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MORAL EM HART - REVISTA ÂMBITO JURÍDICO

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REVISTA ÂMBITO JURÍDICO 
 ® 
A moral em Hart Resumo: 
A relação entre direito e moral tem se mostrado como questão das mais 
controvertidas no estudo da Ciência do Direito, apresentando-secomo 
verdadeiro pressuposto teórico para a definição de seu objeto de estudo. Dada 
sua importância, que podemos classificar de estruturante, estetrabalho tem 
como objetivo apresentar proposições teóricas acerca da conexão entre estes 
institutos, focando suas semelhanças e diferenças. Paratanto, elegemos como 
base para o estudo as formulações apresentadas por H.L.A. Hart, em especial, 
através de sua clássica obra “O conceito deDireito”. Esta opção fundamenta-se 
no entendimento de que a formulação teórica do autor é a que melhor 
sistematiza as íntimas relações entre estasduas espécies de regras sociais de 
comportamento. 
Palavras-chave: 
Direito; moral; Hart. 
Sumário: 
1. Introdução; 2. Semelhanças e diferenças entre Direito e Moral; 3. Mínimo de 
Direito Natural; 4. Conclusão; 5. Referências bibliográficas. 
1. Introdução 
Tema dos mais dos mais controvertidos, debatidos e relevantes no âmbito da 
Teoria do Direito, a discussão acerca da separação entre Direito eMoral, não 
obstante seu caráter ancilar e os reconhecidos esforços argumentativos de 
grandes mestres da teoria jurídica, não atingiu, até omomento, a estabilidade 
conceitual desejável de temas estruturantes.Estruturante, pois é tema que se 
encontra na base de todo o debate jurídico, constituindo-se em verdadeiro 
pressuposto lógico para a resposta àindagação que intriga e motiva calorosos 
debates entre os teorizadores da ciência jurídica: o que é o Direito? É certo que 
não se poderásatisfatoriamente dar uma resposta a esta indagação sem a 
identificação e delimitação do objeto de estudo, demonstrando-se sua 
dependência (ouindependência) a outros conceitos ou institutos, em especial, 
relativamente ao que se pode agrupar genericamente sob a alcunha de regras 
decomportamento, aqui incluídos, a moral, o costume e os hábitos.Cientes 
deste pressuposto, qual seja, a definição da relação entre o Direito e a Moral, 
todos aqueles que se propuseram seriamente a construir umateoria jurídica 
digna de atenção e debate posicionaram-se acerca do tema, aderindo, 
complementando ou confrontando as idéias anteriores. Oresultado deste 
processo pode ser aferido pelo observador mais atento como um pêndulo entre 
as teorias apresentadas ao longo da história jurídica(ao menos entre as de 
maior relevância): partindo da completa integração e indistinção entre Direito e 
Moral, própria das teorias jusnaturalistas,passando pela busca da 
cientificidade, autonomia e prevalência do Direito sobre a Moral, característica 
comum às doutrinas positivistas, como a deHans Kelsen, verifica-se, 
posteriormente, uma reação jusnaturalista (neoconstitucionalismo), por meio da 
qual, novamente, defende-se uma quaseidentidade entre os dois institutos, 
como na visão exposta por Ronald Dworkin.O que temos hoje, na verdade, é 
uma situação de intenso e vívido debate conceitual acerca do tema, que além 
de fixar os parâmetros de discussão eo próprio objeto de trabalho da ciência 
jurídica, demonstra, mais do que nunca, sua importância prática na resolução 
das questões concretas trazidasaos Tribunais, uma vez que define a amplitude 
de bases e teses argumentativas que são admitidas como razão de 
decidir.Diante desta vívida discussão, abordaremos nas páginas que se 
seguem a relação entre o Direito e a Moral segundo a teoria de H.L.A. Hart. 
Comodemonstraremos, ao discorrer com propriedade e sistematicidade acerca 
das semelhanças e diferenças entre estes institutos, bem como ao exigir 
um“mínimo de Direito natural” como pressuposto das normas jurídicas, Hart 
oferece um material doutrinário propício à compreensão do tema e 
aodebate.Baseados em sua clássica obra “O Conceito de Direito”, estudaremos 
a seguir, considerados os limites metodológicos e formais da presente 
espéciede trabalho, a visão de Hart acerca da separação (ou conexão) entre 
Direito e Moral. 
