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OS DEBATES DO MOVIMENTO FEMINISTA: DO MOVIMENTO SUFRAGISTA AO FEMINISMO MULTICULTURAL Mariana Barrêto Nóbrega de Lucena * Resumo Este artigo se propõe a apresentar uma evolução histórica do movimento feminista. Este que parte inicialmente de ideias universalistas, com o movimento sufragista no século XIX, e que tem como tendência atual uma abordagem culturalista, que busca a valorização das diferenças existentes entre as mulheres. Por fim, serão apresentadas as críticas da autora Nancy Fraser em relação aos possíveis equívocos que uma abordagem essencialmente culturalista pode representar tanto aos movimentos sociais em geral quanto ao feminismo. Palavras-chave: Feminismo. Direitos humanos. Nancy Fraser. 1 INTRODUÇÃO De uma maneira geral, poderia se definir o feminismo como o movimento social que reivindica a melhoria das condições de vida das mulheres, e, para isso, almeja eliminar as desvantagens em relação ao status alcançado pelos homens ao longo da história. Este artigo irá tratar da palavra “feminismo” no singular, no entanto, é importante frisar que o correto seria falar em “feminismos”, pois, como será mostrado adiante, o feminismo não possui uma unidade de pensamento, tampouco é uma prática política homogênea. Desde o seu surgimento como um movimento político organizado até os dias atuais, ele tem passado por grandes debates, onde se enfrentaram diversos pontos de vista bastante diversos. Este trabalho tem por intuito inicial percorrer historicamente a evolução do pensamento feminista. Inicialmente esse trajeto parte com ideias de um feminismo universal, em que partia do princípio de que todas as mulheres eram iguais, e, segue atualmente o caminho inverso, observando agora as diferentes experiências das mulheres, respeitando as diversidades étnicas, culturais e de sexualidade. Por fim, dado que as discussões culturalistas têm predominado tanto no feminismo como nos movimentos sociais em geral, serão mostrados alguns equívocos que o predomínio desse raciocínio pode vir a cometer. Para fundamentar essa ideia, será * Aluna da pós-graduação lato sensu em Direitos Humanos, Econômicos e Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) em convênio com a Escola Superior da Magistratura (ESMA). dedicada uma última parte para a explicitação do raciocínio de Nancy Fraser sobre esse assunto, em que ela fala do que ela chamou de dilema da redistribuição-reconhecimento. 2 A PRIMEIRA E A SEGUNDA ONDA FEMINISTAS De maneira bastante simplificada, seria possível dividir o feminismo em três ondas ou momentos. O primeiro momento que ocorre no período que vai da Revolução Francesa até o final da Primeira Grande Guerra. O segundo, em que marca o período do seu ressurgimento nos anos 1960. E o terceiro que emerge na década 1990. 1 Nesta primeira parte, será mostrada as debates feministas que antecederam a fase atual, intitulada de terceira onda. Aqui se vê, sobretudo, a luta pelas mulheres por direitos civis e políticos, e os primeiros debates sobre a questão da igualdade. 2.1 PRIMEIRA ONDA Apesar de pontualmente no decorrer da história ser possível encontrar algumas vozes do feminismo, ele passa a se formar como movimento organizado apenas após a Revolução Francesa, e ganha particularmente mais força durante o século XIX, com o movimento sufragista. O século XIX se caracterizou pela emergência de lutas do operariado, principalmente em duas frentes: a luta por melhores condições de trabalho e a luta pelos direitos de cidadania. Nesta frente, o sufrágio universal foi uma das principais conquistas do proletariado masculino, que eliminaram o voto qualificado por renda. No entanto, nesta luta por direitos da democracia, o sufrágio feminino não foi incluído. Insatisfeitas com esta situação de exclusão, milhares de mulheres de todas as classes se uniram em torno da conquista pelo voto. Foi uma luta longa, que nos Estados Unidos e na Inglaterra se prolongou por 7 décadas, e no Brasil durou 40 anos, a contar da Constituinte de 1891. 2 Esta primeira onda do feminismo foi a época do chamado “feminismo igualitário”, que tinha vertente liberal ou marxista. Preocupava-se “fundamentalmente 1 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Feminismo e Direito. In: Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Direito, v. 1, n. 1. João Pessoa: UFPB, 2010. 