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Nilo Batista INTRODUÇÃO CRÍTICA AO DIREITO PENAL BRASILEIRO E ditora Rcvun w Nilo Batista Livre-docente (UERJ) e Mestre (UFRJ) em direito penal, professor da Faculdade de Direito Cândido Mendes e da PUC-RJ , INTRODUÇÃO CRÍTICA AO DIREITO PENAL BRASILEIRO 11a edição Editora Revan t Todos os direitos reservados no Brasil pela Editora Revan Ltda. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos ou via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora. C oord en a çã o e d ito r ia l Lilian M. G. Lopes A rte e p ro d u ç ã o g rá fica Ricardo Gosi R ev isã o Miguel Villela C apa Danilo Basto Silva C o m p o siçã o WJ Fotocomposição Im pressão e a ca b a m en to (Em papel Off-set 75grs. após puginaçiio eletrônica, em üpos Time New Raman, c. 11/13) D iv isã o G rá fic a d a E d ito ra R evan CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Copyright © 1990 by Nilo Batista Batista, Nilo Introdução crítica ao direito penal brasileiro /N ilo Batista. Rio de Janeiro: Revan, 11a edição, março de 2007 136p. ISBN 85-7106-023-1. 1. Direito penal - Filosofia. 2. Direito penal - Brasil. I. Título. C D U - 343.2.01 343(81) 2007 Editora Revan Ltda. Avenida Paulo de Frontin, 163 20260-010 - Rio de Janeiro, RJ Tel.: 21-2502-7495 - Fax.: 21-2273-6873 8337i 90-0484 Este trabalho fo i escrito quando Carlos Bruce, Maria Clara e João Paulo estavam aprendendo a ler. Â eles, com o carinho afeto de seu pai, é dedicado o livro. Do autor: T e o ria d q le i p e n a l , S. Paulo, 1974, ed. RT (era colaboração com Aníbal Bruno). O e lem en to su b je tiv o d o c r im e d e d en u n c ia ç ã o c a lu n io sa , Rio, 1975, ed. Liber Juris. D e c is õ e s c r im in a is c o m e n ta d a s , l! edição. Rio, 1976, ed. Liber Juris; 2: edição, Rio, 1984, ed. Liber Juris. A n íb a l B ru n o , p e n a lis ia , Rio, 1978, ed. Liber Juris A d v o c a c ia c r im in a l, Rio, 1978, ed. Liber Juris (em colaboração com João Mestieri). C o n c u rso d e a g e n te s , Rio, 1979, ed. Liber Juris. C a s o s d e d ir e ito p e n a l — p a r te e sp e c ia l, Rio, 1980, ed. Liber Juris (em colaboração com Heitor Costa Jr.). T e m a s d e d ir e ito p e n a l . Rio, 1984, d. Liber Juris. P u n id o s e m a l p a g o s (violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje), Rio, 1990, ed. Revan. Biblioteca Central Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Ac. 224621 - R. 688084 Ex. 2 Compra - Cia dos Livros Nf.: 141985 R$ 14,75 - 05/10/2007 Direito (Diurno) - Reg. Sem. Ctba Sumário Nota Prévia 9 Apresentação 11 CAPÍTULO I Direito penal e sociedade. Sistema penal. Criminologia. Política criminal. § 1 “ — Direito penal e sociedade 17 § 2.° — Direito penal e sistema penal 24 § 3.° — Criminologia 27 § 4? — Política criminal 34 CAPÍTULO n A designação “ direito penal” e suas acepções. Princípios básicos do direito penal. Missão do direito penal. A ciência do direito penal. § 5? — Direito penal ou direito criminal? 43 § 6.“ — As três acepções da expressão “ direito penal” § 7.” — O direito penal como direito público 52 § 8." — Princípios básicos do direito penal 61 § 9" — O princípio da legalidade 65 § 10 — O princípio da intervenção mínima 84 § 11 — O princípio da lesividade 91 § 12 — O princípio da humanidade 98 § 13 — O princípio da culpabilidade 102 § 14 — Um direito penal subjetivo? 