2. Semelhanças e diferenças entre Direito e Moral 
Como afirmamos linhas acima, utilizaremos como objeto de nosso estudo, os 
ensinamentos de Hart acerca da relação entre Direito e Moral. Assim, 
éimportante destacar como premissa do raciocínio que será a seguir 
desenvolvido, que Hart, ao elaborar sua teoria jurídica, o faz consciente 
dosacalorados debates entre posições jusnaturalistas e positivistas até então 
existentes, que uma vez consideradas, permitem ao autor, em uma linha 
denatural evolução conceitual, apresentar uma teoria completa, que aborda 
objetivamente semelhanças e diferenças entre os institutos, bem 
comodesenvolve a idéia de certa convergência entre ambos, escapando com 
este artifício das armadilhas das proposições que lhe precederam, 
cujosconteúdos permitiram acusações baseadas em exposições 
“dramatizadas” e “equivocadas” de ambos os lados[1].Após se posicionar 
firmemente contra as teorias que defendem a conexão necessária entre o 
Direito e a Moral, Hart destaca a imprecisão dovocábulo “moral”, assim como 
os desacordos filosóficos acerca de sua relação com o resto do conhecimento 
humano, bem demonstrando, acomplexidade e dificuldade inerentes ao tema 
em estudo.Ciente das dificuldades estabelecidas por estes desacordos 
filosóficos, Hart, na tentativa de fixar o conteúdo da moral, propõe quatro 
característicasfundamentais, que entende neutras o suficiente para serem 
aceitas pelas diversas correntes filosóficas como critérios identificadores dos “ 
princípios,regras e padrões de conduta que são mais comumente considerados 
morais 
”[2]. Importante destacar, que esta clara diferenciação entre Direito eMoral tem 
como pressuposto teórico o desenvolvimento das chamadas sociedades 
jurídicas, caracterizadas pelo surgimento das normas atributivasde poder ou 
secundárias.Ocorre que, como verdadeiro pressuposto lógico para a 
compreensão das diferenças entre Direito e Moral, entendemos ser adequado 
o estudo deseus critérios identificadores, pois somente a partir da fixação de 
suas semelhanças, poderemos compreender a extensão das dificuldades 
queencontraremos para sua diferenciação.Além das semelhanças lingüísticas, 
geradas pela identidade terminológica na prática cotidiana dos dois institutos e 
do fato de se enquadrarem nogênero “obrigação”, que servem como indícios da 
existência de uma área de interseção entre ambos, poderíamos, seguindo as 
ponderações de Hart,indicar quatro outros pontos de congruência, que 
poderiam levar o intérprete mais afoito e desavisado a presumir uma 
identidade, a qual sedemonstrará mais tarde, não se sustenta. Vamos a elas:I) 
Direito e Moral vinculam os indivíduos independentemente de seu 
consentimento;II) As obrigações e deveres morais e jurídicos são sustentadas 
por séria pressão social. Em outras palavras, “ 
é grande a pressão social exercida sobre os que dela se desviam ou ameaçam 
desviar-se 
”[3];III) Não obstante a séria pressão social para cumprimento das obrigações 
jurídicas e morais, o fato de fazê-lo não é motivo de elogio ou de destaque,mas 
apenas é tido como uma contribuição mínima para a vida social;IV) Tanto as 
regras jurídicas, como as morais, se ocupam mais das condutas habituais da 
sociedade do que de situações especiais.São estas as semelhanças 
específicas entre regras jurídicas e morais, que ao lado daquelas que podemos 
denominar genéricas, vez que se referemàs características comuns imputadas 
às regras enquanto gênero, que sustentam afirmações de uma suposta 
identidade, que entendemosequivocada. O equívoco decorre, segundo nosso 
entendimento, de um demasiado destaque dado aos pontosde interseção, que 
pela própria origemhistórica comum dos institutos, praticamente indistinguíveis 
nas ditas sociedades pré-jurídicas, são muitos.O que não se pode tolerar é que 
as semelhanças ofusquem as diferenças, pois é a presença destas que 
justificam a distinção de gêneros emespécies. O fato de serem regras sociais 
de comportamento, com as semelhanças daí decorrentes, não traz como 
conseqüência uma identidade 
 
 
necessária, como aquela defendida por jusnaturalistas ou 
neoconstitucionalistas. É exatamente da especificação das diferenças, da 
busca daidentidade dos institutos, que passaremos a nos ocupar.Em primeiro 