2 ALVES, Branca Moreira & Pitanguy, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 2007. p. 42-44 em identificar as causas da discriminação das mulheres e em reivindicar igualdade entre elas e os homens, sobretudo no plano dos direitos civis e políticos”.3 No feminismo igualitário do tipo liberal, a “causa da subordinação feminina estaria assentada nos preconceitos e estereótipos acerca das mulheres, e o espaço maior de manifestação desta dominação seria a própria vida pública”.4 O feminismo liberal ia de contra a naturalização da condição feminina como inferior ao homem. Grandes pensadores influentes advogaram esta tese. Locke, por exemplo, defendia que o lugar da mulher era no lar, onde ela seria subordinada ao melhor julgamento do homem, e que as mulheres estavam sujeitas inclusive pela natureza à sujeição. David Hume, defensor das virtudes da solidariedade e ligação com o sofrimento alheio, dizia que os homens eram os chefes naturais do lar. Ainda Madame de Staël e Rousseau ensinavam que a natureza das mulheres determinava seus destinos e elas não deveriam ir contra ele. 5 O feminismo igualitário liberal defendia que não era a natureza que definia as capacidades dos sexos, mas que estas eram desenvolvidas por meio de um processo de socialização e de educação que ensinava a hierarquia entre os indivíduos. Desta forma, para reversão da subordinação das mulheres seria necessária a supressão de leis discriminatórias que impediriam o acesso delas à vida pública e a uma mudança das práticas de educação sexistas. 6 O feminismo igualitário marxista se baseava na crítica socialista, que argumentava que valores como a igualdade e a liberdade da Revolução Francesa teriam sido conquistas concedidas apenas à classe burguesa. Apesar desta se apresentar como defensora de valores universais, logo ficou claro que as reformas concretas seriam para benefício de sua própria classe e não para os trabalhadores. 7 Influenciado pelo economicismo e pela valorização dos direitos relacionados ao trabalho da teoria marxista, surgiu o feminismo igualitário marxista que entendia que “a causa da subordinação feminina adviria da própria organização econômica, e seu lugar de expressão, portanto, seria a economia e o mundo do trabalho”. Sendo assim, a libertação das mulheres se daria com a abolição da propriedade privada e com a transformação da divisão sexual do trabalho. 8 3 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Op. cit., nota 1. 4 Idem, Ibidem. 5 NYE, Andrea. Teoria Feminista e as filosofias do homem. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 1995. pp. 19-21. 6 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Op. cit., nota 1. 7 NYE, Andrea. Op. cit., nota 5. p. 49. 8 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Op. cit., nota 1. O feminismo marxista, no entanto, acabou sofrendo na época com a dificuldade de reconhecimento por parte dos marxistas dito “ortodoxos”, do trabalho doméstico como efetivo trabalho, como também da divisão dos sexos como fato natural. 9 Dentre os grandes nomes do feminismo marxista estão Alexandra Kollontai, Clara Zetkin e August Bebel. 10 2.2SIMONE DE BEAUVOIR – UMA VOZ SOLITÁRIA – TRANSIÇÃO Os anos 1930 e 1940 representaram um momento de refluxo na organização das mulheres, já que algumas reivindicações haviam sido formalmente atendidas, como o direito de votar e ser votada, ingresso nas instituições escolares e participação no mercado de trabalho. Este recuo também pode ter sido consequência da ascensão do nazi-facismo, em que reprimia quaisquer outras formas de contestação social. 11 Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, passou-se a valorizar a participação da mulher no mercado de trabalho, por necessidade econômica daquele momento histórico. Era necessário liberar a mão-de-obra masculina para que os homens pudessem seguir para as frentes de batalha. No entanto, com o fim da guerra e o retorno da força de trabalho masculina, passou a preponderar novamente uma ideologia que valorizava a diferenciação de papéis por sexo, atribuindo à condição feminina o espaço doméstico como forma de justificar a retirada da mulher do mercado de trabalho, para que cedesse seus lugares aos homens. 