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O DIREITO ALTERNATIVO Antônio Alberto Machado O direito alternativo configura importantíssimo movimento político/jurídico e prático/teórico, deflagrado no final da década dos anos 60 por juízes integrantes da chamada Magistratura Democrática da Itália, difundindo-se em seguida pela Espanha até chegar à América Latina. Esse movimento caracterizou-se por reunir professores e profissionais do direito que passaram a ver neste último um verdadeiro instrumento de mudança social, de consolidação da democracia e de construção de uma sociedade efetivamente justa. Tal vertente do pensamento jurídico, importante frisar desde logo, propõe mesmo uma franca ruptura com o modelo jurídico liberal/positivista, que estrutura o direito burguês e mantém o esquema de dominação na sociedade capitalista, buscando novos paradigmas para a ciência e para a práxis jurídicas, a partir de uma compreensão dialética do fenômeno jurídico que anuncia um novo modelo de sociedade, muito provavelmente de tipo socialista. O movimento do direito alternativo inscreve-se no âmbito de uma crítica do direito que, no plano teórico, identifica o esgotamento do paradigma positivo-normativista da ciência jurídica, expondo as contradições inerentes à sociedade capitalista, na busca de um outro referencial teórico e prático para o direito, mais flexível e pluralista, comprometido com a transformação - e não com a mera conservação – da realidade social, especialmente quando esta última apresenta níveis insustentáveis de exclusão e injustiça. Daí porque, inegavelmente, a matriz filosófica desse pensamento crítico no direito, é mesmo o conjunto das reflexões formuladas no âmbito da Escola de Frankfurt, que agrupou os trabalhos de intelectuais marxistas não ortodoxos nos anos 1920, e que identificou, com notável clareza, todas as formas de dominação produzidas pelo modo de produção capitalista, as quais resultaram na alienação das consciências e na exclusão das massas, num claro predomínio da razão instrumental em detrimento da razão crítica. Portanto, a partir do legado da Teoria Crítica desenvolvida na Escola de Frankfurt, que em resumo sempre sustentou a possibilidade do uso da razão como instrumento de libertação do homem1, é que o pensamento jurídico crítico passou a entender o direito também como instrumento dessa mesma libertação, em oposição a todas as formas de injustiça e opressão geradas no seio da sociedade capitalista. 1 FREITAG, Bárbara. A teoria crítica ontem e hoje. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 41. E é exatamente esse pensamento crítico que orienta as práticas jurídicas alternativas e rejeita o mito da neutralidade no direito, sempre a partir da percepção de que a interpretação e aplicação dogmática da lei, de forma supostamente neutra a eqüidistante dos conflitos sociais, nada mais é do que uma servil reprodução dos interesses da classe dominante, previamente consolidados na norma jurídica. As estratégias hermenêuticas adotadas pelo direito alternativo implicam, de um lado, a aceitação de uma normatividade plural a ser efetivada no interesse das classes populares e, de outro, a exploração das vaguezas, fissuras, contradições e ambigüidades do ordenamento positivo, internalizando na estrutura jurídica estatal os interesses próprios das camadas sociais subalternizadas, historicamente excluídas do processo decisório de participação jurídica. Na prática, o movimento do direito alternativo atua, basicamente, a partir de três estratégias2. Primeiro, implementando o chamado “positivismo de combate”, que é exatamente a luta, dentro do aparato oficial do estado (juízos, tribunais, repartições administrativas etc.), pela efetivação das normas que expressam de modo autêntico os interesses populares. Ou seja, por meio do “positivismo de combate” trava-se uma luta pelo cumprimento das leis de interesse das classes subalternizadas, as quais, na maioria das 2 ANDRADE, Lédio Rosa de. O que é direito alternativo? Florianópolis: Obra Jurídica, 1998, pp. 43/53. vezes, permanecem apenas no plano retórico do ordenamento jurídico – são as chamadas leis que “não pegam”. Essas leis e normas, em boa medida, integram a estrutura jurídico-positiva do Estado tão somente com o objetivo de atingir um efeito “encantatório”, proporcionando a sensação, desmentida pela realidade, de que os interesses da maioria estão efetivamente assegurados pelo direito. Nesse caso, o movimento do direito alternativo procura dar efetividade a tais leis e normas que