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Concurso Aparente entre Normas Penais Incriminadoras § 1. Nota introdutória. O último tema relacionado à teoria da norma penal e à interpretação penal, será tratado em lição particular devido sua imprescindível relevância. Sob a denominação concurso aparente de normas penais será analisado um dos assuntos mais controversos na teoria e na práxis penal, é dizer, um mesmo exemplo poderá encontrar distintas soluções na doutrina e nos julgados. Isso porque, o intérprete precisa decidir, não raras vezes, qual norma penal incriminadora aplicar, visto que se depara com o mesmo fato criminoso previsto em mais de um vigente tipo legal. Nessa modalidade de concurso há uma relação aparente entre tipos legais. A designação perfilhada é correta, pois não se trata de um efetivo, real ou autêntico conflito (o que estudaremos sob a terminologia concurso de crimes), porém de um imaginário concurso entre dois tipos legais no qual só um subsistirá. A solução deste conflito provém da adoção e aplicação de alguns princípios. Vejamos detidamente. § 2. O princípio da especialidade. O primeiro e principal princípio sustenta que a norma penal especial é aquela que, referindo-se ao mesmo fato criminoso, contém todos os elementos típicos da norma penal geral e, ao menos, um elemento a mais, de natureza objetiva ou subjetiva, denominado especializante ou específico. A norma penal especial apresenta singularidade – elemento constitutivo – que a diferencia da norma penal geral, razão pela qual tem preferência para resolução do conflito justamente porque melhor se aproxima da figura concebida pelo legislador. Eis o brocardo latino: lex specialis derogat lex generalis. Para ilustrar, vejamos alguns exemplos. § 2.1. Concurso aparente entre normas penais do Código Penal e legislação penal especial. O homicídio culposo de trânsito (art. 302 da Lei n. 9.503/1997) é especial em relação ao homicídio culposo (CP, art. 121, § 3°), pois o legislador acrescentou na descrição típica o elemento objetivo “na direção de veículo automotor” não presente no delito tipificado no Código Penal. O crime de tráfico ilícito de drogas (art. 33 da Lei n. 11.343/2006) é especial quanto ao crime de contrabando (CP, art. 334-A), pois o legislador acrescentou a capacidade objetiva de alguns produtos causarem dependência física ou psíquica para diferenciá-los dos demais que são passíveis de importação clandestina ou proibida e com previsão no Código Penal. O crime de dano ambiental (art. 62, I, da Lei n. 9.605/1988) é especial quanto ao crime de dano (CP, art. 163) em razão do objeto material (bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial). O crime falimentar do art. 168 da Lei n. 11.101/2005, de 09 de fevereiro, é especial em relação ao crime de estelionato (CP, art. 171). Os Códigos Eleitoral e Militar contém preceitos igualmente especiais em relação aos consignados no Código Penal. Assim, por exemplo, o art. 299 da Lei n. 4.737/1965, de 15 de julho, tipifica em um único dispositivo os delitos de corrupção passiva (CP, art. 317) e ativa (CP, art. 333). O art. 248 do Decreto-lei n. 1.001/1969, de 21 de outubro, que regula a apropriação indébita por parte de militares, é especial em relação ao art. 168 do Código Penal. É de se notar que não apenas na conexão entre tipos penais do Código Penal e de leis especiais ocorre a aplicação do princípio da especialidade. Entre os crimes previstos apenas em leis especiais e apenas no Código Penal isso também é possível. Vejamos respectivamente alguns casos. § 2.2. Previsão legal do princípio da especialidade. Um setor da doutrina penal defende que o art. 12 do Código Penal é o corolário legal do estudado princípio. Não é totalmente correto esse prestígio, pois o referido preceito, em nenhum momento, invoca uma relação de tipos legais apta à caracterização de um concurso aparente de normas penais incriminadoras, mas só ressalva a especialidade de uma norma penal não incriminadora em relação à outra. Com efeito, uma regra prevista em lei