106 § 15 — A missão (fins) do direito penal 111 § 16 — A ciência do direito penal 117 Bibliografia 123 Nota Prévia Com inúmeros acréscimos e alguma atualização bibliográ fica, é este o trabalho que, em 1988, apresentei ao concurso para a livre-docéncía de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Sou muito grato aos professores Jair Leonardo Lopes, João Marcello Araújo J r . , Luiz Luisi, René Ariel Dotti e Sérgio do Rego Macedo pelas observações então formuladas, Nossa literatura jurídico-penal se ressente da inconstância de contribuições propedêuticas, que permitam aos professores de direito penal revisitar os fundamentos de seu magistério e facilitem a iniciação dos estudantes. O reflexo dessa incons tância está no tratamento repetitivo e linear que os sedimentos básicos do estudo do direito penal merecem da maior parte de nossos livros, Este trabalho se destina a ser a primeira leitura do estu dante de direito penal. Assumidamente simplificador, pro curou não só reorganizar a matéria introdutória, como questio nar-lhe as respostas usuais. Um saber crítico é fundamental mente um esforço para “ fazer aparecer o invisível” (Miaille) ou as “ funções encobertas” (Warat) do visível. Nessa direção, interessei-me particularmente em registrar condicionamentos históricos e objetivos ocultos com os quais o sistema penal de uma sociedade dividida em classes nega cotidianamente os princípios idealisticamente transcritos nos livros de direito penal. As perplexidades e contradições permi tem entender a teoria crítica como poderoso instrumento meto dológico para o conhecimento do direito penal e para a corre ção de deformações ideológicas que a reflexão jurídico-penal comumente apresenta. Nilo Batista De como considerar seriamente os direitos e garantias do cidadão O direito penal, particularmente na América Latina, não consti tui exceção em relação ao domínio de uma hegemonia do pensa mento conservador no campo do direito em geral. Hegemonia que pode ser entendida como a ausência de tradução dos conflitos do planò político para a área específica do jurídico. Em outras palavras, um exemplo concreto desta hegemonia se manifesta na cultura jurídica progressista do jurista, que desaparece quando se trata das “ técnicas da dogmática” Nilo Batista representa uma clara ruptura com essa tradição. Poucos são os trabalhos que, no contexto do direito penal lati no-americano, justificam seu caráter explicitamente crítico como o excelente trabalho que aqui se tem orgulho de apresentar. Sempre achei que o direito penal tradicional tinha muito pouco de liberal na acepção original do termo, isto é, vinculado à produção de garantias para o cidadão. Foi precisamente este direito penal liberal, em nossa recente história latino-americana, que “ se adaptou às circunstâncias” dos diversos autoritarismos, oferecendo legiti midade ao justificar o caráter excepcional das rupturas estruturais da ordem jurídico-democrática. O enfoque “ crítico” do direito penal não constitui um corpo hom ogêneo. Existe tam bém , paradoxalm ente, um enfoque “ critico” , que se movimenta dentro dos parâmetros hegemônicos do pensamento conservador e que permite delinear o problema das garantias, em termos de modelo normativo não realizado na prática. Isto possibilitou aos juristas desenvolver um direito das garantias que permanecia no plano do “ espírito da lei” , sem se interessar pelas técnicas garantidoras. O contrário teria exigido o questiona mento da dogmática penal. Os mecanismos que asseguram a efetivação dos princípios esta belecidos na instituição do cheque como forma de pagamento não encontram equivalente no campo das liberdades públicas ou indivi duais, para dar um exemplo. O enfoque histórico, ao qual Nilo Batista recorre freqüente mente, permite colocar em julgamento as hipóteses do modelo'não realizado. , Em resumo, parece-me que a expressão direito penal “ conser- vador-liberal’’ não configura um caso de contradição previsto pela dogmática. O direito penal iluminista, resultado das lutas da burguesia que culminaram na Revolução Francesa, se legitima como instrumento de defesada sociedade civil, frente a um estado (absolutista) que atuava factual e normativamente