lugar, é preciso deixar claro que a busca pelos aspectos distintivos entre Moral 
e Direito, assim como, a afirmação de Hart no sentido deque são fenômenos 
sociais diferentes, não permite concluir pela sua total cisão. Relacionam-se e 
influenciam-se, variando no tempo, no espaço e deacordo com o estágio 
evolutivo das normas secundárias de dado ordenamento jurídico.E é 
exatamente ao reconhecer uma relação inerente entre direito e moral que Hart 
vai além das teorias juspositivistas que o precederam, como as deJohn Austin 
e Hans Kelsen, explicitando sistematicamente sua posição e superando a 
armadilha metodológica de se obter uma separação rígidaentre Direito e Moral 
à custa da desconsideração de características fáticas evidentes em sentido 
contrário. Para ilustrar o que afirmamos:“Em qualquer comunidade há uma 
sobreposição parcial de conteúdo entre a obrigação jurídica e a moral; embora 
as exigências das regras jurídicassejam mais específicas e estejam rodeadas 
por exceções mais detalhadas do que as correspondentes regras morais 
(H.L.A. Hart CD, p. 185)”.Assim, conscientes do íntimo relacionamento entre 
Direito e Moral é que devemos analisar suas diferenças, evitando-se o 
equívoco de posiçõesextremadas, sejam daquelas que estabelecem a 
indistinção entre os institutos ou daquelas que ignoram sua ligação 
intrínseca.Após reconhecer a importância e analisar as insuficiências de 
tradicional critério de distinção entre Direito e Moral, baseado no contraste 
entre a“interioridade” da Moral e a “exterioridade” do Direito[4], Hart defende 
que, além das diferenças entre obrigações jurídicas e morais decorrentes 
dasespecificidades de seu modo de produção e da existência, nas sociedades 
jurídicas, do que chama de regras secundárias de modificação dasnormas 
jurídicas, existem quatro características, relacionadas entre si, que são 
fundamentais para distinguir a moral das demais regras sociais.Vejamos estas 
características a seguir[5]:I) Importância: as regras morais se revestem de um 
sentimento de maior importância para a sociedade do que as demais regras 
sociais. Estacaracterística decorre da aceitação social de que, embora exijam 
sacrifícios de interesses privados, a sua observância garante interesses 
vitaispartilhados por toda a comunidade. Ao contrário de uma regra jurídica, 
que mesmo tendo a importância negada pela sociedade ostenta a 
mesmacondição até ser revogada, a existência das regras morais, enquanto 
tal, está atrelada à importância social que lhe é reconhecida, pois é 
contraditóriofalar-se na vigência de determinada regra moral diante de uma 
sociedade que a repudia, uma vez que é a aceitação desta sociedade que a 
sustenta.II) Imunidade à alteração deliberada: as regras morais não podem ser 
diretamente criadas, alteradas ou eliminadas por ato legislativo deliberado, 
aocontrário do que ocorre com as regras jurídicas. Como aduz Hart, “ 
a moral é algo que existe para ser reconhecido e não feito por uma opção 
humana intencional 
”[6]. É preciso ressaltar que apesar do fato de não estarem sujeitas à alteração 
diretamente por ato legislativo deliberado, as regras moraisnão estão imunes à 
alteração por outros meios, dentre os quais se incluem o próprio efeito indireto 
de promulgação e obediência reiterada e contínuade uma lei, que pode criar ou 
modificar um padrão moral. Esta impossibilidade de criação/alteração das 
regras morais diretamente por ato legislativodeliberado não se confunde com a 
imunidade conferida a certas leis em determinado sistema jurídico; esta 
imunidade é meramente contingente, nãosendo característica essencial das 
normas jurídicas, ao contrário do que ocorre com as normas morais, que são 
incompatíveis com toda e qualqueralteração deliberada imediata.III) Caráter 
voluntário dos delitos morais: para que se configure a responsabilidade moral 
de um indivíduo é condição necessária que tenha o domíniode seus 
pensamentos e ações, em outras palavras, voluntariedade. A prova da não-
intencionalidade e da diligência necessária afastam a reprovaçãomoral, sendo 
mesmo moralmente ilegítimo reprovar indivíduo nestas circunstâncias. Com 
relação as regras jurídicas, em que pese esta ser umacaracterística desejável, 