especial deve prevalecer, é dizer, ser aplicada ao fato por ela incriminado, sobre a regra prevista na parte geral do Código Penal e que regula a mesma matéria. Assim, por exemplo, a execução da pena privativa de liberdade não superior a dois anos pode ser suspensa quando preenchidos alguns requisitos legais (CP, art. 77). Mas para os crimes ambientais, essa norma não se aplica, porquanto a Lei n. 9.605/1998, de 12 de fevereiro, contém regramento específico, isto é, nos crimes previstos na legislação especial, a suspensão condicional da pena pode ser aplicada nos casos de condenação a pena privativa de liberdade não superior a três anos (art. 16). Em nenhum momento houve um conflito entre tipos legais, leia-se, entre duas normas penais incriminadoras. Em outro exemplo: salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços (CP, art. 14, parágrafo único). Para as formas de genocídio previstas na Lei n. 2.889/1956, de 1° de outubro, essa norma penal não incriminadora não se aplica, visto que a lei especial dispõe de modo diverso, aduzindo que “será punida com dois terços das respectivas penas a tentativa dos crimes” (art. 5°). § 2.3. A ofensa ao mesmo bem jurídico tutelado? Cumpre advertir que em todos os exemplos citados existe uma relação de gênero e espécie, mas não essencialmente uma identidade de bens jurídicos, é dizer, não se exige uma invariável objetividade, como enfatiza José Cândido Filho. O pressuposto único é que um mesmo fato seja recondutível a uma norma geral e outra especial, sendo a especialidade o princípio que resolve a não ofensa ao bis in idem. Atente que o crime de extorsão (CP, art. 158) e o crime de estupro (CP, art. 213) são normas penais especiais em relação ao crime de constrangimento ilegal (CP, art. 146) e os primeiros preveem objetividades jurídicas (patrimônio e dignidade sexual) diversas à do último (liberdade individual). § 2.4. Consequência da estrutura lógica determinante da relação de especialidade. Aquele que perpetra o tipo especial incide também no tipo geral. No entanto, quando não for possível provar a presença do elemento especializante haverá a desclassificação do crime para a espécie geral, pois, para Frederico Horta, “a realização dos pressupostos de incidência da norma especial pressupõe a realização daqueles previstos na norma geral e, portanto, a infração daquela importará sempre na ofensa ao bem ou bens jurídicos notadamente protegidos por esta”. Desta forma, se a mãe mata o seu filho durante o parto e não consegue provar a influência do estado puerperal, responderá pelo crime de homicídio e não pelo crime de infanticídio. § 3. O princípio da subsidiariedade. Trata-se do segundo princípio que resolve o aparente concurso de identidade na caracterização do fato criminoso por mais de uma norma penal. A subsidiariedade entre tipos legais de crimes pode se verificar em dois casos: quando distintos os graus de ofensa previstos em diversas normas penais incriminadoras, porém referidos ao mesmo bem jurídico; e, quando a norma penal primária contém outros interesses atingidos além do previsto na norma penal subsidiária. Eis o brocardo latino: lex primaria derogat legi subsidiaria. Talvez essas considerações soem demasiadamente abstratas. Visando remediar este defeito, raciocinemos com base em alguns exemplos. § 3.1. Ofensa em graus diversos ao mesmo bem jurídico. Em relação ao primeiro contexto, pensemos no seguinte caso: para lucrar mais dinheiro, o dono do circo retira a rede de proteção dos trapezistas durante os espetáculos. Verificando que sua iniciativa resultou em maior adesão do público,inova em outros shows colocando o palhaço no globo da morte com os motociclistas. Porém, em determinado dia, um dos trapezistas falece em face da queda e o palhaço resulta gravemente ferido em razão de atropelamento. Antes dos eventos danosos, o bem jurídico das vítimas (respectivamente, vida e integridade pessoal) foi exposto a uma situação de perigo que, em tese, poderia ensejar a punição do dono do circo pelo art. 132 do Código Penal: “expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente”. Este dispositivo, contudo, é aplicado apenas se não restar configurada ofensa ao mesmo interesse jurídico em grau superior: o homicídio culposo do trapezista (CP, art. 121, § 3°) afasta a norma do art. 132 do CP, mas a lesão corporal culposa no palhaço (CP, art. 129, § 6°) não afastaria, pois a pena cominada a este delito é menor que a cominada àquele (art. 132). Observe que o legislador ao redigir o preceito secundário do art. 132 do Código Penal é incisivo ao prever a aplicação da pena de detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave. De fato, apenas a pena do respectivo crime de homicídio culposo é maior que aquela cominadas à infração de perigo: para o crime homicídio culposo é reclusão, de um a três anos. Analisando o fato concreto, assim, é possível alcançar a relação de primariedade-subsidiariedade entre as normas penais incriminadoras, pois o mesmo bem jurídico é protegido em diversos estágios, sendo que o inicial (infração de perigo do art. 132 do CP) é preterido pelo final (infração de dano do art. 121, § 3°). Aplicando-se a norma primária, resta excluída a norma subsidiária. O tipo subsidiário, valendo-se de Hungria, é apenas um “soldado de reserva”. § 3.2. Pluralidade de bens jurídicos na norma penal principal. Quanto ao segundo caso de aplicação do princípio da subsidiariedade pensemos no seguinte exemplo: o zelador, ciente de que outros veículos estavam estacionados na garagem do edifício, danifica com material inflamável o automóvel do morador que o havia insultado. Contudo, o fogo se alastra e atinge outros carros. A princípio o zelador responderia pelo crime de dano qualificado (CP, art. 163, parágrafo único, II), mas verificada a situação de perigo coletivo responde pelo crime de incêndio (CP, art. 250, § 2º, II). O bem jurídico tutelado na primeira norma penal, isto é, a disponibilidade do patrimônio, também é previsto na segunda norma incriminadora. Nesta, contudo, além daquele bem jurídico, também se protegem a disponibilidade da vida e da integridade física de um número indeterminado de pessoas. Portanto, a norma subsidiária cede o passo à norma primária. Ocorre a incidência desta, pois a lesão ao bem jurídico tutelado pela norma descartada (subsidiária) também se verifica para incidência da norma aplicada (primária). Essa conclusão, inclusive, foi prevista pelo legislador ao redigir o crime de dano qualificado: “Se o crime é cometido com emprego de substância inflamável ou explosiva, se o fato não constitui crime mais grave” (CP, art. 163, parágrafo único, II). § 3.3. Subsidiariedade expressa. A incidência da norma penal subsidiária está vinculada a não aplicabilidade de outra norma a ela preferível. A norma penal principal, porém, pode ou não estar individualmente determinada pelo legislador, conforme aduz Frosali. Na primeira classe, estabelece o caráter subsidiário à outra norma individualmente determinada, como, por exemplo, no preceito primário do crime de favorecimento real – fora dos casos de recepção (CP, art. 349) ou na contravenção de desabamento de construção (art. 40). Na segunda classe, o legislador insere no texto da norma cláusula do tipo se o fato não constitui crime mais grave. Mais além dos exemplos referidos, veja-se o crime de simulação de autoridade para celebração de casamento (CP, art. 238), o crime de extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento (CP, art. 314) ou o crime de violação de sigilo profissional (CP, art. 325). Na Lei das Contravenções Penais há outros exemplos: vias de fato (art. 21), provocação de tumulto (art. 40) ou o uso ilegítimo de uniforme ou distintivo (art. 46). Nestes casos prevê o legislador no texto legal as cláusulas se o fato não constitui crime ou se o fato não constitui infração penal mais grave. § 3.4. Subsidiariedade tácita. Excepcionalmente, porém, inferem-se casos em que é excluída de forma implícita a aplicação da norma penal subsidiária ao fato concreto, porque integrante da descrição de outra e mais grave norma