com total arbitrariedade e discri- cionariedade. Em contrapartida, o direito penal deve constituir-se de um sistema de técnicas que assegure as liberdades individuais frente ao poder político. Os códigos penais modernos deveriam, portanto, constituir a culminação técnico-política deste processo. Sem dúvida um elemento chama a atenção dos códigos penais do começo do século XIX (característica que, por outro lado, perma nece inalterada até hoje). O conjunto de garantias da sociedade civil frente ao estado não está registrado nos artigos dos códigos. Pelo contrário, os delitos contra o estado (lesa-majestade) constituem a prioridade político-legislativa. Metaforicamente, se poderia afirmar que os delitos contra o estado ocupam, na construção da norma penal, o lugar dos mecanismos de acumulação originária no proces so de formação do capital, A questão não é de pouca importância na determinação futura da direção concreta que assume a garantia das liberdades públicas e de algumas liberdades individuais. Concebido para ser usado como material didático, a Introdução crítica ao direito penal brasileiro entrega ao leitor as chaves neces sárias para desarticular criticamente um direito penal com primazia do enfoque “ lesa-majestade” , outorgando a possibilidade de re construir um verdadeiro direito penal das garantias. Dos muitos méritos deste trabalho, alguns já postos em evidên cia, elejo “ arbitrariamente” um. O enfoque de Nilo Batista permite superar o debate estéril entre uma visão pan-penalista da vida social e um abolicionismo total e imediato do sistema penal. O segredo da receita é simples: considerar seriamente os direitos e garantias, aprimorar as técnicas de defesa jurídica da sociedade civil e decifrar os enigmas da dogmática jurídica, para tomá-los acessíveis aos movimentos sociais. Emilio Garcia Mendez O homem não existe para a lei, mas sim a lei existe para o homem. Karl Marx Capítulo I DIREITO PENAL E SOCIEDADE. SISTEMA PENAL. CRIMINOLOGIA. POLÍTICA CRIMINAL. § \° Direito penal e sociedade Os trabalhos brasileiros de iniciação ao direito penal costu mam ser abertos com observações sobre as relações entre sociedade e direito. Tais observações, quase sempre, se limi tam a assinalar que a vida em sociedade não prescinde de normas jurídicas; assim, por exemplo, Mirabete1, Damásio2, Mayrink da Costa3. Certamente não há incorreção em lembrar — valham-nos as palavras de Losano — que “ das sociedades pré-letradas até às pós-industriais, os homens movem-se dentro de sistemas de regras” '1. Convém, entretanto, questionar imediatamente as formas de aparição histórica do direito, para contornar riscos idealistas aos quais podem expor-se os iniciantes. O mais grave desses riscos é aquele que Miaille chama de “ universa lismo a-histórico” 5; na medida em que as idéias constituíssem 1 M anual de d ireito p en a l, P .G ., S . Paulo, 1980, ed. A tias, p. 13: “ u vida em sociedade exige um com plexo de norm as disciplinadoras que estabeleça as regras indispensáveis ao convívio entre os indivíduos que a com põem ” . 2 D ireito p ena l, P .G ., !T v ., S. Paulo, 1985, ed. Saraiva, p. 3: “ o direito surge das necessidades fundam entais das sociedades hum anas". 3 D ireito p en a l, P .G ., R io , 1982, ed. Forense, p. 4: “ a vida em sociedade im plica relações sociais e todo grupam ento hum ano abre espaço para um m odus vivendi através de um conjunto de regras d iretivas” . 4 O s grandes sistem as ju ríd icos, trad. A. F. Bastas e L. Leitão, Lisboa, 1979, ed. Presença, p. 17. 5 Uma introdução crítica ao direito , trad. A. Prata, Braga, 1979, ed. M oraes, p. 48. 