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IESDE Brasil S.A. Curitiba 2011 Cláudia Mara Padilha Mainieri DESENVOLVIMENTO E APRENDIZAGEM DE ALUNOS SURDOS: COGNITIVO, AFETIVO E SOCIAL Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Todos os direitos reservados. © 2010 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. Capa: IESDE Brasil S.A. Imagem da capa: Jupiter Images M278d Mainieri, Cláudia Mara Padilha / Desenvolvimento e aprendizagem de alu- nos surdos: cognitivo, afetivo e social. / Cláudia Mara Padilha Mainieri. — Curitiba : IESDE Brasil S.A., 2011. 168 p. ISBN: 978-85-387-1732-4 1. Surdez. 2. Historicidade. 3. Escolarização. 4. Sujeito. 5. Sociedade. I. Título. CDD 376.33 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Cláudia Mara Padilha Mainieri Graduada em Pedagogia com ênfase em Educação Infantil, Séries Iniciais e Orientação Escolar, pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Especialista em Edu- cação Especial no Contexto da Educação Inclusiva e em Psicopedagogia, ambos pela UTP. É professora pelo governo do estado do Paraná, onde atua com intervenção precoce, avaliação e atendimento psicopedagógico, nos níveis de Educação In- fantil e Ensino Fundamental. Atua na capacitação e complementação de estudos de professores de Edu- cação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Especial nas instituições: Faculdades Integradas do Brasil (UniBrasil), Sistema Educacional Base Editora, Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus e Faculdade São Judas Tadeu, no curso de Pedagogia. Tem experiência na educação de sujeitos surdos no Ensino Superior, como in- térprete de Libras, na UniBrasil. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Sumário Conhecendo a surdez ............................................................. 11 O que é surdez ............................................................................................................................ 11 Para refletir ................................................................................................................................... 19 Curiosidades ................................................................................................................................ 19 Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais ................................... 27 No período primitivo ............................................................................................................... 27 Paradigmas de atendimento educacional ...................... 47 Paradigma da institucionalização: princípio da cura .................................................... 47 Paradigma de serviços: princípio da normalização e (re)habilitação ..................... 48 Paradigma de suportes: princípio da inclusão ............................................................... 50 Concepção de sujeito ............................................................. 61 Excepcional .................................................................................................................................. 61 Deficiente auditivo ................................................................................................................... 62 Surdo .............................................................................................................................................. 62 Portador de necessidade educativa especial .................................................................. 63 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br O surdo e suas relações sociais ............................................ 77 Identidade surda ....................................................................................................................... 77 O surdo na família ..................................................................................................................... 78 O surdo na sociedade .............................................................................................................. 81 O surdo na escola ...................................................................................................................... 84 Filosofias educacionais ........................................................... 95 Oralismo ....................................................................................................................................... 95 Comunicação total .................................................................................................................... 97 Português sinalizado (ou bimodalismo) ........................................................................... 98 Bilinguismo .................................................................................................................................. 99 Conhecimentos jurídicos .....................................................109 Leis, resoluções e portarias ..................................................................................................110 Diretrizes Nacionais ................................................................................................................114 Escola e sociedade inclusiva ...............................................127 Ações sociais .............................................................................................................................127 Ações políticas ..........................................................................................................................127 Ações escolares ........................................................................................................................128 Ações trabalhistas ...................................................................................................................129 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Adaptações curriculares ......................................................139 Adaptação curricular de pequeno e grande porte .....................................................141 Avaliação ....................................................................................................................................143 Libras ...........................................................................................151 Estrutura da língua..................................................................................................................151 Código de ética ........................................................................................................................152 Profissional intérprete ...........................................................................................................154 Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Apresentação Prezado aluno, O livro Desenvolvimento e Aprendizagem de Alunos Surdos: cognitivo, afetivo e social traz temas fundamentais a respeito da surdez, os quais têm por objetivo compreender as diferentes faces do universo surdo, desde a compreensão da es- trutura e funcionamento do ouvido, passando por abordagens como: percurso e trajetóriasócio-histórica da surdez dentro e fora do Brasil, estruturas de trabalho oferecidas ao surdo, diferentes definições de surdez e as concepções de sujeito la- tentes a esses termos, relações do surdo em diferentes segmentos da sociedade, linhas de trabalho pedagógico, legislações aos portadores de necessidades edu- cacionais especiais, escola e sociedade inclusiva, prática pedagógica do professor em sala de aula e estrutura linguística da Língua Brasileira de Sinais. Bons estudos! Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 11 De acordo com os dados da Organização Mundial da Saúde (2000), existem no mundo mais de 120 milhões de pessoas com perda auditiva, seis em cada mil crianças apresentam essa dificuldade ao nascer e uma em cada mil fica surda antes da idade adulta. No Brasil, existem 5,7 milhões de pessoas com surdez, segundo o censo de 2000 do IBGE. O que é surdez A palavra surdez tem sido empregada para designar qualquer tipo de perda de audição, parcial ou total, que pode ser temporária ou definitiva. Segundo Davis e Silverman (1970), [...] surdez significa audição socialmente incapacitante. O surdo é incapaz de desenvolver a linguagem oral, evidentemente porque não ouve. Os limiares auditivos desses pacientes são de tal forma elevados que não conseguem escutar o som de modo adequado. Escutam ruídos, mas não são sons. As perdas de audição são maiores que 93dB nas frequências de 500, 1 000 e 2 000Hz. Estruturas do ouvido Os termos ouvido (pavilhão auricular/pa- vilhão auditivo) e orelha (do latim: auricula), podem ser encontrados na literatura para conceituar estudos referentes à audição. No Brasil, com a publicação de Terminologia Ana- tômica, apresentada pela Sociedade Brasileira de Anatomia em 2001, usa-se o termo orelha para designar tanto o órgão da audição em sua totalidade, como a parte visível e externa que corresponde ao pavilhão auricular. Conhecendo a surdez IE SD E Br as il S. A . Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 12 Conhecendo a surdez Embriologia da orelha humana O desenvolvimento embriológico da orelha ocorre de dentro para fora, nos primeiros dias de vida intrauterina quando o embrião apresenta o tubo nervoso que irá gerar o feto. Na terceira semana começam a aparecer as primeiras demarcações do nervo auditivo e por volta do 23.º dia se formam os buracos auditivos que, aos 30 dias, darão origem às estruturas da orelha interna. Entre a 3.ª e 4.ª semanas, inicia-se o desenvolvimento da orelha média e do pavilhão auricular. Na 5.ª semana, inicia-se a formação do conduto auditivo ex- terno. No final da 6.ª semana aparecerão ranhuras que irão dar forma ao pavi- lhão, definindo-o como o de um adulto. O feto reage a sons produzidos pelo organismo da mãe e a sons externos superiores a 90dB (intensidade do som – forte e fraco). Após o nascimento é pos- sível perceber que o bebê demonstra ter memória auditiva para fatos ocorridos durante a gestação. A membrana timpânica (ou tímpano) muda de posição até os dois anos de idade, o pavilhão auricular (ou orelha) continua a crescer até os 9 anos e a tuba auditiva amadurece e se verticaliza até os 7 anos. Decibels ou decibéis? Em homenagem a Alexander Graham Bell, inventor do telefone, foi usada para medições de perdas nas linhas telefônicas, nos EUA, uma unidade de- nominada Bel, como medida relativa de intensidade, a qual comprimia uma ampla variação da escala linear de intensidades pela transformação desta em uma escala logarítmica (RUSSO, 1999). No plural, utiliza-se, respectivamente, Bels e decibels, e não decibéis, como é erroneamente empregado. Alexander Graham Bell (1847-1922) abriu em 1872 uma escola oralista para professores de surdos, em Boston. No ano seguinte registrou a patente do telefone. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Conhecendo a surdez 13 Tornou-se presidente da associação americana para impulsionar o ensino da fala aos surdos. O seu eugenismo parecia não ter limites: propôs a eli- minação das escolas residenciais, a proibição do magistério aos professores surdos e mesmo o casamento entre surdos. Divisões da orelha A orelha divide-se em externa, média e interna. Cera Pelos Cartilagem Conduto Externo Auditivo Martelo Bigorna Estribo Labirinto Nervo Facial Nervo Auditivo Utrículo Vestíbulo Sáculo Cóclea Trompa de Eustáquio OUVIDO INTERNO OUVIDO MÉDIO OUVIDO EXTERNO Tímpano Janela Oval IE SD E Br as il S. A . Orelha externa: funciona como uma concha que capta os sons e os dire- � ciona até o tímpano. Orelha média: é a porção interna do tímpano, e externa da cóclea, e con- � tém três ossículos (bigorna, martelo e estribo) que amplificam a vibração do tímpano. O espaço oco do ouvido médio é também chamado de caixa timpânica. A orelha média comunica-se com a faringe através da tuba au- ditiva, que tem como função equilibrar as pressões de ar da orelha e do meio externo. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 14 Conhecendo a surdez Orelha interna: é a última porção interna do ouvido, localiza-se do estribo � até o nervo auditivo. A orelha interna, através das células nervosas, é res- ponsável por receber os estímulos sonoros e enviar essas informações ao cérebro que irá decodificar e compreender o que estamos ouvindo. Fisiologia da audição Os sons entram no organismo pela ORELHA. 1 Passam pelo CONDUTO AUDITIVO, um canal que amortece as ondas sonoras e as conduzem até o tímpano. 2 O som causa uma pressão do TÍMPANO, que vibra e atinge três pequenos ossos: martelo, bigorna e estribo. 3 Esses ossos estimulam a CÓCLEA, um órgão cheio de líquido que recebe o som através de ondas. 4 ESTRIBO Na cóclea os sons serão decifrados e transmitidos para o cérebro pelo NERVO AUDITIVO. 5 BIGORNA MARTELO IE SD E Br as il S. A . Causas da surdez Alguns dos dados citados a seguir referem-se a achados científicos que não são determinantes de ocorrer a todos os sujeitos que pertencem a esses grupos. Surdez congênita � : é a surdez adquirida na fase gestacional. O sujeito pode apresentar dificuldade na assimilação da fala, por ser pré-lingual e pode ocorrer nos períodos: pré-gestacional � – são casos em que os sujeitos (pai e mãe) podem apresentar suscetibilidade em gerar um filho surdo: Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Conhecendo a surdez 15 fatores genéticos: são as variações do organismo durante a sua constituição na gestação; fatores hereditários: são as informações genéticas que passam de pais para filhos; mães com idade acima de 35 anos têm mais possibilidade de gerar filhos com algum tipo de deficiência em relação a gestantes entre 20 e 35 anos; multiparidade de 5 ou mais fetos pode gerar bebês de baixo peso e maiores complicações na gravidez; intervalo gestacional de menos de dois anos entre uma gravidez e outra; incompatibilidade sanguínea da mãe e do bebê; doenças preexistentes. pré-natal � – ocorre no útero materno, da fecundação ao nascimento, quando a criança está suscetível a adquirir a surdez através da mãe, devido à presença de fatores, como: idade da gestante: acima ou abaixo do período mais fértil da mulher; fatoresgenéticos e hereditários; consanguinidade; carências alimentares da mãe; exposição à radiação; eclampsia: mulheres que sofrem de pressão alta durante a gravidez, além de prejudicar o feto, é a maior causa de morte materna no Brasil; diabetes; drogas em geral: fumo, álcool e ilícitas; doenças infectocontagiosas: rubéola (se caracteriza por defeitos nervosos, mentais, oculares, auditivos e cardiovasculares), toxoplas- mose, sífilis, herpes, entre outras; Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 16 Conhecendo a surdez ingestão de remédios ototóxicos; incompatibilidade sanguínea da mãe e do bebê. perinatal � – ocorre no momento do parto ou nas primeiras horas após. Os principais fatores são: prematuridade: mais de 4% das crianças consideradas de alto ris- co são diagnosticadas como portadoras de deficiência auditiva de graus moderado a profundo, conforme ASHA (American Speech Hearing Association); pós-maturidade; anóxia; fórceps; traumas no parto; baixo peso (1 000g); infecção hospitalar (atingem o bebê durante ou após o parto). Surdez adquirida � : a pessoa fica surda em decorrência de problemas após o seu nascimento e, dependendo da época da lesão, poderá desenvolver a oralida- de com maior facilidade (pós-lingual). A surdez adquirida ocorre no período: pós-natal � – ocorre após o nascimento, por: convulsões; permanência em incubadora (ventilação mecânica); medicamentos ototóxicos em excesso ou sem orientação médica; otite média persistente por mais de três meses; caxumba, diabetes; sífilis; meningite: causa inflamação da membrana que envolve o cérebro. Além dessa infecção atingir a garganta, o nariz e os ouvidos, pode destruir o órgão de Corti e o nervo auditivo; sarampo: o vírus do sarampo pode levar a uma infecção no ouvido médio ou danificar a cóclea. Essas complicações podem surgir como Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Conhecendo a surdez 17 resultado direto da infecção do sarampo, mas a vacinação preventiva pode afastar essas graves consequências; traumatismos cranianos; tumores benignos e malignos: neurinoma, colesteatoma, hemangio- ma, glomus, carcinoma; Pair: perda auditiva induzida por ruídos; exposição a sons impactantes (explosão). Tipos e graus de surdez Os tipos de perda auditiva classificam-se: Segundo a topografia, em: � surdez condutiva (OE para o OI ): interferência na transmissão do som � desde o conduto auditivo externo até a orelha interna (cóclea). A maio- ria das surdezes auditivas condutivas podem ser corrigidas através de tratamento clínico ou cirúrgico. surdez sensório-neural (OI para o nervo auditivo): ocorre quando há � uma impossibilidade de recepção do som por lesão das células ciliadas, da cóclea ou do nervo auditivo. Esse tipo de surdez é irreversível. Há uma conservação de audição para os sons graves com perda de audi- ção mais acentuada em agudos, porém, podem ainda apresentar perdas de audição localizadas, como nos traumas acústicos ou nas deficiências auditivas induzidas pelo ruído. A discriminação auditiva costuma estar comprometida de maneira variável. Na maioria das vezes, sua alteração é proporcional, sendo mais acentuada quando a lesão é neural. surdez mista: é a junção entre a perda auditiva condutiva juntamente � com a sensório-neural. surdez central: esse tipo de deficiência auditiva não é, necessaria- � mente, acompanhado de diminuição da sensitividade auditiva, mas se manifesta por diferentes graus de dificuldade na compreensão das informações sonoras. Decorre de alterações nos mecanismos de processamento da informação sonora no tronco cerebral (Siste- ma Nervoso Central). É relativamente rara, alguns pacientes, embora Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 18 Conhecendo a surdez tenham audição normal, não conseguem entender o que lhes é dito. Quanto mais complexa a mensagem sonora, maior dificuldade haverá. Há quase sempre outros distúrbios neurológicos mais sérios que terminam por predominar no quadro clínico geral. Surdez funcional: o paciente não apresenta lesões orgânicas no apare- � lho auditivo, seja ele periférico ou central. A dificuldade de entender a audição pode ser de fundo emocional ou psíquico. Torna-se difícil de- terminar, em