penal incriminadora. Veja-se que da perturbação de serviço de estrada de ferro pela colocação de obstáculo na linha (CP, art. 260, II) pode decorrer o próprio desastre ferroviário (CP, art. 260, § 1°). Nessa conexão, respectivamente entre um crime de perigo concreto e outro correspondente a um crime de dano, encontra incidência somente o segundo, que exaure o desvalor do fato contido no primeiro delito, descrevendo um nível de ofensa mais intenso ao bem jurídico penalmente tutelado. O mesmo se verifica no seguinte caso: o zelador, para vingar-se do insulto que a ele foi dirigido pelo morador, resolve arrombar o apartamento do mesmo para furtar bens do seu interior. Pratica, em tese, o crime de dano (CP, art. 163) e o crime de violação de domicílio (CP, art. 150). O primeiro crime, contudo, constitui qualificadora do delito de furto (CP, art. 155, § 4º, I), razão pela qual o zelador apenas irá responder pela sanção prevista na norma primária. Observe, inclusive, que entre as normas não existe uma relação de gênero e espécie. Trata-se do clássico exemplo de subsidiariedade implícita. Há, inclusive, quem entenda coincidentes os critérios da subsidiariedade implícita e da consunção, como Eduardo Correia, mencionando que a norma subsidiária é absorvida, pura e simplesmente, pela norma penal primária. Não obstante o relevo desta doutrina, pensamos que o embaraço não se prende, tão-só, a uma questão terminológica, porém ao fato do muitos não se atentarem que o fato pressuposto na norma penal subsidiária é excluído porque por uma técnica legislativa ele também é previsto como elemento constitutivo ou qualificativo de crime mais grave. § 3.5. Consequência da estrutura jurídica determinante da relação de subsidiariedade. Caso não seja reconhecido o crime primário, a norma penal subsidiária passa a prevalecer para o efeito de aplicação da pena. Essa consequência é facilmente observável no contexto da desistência voluntária (CP, art. 15, 1ª parte). Regressando ao último exemplo, se o zelador, voluntariamente, desistisse de prosseguir no furto dos bens do morador, sendo indiferente sua razão, só responderia pelos atos já praticados, é dizer, pelo dano à porta do apartamento. Por sua vez, concretizando o crime contra o patrimônio, o dano seria descartado, pois incidiria a qualificadora da destruição de obstáculo à subtração da coisa (CP, art. 155, § 4°, I). Nesse caso, observa-se que a norma aplicada é mais grave que a norma preterida. E o inverso pode dar-se, é dizer, a norma penal subsidiária pode ser punida mais gravemente que a norma penal primária? Pense-se no caso de agente que dispara arma de fogo com o fim de ameaçar outrem. Pode-se descartar o crime do art. 15 da Lei n. 10.826/2003, de 22 de dezembro, em face da aplicação do que dispõe o art. 147 do Código Penal? Atente que o preceito primário do primeiro delito contém uma cláusula expressa no sentido que o disparo assim deve ser punido, desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime. A intenção do agente, em nosso exemplo, foi ameaçar outra pessoa e, para alcançar esse fim, valeu-se dos disparos de arma de fogo. Assim, textualmente, a ele deveria ser aplicada àspenas do delito previsto no Código Penal. Mas essa solução seria justa? Frederico Horta responde negativamente. Pensamos que assiste razão ao autor, monografista no referido tema, ao destacar que se deve limitar a incidência da subsidiariedade somente às hipóteses de aplicação de normas penais mais graves, pois apenas assim o sentido teleológico das mesmas seria respeitado (o delito previsto em lei especial visa proteger a integridade pessoal e a vida de um número indeterminado de pessoas). Na esteira do autor, seria incongruente punir de modo mais rigoroso “o agente que disparasse um revólver para saudar a imagem de um santo, durante uma procissão, que outro que o fizesse com a finalidade de aterrorizar determinada pessoa”. Por isso alcança a conclusão que “tal desproporção autoriza, com segurança, a declaração de sua inconstitucionalidade por violação do princípio