17 a matriz da realidade, a história do direito seria autônoma e destacada com respeito ao contexto histórico em que tal direito fora produzido, passando a compor um conjunto de noções universalmente válidas. Sem pretender resgatar a surrada imagem da “ base e superestru tura” , desacreditada pela voz autorizada de P oulan tzas”, é decisivo advertir-se para a “ essência econômica” que subjaz às definições jurídicas abstratas1, compreendendo o verdadeiro processo social de criação do direito. Uma passagem de Tobias Barreto, escrita há mais de um século, auxiliará nessa compreensão: “ não existe um direito natural, mas há uma lei natural do direito” ". Acrescentava Tobias Barreto que, da mesma forma, não existem linguagem, indústria ou arte naturais, embora exista aquilo que chama de lei natural da linguagem, da indústria e da arte: o homem não fala “ língua alguma, não exerce indústria nem cultiva arte de qualquer espécie que a natureza lhe houvesse ensinado; tudo é produto dele mesmo, do seu trabalho, da sua atividade” u. Ao conceber o direito como algo não revelado ao homem (a exemplo de uma noção religiosa) nem descoberto por sua razão (a exemplo de uma regra de lógica formal), mas sim produzido pelo grupamento humano e pelas condições concre tas em que esse grupamento se estrutura e se reproduz; ao ridicularizar a concepção do direito como “ uma lei suprema, preexistente à humanidade e ao planeta que ela habita” , To- 6 Poulantzas, N icos, O estado, o pod er e o socia lism o, trud. R. L im a, R io, 1980, cd. G raal, p. 19. 7 L osano, op. c iL , p. 17, As relações econôm icas, por seu tu m o , não se constituem estruturalm ente apenas com o relações sociais, m as tam bém corno relações m arca- dam ente políticas e jurídicas: cf. Boa ventura de Souza S an tos, P ara um a socio lo gia da distinção estado/sociedade civ il, in D esordem e p r o c e ss o , P. A legre, 1986, p. 73. 8 Introdução ao estudo do direito , in E studos de d ire ito , R io , 1892, ed, L aem m ert, p. 36. 9 Ibidem . 18 bias Barreto se antecipava extraordinariamente às concepções jurídicas correntes no Brasil de sua época10. O direito penal vem ao mundo (ou seja, é legislado) para cumprir funções concretas dentro de e para uma sociedade que concretamente se organizou de determinada maneira. O estudo aprofundado das funções que o direito cumpre dentro de uma sociedade pertence à sociologia jurídica, mas o jurista iniciante deve ser advertido da importância de tal es tudo para a compreensão do próprio direito. Quem quiser compreender, por exemplo, o direito assírio, o direito romano, ou o direito brasileiro do século XIX, pro cure saber como assírios, romanos e brasileiros do século XIX viviam, como se dividiam e se organizavam para a produção e distribuição de bens e mercadorias; no marco da proteção e da continuidade dessa engrenagem econômica, dessa “ Ordem Política e Social” (não por acaso, designação dos departamen tos de polícia política entre nós — DOPS) estará a contribui ção do respectivo direito. Mesmo os penalistas chamados de “ clássicos” , tão próximos de um processo histórico no qual foi oportuno extrair da razão conteúdos jurídicos “ natu rais” ", percebiam às vezes esse caráter “ prático” . Carrara, desenvolvendo os elementos de sua famosa definição de cri- me, ao deter-se no “ dano político” , assinalava que o direito penal (em sentido subjetivo) é atribuído ao estado “ como meio de mera defesa da ordem externa, não para o fim de aperfei 10 O p. c i t ., p, 39 . H erm es Liran percebeu que o posição de Tobias Barreto : : significava repelir a crença numa essência ideal de ju stiça , que m overia os sistem as ju ríd icos, e substituí-la pela concepção de fatores sociais e culturais que, na esfera da hum ana ativ idade, apareciam e se renovavam ” {Obras com pletas de Tobias Barreto, Introdução G eral, S. Paulo, 1963, ed. IN L, v. I, p. 160), IJ O jusnaturaiism o foi a teoria juríd ica da burguesia revolucionária, que procurava destruir os privilégiose distinções do m undo (e, portanto, do direito) m edieval, bem com o inserir o m onarca dentro da esfera de novas relações juríd icas, através dos princípios “ natu ra is” da igualdade form al e da universalidade do direito . Cf. Lakács, La reificazione nella scienza giuridica, trad. R. G uastini, in M arxism o e teoria det d irh to , B olonha, 1980, ed. II M ulino, p. 90. Cf. também Paulo Bonavides, Do estado liberal ao estado socia l, R io, 1980, ed. Forense, p. 4. 