conceito, surgem os exercícios que, normalmente, exigem a reprodução das mesmas palavras e exemplos citados. Na sequência, um novo texto apresenta um novo conceito e a dinâmica se repete [...] Solicita‑se a classificação de objetos em determinadas categorias e não a formação de categorias. Um 20 Unidade I Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 exemplo disso está, inclusive, explícito nos objetivos propostos por muitos planejamentos: identificar, reconhecer, nomear, classificar, citar... Ao aluno resta a tarefa de “fixar” ou reconhecer atributos dentro de um âmbito previamente definido (PALANGANA, GALUCH & SFORNI, apud SFORNI, 2004, p. 50). Magagnato (2011) utiliza Davýdov (1982) para caracterizar o conceito de generalização que correntemente é utilizado na psicologia e didática tradicionais. Ou seja, a generalização consiste, num primeiro momento, em um processo e, em outro, em um resultado. É caracterizada pela busca do comum e a nomeação de certos invariantes num determinado conjunto de objetos. Depois, com os invariantes destacados, identificam‑se os objetos como pertencentes ou não à classe dada. A generalização leva a separar traços comuns e, portanto, gerais. No entanto, a abstração só ocorre quando se destaca um traço geral invariante de outros variáveis. “O conhecimento do geral, sendo resultado do ato comparativo e de sua fixação no signo constitui algo sempre abstrato, não concreto, imaginável” (DAVÝDOV, 1982, p. 17 apud MAGAGNATO, 2011, p. 40). Logo, o processo da generalização depende inicialmente da realização do ato de comparação dos elementos de um determinado conjunto de objetos diversos e variados, desconsiderando outras qualidades e tomando apenas o que é invariável e fixando‑o com um signo (palavra, desenho gráfico etc.). A partir dessa etapa, o estudante poderá identificar certo objeto com uma determinada classe devido a algum atributo comum. No entanto, observa a autora, pode ocorrer nesse processo uma imprecisão na aquisição do conceito se tomado como traço substancial aquele que é secundário. O geral é algo invariante que se repete na diversidade de um grupo de objetos, mas nem sempre é substancial, pois o traço substancial é aquele que representa algo necessário, inseparável de um objeto, indispensável para seu estudo. Mas essa observação, por hora, não faz parte do que está sendo tratado. O que é proposto no momento ao futuro professor é a tarefa de idealizar atividades com objetos diversos, adequados para seus futuros alunos utilizarem no processo da comparação e separação dos traços comuns entre eles para o entendimento da ideia de base proposta por Domingues (1998): [...]certo número natural b>1 é escolhido como base; isso significa que um agrupamento de b unidades simples (de primeira ordem) forma uma unidade de segunda ordem, um agrupamento de b unidades de segunda ordem forma uma unidade de terceira ordem, e assim por diante (no nosso sistema, por exemplo, dez unidades formam uma dezena, dez dezenas uma centena, dez centenas um milhar, etc.); são atribuídos nomes e símbolos especiais para 1, 2, ..., b (ou 0, 1, 2, ..., b‑1, se o zero é conhecido) e, às vezes, para b2, b3, ...; os nomes e os símbolos para os demais números são construídos a partir daqueles já introduzidos, mediante regras convenientes (DOMINGUES, 1998, p. 3). Para que o leitor se situe melhor nessa observação de Domingues (1998), vamos citar como exemplo duas representações possíveis do número 446. Segundo a base decimal, ele pode ser representado por seis unidades, quatro dezenas e quatro centenas, ou seja, 4.102 + 4.10 + 6. Segundo a base 8, seria 6.82 + 7.8 + 6. Dessa forma, pode‑se afirmar que (446)10 = (676)8.. 21 Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Teoria dos números O leitor percebeu que (446)10 = (676)8 correspondemaos coeficientes das bases utilizadas? 4.102 + 4.10 + 6 (4 4 6)10 Da mesma forma: 6.82 + 7.8 + 6 (6 7 6)8 Nesta unidade, está se tratando mais dos aspectos históricos da construção do conhecimento matemático sistematizado atual. Em unidade posterior será retomado o assunto bases de numeração na representação dos números inteiros. 