contemplam os interesses genuinamente populares, aprofundando assim o processo de participação jurídica. Para evitar-se qualquer ranço ou vínculo com a ideologia positivista, e uma vez que não se deve confundir a positividade do direito com o positivismo jurídico, talvez fosse mais apropriado a designação desta estratégia hermenêutica por meio da locução “positividade de combate”. Em segundo lugar, o direito alternativo, valendo-se da estratégia que ficou conhecida como o “uso alternativo do direito”, propõe a adoção de um processo hermenêutico em que a interpretação e aplicação de leis e normas devem ser efetuadas sempre no sentido da realização da justiça social, privilegiando os direitos e interesses das classes populares, da classe trabalhadora, das classes marginalizadas, enfim das classes excluídas do processo jurídico de fruição dos direitos básicos de cidadania. Vale dizer, trata-se de uma hermenêutica comprometida com a inclusão social, em que o intérprete/aplicador, diante da vagueza, ambigüidade e contradições do sistema jurídico opta sempre pelo sentido da lei que mais atende aos fins sociais, ao bem comum (art. 5° da Lei de Introdução ao Código Civil) e aos legítimos interesses da maioria. Trata-se, na verdade, de explorar o caráter polissêmico dos vocábulos que compõem o texto legal com a finalidade de se obter a decisão mais adequada a uma aplicação democrática do direito. É exatamente sob esse aspecto que Boaventura de Souza Santos fala, sugestivamente, num “uso não burguês do direito burguês”. Por último, cumpre lembrar que o direito alternativo reconhece também a existência de manifestações jurídicas à margem da ordem vigente, especialmente no seio de grupos e movimentos sociais, em luta pela inclusão e pela transformação de relações socialmente injustas. Trata-se então do fenômeno do “pluralismo jurídico”, em que se reconhece também, como legítimas, as relações jurídicas criadas por grupos “marginais”, no plano da luta social por direitos e por democracia, como por exemplo a luta dos grupos pró moradia, pró reforma agrária, pró cidadania etc. A luta desses grupos, muitas vezes travada à margem da ordem oficial, como é o caso das ocupações de terras e imóveis urbanos, é uma luta instituinte em espaços de anomia, a partir da idéia de que a lei não contém todo o direito e, às vezes, paradoxalmente, contém até mesmo o antidireito. Daí a necessidade da luta marginal pelo “alargamento do foco do direito”3, na sugestiva expressão de Roberto Lyra Filho, como 3 LYRA FILHO, Roberto. O que é direito? São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 99. estratégia de luta ético-política pela construção de uma sociedade efetivamente igualitária, o que deve resultar numa práxis jurídica comprometida não com a repressão ou cooptação, mas com a efetivação de tais manifestações jurídicas surgidas à margem da ordem. O pluralismo, no entendimento de Antônio Carlos Wolkmer, é uma espécie de “resposta à injustiça, ineficácia e esgotamento da legalidade liberal-individualista”4, face às demandas por direitosbásicos, deduzidas pelas classes subalternizadas através da ação de movimentos sociais em luta pela concretização de tais direitos. Tal significa dizer, conforme lembrado por Diego J. Duquelsky Gómez, que o pluralismo jurídico é mesmo, fundamentalmente, um lugar dos movimentos sociais5. O conhecimento e a aplicação crítica do direito supõem, naturalmente, um saber antidogmático em concreto diálogo com as determinantes sociais do fenômeno jurídico. Portanto, o idealismo do universo teórico tradicional, limitado pelo conhecimento lógico-formal e meramente descritivo de normas e instituições, tal como positivadas pelo legislador racional, jamais responderá à prática empírico-dialética de um direito articulado com a base material da sociedade, concebido como instrumento 4 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. São Paulo: Alfa-Omega, 1994, p. 300. 