não é inerente a sua natureza, constatando-se exemplos de responsabilização 
sem culpa, como a responsabilidade objetiva,cada vez mais difundida nos 
ordenamentos jurídicos modernos.IV) Forma de pressão moral: ao contrário 
das regras jurídicas, que baseiam tipicamente a pressão social para seu 
cumprimento na ameaça decastigo físico, a pressão pela observância das 
regras morais fundamenta-se na conscientização de sua importância, 
partilhada pelos membros dasociedade, ou seja, seus destinatários. Ao lado 
deste apelo à consciência, a observância das normas morais é garantida, em 
regra, pelossentimentos de culpa e remorso esperados do indivíduo que as 
inobserva.Conforme explicitado alhures, na visão de Hart, estas quatro 
características, quando conjuntamente consideradas, permitiriam identificar as 
regrasmorais dentre as demais regras sociais. Tais critérios seriam, em certo 
sentido, formais, pois não se referem a nenhum conteúdo ou finalidadeinerente 
das regras morais, que variariam no tempo e no espaço, chegando a ser 
antagônicas quando observadas diversas bases de estudo.Em que pese 
admitir um conteúdo mínimo da moral (proibição do uso da violência, exigência 
de verdade, de comportamento correto e de respeitoaos compromissos), o 
estudo de Hart permite concluir pela suficiência dos critérios ditos formais 
acima expostos. Assim o faz, certamente, pelapretensão de generalidade de 
sua teoria em fornecer critérios para identificação de normas morais em 
qualquer ordenamento jurídico, a qual seriaabalada pela busca de conteúdos 
morais característicos, que como se viu, são variáveis, não servindo como 
critério seguro de distinção. 
3. Mínimo de Direito Natural 
Como afirmamos alhures, Hart defende uma conexão entre direito e moral, em 
que pese sua autonomia. Assim, desenvolvendo esta proposição,discute as 
diversas formas pelas quais esta conexão pode apresentar-se. Porém, um 
alerta inicial faz-se necessário: a constatação de que odesenvolvimento do 
direito tem sido profundamente influenciado pela moral não permite concluir, 
precipitadamente, que o sistema jurídico deve seadequar necessariamente à 
moral ou justiça, ou mesmo, que há uma obrigação moral de lhe obedecer. Os 
critérios de validade jurídica de leisconcretas de um sistema jurídico não 
necessariamente devem incluir uma referência à moral ou justiça.Após 
discorrer sobre a doutrina do Direito Natural, destacando a concepção de que 
cada espécie de coisa existente, humana ou não humana, épensada não 
apenas como tendendo a manter sua própria existência, mas dirigindo-se a um 
estado definido ótimo que é o bem específico, Hartconclui que parte 
considerável deste ponto de vista teleológico sobrevive em alguns dos modos 
pelos quais pensamos os seres humanos, como porexemplo, ao identificarmos 
certas coisascomo necessidades humanas boas ou ruins. E o que fundamenta 
este modo de pensar? É a aceitação deque o fim adequado do ser humano é 
sua sobrevivência; é isso que o motiva e o guia em suas relações sociais e 
com a natureza, sendo estacaracterística elemento central e indiscutível da 
terminologia Direito Natural[7].Diante desta finalidade humana última, qual seja, 
a sobrevivência, pode-se concluir que existem regras de conduta exigíveis para 
a viabilidade dequalquer organização social, sendo estas regras um núcleo 
comum do direito e da moral de qualquer sociedade em que haja a distinção 
entre estasdiversas formas de controle social. Hart chama a este núcleo 
comum, ou seja, aos princípios de conduta reconhecidos universalmente, de 
conteúdomínimo do Direito Natural.Assim, para obtermos acesso a este núcleo 
mínimo de interação entre o direito e a moral, devemos analisar as 
características salientes da naturezahumana sobre as quais este mínimo se 
baseia, o fazendo através da análise de truísmos ou verdades óbvias que as 
revelam. Estes truísmosfornecem uma razão, admitida a sobrevivência humana 
como finalidade, pela qual direito e moral devem apresentar um conteúdo 
específico ecomum, sem o qual, os homens, em geral, não teriam razão para 
obedecer voluntariamente a quaisquer regras, gerando uma 
instabilidadeincompatível com a própria conservação da vida em sociedade. 