2.1.2 Alguns sistemas de numeração Na Mesopotâmia, por volta de 4000 a.C., os sumérios desenvolveram a escrita cuneiforme, representada em placas de argila. Figura 5 – Escrita cuneiforme 22 Unidade I Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Figura 6 – Escrita cuneiforme Quase simultaneamente foram desenvolvidas no Egito uma forma de escrita, a hieroglífica, composta de símbolos e figuras. Os egípcios não desenvolveram um alfabeto, mas determinaram símbolos correspondentes aos sons de sua língua. Ao combinar os fonogramas, formavam‑se as versões esquematizadas de palavras. Figura 7 – Escrita hieroglífica Com o passar do tempo, foram desenvolvidas mais duas formas para a escrita: a hierática e a demótica. A hierática foi usada pelos sacerdotes em textos sagrados e era uma escrita cursiva, geralmente gravada em papiro, madeira ou couro. A demótica era uma forma simplificada de escrita, usada para as situações de comércio e situações gerais do dia a dia. 23 Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Teoria dos números Figura 8 – Papiro de Ani: documento em escrita cursiva hieroglífica Figura 9 – Escrita hierática Segundo Boyer (2003), as escritas demótica e hieroglífica só foram desvendadas a partir da descoberta em 1799 pela expedição de Napoleão da pedra de Rosetta (antigo porto de Alexandria). Ela continha uma mensagem em três línguas: demótica, hieroglífica e grega. Champollion, na França, e Thomas Young, na Inglaterra, decifraram as escritas antigas por serem conhecedores da língua grega. 24 Unidade I Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Figura 10 – Pedra de Rosetta Desta forma, Boyer (2003) comenta que a numeração hieroglífica egípcia foi facilmente decifrada. Pelo menos tão antigo quanto as pirâmides e datando de cerca de 5000 anos atrás, o sistema baseava‑se na escala de dez. Para a representação numérica, tinham símbolos em hieróglifos e em hierático: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Figura 11 – Hieróglifos 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Figura 12 – Hierático O sistema de numeração dos egípcios baseava‑se em sete números‑chave: 1, 10, 100, 1.000, 10.000, 100.000 e 1.000.000. Todos os outros números eram escritos combinando os números chave. 25 Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Teoria dos números 1 10 100 1.000 10.000 100.000 1.000.000 Figura 13 – Numerais egípcios Esses símbolos eram colocados lado a lado e repetidos até nove vezes. Por exemplo, o número 1.242 seria escrito da seguinte forma: Figura 14 Como já foi dito, o sistema usado era o decimal, ou seja, cada dez símbolos eram trocados por um símbolo de ordem superior, mas não era posicional: cada símbolo não tinha um valor relativo, ou seja, um valor que dependia da sua posição dentro do número. Não havia um símbolo para o zero. Os sistemas de numeração tinham por objetivo prover símbolos e convenções de agrupamento desses símbolos de forma a registrar a informação quantitativa e poder processá‑la. Ainda segundo Boyer (2003) as inscrições egípcias revelam familiaridade com grandes números desde tempos remotos. Os egípcios eram precisos no contar e no medir e, em razão disso, as pirâmides foram construídas com alto grau de exatidão e orientação. Já os babilônios, segundo Boyer (2003), usavam um sistema numérico sexagesimal, isto é, com base no número 60. Os assuntos matemáticos que se apresentam nos tabletes vindos da Mesopotâmia são: o sistema de numeração sexagesimal e as tábuas trigonométricas Ainda, o sistema de numeração usado variava entre o posicional, o decimal e o sexagesimal e a base 60 era apropriada principalmente para o cálculo com frações, por conta dos divisores naturais de 60: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 10, 12, 15, 20, 30, 60. Segundo o autor, especula‑se que o sistema sexagesimal teve origem provavelmente na astronomia, especificamente na contagem do tempo, isto é, na divisão do tempo em horas, minutos e segundos. O sistema seria originário da junção de dois sistemas mais antigos: o decimal e outro de base seis. No entanto, considera mais provável que a base de 60 unidades