19 çoamento interno” 12. É a esse viés que se reporta a observa ção, recprrente em trabalhos introdutórios, da característica flnalística do direito penal. O direito penal existe para cumprir finalidades, para que algo se realize,--não para a simples celebração de valores eternos ou glorificação de paradigmas morais. Resulta claro que conhecer essas finalidades é importante para conhecer o direito penal. Quaisquer que sejam tais finali dades — inclusive a de evitar que “ prorrompa a guerra de todos contra todos” , como dizia von Liszt13 — , constituem elas obviamente matéria que não pode ser estranha às preocu pações do jurista. Atribuindo-se à figura de von Liszt conota ções que certamente não possuía, o jurista não pode deixar de formular algumas indagações, a saber: existirá de fato uma guerra de todos contra todos, ou, pelo contrário, uma guerra de alguns contra outros? Que guerra é essa? Por que alguns desejam guerrear contra outros? Se o direito não cai do céu, mas é elaborado por homens, qual a posição dos homens que o editam nessa guerra? Só o direito penal evita que se prorrompa tal guerra? Não prorromperá ela apesar do direito penal? Evitada a guerra, quem ganha e quem perde com essa “ paz” que o direito penal assegurou? Essas e outras perguntas po derão aproximar-nos, até sem que o percebamos, de certas chaves centrais no afazer jurídico: jusnaturalismo e positi vismo jurídico, interpretação da lei, fins da pena, política criminal, etc. Afirmamos, portanto, que o direito penal é disposto pelo estado para a concreta realização de fins; toca-lhe, portanto, 12 Program m a, § 13. 13 Tratado de d ireito penal allem ão, tradução J. H ygino, R io , 1899, ed. B riguiet, v. 1, p. 95. A expressão ‘ “guem i de todos conlra todos” rem onta a Hobbes; M ontes- quieu falaria de “ estado de guerra” , eR ousseau do ‘ ‘d ire itodo mais fo rte” . Com o registrado por M arx, no século X V III a ficção segundo a qual o “ estado de natureza é o verdadeiro estado da nalureza hum ana” alcançou o apogeu (II manifesto filosofico delia scuola storica dei diritto, in Marx/Engels, Opere, Roma, 1980, ed. Riuniti, v. I, p. 206). 20 uma missão política, que os autores costumam identificar, de modo am plo, na garantia das “ condições de vida da sociedade” , como Mestieri'4, ou na “ finalidade de combater o crime” , como Damásio13, ou na “ preservação dos interesses do indivíduo ou do corpo social” , como Heleno Fragoso16. Tais fórmulas não devem ser aceitas com resignação pelo iniciante. O direito penal nazista garantia as “ condições de vida da sociedade” alemã subjugada pelo estado nazista, ou era a pedra de toque do terrorismo desse mesmo estado, garantindo em verdade as condições de morte da sociedade? Sem adentrar a fascinante questão de que o estado primeiro inventa para depois combater o crime, esse combate não será algo misera velmente reduzido ao crime acontecido e registrado?11. Ou seja: o combate que o direito penal pode oferecer ao crime praticamente se reduz — desde que a pesquisa empírica de- monstrou o precário desem penho do chamado “ efeito intimidador” da pena, sob cuja égide sistemas inteiros foram construídos — ao crime acontecido (sendo mínima sua atua ção preventiva} e registrado (a chamada criminalidade