Vamos a eles:I) Liberdade[8]: todos os homens têm o igual direito de serem 
livres. Disto não se infere que cada indivíduo tenha o absoluto ou incondicional 
direitode agir de determinada maneira, pois, a convivência em sociedade, sob 
regras jurídicas, exige igual respeito ao direito de liberdade dos outros.II) 
Vulnerabilidade humana: decorrência da frágil constituição física humana, que 
a faz vulnerável ao ataque de outros homens, surge a necessidadede regras 
protetivas, que se manifestam, em sua maior parte, como abstenções sob a 
forma de proibições. Dentre estas se destacam as querestringem o uso da 
violência para matar ou causar ofensas corporais. Pode-se dizer que sem 
regras desta espécie, que garantam a vida humana, osdemais tipos de regras 
seriam inúteis. 
 
 
III) Igualdade aproximada: em que pese as diferenças físicas e intelectuais 
entre os seres humanos, estas não atingem um patamar que permita a 
umindivíduo dominar e subjulgar por sua força individual, sem cooperação, os 
demais. Esta igualdade aproximada entre os homens exige, para 
ofuncionamento e manutenção da sociedade, um sistema de abstenções 
mútuas e de compromissos, que está na base das obrigações jurídicas 
emorais, sem o qual a vida seria demasiado penosa.IV) Altruísmo limitado: os 
seres humanos não pretendem apenas o mal de seus semelhantes; lado outro, 
não são seres perfeitos e angelicais, queagem sempre em busca do bem, 
respeitando o próximo. Por não seres “anjos”, nem “demônios”[9]é que se torna 
necessário, e possível, um sistemade abstenções recíprocas, sem o qual a vida 
social estaria seriamente ameaçada.V) Recursos limitados: os recursos 
naturais necessários à sobrevivência humana, como alimentos, abrigo e 
roupas, têm sua existência limitada. Talsituação, potencial geradora de 
conflitos entre os seres humanos, exige regras mínimas de propriedade e sua 
proteção, de modo a fomentar aprodução e em última análise garantir a própria 
manutenção da vida em sociedade. A necessária divisão do trabalho exige por 
outro lado regrasdinâmicas, “no sentido de que permitem aos indivíduos criar 
obrigações e fazer modificar a sua incidência”[10].VI) Compreensão e força de 
vontade limitadas: em que pese a maioria dos homens vislumbrar as vantagens 
da obediência às regras sociais básicas,sacrificando seus interesses pessoais 
imediatos em prol da convivência social pacífica, este comportamento não é 
uniforme. A tentação em optar porseus próprios interesses é real e a forma 
encontrada para garantir ou estimular a obediência às regras é por meio da 
sanção. Na visão de Hart, asanção não deve ser o motivo normal de 
obediência (vez que a maioria da sociedade obedeceria independente de sua 
existência), mas uma garantiade que aqueles que obedeceriam 
voluntariamente não serão sacrificados pelos que não obedeceriam. Assim, o 
esperado e recomendável em umasociedade sadia é o cumprimento voluntário 
das regras, sendo prevista (e aplicada) sanção apenas em caso de 
descumprimento.Não se pode descurar que cada um destes truísmos está 
intimamente relacionado com os demais. Assim, por exemplo, a eficácia das 
sançõesapenas tem lugar diante da igualdade aproximada dos homens, ao 
mesmo tempo em que permite a regulação do convívio humano diante 
daescassez de recursos.São estas verdades óbvias ou truísmos acerca da 
condição humana que motivam a existência de um núcleo jurídico e moral 
mínimo, sem o qual asregras sociais confrontariam de tal modo com a natureza 
e objetivos humanos, que seriam de quase impossível aceitação ou 
obediência.É verdade que poderíamos colacionar diversos exemplos de 
sociedades jurídicas concretas nas quais seria de extrema dificuldade 
identificar aaplicação integral deste “núcleo comum mínimo da moral e do 