12 A escritora e filósofa francesa Simone de Beauvoir, apresentou-se como uma voz feminista solitária nesse contexto de baixas atividades do movimento das mulheres. Com a publicação da obra “O segundo sexo”, a autora passou a denunciar as raízes culturais da desigualdade sexual, contribuindo com uma análise profunda na qual trata de questões relativas à biologia, à psicanálise, ao materialismo histórico, aos mitos, à história, à educação, para o desvendamento desta questão. Sendo assim, ela afirma ser necessário estudar a forma pela qual a mulher realiza o aprendizado de sua condição, como ela a vivencia, qual é o universo ao qual está circunscrita. 13 9 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Op. cit., nota 1. 10 NYE, Andrea. Op. cit., nota 5. p. 59. 11 ALVES, Branca Moreira & Pitanguy, Jacqueline. Op. cit., nota 2. pp. 49-50. 12 Idem, Ibidem. p. 50. 13 Idem, Ibidem. p, 52. Ela percebe que durante o período de socialização da mulher, ela é condicionada psicologicamente a ser treinada como mero apêndice do homem. Para a autora, em “nossa cultura é o homem que se afirma através de sua identificação com seu sexo, e esta autoafirmação, que o transforma em sujeito, é feita sobre a oposição com o sexo feminino”.14 Desta maneira, a figura feminina é transformada em objeto, que é visto através do sujeito masculino, ou seja, como “o outro”.15 Como adepta do existencialismo de Jean-Paul Sartre, em que tinha como máxima “a existência precede a essência”, ela proferiu a máxima de seu livro “não se nasce mulher, torna-se uma”.16 As ideias de Simone de Beauvoir vão aparecer com mais força décadas após da publicação de “O segundo sexo”, o que irá delinear os fundamentos da reflexão feminista que ressurgirá a partir da década de 1960, o que acabou por configurar a segunda onda do movimento. 2.3 A SEGUNDA ONDA A partir dos anos 1960 o movimento feminista volta a se organizar com força, principalmente, nos Estados Unidos e na França, agora também contestando as perspectivas igualitárias da primeira onda. Passou-se a configurar o que foi chamada de segunda onda feminista. Nessa perspectiva, a diferença também se converte numa das teses do discurso feminista. 17 Os debates dessa época foram marcados pelo antagonismo entre as feministas da igualdade (equality feminists), representadas principalmente pelas americanas, e as feministas da diferença (difference feminists), que tinha o predomínio na França. 18 “As principais questões em disputa diziam respeito à natureza e à causa das injustiças de gênero, à solução para essas injustiças e ao significado da equidade de gênero”.19 As feministas pela igualdade viam a diferença de gênero como um instrumento e um artefato da dominação masculina. Os homens, então, inventavam supostas 14 ALVES, Branca Moreira & Pitanguy, Jacqueline. Op. cit., nota 2. p. 52. 15 BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 16 Idem, Ibidem. 17 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Op. cit., nota 1. 18 KOLLER, Sílvia Helena & NARVAZ, Martha Giudice. Metodologias feministas e estudos de gênero: articulando pesquisa, clínica e política. In: Psicologia em Estudo, Maringá, n. 11, ano 3, 2006. p. 649 19 NEVES, Raphael Cezar da Silva. Reconhecimento, multiculturalismo e direitos: contribuições do debate feminista a uma teoria crítica da sociedade. Dissertação de Mestrado em Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. p. 18. diferenças para justificar a situação hierarquicamente inferior que as mulheres se encontravam na sociedade. Era o caso, por exemplo, de reduzir a mulher a um papel doméstico, privando-as de todas as atividades que promovem a autorealização humana, “privando-as do acesso equitativo aos bens sociais essenciais, como renda, trabalho, saúde, educação, autonomia, respeito, prazer sexual, integridade de seus corpos e segurança física”.20 Para essa corrente, a diferença de gênero era algo inerente ao sexismo, e que o objetivo do feminismo seria retirar as amarras da diferença e estabelecer a igualdade. O debate entre as feministas liberais e marxistas continua, dentro da perspectiva do feminismo da igualdade. No entanto, na segunda onda, surge uma importante corrente também dentro dessa análise, chamada de “feminismo radical”. Esta