tenha sido adotada e legalizada no interesse da metrologia, uma vez que uma grandeza de 60 unidades pode ser mais facilmente subdividida em metades, terços, quartos, quintos, sextos, décimos, dozeavos, quinzeavos, vigésimos e trigésimos, fornecendo assim dez subdivisões. Eves (2004) informa que, mesmo nas tábuas mais antigas, o sistema sexagesimal posicional já estava estabelecido. Muitos dos textos dos primeiros tempos mostram a distribuição de produtos agrícolas e de cálculos aritméticos baseados neste sistema. Apesar da forma fundamentalmente decimal das sociedades atuais, esse sistema ainda permanece nas unidades de tempo e angulares. 26 Unidade I Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 O aparecimento e a difusão da escrita provocaram uma revolução na memória coletiva, propiciando a preservação de registros necessários ao desenvolvimento urbano que emergia nessas regiões: Em suma, o período de 3000 a 525 a.C. testemunhou o nascimento de uma nova civilização humana cuja centelha foi uma revolução agrícola. Novas sociedades baseadas na economia agrícola emergiram das névoas da Idade da Pedra nos vales dos rios Nilo, Amarelo, Indo, Tigre e Eufrates. Esses povos criaram escritas; trabalharam metais; construíram cidades; desenvolveram empiricamente a matemática básica da agrimensura, da engenharia e do comércio; e geraram classes superiores que tinham tempo bastante de lazer para se deter e considerar os mistérios da natureza. Depois de milhões de anos, afinal a humanidade tomava a trilha das realizações científicas (EVES, 2004, p. 56). Nascimento & Feitosa (2009) observam que sistemas de representação dos números por uma base são denominados de sistemas posicionais. Os autores chamam a atenção para que em decorrência da utilização do sistema posicional sexagesimal (com 60 unidades) pelos astrônomos babilônios, ainda utilizamos, por exemplo, a divisão da hora em 60 minutos, minutos em 60 segundos e a medida da circunferência em 3600. Existem outros sistemas, como o vigesimal (com 20 unidades) usado pelos maias da América Central. Também identificamos traços de um sistema vigesimal na língua francesa: 80 é designado por quatre vingts, literalmente quatro vintes. Do sistema duodecimal (doze unidades) temos em uso a dúzia. No sistema de medidas inglês, 1 ‘pie’ é igual a 12 polegadas, e no sistema monetário, 1 ‘chilin’ equivale a 12 ‘pences’. O sistema mais conhecido de sistema não posicional é o sistema romano. Este sistema tem uma coleção determinada de símbolos principais [...] e todo número é representado como combinação destes símbolos (NASCIMENTO & FEITOSA, 2009, p. 59‑60). saiba mais Alunos da licenciatura em Ensino da Matemática da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa apresentaram uma série de seminários com base na obra de Georges Ifrah, que faz parte de nossa referência bibliográfica, que estão disponíveis em: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/seminario/algarismos/ introducao.htm>. Acesso em:8 dez 2011. 3 CoMo se esCReveM os NÚMeRos Como já foi comentado e é reintegrado por Conway & Guy (1999), os babilônios utilizavam um sistema de escrita cuneiforme (do latim cuneus, cunha), que utilizava símbolos que variavam de 27 Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Teoria dos números significado conforme sua posição, constituindo‑se, assim, no primeiro exemplo de escrita posicional. No entanto, eles não dispunham de zero, o que tornava a escrita confusa. A notação posicional não foi utilizada nos sistemas grego e romano, só reaparecendo mais tarde em nosso próprio sistema com a notação hindu‑árabe. 3.1 o sistema grego Segundo Conway & Guy (1999), desde o século V a.C., aproximadamente, os gregos usavam a notação da figura abaixo. 1 10 100 α ι ρ 2 20 200 β k σ 3 30 300 γ λ t 4 40 400 δ µ υ 5 50 500 e ν φ 6 60 600 ς ξ χ 7 70 700 ζ Ο Ψ 8 80 800 η π ω 9 90 900 θ ϙ Ϡ Figura 15 – Numerais gregos saiba mais O estudante interessado na forma de representação de números neste sistema poderá ter mais informações no artigo disponibilizado no endereço eletrônico: <http://educar.sc.usp.br/licenciatura/2003/hm/page03.htm>. Acesso em 08 dez. 2011. 