5 GOMEZ, Diego J. Duquelsky. Entre a lei e o direito: uma contribuição à teoria do direito alternativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 94. de sua transformação e de resgate das classes sociais excluídas da participação jurídica. Daí que, o movimento do direito alternativo propõe uma relação dialética entre o discurso normativo e a realidade sócio/histórica concreta, relação esta que seja capaz de impulsionar uma ação transformadora do direito, qualificando este último como instrumento de promoção e libertação humanas, para além da sua simples função de controle, repressão e manutenção do status quo. Porém, seria absolutamente falso supor que o direito alternativo pretende realizar uma revolução social e econômica através da lei e da jurisprudência. Estas são, como se sabe, mecanismos tradicionais de controle e conservação da ordem vigente. Além disso, não é verdade também que a chamada "justiça alternativa" venha propor um juiz irresponsável, completamente liberto da norma e pronto para exercer uma "ditadura judicial", segundo sua própria subjetividade. O direito alternativo, ao contrário do que supõem os seus adversários, exige um aplicador da lei vinculado e comprometido com as reivindicações dos movimentos sociais de base, ao mesmo tempo fiscalizado por esses movimentos e grupos, numa espécie de controle popular-democrático das instâncias de aplicação do direito e distribuição da justiça. Diante da lei injusta, cuja aplicação poderá proporcionar resultados socialmente perversos, cabe ao intérprete/aplicador não apenas rejeitá-la pura e simplesmente, segundo os seus próprios critérios de justiça. Mas, sim, recusar-lhe aplicação com apoio em argumentos hermenêuticos que evidenciem a contradição dessa lei, ou norma, em face do sistema jurídico como um todo, onde ela encontra-se inserida e onde figura como uma espécie de “corpo estranho”. No Brasil, o movimento do direito alternativo tem sido objeto de profundas reflexões teóricas por parte de inúmeros e renomados juristas - tais como Roberto Lyra Filho, José Geraldo de Souza Jr., Tarso Genro, Antônio Carlos Wolkmer, Edmundo Lima de Arruda Jr., Roberto Aguiar, Amílton Bueno de Carvalho, Lédio Rosa de Andrade e outros - bem como objeto ainda da implementação prática por parte de vários segmentos da área jurídica, envolvidos cotidianamente com a atividade de interpretação e aplicação do direito, como é o caso, por exemplo, de um conhecido grupo de juízes gaúchos (Juízes Alternativos), alguns membros do Ministério Público paulista reunidos no MP Democrático, alguns magistrados de São Paulo integrantes da "Associação Juízes para a Democracia", inúmeros advogados populares, professores de direito e tantos outros operadores jurídicos. No entanto, nada obstante a seriedade desses movimentos do direito alternativo, e das pessoas neles envolvidas, perdura ainda, por parte de alguns, uma certa incompreensão que insiste em descaracterizar o significado dessa corrente jurídica, ora minimizando o trabalho dos seus cultores, ora caracterizando-os, em tom pejorativo, como "promotores progressistas", "juízes moderninhos", "advogados baderneiros", “professores visionários” etc. Alguns adversários do direito alternativo, mal interpretando o movimento, por desinformação ou interesse, costumam afirmar que os adeptos de tal corrente, na verdade, o que pretendem é fazer tabula rasa das leis e dos códigos; implantar uma jurisprudência irresponsável; instalar a ditadura do judiciário e realizar uma hermenêutica livre de qualquer controle. Não desejo estimular aqui a polêmica, mas é preciso esclarecer alguns pontos. Por exemplo, o direito alternativo6 não descarta o aparato normativo e institucional do Estado com as suas leis e os seus códigos. Ao contrário, sem confundir legalidade com legalismo, nem o legal com o justo, esse movimento sempre sustentou que o direito positivo, e as instâncias oficiais do Estado, são importantíssimos espaços de luta das classes populares, cujos "sujeitos jurídicos", historicamente marginalizados e submetidos à dominação, poderão ali reivindicar e conquistar direitos fundamentais. De modo que, segundo os adeptos do direito alternativo, pode-se fazer do Poder Judiciário um “locus” privilegiado para a efetivação, por exemplo, dos mais elementares direitos da pessoa humana como o direito à moradia, à saúde, à instrução, ao trabalho, à educação etc. É importante destacar também que a corrente do direito alternativo estimulou o surgimento de uma consciência jurídica 6 A locução “direito alternativo” parece designar melhor o movimento porque, além de abranger a prática do “uso alternativo do direito posto” e do “positivismo de combate”, abrange também as manifestações do pluralismo jurídico, surgidas no seio de grupos marginalizados, à margem da ordem instituída. crítica que desvenda a função política do direito como instrumento de dominação e percebe uma profunda relação dessa função política com as determinantes sócio-econômicas da sociedade capitalista. Essa mesma consciência jurídica crítica é que foi capaz de perceber que o Judiciário tende a atuar como autêntico aparelho ideológico de