corrente tem essa denominação, não para denotar um especial fanatismo, mas porque se propõe a buscar a raiz do problema da opressão feminina. Para estas feministas, a principal causa da dominação masculina é o patriarcado. Trata-se de um sistema de pensamento e uma prática social de afirmação do poder dos homens sobre as mulheres, que se expressa principalmente sobre o corpo delas. As mulheres, então, apenas atingiriam a sua libertação com a superação do patriarcado, que permitiria a construção de uma cultura feminina, lutaria contra as manifestações estéticas e éticas deste poder masculino e, no entender de alguns prismas mais radicais, alcançaria a própria separação dos homens e mulheres. 21 O feminismo da igualdade predominou durante a década 60 e no final da década de 1970, porém, passou a preponderar um novo feminismo, que, pelo contrário valorizava a diferença de gênero. 22 O feminismo da diferença, também chamado de feminismo da feminilidade, acreditava que uma visão igualitária das mulheres era androcêntrica e assimilacionista. Ou seja, insistir por incluir as mulheres nas atividades tradicionalmente masculinas, significaria interpretar que apenas estas atividades eram verdadeiramente humanas e dignas, e que as atividades femininas eram depreciativas. O feminismo da igualdade, pelo contrário, não mudaria o sexismo e desvalorizaria a feminilidade. Seria necessário, portanto uma interpretação nova e positiva da diferença de gênero, que valorizaria a feminilidade. Para as feministas da diferença, as mulheres 20 NEVES, Raphael Cezar da Silva. Op. cit., nota 19. p. 19. 21 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Op. cit., nota 1. 22 NEVES, Raphael Cezar da Silva. Op. cit., nota 19. p. 19. eram realmente diferentes dos homens, mas ser diferente não significava ser inferior. Dever-se-ia, portanto, reconhecer, e não minimizar, a diferença de gênero. 23 O terceiro momento do movimento feminista passa a questionar com mais profundidade essa questão em torno da igualdade e da diferença, procurando apontar asfalhas nas discussões das feministas da segunda onda. Um novo debate surge no movimento feminista, o que acabou por engendrar a terceira onda, que será tratada em seguida. 3 A TERCEIRA ONDA A terceira onda emerge de uma discussão iniciada nos anos 1980, e que se consolida efetivamente a partir da década de 1990. São as teorias ditas “pós-feministas”, que denunciam os discursos anteriores do feminismo, que estariam infectados pelo ponto de vista ocidental, branco e heterossexual. 24 Foi proposta, então, uma nova proposta de discussão do feminismo, integrada com discussões de “raça”, etnia, sexualidade e classe. 25 Dever-se-ia ter em vista a partir de então os diferentes tipos de mulheres. Esse debate foi proposto, sobretudo, por feministas lésbicas e negras, que não se sentiam contempladas completamente pelas antigas formas de feminismo. Esta fase do feminismo também é decorrente de novas discussões sobre a questão dos direitos humanos, que passaram a predominar a partir desse momento, e que serão tratadas adiante. 3.1 A QUEDA DO PARADIGMA TRADICIONAL DOS DIREITOS HUMANOS Durante o processo histórico de consolidação dos direitos humanos é possível perceber duas tendências predominantes: uma relativa à sua universalização e outra à sua multiplicação e especificação. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 surgiu como resposta às atrocidades ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial, com o nazi-fascismo. A partir desse momento, passou-se a considerar todo ser humano como sujeito de direitos e merecedor de proteção desses direitos no âmbito internacional. Decorrente do temor em 23 NEVES, Raphael Cezar da Silva. Op. cit., nota 19. p. 20. 24 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Op. cit., nota 1. 25 NEVES, Raphael Cezar da Silva. Op. cit., nota 19. p. 20. relação ao nazi-fascismo, evitava-se fazer qualquer diferenciação entre os seres humanos, e a tônica da época era a proteção geral. No entanto, o indivíduo era tratado de forma genérica, geral e abstrata, com base na igualdade formal. 