aparente, que, como também a pesquisa empírica revelou, é muito inferior — em alguns casos, escandalosamente inferior: pense-se por exemplo no abortamento — à criminalidade real, sendo a diferença denominada cifra oculta). Por último, que significarão “ interesses do corpo social” numa sociedade dividida em classes, na qual os interesses de uma classe são estrutural e logicamente antagônicos aos da outra? A função do direito de estruturar e garantir determinada ordem econômica e social, à qual estamos nos referindo, é habitualmente chamada de função “ conservadora” ou de “ controle social” . O controle social, como assinala Lola 14 Teoria elementar do direito criminal, Rio, 1971, p, 3. 15 O p. c it., p. 3. 16 Lições de direito pena l, P .G ., R ia, 1985, ed. Forense, p. 2. 17 W elzel havia percebido que, quando o direito penal “ entra efetivam ente em ação, j á é , em geral, muito tarde' ’ (Derecho penal alemán, trad. Bustos Ram ireze Y. Perez, Santiago, 1970, p. 13). 21 Aniyar de Castro, “ não passa da predisposição de táticas, estratégias e forças para a construção da hegemonia, ou seja, para a busòa da legitimação ou para assegurar o consenso; em sua falta, para a submissão forçada daqueles que não se inte gram à ideologia dominante” 18. É fácil perceber o importante papel que o direito penal desempenha no controle social. Sob certas condições, pode o direito desempenhar outras funções (como, por exemplo, a “ educativa” e mesmo a “ transforma dora” — esta, oposta à “ conservadora” ). A preponderância da função de controle social é, contudo, inquestionável. Determinadas, íissim, pela necessidade do poder que con fere garantia e continuidade às relações materiais de produção prevalecentes numa dada sociedade, estariam as normas jurí- dico-penais alijadas de qualquer influência ativa sobre essa mesma sociedade? A resposta de Aníbal Bruno merece transcrição: “ sabemos como as sociedades humanas se encon tram ligadas ao Direito, fazendo-o nascer de suas necessidades fundamentais e, em seguida, deixando-se disciplinar por ele, dele recebendo a estabilidade e a própria possibilidade de sobrevivência” 19. Ou seja, embora o direito penal seja mo delado pela sociedade — e, em última instância, hão de pre valecer sempre as variáveis econômicas que determinam suas linhas fundamentais — ele também interage com essa mesma sociedade. Como ensina Miranda Rosa, ‘ ‘se o direito é condi cionado pelas realidades do meio em que se manifesta, entre tanto, age também como elemento condicionante” 20. Há marcante congruência entre os fins do estado e os fins do direito penal, de tal sorte que o conhecimento dos primei 18 Crim inología de ia liberaciõn, M aracaibo, 1987, ed. Un, dei Zulin, p . 119. Inform ação sobre o desenvolvim ento da idéia de controle social em Zahidé M acha do Neto, Direito penal e estrutura social, S . Paulo, 1977, ed. Saraiva, p. 4 ss, Paia Juarez Tavares, a finalidade normativo-material da criação jurídica de delitos es ti na “ proteção aos interesses dominantes na estrutura social estratificada" (Teorias do delito, S. Paulo, 1980, ed. RT, p. 4). 19 D ireito pena l, P .G ., R io , 1959, ed. Forense, v. I , t. l f , p . 11. 20 Sociologia do d ireito , R io , 1970, ed. Zahar, p . 57. 22 ros, não através de fórmulas vagas e ilusórias, como sói fi gurar nos livros jurídicos11, mas através do exame de suas reais e concretas funções históricas, econômicas e sociais, é funda mental para a compreensão dos últimos. Conhecer as finalidades do direito penal, que é conhecer os objetivos da criminalização de determinadas condutas pratica das por determinadas pessoas, e os objetivos das penas e outras medidas jurídicas de reação ao crime, não é tarefa que ultrapasse a área do jurista, como às vezes se insinua. Com toda razão, assinala Cirino dos Santos que “ a definição dos objetivos do Direito Penal permite clarificar o seu significado político, como técnica de controle social” 22. Aliás, a indaga ção sobre fins, que comparece em vários momentosparticula res (na interpretação da lei, na teoria do bem jurídico, no debate sobre a pena, etc), não poderia deixar de dirigir-se ao direito penal como um todo. 21 "L o s fines dei Eslado son difíc iles de determ inar, de modo absoluto y om ni- com prensivo" — Sanguinetti, Curso de derechopolítico , B. A ires, 19S6, p. 297. 