direito”, ao menos no que diz respeito a parte da população, como seria o caso 
dosescravos em Roma, dos negros no Brasil colonial, dos judeus na Alemanha 
nazista e dos miseráveis. Estas “classes” de indivíduos, cujo contingentepode 
atingir proporções consideráveis da população local, encontram-se alijados da 
proteção e benefícios conferidos pelo sistema de abstençõesrecíprocas, 
próprio da moral e do direito, permitindo concluir que, para uma sociedade ser 
viável é suficiente que este sistema de abstenções seaplique a parte de seus 
membros e não a todos. Basta a aceitação e cumprimento voluntário das 
regras por parcela da população, exigindo-se dosdemais a mera obediência, 
sendo certo que a estabilidade deste sistema variará conforme a proporção 
entre estas duas parcelas. É exatamente estacaracterística que permite 
concluir que o mínimo de Direito natural defendido por Hart, seria um mínimo 
recomendável e não necessário.De modo a exaurir o estudo acerca do que 
pretende ser a comprovação da conexão entre o direito e a moral, Hart aponta 
seis outras formas pelasquais esta relação pode se fazer presente e ser 
demonstrada, não obstante estarem um nível abaixo das “verdades óbvias ou 
truísmos”, ao menosem termos de precisão e certeza, características 
ostentadas pelo que Hart chamou de conteúdo mínimo do Direito Natural, 
acima estudadas.I) Poder e autoridade: um sistema jurídico padeceria de 
extrema instabilidade caso se baseasse apenas num sistema coercitivo que 
garantisse suaobrigatoriedade. Além da força coercitiva a ele inerente, é 
recomendável que ostente lealdade pela população, que pode decorrer de 
vários fatores,dentre os quais se destaca e ganha importância, dado o objeto 
de estudo, a aceitação moral do ordenamento jurídico. Segundo Hart[11], há 
umapresunção de que a aceitação voluntária das obrigações jurídicas traz 
consigo uma concordância moral do indivíduo, em que pese esta 
presunçãocomportar exceções, nas quais um indivíduo aceita uma regra como 
juridicamente obrigatória, em que pese entender que não há qualquer 
razãomoral para seu cumprimento.II) Influência da moral sobre o direito: a 
moral social e os ideais morais influenciam o direito de todas as sociedades, 
variando na forma, conteúdo eamplitude.III) Interpretação: recorrendo ao 
conceito de “textura aberta do direito”, desenvolvido como uma dos pilares de 
sua teoria jurídica, Hart defende quediante da necessidade de interpretação 
das leis, quando de sua aplicação concreta, os juízes possuem grandecampo 
de discricionariedade, que éexercida, frequentemente, “pela consideração de 
que a finalidade das regras que estão a interpretar é razoável, de tal forma que 
não se pretendecom as regras criar injustiças ou ofender princípios morais 
assentes”[12]. Em outras palavras, quando interpreta, o juiz pondera e aplica 
valoresmorais da sociedade.IV) Crítica do direito: as críticas ao direito de dada 
sociedade se concentram no fato de que a integralidade dos seres humanos 
não são tratadoscomo titulares das proteções e liberdades fundamentais, 
características estas atreladas à moral social. Ideais de justiça e moral, em que 
pesevariáveis, fundamentam críticas ao direito.V) Princípios de legalidade e 
justiça: sempre que o comportamento humano é controlado por regras gerais 
enunciadas publicamente e aplicadas porvia judi-cial pode-se afirmar haver um 
mínimo de justiça, uma vez que garante a imparcialidade.VI) Validade jurídica e 
resistência ao direito: Hart defende um conceito de direito amplo, no qual se 
incluem regras jurídicas contrárias à moral social,desde que ultrapassem os 
testes formais estabelecidos pelas regras primárias e secundários do 
ordenamento. Não se pode confundir a invalidade jurídica com a iniquidade 
moral do direito, a qual justifica a resistência ao ordenamento jurídico. 