26 Essa primeira noção de direitos humanos se mostrou insuficiente para a proteção de determinados grupos da sociedade global. Era preciso uma individualização do sujeito de direito, que deveria passar a ser visto em sua peculiaridade e particularidade. Para a verdadeira promoção de direitos, era preciso perceber a diferença e a vulnerabilidade de determinados grupos, para assim fornecer uma proteção especial e particularizada que permitisse o verdadeiro alcance de direitos. 27 Sendo assim, passou a ser a concedida uma maior atenção à populações vulneráveis, como à afrodescendente, às crianças e às mulheres. Agora, ao lado do direito da igualdade também importa o respeito à diferença e à diversidade. 28 Nesse contexto, passa-se a criar uma série de instrumentos internacionais, visando a formação de um sistema especial de proteção dos direitos humanos. Em 1979 é realizada a primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, no México, onde foi aprovada pelas Nações Unidas a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), documento que alicerçará o surgimento de outros instrumentos internacionais direcionados a eliminação da discriminação contra a mulher. (Flávia Piovesan) Foi assim que então questões como raça, etnia, religião e sexualidade colocaram novos desafios para se pensar novas significações de “humano/a” e passou a pautar as discussões mais recentes das feministas na agora intitulada terceira onda. Neste momento, duas correntes passaram a se destacar: a das antiessencialistas e a das multiculturalistas, que serão adiante descritas. 3.2 ANTIESSENCIALISMO E MULTICULTURALISMO As feministas antiessencialistas opõem uma forte resistência a qualquer noção de identidade ou diferença, preferindo antes falar em construções discursivas dessas categorias, procuram, então, desconstruir as identidades. Elas defendem que diferenças e identidades são criadas por meio de um processo cultural e que por isso todas elas 26 PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos. In: Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 124, jan/abril.2005. p. 46. 27 Idem, Ibidem. p. 46. 28 Idem, Ibidem. pp. 46-47. seriam repressivas e visariam à exclusão, seria, portanto, um discurso criado e não objetivamente dado. No entanto, pecam por não se questionarem como uma identidade ou diferença construída socialmente estaria relacionada com estruturas sociais de dominação. Além disso, ao considerarem todas as identidades como igualmente excludentes, descartam qualquer possibilidade de distinguir diferenças emancipatórias de diferenças repressivas. 29 O feminismo multicultural corresponde ao mais recente estágio da teoria feminista. Essa corrente é uma resposta ao imperialismo cultural, que muitas vezes utilizou o discurso da defesa dos direitos humanos para justificar suas práticas de exploração. Em oposição a isso, o feminismo multicultural busca a valorização da diferenças de identidade das diferentes culturas, validando os diferentes caminhos para a construção do ser humano. “Todos os indivíduos deveriam gozar dos mesmos direitos legais em virtude de sua humanidade comum. Mas, eles deveriam ser reconhecidos pelas suas diferenças em relação aos outros e por sua particularidade cultural”.30 4 O DILEMA “REDISTRIBUIÇÃO-RECONHECIMENTO” E AS CRÍTICAS DE NANCY FRASER AOS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS Nancy Fraser faz uma crítica às feministas antiessencialistas e multiculturais. Essas correntes feministas se inserem no atual contexto pelo qual atravessam os novos movimentos sociais, como os que levantam bandeiras da nacionalidade, etnicidade, raça e sexualidade. 31 Ela observa a predominância nesses grupos da luta pelo reconhecimento da diferença, no entanto, critica o esquecimento da exploração socioeconômica como também uma injustiça fundamental, talvez porque com o colapso do comunismo soviético teria se posto o paradigma marxista em descrédito. 32 Os movimentos atuais participam de um momento de viragem da contestação política e de um novo entendimento da justiça social, que se alarga para incluir outros eixos de subordinação que não apenas a questão da diferença de classes. É importante a 29 BERNARDES, Márcia Nina & NEGREIROS, Maria J. Discriminação de gênero no Brasil e os mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos. Relatório de pesquisa. Departamento de Direito: PUC/RJ, 2010. 30 Idem, Ibidem. 