certas situações, se é uma simulação ou se é realmente uma disfunção orgânica. Segundo as expressões clínicas: � hipoacusia: é a diminuição da sensitividade da audição. Há uma dimi- � nuição dos limiares auditivos sem, no entanto, expressar qualquer alte- ração da qualidade da audição. Na hipoacusia o paciente escuta pouco os sons menos intensos, mas com o aumento da intensidade da fonte sonora, ele poderá escutar de modo adequado. disacusia: expressa um defeito na audição, que não pode ser expresso � em decibels. Esses pacientes, mesmo que se aumente a intensidade da fonte sonora, não vão conseguir entender perfeitamente o significado das palavras, embora possam ouvi-las. Os pacientes costumam dizer que escutam, mas não entendem. As disacusias, portanto, represen- tam deficiências de audição do tipo sensório-neural. anacusia: literalmente significa falta, ausência de audição. É diferente de � surdez, em que há resíduos auditivos. Na anacusia, o comprometimento do aparelho auditivo é de tal ordem que não há nenhuma audição. presbiacusia: envelhecimento da audição. � Graus da surdez São cinco categorias, de acordo com a tabela proposta por Davis e Silverman (1970): >10 a 20dB – padrão de normalidade; � >20 a 40dB – perda leve; � >40 a 70dB – perda moderada; � >70 a 90dB – perda severa; � >90dB – perda profunda. � Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Conhecendo a surdez 19 Para refletir Surdez congênita: como vimos, na surdez congênita a pessoa já nasce surda. Nesse caso, a criança apresenta maior dificuldade em desenvolver e assimilar a fala uma vez que nunca teve uma exposi- ção auditiva/oral da língua, é o que cha- mamos de surdez pré-lingual. Surdez adquirida: quando a pessoa fica surda depois de ter nascido; poderá ter maior facilidade em retomar a sua lingua- gem oral, uma vez que já estão armazena- dos em seu cérebro dados linguísticos an- teriormente registrados. Denominamos, assim, de surdez pós-lingual. Curiosidades IE SD E Br as il S. A . Em novembro de 1997 foi realizada a primeira Semana Nacional de Pre- venção à Surdez. O objetivo da campanha era educar e conscientizar a popu- lação para os problemas de deficiência auditiva. Aproximadamente 90% das crianças portadoras de deficiência auditiva de graus severo e profundo são filhos de pais ouvintes. Mais de 4% das crianças consideradas de alto risco são diagnosticadas como portadoras de deficiência auditiva de graus moderado a profundo (ASHA). Você sabia que existe uma série de bonecas Barbie (americanas) que sina- lizam “I Love You” ? Em 1940, surgiram as primeiras próteses auditivas portáteis de caixa. Em seguida, vieram as retroauriculares. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 20 Conhecendo a surdez O aumento da poluição sonora nas últimas décadas também tem sido muito prejudicial. Estatísticas levantadas entre 1971 e 1990, época que marcou o auge do heavy metal e do punk, mostraram que o número de pes- soas entre 18 e 44 anos com problemas relacionados à audição aumentou 17%. Entre 46 e 64 anos, o aumento foi de 26%. Os dados são da National Health Interview Survey. Texto complementar Movimento propõe que deficiente auditivo se assuma Desconhecimentoa respeito da deficiência auditiva reside, em boa parte, no fato de a surdez ser uma deficiência invisível, como é chamada por portadores. A invisibilidade leva o surdo a ser ignorado pela sociedade ouvinte e pelas políticas públicas (DURAN, 2003) Falar gritando. Ou, ao contrário: bem devagarinho, de forma bastante pronunciada, abrindo e fechando a boca exageradamente e até repetindo a frase várias vezes. Essas são algumas das formas bizarras adotadas por ouvin- tes para facilitar a comunicação com uma pessoa surda. Além de estranhas, elas são completamente inúteis, não surtem o efeito desejado. Reina na sociedade um amplo desconhecimento a respeito da deficiência auditiva, dizem especialistas e portadores de surdez. E a causa dessa igno- rância reside, em boa parte, no fato de a surdez ser uma deficiência invisí- vel, como é chamada por portadores. Ao contrário de quem usa cadeira de rodas ou é cego, o surdo pode passar despercebido num lugar e, com isso, ser ignorado pela sociedade ouvinte, em especial pelas políticas públicas de inclusão de deficientes. Para despertar a consciência dos surdos, estimulá-los a assumir, sem vergonha, sua condição e sua cultura e para combater as discriminações, surgiu nos Estados Unidos, no começo dos anos 1990, o Deaf Pride (Orgulho Surdo), que até conta com paradas realizadas em várias cidades dos EUA e do Canadá. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Conhecendo a surdez 21 A versão brasileira começa a tomar forma, mas sem o extremismo da matriz. Nos EUA, casais surdos chegam a procurar médicos para conce- ber filhos surdos. Uma das estratégias cogitadas é não evitar que a mulher contraia rubéola durante a gestação, uma das várias causas de surdez em crianças. Por aqui, uma das principais bandeiras do grupo é “sair do armário”. Para o surdo, a expressão significa assumir a língua de sinais como idioma preferen- cial e deixar de se dedicar anos a fio no consultório do fonoaudiólogo para desenvolver a fala e treinar a leitura labial, só para “falar direitinho e agradar à maioria ouvinte”, como alegam os defensores do Orgulho Surdo. Segundo Fernando Capovilla, 42, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, a comunicação por sinais é a mais natural para os surdos. “Como se sabe há muito tempo, nos ouvintes a área da linguagem lo- caliza-se no perisilviano temporal do cérebro. Nos surdos, ela fica no parietal, responsável também pela articulação das mãos. Por isso há a predisposição para os sinais”, diz Capovilla. A professora de Ensino Fundamental, Silvia Sabanovaite, 46, foi treina- da para ler lábios e falar fluentemente, mas, na comunicação com os filhos, também surdos, optou pelos sinais. Ela conta que, quando procurava traba- lho, costumava revelar que era surda só na fase final das entrevistas. Porém, depois da revelação, nunca era contratada. “Como sou filha de lituanos, as pessoas pensavam que meu jeito diferen- te de falar era sotaque”, conta. Certa vez, ela decidiu simplesmente esconder a surdez e conseguiu o trabalho. Como professora, era difícil receber uma ligação telefônica, o que poderia denunciar a sua condição. Quatro meses depois de contratada, porém, recebeu um chamado. “Disse que não podia atender, e as pessoas ficaram pasmas: ‘O quê? Surda?’, diziam elas.” Mãe e avó de surdos, a professora mudou de opinião durante a criação dos filhos, que, ao contrário dela, nunca cogitaram esconder a sua condição, apesar de serem oralizados. “O surdo oralizado é mais confortável só para os ouvintes”, diz Patrick Ro- berto Gaspar, 28, estudante de Pedagogia e filho de Sabanovaite. “Por que o ouvinte convida intérpretes quando não entende o idioma de um pales- trante, e nós, surdos, não podemos fazer o mesmo?”, questiona ele, que é simpatizante do Orgulho Surdo. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 22 Conhecendo a surdez O tradutor para a linguagem dos sinais é apenas uma das inúmeras neces- sidades às quais o surdo brasileiro não consegue ver atendidas. Na televisão, por exemplo, o closed caption, recurso de legendas ocultas dos programas acionado pela tecla SAP, é adotado apenas por duas emissoras do país e, mesmo assim, em 30% da programação. Fora do armário, para os surdos, é mais fácil também lidar com o pre- conceito. “A discriminação ocorre porque as pessoas não sabem o que é a surdez”, diz Sabanovaite. Outra demonstração da invisibilidade da deficiência: a Língua Brasileira de Sinais (Libras) só foi reconhecida oficialmente no ano passado, quando também foi publicado o seu primeiro dicionário (Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngue da Língua de Sinais Brasileira, editora Edusp, R$120), de au- toria de Fernando Capovilla. Nos EUA, a American Sign Language (Lingua- gem Americana de Sinais) foi oficializada há quatro décadas. “O mundo foi feito para os ouvintes. Nós precisamos saber que a surdez implica a formação de uma outra cultura, de uma identidade que precisa ser respeitada. Como eles têm menos acesso à informação, desenvolveram valores que são só deles. A língua é um de tantos outros”, diz a professora Ana Lúcia Soares, 28, do Centro de Educação, Audição e Linguagem (Ceal), do Distrito Federal. Soares aprendeu Libras com uma amiga de infância que era surda e é autora de um programa de educação especial de músicos que começa a chamar a atenção fora do país. Trata-se do Surdodum, grupo de percussão formado por 25 surdos, que aprendem noções de ritmo e melodia pela vi- bração que o som provoca no corpo. “O objetivo é mostrar que o chamado deficiente auditivo pode tudo, inclusive fazer música, uma das habilidades humanas mais ligadas à audição”, diz. Surdo não apenas produz música como também pode falar. Outro grande engano disseminado na sociedade é o de que a mudez sempre acompanha a surdez. O deficiente auditivo tem voz, apenas precisa ser treinado e bem cedo, ainda na infância, para aprender a falar. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Conhecendo a surdez 23 Dica de estudo Leia � Surdez e Linguagem: aspectos e implicações neurolinguísticas, de Ana Paula Santana, editora Plexus. O livro faz um estudo sobre como ocorre a construção da linguagem em sujeitos surdos e a relação dessa construção com a neurolinguística. Atividades 1. Qual a diferença entre surdez congênita e surdez adquirida? Entre esses dois casos, qual deles compromete o desenvolvimento da fala? Justifique. 2. Qual a origem do termo decibel e o que ele significa? 3. Cite os tipos de surdez segundo as expressões clínicas. Qual delas tem como definição a ausência total de percepção de som? Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 24 Conhecendo a surdez Gabarito 1. Surdez congênita: é a surdez adquirida na fase gestacional. O sujeito pode apresentar dificuldade na assimilação da fala, por ser pré-lingual. Na surdez congênita a pessoa já nasce surda. Nesse caso, a criança apresenta maior dificuldade em desenvolver e assimilar a fala uma vez que nunca teve uma exposição auditiva/oral da língua, é o que chamamos de surdez pré-lingual. Surdez adquirida: a pessoa fica surda em decorrência de problemas após o seu nascimento e dependendo da época da lesão, poderá desenvolver a ora- lidade com maior facilidade (pós-lingual). Quando a pessoa fica surda depois de ter nascido, poderá ter maior facilidade em retomar a sua linguagem oral, uma vez que já estão armazenados em seu cérebro dados linguísticos ante- riormente registrados. Denominamos assim de surdez pós-lingual. 2. Significa intensidade do som – forte e fraco – e, “em homenagem a Alexan-der Graham Bell, inventor do telefone, foi usada para medições de perdas nas linhas telefônicas, nos EUA, uma unidade denominada Bel, como medi- da relativa de intensidade, a qual comprimia uma ampla variação da escala linear de intensidades pela transformação desta em uma escala logarítmica” (RUSSO, 1999). 3. Hipoacusia, disacusia, anacusia e presbiacusia. Anacusia: literalmente significa falta, ausência de audição. É diferente de sur- dez, onde há resíduos auditivos. Na anacusia, o comprometimento do apa- relho auditivo é de tal ordem que não há nenhuma audição (BRASIL, 1999). Referências BOONE, R. Daniel; PLANTE, Elena. Manual da Fonoaudiologia: comunicação humana e seus distúrbios. São Paulo: Lovise, 1996. BRASIL. Decreto 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Regulamenta a Lei 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3298. htm>. Acesso em: 10 ago. 2010. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Conhecendo a surdez 25 CASANOVA, J. Peña. Manual de Fonoaudiologia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. COUMPULAND. Disponível em: <www.compuland.com.br/anatomia/saopaulo. htm>. Acesso em: 2 ago. 2010. DAVIS, H.; SILVERMAN, S. R. Auditory test hearing Aids. In: _____. Hearing and Deafness. Holt: Rinehart and Winston, 1970. DURAN. Sérgio. Movimento propõe que deficiente auditivo se assuma. Folha de S.Paulo, 24 jul. 2003. Disponível em: <www.saci.org.br>. Acesso em: 4 ago. 2010. GOLDFELD, M. Fundamentos em Fonoaudiologia: linguagem. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,1998. LOPES FILHO, Otacílio. Tratado de Fonoaudiologia. São Paulo: Rocca, 1997. METTER, E. Je Frey. Distúrbios da Fala: avaliação clínica e diagnóstico. ED. Rio de Janeiro: Enelivros, 1991. MYSAK, Edward D. Patologia dos Sistemas da Fala: identificação dos distúrbios da fala, princípios de exames e tratamento. São Paulo: Atheneu, 1988. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Retardamento Mental: enfrentando o desafio. Washington DC: Organização Mundial da Saúde, 2000. RUSSO, Ieda Pacheco. Acústica e Psicoacústica Aplicadas à Fonoaudiologia. São Paulo: Lovise, 1999. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 27 Ao analisarmos historicamente como as diferenças se constituíram no mundo, é possível compreender os estigmas, preconceitos e o desconhecimento também historicamente escritos pela sociedade. A visão antagônica que qualifica os portadores de necessidades especiais como uma estrutura infra ou supra-humana teve sua gênese no reconhecimento de mundo das diferentes épocas e povos e, sob esse enfoque, constituíram-se também os paradigmas de atendimentos no campo da educação. No período primitivo D om ín io p úb lic o. Nada há de permanente, exceto a mudança. Heráclito (450 a.C.) As pessoas que apresentam algum grau de comprometimento, seja motor, físico, intelectual, visual ou auditivo, estão presentes na Terra desde as primeiras habitações. Os primeiros habitantes não tinham por hábito o plantio e a organi- zação em tribos, o que exigia deles uma vida nômade, na qual, para se manterem vivos, precisavam caçar, derrotar inimigos e explorar com agi- lidade o ambiente e, após essa exploração, buscar novos espaços a serem novamente usufruídos. Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 28 Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais Com o passar dos anos, as tribos foram surgindo, e com elas o plantio e a organização em sociedade. Não se plantava para o sustento. A caça para a obtenção de alimentos e pele de animais para se aquecer e a colheita de frutos, folhas e raízes garantia o sustento das pessoas. Há mais ou menos dez mil anos, quando as condições físicas e de clima na Terra ficaram mais amenas, os grupos começaram a se organizar para ir à caça e garantir o sustento de todos. Na Pré-História a inteligência do homem começou a se manifestar e os integrantes do grupo passaram a perceber melhor o ambiente onde viviam, começando a adorar o sol, a lua e os animais. (GUGEL, 2010) Possivelmente pessoas com deficiência não sobreviveriam ao ambiente hostil da Terra nesses tempos. Sobretudo os surdos, como se sabe, ouvir representou e ainda representa não só uma habilidade para desenvolver a oralidade, mas uma percepção de defesa, altamente importante nesse período, pois com ela era pos- sível ouvir sons que pudessem oferecer algum perigo, como sons da natureza, de animais. Se no início da habitação dos homens na Terra o ambiente por si só já elimi- nava as pessoas com e sem deficiência, a organização em tribos também não contribuiu para a sua sobrevivência. Para essa nova dinâmica, segundo especia- listas, as pessoas com deficiência passaram a ser um “fardo” para os seus pares, em razão de sua dependência, sendo por consequência eliminados. Antiguidade Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. José Saramago Egito Antigo Registros arqueológicos, em afrescos, túmulos, na arte egípcia, nas múmias e em papiros, revelam uma gama de informações sobre onde as pessoas com deficiência, há mais de 5 mil anos, transitaram e fizeram parte de escalas sociais de todos os níveis (faraós, nobres, altos funcionários, artesãos, agri- cultores, sacerdotes e escravos). Ju pi te r I m ag es . Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais 29 Os surdos eram considerados seres superiores que deveriam ser respeitados e temidos pela população, que os considerava como mediadores entre os faraós e os deuses. Ao mesmo tempo eram considerados pessoas doentes. Pesquisas indicam que no século XVI a.C. sacerdotes tratavam a surdez como uma doença e para esse “mal” usavam urina de cabra, cinzas de asa de morcego e ovos de formiga ou lagarto (CABRAL, 2001). Papiros antigos revelam ainda a necessidade em se respeitar pessoas com de- ficiência, assim como apontam esses sujeitos praticando os mais diferentes ofí- cios em sociedade sem nenhum tipo de restrição em razão da sua dificuldade. [...] estudos acadêmicos baseados em restos biológicos, de mais ou menos 4 500 a.C., ressaltam que as pessoas com nanismo não tinham qualquer impedimento físico para as suas ocupações e ofícios, principalmente de dançarinos e músicos [...] especialistas revelam que os anões eram empregados em casas de altos funcionários, situação que lhes permitia honrarias e funerais dignos. (GUGEL, 2007) Por fim, Gugel coloca que o Egito foi conhecido como a terra dos cegos; muitos dos seus habitantes perdiam a visão em decorrência de infecções. Papi- ros encontrados revelam receitas para curar diversas doenças, entre elas as que acometiam os olhos. Grécia Na Antiguidade, a imagem do homem era adorada “narcisicamente”, sendo comum nessa cultura clássica adorar a perfeição física, num culto incondicional à beleza corporal. As crianças que nasciam com alguma “deformi- dade física” eram consideradas sub-humanas e não podiam “ofuscar” essa sociedade fisica- mente “perfeita”, cabendo a elas serem aban- donadas por seus pais, em locais desconheci- dos, para aí morrerem à míngua. [...] os gregos se dedicavam predominantemente à guerra, valorizando a ginástica, a dança, a estética, a perfeição do corpo, a beleza e a força [que]acabaram se transformando num grande objetivo. Se, ao nascer, a criança apresentasse qualquer manifestação que pudesse atentar contra o ideal prevalecente, era eliminada. Praticava-se, assim, uma eugenia radical, na fonte. (BIANCHETTI, 1998, p. 29) Ju pi te r I m ag es . Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 30 Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais Figuras importantes da época como Platão, no livro A República, e Aristóteles, no livro A Política, indicavam entre várias situações que contribuíam para a organização das cidades gregas a eliminação das pessoas nascidas com deficiência, sendo uma das práticas o descarte de crianças especiais em aprisco de uma cadeia de montanhas chamada Tayge- tos, na Grécia. Platão A República, Livro IV, 460 c – Pegarão então os filhos dos homens superiores, e levá-los-ão para o aprisco, para junto de amas que moram à parte num bairro da cidade; os dos homens inferiores, e qualquer dos outros que seja disforme, escondê-los-ão num lugar interdito e oculto, como convém. (GUGEL, 2007, p. 63) Aristóteles A Política, Livro VII, Capítulo XIV, 1335 b – Quanto a rejeitar ou criar os recém-nascidos, terá de haver uma lei segundo a qual nenhuma criança disforme será criada; com vistas a evitar o excesso de crianças, se os costumes das cidades impedem o abandono de recém-nascidos deve haver um dispositivo legal limitando a procriação, se alguém tiver um filho contrariamente a tal dispositivo, deverá ser provocado o aborto antes que comecem as sensações e a vida (a legalidade ou ilegalidade do aborto será definida pelo critério de haver ou não sensação e vida). (GUGEL, 2007, p. 63) Aristóteles acreditava que os surdos, por não desenvolverem na- turalmente a oralidade, não eram capazes de raciocinar e, por essa condição, não recebiam orientação educacional, e não tinham direitos. Sócrates, 360 a.C., declarou que era permiti- do que os surdos comunicassem com as mãos e o corpo. A psicóloga Ligia Assumpção do Amaral aproxima a ideia de eliminação da “imperfeição”, adotada pela civilização na Antiguidade, como uma prática Ju pi te r I m ag es . D om ín io p úb lic o. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais 31 comum entre os animais, em que o filhote que apresenta no nascimento alguma imperfeição é rapidamente eliminado pela mãe, ficando na cria somente aque- les que não apresentaram nenhum tipo de deformidade. Para a autora, diferente dos animais, que têm essa prática com o intuito de manter a sobrevivência do restante da prole, a leitura dos humanos em relação à eliminação da deficiência representa atacar o diferente, o inconveniente que destoa da sociedade “perfeita”: [...] em culturas chamadas primitivas, onde, como em algumas tribos, o deficiente é sacrificado; ou mesmo em civilizações chamadas mais adiantadas, como Esparta. Comportamentos que podemos também encontrar no mundo animal, onde filhotes imperfeitos são, na maioria das vezes, mortos. Ataca-se o diferente, o inconveniente, e com isso liquida-se a ameaça por eles representada. (AMARAL, 1994) Roma Da mesma forma que a prática grega, as leis romanas permitiam que os pais afogassem seus filhos deficientes. Muitos não usavam essa prática, porém não criavam as crianças nascidas “disformes”. Para se livrarem dos filhos sem a práti- ca do afogamento, muitas famílias abandonavam os bebês em cestos no rio Tibre. Se essa criança conseguisse sobreviver, era explorada por mendi- gos, ou por donos de circo, servindo de motivo de gozação e entretenimento para as classes mais abastadas. O mesmo ocorria com os surdos, assim como na Grécia, que eram destituídos dos seus direitos (exceto os surdos oralizados), serviam como bobos entretendo membros abastados da sociedade, ou eram mortos como os demais portadores de necessidades especiais. A pesquisadora Rosita Edler de Carvalho (1997, p. 14-20) apresenta parte de sua pesquisa relativa ao período romano: Nós matamos os cães danados, porcos? Ferozes e indomáveis degolamos as ovelhas doentes, com medo que infectem o rebanho, asfixiamos os recém-nascidos mal constituídos, mesmo as crianças se forem débeis mentais ou anormais, nós as afogamos: não se trata de ódio, mas de razão que nos convida a separar das partes sãs, aquelas que podem corrompê-las. Th in ks to ck . Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 32 Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais Não existia piedade, aceitação, inserção das pessoas com alguma necessi- dade nesse período. De uma forma muito natural e pertinente aos padrões da época, todo e qualquer sujeito, independente do contexto social, era sumaria- mente eliminado. No entanto, com a guerra muitos soldados voltaram para Roma com ampu- tações e outras dificuldades decorrentes dessa batalha. A deficiência passou a ser vista como impossível de ser erradicada, por se tratar de um adulto e não de um recém-nascido que pudesse ser eliminado. Esses combatentes, por terem conquistado o Império Romano, eram vistos como heróis e por essas circunstân- cias deveriam ser cuidados, porém o sistema médico não dava conta de realizar todos os atendimentos necessários. Regida pelo cristianismo, nascia a era do assistencialismo, doutrina que pre- gava o amor e a caridade e que deu origem às instituições que abrigavam pes- soas com deficiências e indigentes. Idade Média D om ín io p úb lic o. O período da Idade Média é marcado pelo fim do Império Romano (século V, ano 476) até a Queda de Constantinopla (século XV, em 1453). A Idade Média puncionou novas práticas da posição do deficiente dentro da dinâmica social. Abandonou-se o contexto físico da Antiguidade e assumiu-se o contexto metafísico, reconhecendo os portadores de necessidades especiais como seres diferentes. A Igreja, que nesse momento possuía uma grande influ- ência sobre a sociedade, passou a questionar se era viável exterminar um ser que possuía alma, pois um ser com alma era uma obra divina. E que direito tinha o homem de exterminar um feito de Deus? Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais 33 O deficiente recebeu o status de humano e como consequência tinha o “di- reito” de sobreviver. Sua custódia ficava a cargo da família ou da Igreja. Porém, o místico conceito de que esse sujeito poderia ser também uma obra demoníaca ou um castigo para seus familiares, também era uma visão até então presente, sendo comum nessa época rituais de exorcismo a fim de eliminar essa entida- de demoníaca que residia no corpo deforme. Diferente dos ouvintes, os surdos eram considerados seres sem uma alma imortal, por não conseguirem proferir os sacramentos. Considerados pela sociedade como corpos doentes, os deficientes deveriam ser acolhidos em lugares diferenciados para tratamento. Os conventos, asilos e hospitais psiquiátricos, exerciam a função de “abrigar” os portadores de necessi- dades especiais, com vistas a curar as suas deficiências. Para Amaral (1994), esse modelo de atendimento aos portadores de necessi- dades especiais inspirou anos mais tarde no Brasil, os “locais de confinamento”, conhecidos na atualidade, de acordo com a autora, como escolas especiais. A obra medieval de Victor Hugo, O Corcunda de Notre Dame, relata o tratamento que o defi- ciente recebia na Idade Média. Fonseca (1995) descreve um pouco como se deu o olhar da so- ciedadeem relação ao indivíduo especial: Em plena Idade Média, os deficientes ora são encarados como “crianças de Deus” ou como “bobos da Corte”, ora são perseguidos, esconjurados ou apedrejados por serem portadores de possessões demoníacas. A arte dessa época foi pródiga em representar e ilustrar tais atitudes. Os Referenciais para a Construção de Sistemas Educacionais Inclusivos, ela- borados pelo MEC em 2001, colocam que: [...] a deficiência foi, inicialmente, considerada um fenômeno metafísico, determinado pela possessão demoníaca, ou pela escolha divina da pessoa para purgação dos pecados de seus semelhantes. Séculos da Inquisição Católica e, posteriormente, de rigidez moral e ética da Reforma Protestante, contribuíram para que as pessoas com deficiência fossem tratadas como a personificação do mal e, portanto, passíveis de castigos, torturas e mesmo de morte. (REFERENCIAIS..., 2001, p. 10) D iv ul ga çã o. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 34 Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais Revolução Industrial D om ín io p úb lic o. A Revolução Industrial nasceu por volta do século XVI, juntamente com outros marcos na história como a Revolução Francesa, seguida pelos burgueses e com o período do Renascimento, movimento de novas ideias sobre a ciência, sociedade e especialmente sobre as artes, com grande riqueza na produção de músicas, pinturas, teatros e festivais de dança. A produção em série passou a ser uma meta; o capitalismo viu nos membros da sociedade vasta mão de obra, incluindo nessa dinâmica não só os homens, como também mulheres e crianças. Nesse contexto, os portadores de deficiên- cia carregavam um novo estigma: “autores de um ônus” financeiro para os ideais de consumo e de liberalismo. O corpo não era mais um organismo e sim uma máquina, e aqueles que pos- suíam algum grau de deficiência representavam uma máquina com peças defei- tuosas, mas que podiam ser reaproveitadas com ofícios que não exigissem dessa máquina o uso de tais peças. Na área da surdez, a expressão surdo-mudo não representava mais o surdo em si, pois havia uma compreensão de que ambas as definições eram distintas. Agregada ao desenvolvimento industrial, tecnológico e científico, a deficiên- cia passou a ser reconhecida como um “malefício incurável”, e nesse caminhar histórico a sociedade lançou mão de ideias