28 Unidade I Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 3.2 o sistema romano Os numerais romanos, segundo Conway & Guy (1999), foram os únicos utilizados em toda a Europa durante mais de um milhar de anos. O sistema derivou do sistema etrusco. I V X L C D M 1 5 10 50 100 500 1000 Figura 16 – Numerais romanos Figura 17 – Ainda hoje se utilizam os numerais romanos em mostradores de relógios, datas de monumentos, documentos etc. Figura 18 – Relógio atual Os mercadores europeus sentiram dificuldade na transição deste sistema para o sistema árabe na época medieval. No início da transição, observam Conway & Guy (1999), eram comuns erros, resultado da mescla dos dois sistemas, tais como: 29 Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Teoria dos números M5Oiv = 1504 Segundo esses autores, os numerais escritos com letras minúsculas apareceram também na época medieval, e atualmente ainda são utilizados na enumeração das subseções de uma lista de itens ou na numeração das páginas preliminares de um livro. Figura 19 – Fotografia de Eves (2004, p. 161) 3.3 Numerais hindu‑árabes O sistema de numeração atual, no qual se formam os números por justaposição dos dez dígitos, 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, é quase sempre denominado de notação árabe, porque aos árabes se atribui sua divulgação pelo mundo no século VII. No entanto, observa Conway & Guy (1999), sua origem é hindu. O valor de um dígito nesse sistema depende da sua posição nele, o que torna indispensável a existência de um símbolo para o zero. Como foi dito acima, os babilônios debateram‑se com a falta desse símbolo. Com os hindus, o zero ganhou o status de número, uma vez que, até então, mesmo entre os gregos do período alexandrino, ele era usado apenas para indicar “ausência”, observa Domingues (1998). Aliás, a respeito da importância desse símbolo, Ifrah (1996, p. 11) faz uma observação curiosa, que remete à história do desenvolvimento da matemática estar repleta de criadores anônimos: “O inventor do zero, escriba meticuloso e preocupado em delimitar um lugar numa série de algarismos submetidos ao princípio de posição, provavelmente nunca teve consciência da revolução que tornava possível”. Coube também aos hindus, observa Domingues (1998), a introdução na matemática dos números negativos. Mas o objetivo ainda era de indicar débitos. O primeiro registro do uso de números negativos de que se tem notícia remete ao matemático e astrônomo hindu Brahmagupta (598?), que já conhecia as regras para as quatro operações com esses números. 30 Unidade I Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Bhaskara (século XII), outro matemático e astrônomo hindu, teve importante participação na construção do conhecimento sobre os números negativos, com suas observações de que um número positivo tem duas raízes quadradas, uma negativa e outra positiva, e sobre a impossibilidade de se extrair raiz quadrada de um número negativo. Apesar da importância da participação dos hindus na introdução do uso dos números negativos, eles não tinham nenhuma preocupação teórica. Na verdade, ressalva Domingues (1998), os progressos iniciais matemáticos verificados na Índia ocorreram quase por acaso e em boa parte devido ao descompromisso com o rigor e a formalidade. Ainda, segundo o autor, o processo de aceitação e entendimento dos números negativos foi longo: Stifel (1486‑1567) os chamava de números absurdos; Cardano (1501‑1576), de números fictícios. Descartes (1596‑1650) chamava de falsas as raízes negativas de uma equação. Outros, como F. Viete (1540‑1603), importante matemático francês, simplesmente rejeitava os números negativos (DOMINGUES, 1998, p. 88). 