22 D ireito peitai, R io , 1985, p. 23. 23 § 2a. Direito penal e sistema penal Devemos distinguir entre direito penal e sistema penal. Provisoriamente, diremos que o direito penal é o conjunto de normas jurídicas que prevêem os crimes e lhes cominam san ções, bem como disciplinam a incidência e validade de tais normas, a estrutura geral do crime, e a aplicação e execução das sanções cominadas. Há outros conjuntos de normas que estão funcionalmente ligados ao direito penal; assim, o direito processual penal1, a organização judiciária, a lei de execução penal, regulamentos penitenciários, etc. Criadas por esses conjuntos, ou a eles subordinadas, existem instituições que desenvolvem suas ati vidades em tomo da realização do direito penal. A polícia judiciária investiga um crime sujeitando-se (ou, pelo menos, devendo sujeitar-se!) às regras que o Código de Processo Penal (CPP) consagra ao inquérito policial e às pro vas. O inquérito concluído é encaminhado a uma “ vara criminal” , ou que outra designação lhe tenha assinado a lei de organização judiciária local. Tratando-se de um crime perse- qüível por ação penal pública, o Promotor de Justiça oferecerá denúncia, e um procedimento previsto no CPP se seguirá. I Frederico M arques assim o define: ‘‘conjunto de princípios e norm as que regulara a aplicação ju risd icional do direito penal, bem como as atividades persecutórias da polícia jud ic iária , e a estruturação dos órgãos de função jurisd icional e respectivos aux iliares” (E lem entos de direito processual p ena l. R io, 1961, v. I, p. 20). 24 Condenado o réu a pena privativa de liberdade que deva cum prir-se sob regim e fechado, serã ele recolhido a uma “ pen itenciária” , espécie do gênero “ estabelecim ento penal” , submetido ao que dispõe a Lei de Execução Penal — LEP:. Vimos a sucessiva intervenção, em três nítidos estágios, de três instituições: a instituição policial, a instituição judiciá ria e a instituição penitenciária. A esse grupo de instituições que, segundo regras jurídicas pertinentes, se incumbe de reali zar o direito penal, chamamos sistema penal. Zaffaroni entende por sistema penal o “ controle social punitivo institucionalizado” 3, atribuindo à vox “ institucio nalizado” a acepção de concernente a procedimentos esta belecidos, ainda que não legais. Isso lhe permite incluir no conceito de sistema penal casos de ilegalidades estabelecidas como práticas rotineiras, mais ou menos conhecidas ou tolera das ( “ esquadrões da m orte” — por ele referidos como “ ejecuciones sin proceso” 4, tortura para obtenção de confis sões na polícia, espancamentos “ disciplinares” em estabele cimentos penais, ou uso ilegal de celas “ surdas” , etc). O sistema penal a ser conhecido e estudado é uma realidade, e não aquela abstração dedutível das normas jurídicas que o delineiam, Com propriedade, Cirino dos Santos observa que o sistema penal, segundo ele “ constituído pelos aparelhos judicial, poli cial e prisional, e operacionalizado nos limites das matrizes legais” 5, pretende afirmar-se como “ sistema garantidor de uma ordem social justa” , mas seu desempenho real contradiz essa aparência. Assim, o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade seu funcionamento é seletivo, atingindo 2 Cf. lei n? 7 .210 , de ll .ju l .B 4 , aru 82 ss. 3 Sistem as penales y derechos hum anos en Am érica L a tina , B. A ires, 1984, p. 7. 