4. Conclusão: 
Ao concentrarmos os estudos acerca da relação entre direito e moral nos 
escritos de Hart, pudemos obter um conhecimento mais profundo daquelateoria 
que entendemos ser a que melhor identificou e explicitou as peculiaridades e 
conexões entre estas importantes espécies de normas decomportamento.Ao 
defender a independência dos institutos, na linha já adotada pelas teorias 
positivistas que o precederam, Hart reconhece a importânciametodológica da 
distinção, ao mesmo tempo em que não se coloca em choque contra dados 
fáticos objetivos, de onde se podem extrair exemplos deordenamentos jurídicos 
amorais ou imorais. Por outro lado, ao expor a íntima relação entre direito e 
moral, a ponto de defender a existência de ummínimo de direito natural nos 
ordenamentos jurídicos, evolui frente aos seus antecessores, reconhecendo a 
necessidade de uma mínimaconvergência moral do ordenamento jurídico, sem 
a qual este tenderia a não aceitação de parte tão considerável da população, 
que sua aplicação eestabilidade estariam para sempre comprometidas.Deve-se 
destacar, entretanto, que a conexão defendida por Hart entre direito e moral é 
apenas contingente, não vislumbrando conexões conceituaisnecessárias entre 
os conteúdos de ambos os institutos. Admite, portanto, a existência de normas 
jurídicas moralmente iníquas. E é exatamente nesteponto que sua posição se 
afasta e supera construções como a de Dworkin[13], que vincula os institutos 
ao inadmitir um direito amoral ou imoral, aomesmo tempo em que desqualifica 
a interpretação daqueles que reconhecem como jurídico sistemas amorais ou 
imorais, atribuindo-lhe a pecha de“pré-jurídico”, numa construção que 
entendemos de engenhosa qualificação semântica, não obstante, tangenciar os 
problemas reais da conexãonecessária.Mesmo longe de encerrar a polêmica 
acerca das relações entre o direito e a moral, que se arrasta por séculos, 
entendemos que a contribuição deHart continua sendo aquela que melhor 
interpretou o fenômeno debatido, razão pela qual foi escolhida como objeto de 
nosso estudo. Sua conclusão,no sentido de confirmar a distinção entre direito e 
moral, ao mesmo tempo em que defende seu íntimo relacionamento, em 
especial, através de umnúcleo mínimo necessário (ou recomendável), é, 
segundo nosso entendimento, uma das maiores contribuições para a resposta 
ao primeiro e grande 
 
 
objeto de estudo e questionamento da ciência jurídica: o que é o direito?Certo 
é que, apenas com a adequada definição do objeto de estudo, o cientista 
jurídico poderá alcançar sucesso no desenvolvimento de uma teoria jurídica 
adequada. E para esta definição, concluímos que a teoria de Hart acerca da 
relação entre direito e moral fornece um princípio teóricosuficiente. 
Referências bibliográficas 
DWORKIN, Ronald. 
O império do direito 
. Tradução Jefferson Luiz Camargo. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 
1999.Título original: Law´s empire. HART, Herbert L. A. 
Are there any natural rights? 
The Philosophical Review, v. 64, p. 175-191, 1955. __. 
O conceito de Direito 
. Tradução A. Ribeiro Mendes. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 
2007. Título original: The concept of law. SGARBI, Adrian