3.4 A evolução da teoria dos números 3.4.1 Antecedentes Tanto os egípcios quanto os babilônios construíram, ao longo da história, um acervo matemático significativo. Desenvolveram a aritmética, a geometria e a álgebra, até certo ponto. No entanto, observa Domingues (1998), a matemática, como já foi comentado anteriormente, desenvolvida para embasar as realizações materiais desses povos, tinha limitações sérias do ponto de vista científico. Embora houvesse alguns vislumbres teóricos, ela era pouco mais de uma coleção de conclusões empíricas construídas ao longo dos séculos. No entanto, conclui o autor, apesar de suas raízes empíricas, a matemática é uma ciência dedutiva e, portanto, só como tal pode se desenvolver plenamente. Com os gregos, mais ou menos a partir do século VI a.C., a matemática perdeu muito do seu caráter empírico, baseado somente na observação e experimentação, e a produção de seu conteúdo passou a ser pautada na análise da realidade a partir da razão, como instrumento na busca da verdade. Segundo Domingues (1998), no que tange à matemática, essa postura se consubstanciou na ênfase dada ao método dedutivo a partir de axiomas anunciados a priori. Novas diretrizes, como a organização lógica e o caráter abstrato que a matemática grega adquiriu em sua primeira fase (mais ou menos do século VI a.C. à morte de Alexandre, o Grande, em 323 a.C.), deram‑se pela proximidade com as escolas filosóficas. Tales de Mileto (século VI a.C.), filósofo, talvez, conclui o autor, tenha sido o primeiro a formular propriedades gerais sobre figuras geométricas, desvinculadas do real. 3.4.2 Escola pitagórica Segundo Domingues (1998), na juventude, Pitágoras esteve por muito tempo no Egito, na Índia e na Mesopotâmia, onde, a par da matemática, absorveu muito do misticismo existente. Aos 40 anos, fundou um misto de escola e comunidade religiosa, em que coexistiam os estudos referentes à filosofia, 31 Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Teoria dos números à ciência e à matemática. Os ensinamentos eram transmitidos oralmente e com exigência da promessa de segredo. Todas as descobertas eram atribuídas a Pitágoras, de forma que não se sabe ao certo quais foram suas verdadeiras contribuições na produção desses conhecimentos. Em razão da tradição oral da escola, nenhum documento original restou sobre a matemática pitagórica. As doutrinas pitagóricas foram reveladas em livro escrito por um dos seus discípulos, Filolaus (450‑365 a.C.), séculos após a morte de Pitágoras.A matemática pitagórica exerceu grande influência na matemática grega, por meio de Platão, que teve acesso aos segredos divulgados por Filolaus. Proporções De acordo com Boyer (2003), é possível que Pitágoras tenha conhecido na Mesopotâmia as três médias: a aritmética, a geométrica e a subcontrária (posteriormente denominada harmônica) e, ainda, a proporção áurea, que relaciona duas delas: “o primeiro de dois números está para a sua média aritmética como a média harmônica está para o segundo” (Ibidem, p. 38). Acredita‑se que os pitagóricos expandiram esse conhecimento posteriormente, mas não é possível precisar a data de listagem das dez possibilidades de médias, como apresentada a seguir. Se b é a média de a e c, sendo a menor do que c, então as três quantidades estão relacionadas por uma das equações: b a c b a a − − = b a c b a c − − = b a c b b a − − = • c a b a c a − − = c a b a b a − − = b a c b a b − − = b a c b c a − − = b a c b c b − − = c a c b c a − − = c a c b b a − − = Figura 20 – Pentagrama – símbolo da escola pitagórica 32 Unidade I Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Segundo Eves (2004) admite‑se geralmente que os primeiros passos no sentido de desenvolvimento da teoria dos números e, ao mesmo tempo, do lançamento das bases do futuro misticismo numérico, foram dados por Pitágoras e seus seguidores movidos pela filosofia da fraternidade. O distintivo da irmandade pitagórica era o pentagrama estrelado, formado pelas cinco diagonais de um pentágono regular. Cada um dos cinco lados do pentagrama estrelado divide em secção áurea cada um dos dois lados do pentagrama que ele intercepta. A secção áurea é denominada também de número de ouro, razão áurea ou segmento áureo. Esse número é simbolizado pela letra f, inicial de Fídias, escultor grego que o utilizou em suas obras, ou por t (tau). O número de ouro é obtido da seguinte maneira: quando uma linha de um segmento é dividida em duas partes, de tal modo que a razão entre o segmento inteiro e a parte maior seja igual à razão entre a parte maior e a parte menor, essa