da isonomia ou, ao menos, sua aplicação corretiva”. § 4. O princípio da consunção. Há casos de concurso aparente solucionados por um último critério: a consunção ou absorção. Isso, porque, conforme Toledo, “existem, na lei penal, tipos mais abrangentes e tipos mais específicos que, por visarem à tutela de bens jurídicos diferentes, não se situam numa perfeita relação de gênero para espécie (especialidade), nem se colocam em posição de maior ou menor grau de execução do crime (subsidiariedade)”. Nessas hipóteses, em regra geral, “comete-se um delito que é estritamente funcional para outro e mais grave delito, sendo que este absorve aquele”. Retira-se do brocardo latino: major absorbet minorem. Vejamos os exemplos de crimes complexos. Quando a lei considera como elemento ou circunstância do tipo legal fatos que, por si mesmos, constituem crimes, fala-se de um crime complexo. Para tocar com as mãos, observe o crime de roubo (CP, art. 157) que pode ser entendido como resultado da fusão dos crimes de furto (CP, art. 155) e constrangimento ilegal (CP, art. 146) ou ameaça (CP, art. 147). O mesmo se passa no crime de extorsão mediante sequestro (CP, art. 159) que deriva da junção do sequestro (CP, art. 148) e da extorsão (CP, art. 158). Nos dois exemplos, os respectivos crimes contra a liberdade constituem fases normais de realização dos citados crimes contra o patrimônio, é dizer, nos singulares crimes contra a liberdade figuram os nexos funcionais que são à base da norma consuntiva, ou seja, os crimes contra o patrimônio. Observe que em todos os exemplos os bens jurídicos são diversos. Na primeira situação era a inviolabilidade de domicílio e a disponibilidade do patrimônio; no outro, respectivamente, a disponibilidade da honra e o respeito devido aos atos administrativos. Segundo Bitencourt, “a diversidade de bens jurídicos não é obstáculo para a configuração da consunção”. § 5. Pluralidade de fatos concretos e concurso aparente de normas. Ainda é possível existir casos de pluralidade de fatos concretos cronologicamente separados, cada qual suscetível de perfilhar uma norma penal incriminadora, aplicando-se, porém, apenas uma delas. Significa que os fatos criminosos são plurais, mas submetidos a uma unidade preceptiva. É precisa a advertência de Fernando Pedroso, pois “por unidade de fato há que se entender a unidade jurídica, e não a fenomênica”. Nesse contexto se inserem as hipóteses de antefactum não punível e de postfactum não punível. § 5.1. Antefactum não punível. Nessa primeira hipótese, o agente realiza um fato criminoso que se constitui em simples ato preparatório de outro crime que realmente quer realizar. O fato cronologicamente antecedente não é punível, sendo o concurso aparente de normas solucionado, de acordo com Marinucci e Dolcini, pela aplicação do princípio da subsidiariedade. Seguimos, respectivamente, com a tratativa dos progressivos e da progressão criminosa. § 5.1.1. Crime progressivo. Trata-se da hipótese na qual o agente, para alcançar um resultado pretendido, pratica uma conduta anterior que produz, em regra geral, um resultado menos grave, porém necessário ao fim desejado. Para falsificar, fabricando-a ou alterando-a, moeda metálica ou papel moeda de curso legal no país (CP, art. 289), é necessário que o agente possua, ao menos, instrumentos ou qualquer objeto destinado à finalidade pretendida (CP, art. 291). Nesse contexto, o delito de petrechos para falsificação de moeda é considerado um ato preparatório da sucessiva falsificação de moeda pelo mesmo agente. Responderá, portanto, somente pelo crime de moeda falsa (CP, art. 289). Nesse caso, há duas normas que preveem níveis de ofensa diversos ao mesmo bem jurídico (fé pública), sendo que o crime prevalente representa “um estágio mais avançado e grau mais intenso de ofensa ao bem jurídico tutelado penalmente, excluindo-se a aplicabilidade da norma penal subsidiária relacionada ao fato precedente”. Não se verificando a falsificação da moeda, responde o agente pelo crime autônomo do art. 291 do Código