cujo Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais 35 [...] objetivo, em termos de tipo ideal de trabalhador, passou a ser a busca do homo sapiens para o escritório, para o planejamento, e do homo faber para a oficina, sendo o protótipo desse o homem-boi, o homem-gorila, uma vez que a preocupação estava voltada à busca de força física. (BIANCHETTI, 1998) A mesma autora apresenta a ideia de Henry Ford sobre essa temática: Pela época que Henry Ford começou a fabricar o Modelo T, em 1908, não eram necessárias 18 operações diferentes para completar uma unidade, mas 7 882. Em sua autobiografia, Ford registrou que, dessas 7 882 tarefas especializadas, 949 exigiam “homens fortes, fisicamente hábeis e praticamente homens perfeitos”; 3 338 tarefas precisavam de homens de força física apenas “comum”, a maioria do resto podia ser realizada por “mulheres ou crianças crescidas” e, continuava friamente, “verificamos que 670 tarefas podiam ser preenchidas por homens sem pernas, 2 637 por homens com uma perna só, duas por homens sem braços, 715 por homens com um braço só e 10 por homens cegos. (TOFFLER, 1980, p. 62 apud BIANCHETTI, 1998, p. 38) Desse período, temos alguns reflexos em nossa dinâmica social que estão presentes até hoje: a diferença salarial entre homens e mulheres, sendo que muitas vezes am- � bos exercem a mesma função; a diferença salarial e as funções de subordinação dos portadores de ne- � cessidades especiais, mesmo que tenham qualificação para cargos mais eletivos; a visão da escola de Educação Infantil voltada para � o cuidar da criança pe- quena e não para o educar, uma vez que na era industrial, as mães ocupa- ram funções nas fábricas, deixando os seus filhos com cuidadores, num sistema de depósito de crianças sem uma visão pedagógica; a exploração do trabalho infantil, pois nesse contexto não se tem um olhar � sobre a criança e sua infância. Vistos como adultos em miniatura, as crian- ças, na qualidade de “adultos”, deveriam exercer diferentes ofícios como os seus pais, no entanto quando se aplicava o pagamento salarial, a diferença aparecia novamente, criança deveria receber menos, por ser frágil e ainda estar em formação. Atualidade Todo o movimento histórico que vimos até agora nos deu base para reali- zarmos novos estudos nas áreas das ciências humanas, jurídicas, da saúde e tecnológica. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 36 Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais A partir do século XX, começa- mos a perceber o homem como um ser único e que na sua origem tem o direito essencial de ser dife- rente dos demais. Os traços dessas diferenças podem ser percebidos nos subsí- dios afetivos, estéticos, físicos, se- xuais, linguísticos, culturais e cog- nitivos, que cada sujeito constrói em si e no outro através da lingua- gem, seja ele portador ou não de alguma deficiência. “É importante refletir sobre a comunidade surda, não em sua totalidade, como se fosse um grupo homogêneo e uni- forme. Dentro dessa configuração ‘surda’ também se encontram as diferenças (SKLIAR, 1998)”. Na comunidade surda, assim como em outros grupos, também podemos encontrar a diversidade, pois sa- bemos que existem surdos pobres, ricos, homens, mulheres, homossexuais, negros, brancos, jovens, velhos e demais características pertinentes à condição humana. Por toda essa ótica, compreende-se que apenas destinar um local que abri- gue os portadores de necessidades especiais não é o suficiente. Nesse contexto, mais do que nunca se evidenciou a diversidade como característica constituinte das diferentes sociedades e da população, em uma mesma sociedade. Na década de 1990, ainda à luz da defesa dos direitos humanos, pode-se constatar que a diversidade enriquece e humaniza a sociedade, quando reconhecida, respeitada e atendida em suas peculiaridades. (REFERENCIAIS..., 2001) A sociedade aos poucos assimila que a pessoa com necessidades especiais apresenta dificuldades inerentes aos seres humanos e não somente em razão da sua deficiência orgânica. A tendência é que essa sociedade se prepare cada vez mais para receber, oportunizar e respeitar a diversidade. Os sujeitos com ne- cessidades especiais devem ter todos os seus direitos assegurados, uma vez que transitam por diferentes setores da sociedade, inclusive aos bens de consumo. Th in ks to ck . Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais 37 Uma sociedade que consegue reconhecer e viver harmoniosamente com as várias experiências humanas, configura-se como uma sociedade inclusiva. A li- mitação do sujeito especial em alguns aspectos, não representa a limitação dos seus direitos. Texto complementar Sou humano (WERNECK, 2006)1 De que modo se sente uma pessoa quando o mundo não reconhece como humano o seu modo de falar, de se expressar, de andar, de se locomo- ver, de ver, de não ver...? Que tipo de olhar somos capazes de enviar a alguém quando notamos, em qual quer parte de seu corpo, algo que imediatamente desencadeia em nossas mentes um processo para ressignificá-lo,para rever seu valor humano e, na sequência, atribuir-lhe um valor de “menos humano”? Pode ser uma prótese no lugar do olho, um braço que não existe mais, a mancha grande e cabeluda na face. O quanto revela de nós esse olhar, ao outro, que ao mesmo tempo é analítico, julgador e envergonhado? Enver- gonhado porque tenta apagar vestígios do obscuro ritual que se passa em nosso íntimo. Não que esse processo de avaliar quem é mais humano ou menos humano, mais normal ou menos normal, seja consciente, mas o cons- trangimento que ele naturalmente gera, sim. O constrangimento reflete uma verdade pouco nobre e bem escondida: somos educados para acreditar que existe uma hierarquia entre condições humanas. Seríamos então um composto de percentuais variados de humanidade e devemos lidar com essa informação sem traumas? Bebês nascidos com síndromes genéticas são menos humanos do que outros cujos cromossomos estão em número e tamanho “corretos”? Alguém sem pernas é apenas 60% humano? 1 Claudia Werneck é jornalista, escritora, especialista em Comunicação e Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz e fundadora da Orga nização da Sociedade Civil Escola de Gente. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 38 Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais Idosos com doenças neurológicas degenerativas perdem a cada dia sua humanida de a ponto de se tornarem girafas, moscas, plantas carnívoras? Uma pessoa cega seria menos gente se analisada sob um hipotético “quadro clas sificatório de condições humanas”? Jovens surdos, principalmente aqueles que se expressam unicamente pela Libras, a Língua Brasileira de Sinais, têm menos valor humano do que os demais, jovens ouvintes que falam apenas o português? Embora a tendência seja a de responder um NÃO categórico e ofendido a essas per guntas, nossas práticas diárias denunciam o contrário. Refiro-me a formas sutis de discrimina ção que, mesmo com o propósito de valorizar pes- soas com deficiência, acabam segregando-as cada vez mais. O simples fato de considerá-las especiais já as distancia do gozo incondicional dos Direitos Humanos, gozo que antecede qualquer norma nacional ou internacional. É aflitivo constatar a naturalidade com que nos exercitamos em atribuir um sinal “positivo” ou “negativo” para diferentes condições e características humanas. Isso até em pronunciamentos públicos considerados meritórios e consequentes pela população. Por exemplo: como nos posicionamos diante de relatos como o que vem a seguir? No começo da guerra dos Estados Unidos e da Inglaterra contra o Iraque, em mar ço de 2003, a televisão brasileira veiculou uma campanha a favor dos Direitos Humanos. Vários artistas se expressavam contra a guerra contun- dentemente. Um deles dizia algo mais ou menos assim: “Eu sou contra a guerra, nós não precisamos da guerra, nós devemos re- solver nossos conflitos atra vés da palavra, da inteligência. Não é a fala que diferencia um ser humano de um animal irracional? Não é a inteligência que nos distingue dos animais?”. Em que medida esse discurso atenta contra a própria concepção de Di- reitos Humanos? Atenta ao considerar a fala e a palavra como pré-requisitos para pertencer ao con junto humanidade. Atenta ao considerar que pessoas com deficiência mental, por não terem todos os recursos do que se convencionou chamar de inteligência, não são seres humanos. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais 39 Como denunciar que uma campanha tão apropriada, se analisada sob a ótica do conceito de inclusão, foi discriminatória em relação a pessoas que não têm seu intelecto preservado ou a pessoas que não se utilizam do código do português para se expressar, como pode acontecer com pessoas surdas? Caberá, então, a quem não fala, lutar desesperadamente para falar, como a única saída para pertencer ao conjunto humanidade e, assim, ao conjunto sociedade? Deverão as pessoas com comprometimento intelectual manter uma eterna sensa ção de débito, de falha, de menos valia em relação a quem não tem deficiência mental? É justamente tudo isso o que o senso comum pressupõe, mas o mesmo não pode ser dito do conceito de inclusão. Essa conversa está longe de ser uma abstração. Conteúdo Muito além da ética, é possível para a sociedade, hoje, respaldada por garan tias constitucionais, abordar problemas como esses. Uma fala tão “ade- quada” como a utilizada na campanha pode, sim, ser entendida como um atentado ao direito que toda pessoa tem de não ser submetida a uma ofensa em função de sua deficiência. É o que garante a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Dis criminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, conhecida como Convenção da Guatemala. Importante saber que o Brasil é signatário da Convenção da Guatemala, documento aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legis- lativo 198, de 13 de junho de 2001, que deu origem ao Decreto 3.956, de 8 de outubro de 2001, assinado pela Presidência da República. Pela primeira vez, então, foi explicitado em lei o que é discriminar com base na deficiência. E, segundo diversos membros do Ministério Público, o Decreto 3.956 tem tanto valor quanto uma norma da Constituição Federal, pois se refere a direi- tos e garantias funda mentais da pessoa, estando acima de leis, resoluções e decretos. Não que essa convenção seja o máximo, o ápice dos Direitos Humanos. Ela é apenas uma plataforma mínima de princípios a serem defendidos por Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 40 Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais cada cidadão na busca de um novo tempo no qual nós possamos ter lucidez suficiente para refletir sobre as nossas absurdas formas de pensar a espécie à qual pertencemos. Quem nasce de um ser humano é um ser humano com o mesmo valor. Nascemos, portanto, incluídos no conjunto Homo sapiens. Algo pode ser mais simples de ser entendido? Diariamente, por termos uma concepção de ser humano minimizada, tomamos de cisões inadequadas, das mais corriqueiras às mais estruturais. Mesmo o terceiro setor tem avançado pouco quando o assunto é gente. Incluindo-me como uma trabalhadora dele, pergunto: 1 – Quem de nós costuma avaliar se o tamanho das portas dos banheiros das orga nizações que dirigimos permite a entrada de uma pessoa em cadei- ra de rodas? 2 – Que organizações do terceiro setor têm a preocupação de garantir que seus sites sejam construídos com acessibilidade para programas de voz utilizados por pessoas cegas? E eu não estou aconselhando, aqui, que cada organização tenha dois sites: um comum e um só para pessoas cegas, pois isso também não é o que pressupõe a inclusão. 3 – Que agências financiadoras, nacionais e internacionais, pelo menos hesitam em apoiar projetos de educação que não incluam, explicitamente, todos os jovens-se res-humanos, incluindo aqueles com deficiência? Não estou me referindo apenas a alunos e alunas com deficiência física e, sim, a qualquer aluno com qualquer tipo de deficiência. Minha experiência prova que a maioria dos coordenadores de progra mas, se questionados, respon- dem que sim, estão aptos a receber quaisquer jovens, jamais praticariam uma segregação. Entretanto, não são orientados (e isso raramen te foi orçado) para tomar as mais singelas providências nesse sentido, como contra tar uma intérprete de Libras para as reuniões nas quais se fará uma pré-seleção dos adolescentes que participarão do projeto ou disseminar o material de mobi- lização do projeto em Braile. A pergunta é: está prevista ou não a presença de qualquer jovemno projeto? Por favor, eu não estou querendo dizer que todo projeto para a juventude deva ter, necessariamente, um percentual obrigató- rio de jovens com deficiência. Mas eles com certeza estarão nesses projetos naturalmente, se nós pararmos de fazer tudo para bloquear esse acesso. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais 41 Adolescentes brasileiros continuam sendo educados para ter desfigura- do o seu conceito natural de humanidade. A maioria cresce acreditando, a exemplo de seus pais e educadores, que pessoas com deficiência são um deslize da natureza. Foi o que o proje to Quem Cabe no seu TODOS? consta- tou ao realizar as Oficinas Inclusivas pelo Brasil. Comprovamos que a maioria dos jovens com os quais atuávamos nunca havia visto de perto alguém de idade similar com deficiência. Mesmo entre adolescentes com diferen tes deficiências – física, mental, múltipla e senso- rial – havia o estranhamento e a cerimônia de quem não se reconhece como parte de uma mesma geração. Para esses jovens será difícil, mais tarde, empregar espontaneamente uma pessoa com deficiência, isto é, sem a força de medidas legais. Ou, sim- plesmente, atendê-la em um consultório dentário sem se sentirem cons- trangidos por sua cegueira, seu deficit intelectu al. Ou, ainda, cumprirem sem achar “caras e desnecessárias” as normas de acessibilidade arquitetônica e de comunicação que garantem a todos os cidadãos entrar em prédios pú blicos e se proteger de incêndios. O momento é delicado porque muitas das próprias pessoas com defici- ência não se consideram sujeitos de direitos e sim de, no máximo, alguns direitos especiais como, por exemplo, ingressar na universidade ou estar empregado. Tenhamos cuidado com os “direitos especiais”, pois eles jamais combinam com inclusão. Muitos são os manuais recém-lançados disseminando leis municipais, es- taduais e nacionais sobre os direitos de pessoas com deficiência. Mas nem mesmo o conhecimento das legislações nacional e internacional disponíveis garante a alguém a percepção correta de seu valor humano, pois as pessoas com deficiência, por exemplo, são tão mal prepa radas para lidar com sua hu- manidade como aquelas sem deficiência. É essa a questão central que vem me mobilizando há anos e gerou o projeto Quem Cabe no seu TODOS?. Expandir a consciência social dos adolescentes e jovens brasileiros para que nela cai bam todos os humanos. Essa tem sido a minha busca e a dos projetos da Escola de Gente. Ao nosso lado estão muito mais registros de violação de direitos de pes- soas com deficiência do que podemos imaginar. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 42 Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais No ano de 2002, recebi um grupo de universitários de medicina para uma entre vista sobre inclusão a ser inserida em um trabalho acadêmico que de- veriam apresentar. Depois de aproximadamente duas horas conversando, um dos universitários me contou o seguinte: havia, na ala de queimados do hospital público em que ele atuava, um homem bastante machucado que praticamente não se queixava de dor, o que chamava a atenção de médi- cos, enfermeiros e atendentes. Ele não recebia visitas de familiares, amigos, era muito solitário. As anotações em seu prontuário no que se referia a anal- gésicos eram rarís simas, fato não compatível com seu estado. Até que um médico resolveu esclarecer esse mistério e descobriu que esse paciente era surdo, não oralizado, e sentia muita dor, sim, só não conseguia expressar isso, porque, imobilizado por causa das queimaduras, não mexia as mãos nem outras partes de seu corpo. De que modo se sente uma pessoa quando o mundo não reconhece como humano o seu modo de falar, de se expressar, de andar, de se locomo- ver, de ver, de não ver...? Dica de estudo Acesse <www.sj.cefetsc.edu.br/~nepes/docs/midiateca_artigos> e clique nos textos 29 (“Um pouco da história da educação dos surdos”) e 59 (“Para uma cronologia na educação de surdos”). Os textos fazem um apanhado de como ocorreu a educação de surdos no Brasil e nos outros países, e como essa prática reflete na educação até hoje. Atividade 1. Descreva como a deficiência era/é vista e tratada nos períodos: a) Antiguidade: Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais 43 b) Idade Média: c) Atualidade: Gabarito 1. a) O aluno deverá citar a preocupação com a estética física e com a preo- cupação de “não contaminação” da deficiência em relação aos demais ditos normais. Nesse contexto a deficiência não aparecia, uma vez que era erradicada com a morte tenra do bebê. b) Aqui o contexto é religioso e metafísico, não se extermina a criança es- pecial, porém não há um acolhimento das suas necessidades e respeito pela sua diferença. A mesma é vista como um ser excepcional, dotado de pecado e possessões demoníacas. Sua custódia fica a cargo das famílias e da Igreja. c) O sujeito é visto dentro de suas especificidades e necessidades, compre- endendo-o como um ser humano único, com construções pessoais tam- bém singulares. Há maior respeito pela individualidade do sujeito, suas carências e potencialidades. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 44 Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais Referências AMARAL, L. A. Pensar a Diferença/Deficiência: Coordenadoria Nacional Para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE). Brasília, 1994. BIANCHETTI, L.; FREIRE, I. M. Um Olhar sobre a Diferença: interação, trabalho e cidadania. 5. ed. Campinas: São Paulo; Papirus, 1998. (Série Educação Especial). CABRAL, Eduardo. Para uma Cronologia na Educação de Surdos. Publicado em: mar./abr. 2001. Disponível em: <www.sj.cefetsc.edu.br/~nepes/docs/midia- teca_artigos/historia_educacao_surdos/texto59.pdf >. Acesso em: 5 ago. 2010. CARVALHO, R. E. Temas em Educação Especial. 