Estado, comprometido com a manutenção do "status quo", institucionalizando mais a repressão e o controle do que propriamente a libertação humana e a promoção social. Em outras palavras, o pensamento crítico que está na base do movimento do direito alternativo foi de certa forma responsável pela conscientização, hoje razoavelmente disseminada, de que o direito é mesmo um fenômeno político. A crítica jurídica demonstrou que as relações entre direito e política são naturais. Ou seja, o direito, nas suas manifestações normativas, é um dos mais eficientes instrumentos de ação política; a própria atividade legislativa é sempre produto da correlação de forças que permeia os parlamentos, portanto, produto da correlação de forças políticas; a aplicação da lei, tanto no espaço judicial quanto na esfera administrativa, é sempre uma forma de participação política, na medida em que essa aplicação da lei interfere profundamente na vida da polis. Como se observa, o direito é um autêntico produto das relações de poder e, ao mesmo tempo, instrumento de controle deste último. Daí porque, pode-se afirmar: o direito é mesmo um fenômeno jurídico-político. Eis então a necessidade de se refletir não apenas sobre as dimensões propriamente jurídicas, ou normativas do direito, mas, também, refletir-se acerca da sua dimensão política, tal como se faz no âmbito da corrente do direito alternativo. Convém destacar ainda que, o movimento do direito alternativo, em razão de sua perspectiva crítica, muito contribuiu para a superação daquilo que Luís AlbertoWarat chamou de o "senso comum teórico do jurista", formado a partir de uma ideologia jurídica oficial - o normativismo positivista – e pela repetição de fórmulas lingüísticas que expressam o jurídico por meio de estereótipos estabelecidos pela prática forense. A superação desse "senso comum", e da alienação daí decorrente, segundo os adeptos do direito alternativo, começa com a consciência de que, em meio à nossa profunda conflituosidade social, há mesmo uma crise da racionalidade jurídica tradicional, cujos paradigmas formais de legalidade, isonomia, sujeito de direito, hierarquia das leis não passam, na verdade, de meras ilusões liberais. O direito alternativo propõe a substituição de tais paradigmas por uma racionalidade material que permita, enfim, a aproximação concreta entre o justo e o legal e a realização histórica do direito como anseio concreto de igualdade e justiça. Passado o momento inicial de euforia pelo surgimento desse novo pensamento jurídico, penso que o grande desafio do direito alternativo é, por um lado, continuar resistindo aos preconceitos e à incompreensão que ainda rondam as propostas dessa corrente; e, por outro, não se deixar envolver pela cegueira ideológica que até hoje mantém as correntes jurídicas presas de um idealismo abstrato que não permite, sequer, compreender a realidade do direito no plano histórico, onde verdadeiramente estão os homens, segundo Carlos Cóssio, de carne e osso – os verdadeiros sujeitos do direito. Assim como Karl Marx referiu-se à filosofia, talvez se pudesse fazer também com relação às correntes do pensamento jurídico filosófico. Ou seja, até hoje as correntes do pensamento jurídico só fizeram interpretar o direito no plano abstrato das ideologias; importa agora interpretá-lo, mas sobretudo aplicá-lo, no plano da realidade concreta, como instrumento de transformação dessa realidade, sempre no rumo da justiça e do bem comum. Bibliografia. ANDRADE, Lédio Rosa de. O que é direito alternativo? Florianópolis: Obra Jurídica, 1998. BARCELLONA, Pietro. O egoísmo maduro e a insensatez do capital. São Paulo: Ícone, 1995. CÁRCOVA, Carlos María. Direito, política e magistratura. São Paulo: LTr, 1996. CARVALHO, Amílton Bueno de. Teoria e prática do direito alternativo. Porto Alegre: Síntese, 1998. FREITAG, Bárbara. Teoria crítica ontem e hoje. São Paulo: Brasiliense, 1990. GOMEZ, Diego J. Duquelsky. Entre a lei e o direito: uma contribuição à teoria do direito alternativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. LYRA FILHO. O que é direito? São Paulo: Brasiliense, 1985. MACHADO, Antônio Alberto. GOULART, Marcelo Pedroso. Ministério Público e direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1992. SOUTO, Cláudio. Tempo do direito alternativo: uma fundamentação substantiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. WARAT, Luís Alberto. Manifesto do surrealismo jurídico. São Paulo: Acadêmica, 1988. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. São Paulo: Alfa- Omega, 1994.