relação é chamada relação áurea e o número obtido é o número de ouro. Observe o triângulo retângulo a seguir: n m Utilizando a definição dada para razão áurea, ou seja, quando uma linha de um segmento é dividida em duas partes, de tal modo que a razão entre o segmento inteiro e a parte maior seja igual à razão entre a parte maior e a parte menor, essa relação é chamada relação áurea e o número obtido é o número de ouro. Portanto, vamos considerar o seguinte segmento: m + n n m temos: m n m m n + = Ao desmembrar a primeira parte da equação, temos: m m n m m n + = 1+ = n m m n (1) 33 Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Teoria dos números Denominando, assim: m n f= (2) Obtém‑se, reciprocamente: n m f = 1 (3) Ao substituir as duas últimas relações (2) e (3) em (1), tem‑se: 1 1 + = f f f f f + = 1 f + 1 = f2 f2 – f – 1 = 0 Ao resolver a equação do segundo grau, temos: f = ±1 5 2 Ou seja, a raiz positiva é dada por: f = +1 2 23607 2 . f = 1,618034 Ainda, quando se quer obter o segmento áureo de outro segmento dado, basta multiplicá‑lo por 1 f e, quando se quer obter um segmento qualquer onde é conhecido o segmento áureo, basta multiplicá‑lo por f=1,618034 (número de ouro). Alguns exemplos muito conhecidos da aplicação da proporção áurea à concepção de beleza humana são as obras Homem Vitruviano e Mona Lisa, ambas de Leonardo da Vinci. Na Mona Lisa, o número áureo é utilizado nas relações entre tronco e cabeça e entre os elementos do rosto da mulher retratada. 34 Unidade I Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Figura 21 – Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci Figura 22 – Mona Lisa, de Leonardo da Vinci 3.4.3 Aritmética pitagórica Em razão das características da escola, os pitagóricos perceberam a ligação da matemática com a música e com a astronomia. Eles separavam o estudo teórico dos números, que chamavam 35 Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Teoria dos números de “aritmética”, dos cálculos práticos, que denominavam “logística”. Muito dos conhecimentos da matemática pitagórica foi reunido, informa Domingues (1998), nos Elementos, de Euclides (c. 300 a.C.): uma obra em 13 livros, abarcando a matemática elementar da época. Nessa obra, é atribuída aos pitagóricos a distinção entre números pares e ímpares, a divisão de números em primos e secundários (compostos) e, provavelmente, também era descoberta deles, o número perfeito (“números que é igual à soma de suas partes). 3.4.4 Os números figurados observação Boyer (2003) destaca a importância de o misticismo pitagórico associar‑se a números com extensão geométrica. Logo, a matemática não só se tornou um ramo da filosofia, mas se constitui como base de unificação de todos os aspectos da realidade. Apesar do misticismo e religiosidade, os pitagóricos eram grandes matemáticos. Eves (2004) observa que parece haver uma concordância universal de que os números figurados se originaram com os pitagóricos. Essa concordância se deve aos pitagóricos terem sido observadores atentos das formas geométricas, destaca Domingues (1998), assim eles se interessaram pelos números figurados. Esses números eram expressos como reunião de pontos numa determinada configuração geométrica, isto é, a quantidade de pontos representa um número, e estes são agrupados de formas geométricas sugestivas. São exemplos de classificações numéricas interessantes os números triangulares, os números quadrados e os números perfeitos. Os números classificados como triangulares são os que formam triângulos equiláteros. Seja Tn o n‑ésimo número triangular. Então: T1 = 1 T2 = 2 + 1 = 3 T3 = 3 + (2 + 1) = 6 T4 = 4 + (3 + 2 + 1) = 10 T T n n n n n n n= + = + + + + + = + −1 1 2 3 1 2 ( ... ) ( ) T n n n = +( )1 2 36 Unidade I Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Assim, esquematicamente: T1 = 1 T2 = 3 T3 = 6 T4 = 10 T5 = 15 T6 = 21 T n n n = +( )1 2 Figura 23 – Números triangulares A figura a seguir de números triangulares é sugestiva: Números triangulares 1, 3, 6, 10, 15, ... Figura 24 – Números triangulares Os números classificados como quadrados são os que formam quadrados perfeitos. Seja Qn o n‑ésimo