Penal. Esse crime constitui uma das exceções relacionadas à punibilidade de atos preparatórios. § 5.1.2. Progressão criminosa. Trata-se da hipótese na qual o agente, inicia a conduta visando alcançar um resultado menos grave, porém, em sua execução, altera a sua intenção delitiva para a prática de crime mais grave. Adaptemos o exemplo do zelador: depois de encontrar o morador na garagem do edifício, passa a agredi-lo fisicamente para se vingar da ofensa recebida. Durante a execução, através de nova deliberação de vontade, o zelador passa a querer a morte do morador, o que se realmente sucede. Responderá apenas pelo homicídio (CP, art. 121). Nesse caso, existem duas normas penais no qual “uma delas descreve um grau de ofensa ao interesse jurídico menos importante e compreendido no bem jurídico ofendido pelo fato que se verifica na sequência”. Em outras palavras, a preliminar lesão corporal, por sua sede e natureza, constitui causa eficiente do êxito letal verificado. Veja-se que o bem jurídico desprotegido pela infração de lesão corporal (CP, art. 129) está compreendido no bem jurídico ofendido pela conduta sucessiva (CP, art. 121), porque o zelador, para matar o desafeto, precisa ofender a integridade física do mesmo. § 5.2. Postfactum não punível. Nessa segunda hipótese, o agente, depois de realizar um fato criminoso, pratica outro, cronologicamente separado, e que constitui mero exaurimento daquele, é dizer, o fato posterior é mera decorrência esperada de um fato criminoso mais grave e anterior. Esse concurso aparente de normas é solucionado, segundo Marinucci e Dolcini, pela aplicação do princípio da consunção ou absorção. O tradicional exemplo ventilado pela doutrina diz respeito ao agente que destrói a coisa alheia móvel anteriormente subtraída. Nesse caso, não responderia pelo crime de dano (CP, art. 163), mas pelo crime de furto (CP, art. 155). Ao exemplo opomos duas objeções: a primeira, referente ao bem jurídico tutelado, pois a lógica da subsunção é trabalhar com ofensas a bens jurídicos distintos e, no caso, ambas as infrações protegem a disponibilidade do patrimônio do titular da coisa; a segunda, relacionada à finalidade do crime de furto, visto que a destruição do bem subtraído não corresponde ao seu propósito. Pensemos em outra situação: dois agentes cometem um crime de furto (CP, art. 155) e um deles auxilia o outro a subtrair-se à ação da autoridade pública (CP, art. 348). No exemplo, não responderá por favorecimento pessoal, mas apenas pelo crime contra o patrimônio (art. 155), pois quem pratica a subtração tende a agir, posteriormente, como o proprietário da coisa subtraída. E como se dono fosse do objeto, auxilia seu cúmplice para subtrair-se à ação de investigação, pois sendo este capturado,poderá delatar aquele. O favorecimento ao terceiro, conforme os professores italianos, “representa um normal desenvolvimento da ação precedente, com a qual o agente consegue as vantagens derivadas do primeiro crime”. Em outro contexto, o funcionário público que recebe uma vantagem indevida (CP, art. 317) e, ato contínuo, influi para que um terceiro de boa fé oculte o dinheiro até que possa levantá-lo com segurança (CP, art. 180), não irá responder pelo crime posterior. Entendemos que essa técnica de interpretação corrige, inclusive, a incongruente consequência se aplicada a Súmula n. 17 do Superior Tribunal de Justiça que dispõe que “quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencial lesivo, é por este absorvido”. Em tese, um crime menos grave pode absorver um crime mais grave. Por evidente, quem falsifica um documento público não o faz para mostrar habilidade, senão porque visa, entre outros fins, auferir uma vantagem em detrimento de outrem. O crime de estelionato, portanto, representaria a mera decorrência esperada do comportamento precedente, é dizer, o caminho pelo qual o agente consegue alcançar o seu propósito. Posto isso, deveria responder apenas pelo crime mais grave, ou seja, o art. 297 do Código Penal.
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