31 FRASER, Nancy. Justice Interruptus – Critical Reflections on the “Postsocialist” Condition. New York: Routledge, 2007. Cáp.7 32 FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Trad. Julio Assis Simões. In: Cadernos de Campo, n. 14/15, ano 15, 2006. p. 231. percepção de que a justiça social não se resume a questões de distribuição de renda, mas que também a injustiça social deriva de hierarquias institucionalizadas de valor. 33 Por outro lado, não é evidente que essas atuais lutas que focam nas questões culturais estejam a objetivar complementar ou aprofundar as lutas pela redistribuição igualitária. O que é uma perda trágica, porque se passaria de um economicismo truncado para um culturalismo igualmente truncado. 34 A autora afirma, então, que a busca da justiça hoje exige tanto redistribuição quanto reconhecimento. As políticas de redistribuiçãoatacariam as injustiças econômicas, que se radicam na estrutura econômico-política da sociedade. As políticas de reconhecimento atacariam as injustiças culturais ou simbólicas, tais como a dominação cultural, o ocultamento e o desrespeito a diferentes formas de representação cultural. 35 Assim, com o que ela chamou de “redistribuição”, buscar-se-ia uma reestruturação político-econômica, que pautaria a redistribuição de renda, a reorganização da divisão do trabalho, controles democráticos do investimento ou a transformação de outras estruturas econômicas básicas. Com o “reconhecimento’, buscar-se-ia revalorizar as identidades desrespeitadas e os produtos culturais dos grupos difamados. 36 Deve-se ter, portanto, uma concepção bidimensional de justiça. 37 O que acontece é que há um conflito entre focar simultaneamente em políticas de redistribuição e reconhecimento. As lutas por reconhecimento, que predominam atualmente, procuram afirmar a presumida especificidade de algum grupo, valorizando e promovendo a diferenciação deste. Em contraste, as lutas por redistribuição, buscam abolir as diferenças, almejando a destruição dos arranjos econômicos que embasam a especificidade do grupo. Vemos então, que estas políticas se apresentam com objetivos mutuamente contraditórios. Assim, esses dois tipos de lutas se encontram em tensão, um interferindo no outro, ou até mesmo agindo contra o outro. 38 No caso da discussão de gênero especificamente, encontramos uma coletividade bivalente que abarca tanto dimensões econômicas quanto dimensões culturais- valorativas. Necessita, desse modo, de políticas redistributivas que dissolvam as 33 FRASER, Nancy. A Justiça Social na Globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Trad. Teresa Tavares. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63, out. 2002. p. 9. 34 Idem, Ibidem. p. 9. 35 FRASER, Nancy. Op. cit., nota 32. pp. 231-232. 36 Idem, Ibidem. p. 232. 37 FRASER, Nancy. Op. cit., nota 33. p. 11. 38 FRASER, Nancy. Op. cit., nota 32. p. 233. diferenciações de gênero, ao mesmo tempo de políticas de reconhecimento dessa coletividade desprezada. Deparamo-nos então, mais uma vez com o conflito entre diferença e igualdade. 39 Como solucionar esse conflito? Para corrigir as injustiças nesse dilema redistribuição-reconhecimento, impedindo a substituição de uma reivindicação por outra é preciso um único princípio normativo que inclua ambas as demandas. A autora propõe então, o princípio da paridade de participação, “segundo o qual a justiça requer arranjos sociais que permitam a todos os membros (adultos) da sociedade interagir entre si como pares”.40 Com esse princípio, deve haver uma distribuição de recursos materiais que permita a independência e “voz” dos participantes. Com esta condição suprimida, seria possível impedir a existência de subordinações econômicas, que limitariam a paridade de participação. O segundo passo requer a exclusão de padrões institucionalizados que depreciem categorias de pessoas e características a elas associadas, de forma a exprimir igual respeito a todos os participantes, dando iguais oportunidades para alcançar a consideração social. 41 É possível constatar, portanto, que essa viragem no foco das contestações dos novos movimentos sociais é conveniente para o atual contexto neoliberal, que deseja acima de tudo reprimir a memória do igualitarismo socialista. No entanto, é preciso resgatar algumas dessas ideias para que se alcance verdadeiramente a justiça social, e no caso das mulheres, que realmente se possa fazer uma discussão paritária entre as mais diversas culturas. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como pôde ser visto, o feminismo ao longo de sua trajetória como movimento social organizado, passou por diversos debates e reivindicou muitas vezes questões inteiramente contraditórias. Inicialmente procurou afirmar a igualdade de todas as pessoas, entre homens e mulheres, e entre todas as mulheres. No entanto, a defesa de direitos humanos universais, acabou por legitimar diversos abusos imperialistas, e a hierarquização de uma cultura sobre a outra. 39 Idem, Ibidem. pp. 233-234. 40 FRASER, Nancy. Op. cit., nota 33. p. 13. 41 Idem, Ibidem. p. 33. Como resposta a isso, os novos movimentos sociais, que ganham força principalmente nos anos 1980 e 1990, acabaram por defender uma abordagem culturalista à questão da opressão social. Contudo, apesar da importância da percepção da opressão como algo que vai além da desigualdade material, esses novos movimentos, incluindo o feminista atual, representado principalmente pelo feminismo multicultural, acabaram por abandonar quase que completamente essa temática, e reduziram excessivamente a temática ao problema do reconhecimento cultural. Nancy Fraser procura questionar essa nova visão sobre injustiça social. Ela aponta que a questão de gênero, por exemplo, é um problema que envolve tanto aspectos de desrespeito cultural como de desigualdade material. Necessitaria, portanto, tanto de políticas de reconhecimento como de redistribuição, devendo-se dessa forma ter uma concepção bidimensional de justiça. Para a realização disso, foi proposto que se necessitaria da aplicação de um princípio normativo que incluiria ambas as demandas: o princípio da paridade de participação. Este se realizaria em dois momentos. Primeiro, deveria ser permitir a distribuições de recursos materiais a todas as pessoas, para que assim fosse possível a independência e a “voz” dos participantes. Segundo, deveria se excluir os padrões institucionalizados que depreciem categorias de pessoas e características a elas associadas, de forma a exprimir igual respeito a todos os participantes, dando iguais oportunidades para alcançar a consideração social. A importância do trabalho de Nancy Fraser está em resgatar a questão da igualdade material, que acabou sendo relegada após a queda do socialismo da União Soviética, sem negar a importância das abordagens culturalistas. Assim, preenchendo o espaço que faltava nas pautas de reivindicação dos novos movimentos sociais e do feminismo. REFERÊNCIAS ALVES, Branca Moreira & Pitanguy, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 2007. BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. BERNARDES, Márcia Nina & NEGREIROS, Maria J. Discriminação de gênero no Brasil e os mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos. Relatório de pesquisa. Departamento de Direito: PUC/RJ, 2010 FRASER, Nancy. A Justiça Social na Globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Trad. Teresa Tavares. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63, out. 2002. ______. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós- socialista”. Trad. Julio Assis Simões. In: Cadernos de Campo, n. 14/15, ano 15, 2006. ______. Justice Interruptus – Critical Reflections on the “Postsocialist” Condition. New York: Routledge, 2007. KOLLER, Sílvia Helena & NARVAZ, Martha Giudice. Metodologias feministas e estudos de gênero: articulando pesquisa, clínica e política. In: Psicologia em Estudo, Maringá, n. 11, ano 3, 2006. NEVES, Raphael Cezar da Silva. Reconhecimento, multiculturalismo e direitos: contribuições do debate feminista a uma teoria crítica da sociedade. Dissertação de Mestrado em Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. NYE, Andrea. TeoriaFeminista e as filosofias do homem. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 1995. PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos. In: Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 124, jan/abril 2005. RABENHORST, Eduardo Ramalho. Feminismo e Direito. In: Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Direito, v. 1, n. 1. João Pessoa: UFPB, 2010.
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