número quadrado. Então: 37 Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Teoria dos números Q1 = 1 Q2 = 4 Q3 = 9 Q4 = 16 Qn = n 2 Tn–1 + Tn = n 2 2Tn = n (n + 1) Figura 25 – Números quadrados Assim, podemos determinar uma relação entre os números triangulares e os números quadrados. A soma de dois números triangulares consecutivos forma um número quadrado: T2 + T1 = Q2 T3 + T2 = Q3 T4 + T3 = Q4 Tn + Tn–1 = Qn Qn = n + 2Tn–1 Os números perfeitos são aqueles cuja soma dos divisores (excetuando‑se ele próprio) é o próprio número. Exemplos: O numero 6 é um número perfeito pois seus divisores são: 1,2, 3 e 6. Então, excetuando‑se o 6 temos a soma dos divisores é 1 + 2 + 3 = 6. saiba mais No site do Instituto de Matemática e Estatística da USP (IME‑USP), é possível obter mais informações sobre números figurados. LUCHETA, V. Imática – A matemática interativa na internet. Supervisão e orientação: prof. doutor Francisco César Polcino Milies. Disponível em: <http://www.ime.usp.br/~leo/imatica/historia/nfigurados.html>. Acesso em: 21 nov. 2011. 38 Unidade I Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 3.4.5 Ternos pitagóricos Os pitagóricos iniciaram, observa Domingues (1998), o estudo de problemas indeterminados envolvendo números naturais ao associá‑los às coisas, especialmente à geometria, ao buscarem o conjunto dos ternos ordenados de números naturais não nulos, tal que a2 + b2 = c2 (terno pitagórico) Esse estudo foi retomado posteriormente por Diofanto de Alexandria (séc. III, d.C.). Como foi comentado antes, a escola pitagórica era um misto de escola e comunidade religiosa, em que coexistiam os estudos referentes à filosofia, à ciência e à matemática. O que é peculiar nisso não é o fato de muitas civilizações primitivas ou antigas partilharem de várias crenças sobre numerologia, mas, atualmente, tais preceitos ainda se encontrarem em certas comunidades místicas. No entanto, por mais que a numerologia não seja uma criação dos pitagóricos, sua adoração aos números mostra aspectos de abstração como a veneração ao número dez não estar ligada à anatomia de mãos e pés humanos. Boyer (2003) faz um relato sobre o pensamento místico que direcionava a escola pitagórica: O número um, diziam eles, é o gerador dos números e o número da razão; o dois é o primeiro número par, ou feminino, o número da opinião; três é o primeiro número masculino verdadeiro, o da harmonia, sendo composto da unidade e da diversidade; quatro é o número da justiça ou retribuição indicando o ajuste de contas; cinco é o número do casamento, união dos primeiros números verdadeiros feminino e masculino; e seis é o número da criação. Cada número por sua vez tinha atributos peculiares. O mais sagrado era o dez ou o tetractys, pois representava o número do universo, inclusive a soma de todas as possíveis dimensões geométricas. Um ponto gera as dimensões, dois pontos determinam uma reta de dimensão um, três pontos não alinhados determinam um triângulo com área de dimensão dois e quatro pontos não coplanares determinam um tetraedro com volume de dimensão três; a soma dos números que representam todas as dimensões é, portanto, o adorado número dez (BOYER, 2003, p. 36). Um momento de reflexão para o futuro professor O leitor mais atento pode ter estranhado a afirmação anterior: “No entanto, por mais que a numerologia não seja uma criação dos pitagóricos, sua adoração aos números mostra aspectos de abstração como a veneração ao número dez não estar ligada à anatomia de mãos e pés humanos”. O convite para uma reflexão decorre exatamente por conta da possibilidade de existência de abstração em um raciocínio que envolvia aspectos místicos. Para entender‑se o que Boyer (2003) destacou como sendo abstração, é preciso retomar os aspectos teóricos que foram encaminhados no momento de reflexão anterior, em que a sugestão foi idealizar um conjunto de objetos diversos para que alunos buscassem os traços comuns a eles e, se possível, os traços substanciais. O que está sendo proposto nesses exercícios é a possibilidade do futuro professor de matemática ser capaz de modelar o processo de ensino de forma que surja o conceito do assunto em questão. 