2. ed. Rio de Janeiro: WVA, 2000. FONSECA, V. da. Educação Especial – Programa de Estimulação Precoce: uma introdução às ideias de Feurstein. 2. ed. ver. aum. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. REFERENCIAIS PARA A CONSTRUÇÃO DE SISTEMAS EDUCACIONAIS INCLUSIVOS. A Fundamentação Filosófica: a história – a formalização. MEC. SEESP, Brasília, 2001. GUGEL, Maria Aparecida. Pessoas com Deficiência e o Direito ao Trabalho. Flo- rianópolis: Obra Jurídica, 2007. _____. A Pessoa com Deficiência e sua Relação com a História da Humani- dade. Publicado em: 24 fev. 2010. Disponível em: <http://saisconsultoria.wor- dpress.com/2010/02/24/a-historia-e-a-pessoa-com-deficiencia>. Acesso em: 5 ago. 2010. SILVA, Otto Marques da. A Epopeia Ignorada: a pessoa deficiente na história do mundo de ontem e de hoje. São Paulo: CEDAS, 1986. SKLIAR, Carlos. Um olhar sobre o nosso olhar acerca da surdez e das diferenças. In: _____ (Org.). A Surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998. WERNECK, Claudia. Sou humano. In: Ensaios Pedagógicos. III Seminário Nacio- nal de Formação de Gestores e Educadores. Brasília: Ministério da Educação, Se- cretaria de Educação Especial, 2006. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Percurso histórico da surdez e de outras necessidades especiais 45Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 47 Paradigma da institucionalização: princípio da curaParadigma é um conceito que abrange um conjunto de ideias, valores e crenças que o sujeito põe em prática seja no âmbito social ou individual. Dessa forma, depois de compreendermos os paradigmas e as significações do sujeito portador de necessidades especiais em diferentes épocas da his- tória, remetemo-nos agora à prática desse olhar no contexto da escola. A literatura coloca que, com o apoio da Igreja Católica surgem, no século XVII, associações religiosas destinada a atender sujeitos com necessidades especiais, tendo como princípio a busca pela “cura”, através de cuidados e tratamentos médicos, mesmo que de forma segregatória. Asilos, hospitais psiquiátricos, conventos e escolas especiais, eram a representação desses espaços, com uma característica próxima de um sistema prisional, uma vez que não se tinha o objetivo de inserção social e de valorização dos po- tenciais dessa clientela, sendo que muitas vezes até a sua localização era distante dos grandes centros e do convívio familiar. Esse modelo de atendimento caracterizou-se como paradigma da insti- tucionalização, o qual vigorou por aproximadamente oito séculos. No Brasil, as primeiras informações sobre a atenção às pessoas com deficiência remontam à época do Império. Seguindo o ideário e o modelo ainda vigente na Europa, de institucionalização, foram criadas as primeiras instituições totais1, para a educação de pessoas cegas e de pessoas surdas”. (BRASIL, 2001b, p. 11) Na área da surdez, esse modelo educacional foi apoiado com publica- ções e apresentações em Congresso de Medicina que visavam debater a sua “cura”. Apesar de ser um modelo clínico terapêutico, houve e ainda há uma grande influência desse paradigma nas escolas, as quais deveriam ter espaço diferenciado, com materiais e profissionais especializados, numa relação direta da educação e da área médica. 1 Instituição total: “um lugar de residência e de trabalho, onde um grande número de pessoas, excluídas da sociedade mais ampla por um longo período de tempo, leva uma vida enclausurada e formalmente administrada (BRASIL, 2001b, p. 11 apud GOFFMAN, 1962)”. Paradigmas de atendimento educacional Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 48 Paradigmas de atendimento educacional No ano de 1857, D. Pedro II inaugurou no Rio de Janeiro o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos. Tendo como precursor desse projeto o francês Eduard Huet, D. Pedro II ordenou que lhe fossem dados todos os tipos de assistência neces- sária para a implantação desse projeto. Huet iniciou os seus trabalhos no então Colégio Vassimon, e no ano de 1856 ocupou todo o espaço físico da escola, inau- gurando assim, no ano seguinte, o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos. Cem anos mais tarde, em 1957, o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos passou a de- nominar-se Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES (MAZZOTTA, 1997; GUARINELLO, 2004). O avanço da economia, a intensificação do capitalismo e a liberdade de ex- pressão contribuíram para uma crítica incisiva da comunidade científica, do poder público e do sistema educacional em relação ao paradigma da institu- cionalização. Com o passar dos anos, percebeu-se que a resposta desse tipo de atendimento não correspondia com o seu discurso, ou seja, não se preparava o portador de necessidades especiais para conviver e produzir em sociedade. No entanto, havia um interesse latente de produção e consumo capitalista que tinha por meta tornar produtiva todo e qualquer tipo de mão de obra. O poder público começou a perceber que o sistema institucional exigia um grande investimento financeiro, o qual retornava muito pouco para a sociedade. Interes- ses ideológicos de valorização humana não eram o foco dessa crítica. Sendo assim, a partir da década de 1960, a opinião pública e educacional co- meçou a debater e a compartilhar novos rumos pedagógicos para os portadores de necessidades educacionais, começando pela sua desinstitucionalização. O portador de necessidades especiais passou a ser visto como um sujeito diferen- te, que deveria, pelo princípio da normalidade, igualar-se aos demais. Paradigma de serviços: princípio da normalização e (re)habilitação O paradigma de serviços é um novo modelo educacional, iniciado na década de 1960, baseado nos princípios de normalização e (re)habilitação. Ao contrário do institucional, os portadores de necessidades especiais passaram a ser vistos como sujeitos diferentes, os quais deveriam receber metodologias de trabalho que visavam (re)habilitá-los cada vez mais, a fim de aproximá-los e integrá-los à maioria “normal”. Sem a (re)habilitação não receberiam o aval para conviver e integrar-se com o restante da sociedade “normal”. Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br Paradigmas de atendimento educacional 49 Com essa leitura, a sociedade coloca que tudo aquilo que não está dentro dessa norma reflete-se como um aspecto desviante, que deve ser alvo de assis- tencialismo, repulsa ou, se possível (e desejável), de “normalização”. O critério de normalidade não diz respeito somente aos dados estatísticos daquilo que a maioria representa, mas também ao ideológico, daquilo que é ideal para essa maioria. Os objetivos dos tratamentos destinados às pessoas com necessida- des especiais partem do preceito de que o portador de necessidades especiais deverá modificar-se, e não a sociedade mudar para recebê-lo, uma vez que ele é a minoria em muitos. Nessa tendência, integrar está localizado no sujeito en- quanto alvo de mudança. Com o objetivo de aproximar o sujeito surdo das características de uma pessoa ouvinte, o paradigma de serviços teve a sua representação pela visão da ortopedagogia. O sujeito surdo deveria ser reabilitado para ouvir e falar e assim poder transitar na sociedade ouvinte. Nesse contexto, a língua de sinais não era reconhecida nos meios educacionais. O não reconhecimento dos potenciais do sujeito com necessidades especiais e das suas limitações fizeram com que o paradigma de serviços, no início de sua estruturação, logo recebesse críticas, principalmente da comunidade científica, que percebia a dicotomia entre o anormal e o normal de forma tendenciosa, abrigando a segregação e exclusão. Nessa ideologia, “sujeito diferente” é um atri- buto dado ao portador de necessidades especiais como se todos os “normais” fossem iguais entre si. Outra crítica foi manifestada pelos próprios portadores de necessidades es- peciais, que sentiam dificuldades reais de se modificarem. O conceito de nor- malidade é um dado fortemente atrelado na sociedade brasileira. Quando esse dado está determinado pelo referencial orgânico, a sociedade assume a sua he- gemonia diante de um fato concretamente incapacitante. Para validar o paradigma de serviços, faz-se necessário o cumprimento de três etapas: 1) avaliação: formada por uma equipe multiprofissional responsável por identificar tudo o que, segundo ela, o portador de necessidades especiais deverá modificar em si e em sua vida, para aproximar-se dos “normais”; 2) intervenção: a mesma equipe se responsabilizaria em oferecer os atendimentos “formal e sistematizado, norteado pelos resultados obtidos na fase anterior”; 3) encaminhamento (ou reencaminhamento) da pessoa com deficiência para a vida na comunidade.” (BRASIL, 2000) Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A., mais informações www.iesde.com.br 50 Paradigmas de atendimento educacional Paradigma de suportes: princípio da inclusão Os paradigmas de institucionalização e de serviços não asseguraram o res- peito às diferenças e a participação plena da diversidade nos âmbitos sociais his- toricamente construídos para gozo de todos os seus integrantes, sem qualquer tipo de restrição. Pesquisas
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