39 Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Teoria dos números Para a tarefa proposta é necessário configurar a ideia de modelo científico defendido neste trabalho: a saber, o modelo científico dialético como uma possibilidade de escapar das armadilhas de rigor que a lógica formal impõe ao processo ensino‑aprendizagem em ambientes que não são de bacharelado em Matemática. Segundo Magagnato (2011): No processo de modelagem, o modelo científico dialético é o método em ação, é a teoria se teorizando. Mas é preciso que haja determinadas estabilizações de regras para que haja sentido. O modelo, apesar de ser apresentado com uma certa estabilização, é sempre algo em processo, de acordo com Badillo (2004), uma constante substituição de modelos. De acordo com Davýdov (1982), os modelos são resultado e meio de uma atividade na qual está a unidade análise – síntese que, por um lado permite analisar o objeto e de outro ir obtendo um objeto intermediário sistêmico determinado que serve para explicar e substituir o objeto real. O modelo tem duas funções: uma é a substituição de um determinado sistema de objetos e outra é a que faz a substituição, não como um outro objeto, mas dando um certo padrão do processo de desenvolvimento do objeto. Pode‑se distinguir dois tipos de padrão: o “passo a passo” e aquele de relações conceituais. O primeiro tende a ser descritivo. Já o segundo apresenta a unidade sistema de conceitos – algoritmos, na qual há a codeterminação, mas com polo prevalente no sistema de conceitos. O sistema de conceitos envolve uma específica sistematização de conceitos, a qual pode ser empírica ou teórica (MAGAGNATO, 2011, p. 12). Segundo a análise de Magagnato (2011) a partir das colocações de Davýdov (1982) os trânsitos de pensamento do particular ao geral e do geral ao particular (com a identificação de objetos particulares a certa classe) junto com as generalizações e abstrações formais constituem os conceitos empíricos. A lógica formal tradicional, a psicologia e didática tradicionais “descrevem só o pensamento empírico, que resolve os problemas de classificação dos objetos por seus traços externos e o concernente à identificação dos mesmos2” (DAVÝDOV, 1982, p. 76 apud MAGAGNATO, 2011, p. 49). É interessante observar que a partir dessas colocações, o problema proposto para esse momento de reflexão começa a ser delineado. O que a humanidade tinha obtido de avanço, em direção aos conceitos que a matemática iria requerer em nossa era, consistia apenas em pensamentos empíricos, quando apenas relacionava os números à anatomia de mãos e pés humanos. Quando os pitagóricos, em seu misticismo, atribuíram “qualidades” aos números, eles utilizaram nexos não evidentes, não palpáveis. 2 […]describen sólo el pensamiento empírico, que resuelve los problemas de clasificación de los objetos por sus rasgos externos y lo concerniente a la identificación de los mismos. 40 Unidade I Re vi sã o: G er al do - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 14 /1 2/ 20 11 Segundo Magagnato (2011) a psicologia e a didática tradicionais recomendam aos professores que utilizem a experiência pré‑escolar dos alunos como base para o programa escolar quando eles entram na escola. Tal recomendação acontece na prática escolar, na qual se utiliza a experiência direta dos alunos para a formação de conceitos empíricos. Esta experiência, no ponto de vista da pedagogia tradicional, facilita a aprendizagem das crianças e, até certo ponto, há uma correspondência entre as noções escolares e o conteúdo da experiência do aluno. No entanto, é preocupante a escamoteação da diferença qualitativa entre a experiência e os conhecimentos científicos, ficando num mesmo plano e numa subordinação natural dos conhecimentos científicos em benefício da experiência. Esta é uma consequência da teoria empírica na didática e na psicologia, observa a autora apoiada em Davýdov (1982, p.103‑104). Esse exercício de reflexão tinha como objetivo levar o autor a considerar com espírito crítico as propostas da moda em psicologia e didática.
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