4 M anual de derecho pena!, B. A ires, 1986, p. 32. 5 Op. c it ., p. 26. 25 apenas determinadas pessoas, integrantes de determinados gru pos sociais, ta pretexto de suas condutas6. (As exceções, além de confirmarem a regra, são aparatosamente usadas para a reafirmação do caráter igualitário.) O sistema penal é também apresentado como justo, na medida em que buscaria prevenir o delito, restringindo sua intervenção aos limites da necessidade — na expressão de von Liszt, “ só a pena necessária é justa’ ’7 — , quando de fato seu desempenho é repressivo, seja pela frustração de suas linhas preventivas, seja pela incapacidade de regulara intensidade das respostas penais, legais ou ilegais. Por fim, o sistema penal se apresenta comprometido com a proteção da dignidade humana — a pena deveria, disse certa ocasião Roxin, ser vista como o serviço militar ou o paga mento de impostos* — , quando na verdade é estigmatizante, promovendo uma degradação na figura social de sua clientela. O Instituto Interamericano de Direitos Humanos realizou uma pesquisa sobre sistemas penais e direitos humanos na América Latina, cujo informe final, redigido pelo diretor da pesquisa, Zaffaroni, constitui o mais atual e completo documento critico sobre a realidade de nossos sistemas penais“. Seletividade, repressividade e estigmatização são algumas características centrais de sistemas penais como o brasileiro. Não pode o jurista encerrar-se no estudo — necessário, importante e espe cífico, sem dúvida — de um mundo normativo, ignorando a contradição entre as linhas programáticas legais e o real fun cionamento das instituições que as executam. 6 “ En la realidad, pese ai discurso juríd ico , el sistem a penal se dirige casi siempre contra ciertas personas m ás que contra ciertas acc iones" —• Zaffaroni, M anual, c it ., p. 32. 7 La teoria deito scopo nel d iritto penale, trad. A. Calvi, M ilão, 1962, p, 46. 8 Apud O rdeig, Tiene un futuro la dogm ática jurídico-penal? in Estudios de dererho pen a l, M adri, 1976, p. 72, 9 Sistem as pcnates v dercchos hum anos en Am érica Latina — informe fin a l, B. A ires, 1986. 26 § 3 ? Criminologia Criminologia, segundo Lola Aniyar de Castro, “ é a ativi dade intelectual que estuda os processos de criação das normas penais e das normais sociais que estão relacionadas com o comportamento desviante; os processos de infração e de des vio destas normas; e a reação social, formalizada ou não, que aquelas infrações ou desvios tenham provocado: o seu proces so de criação, a sua forma e conteúdo e os seus efeitos” 1, Nossos textos de iniciação ao direito penal oferecem geralmente conceito bem diferente da criminologia, neles apresentada como um conjunto de conhecimentos, ao qual se atribui ou não caráter científico5, cujo objetivo seria o exame causal-explicativo do crime e dos criminosos3, de utilidade questionada". Aníbal Bruno menciona a “ prevenção de alguns 1 C rim inologif da reação soc ia l , irad. E. K osaw ski, Rio, 1983, p. 52. 2 "S eu caráter de verdadeira ciência é por muitos contestado — M estieri, op. c it., p. 20. 3 " É ela (a crim inologia) ciência causal-explicativa. Estuda as leis e fatores da crim inalidade e abrange as áreas da antropologia e da sociologia crim inal” — Magalhães Noronha, D ireito pena l, S. Paulo, 1985, v. I, p. 14. M irabete adota a seguinte definição: " é a ciência que cuida das leis e fatores da crim inalidade, consagrando-se ao estudo do crim e e do delinqüente, do ponto de vista causal-ex- p lica livo" — op. c it., p. 20. Para M estieri, é “ a ciência que estuda o fenômeno crim inal sob o prism a causal-explicativo, em Iodos os seus aspectos, endâgenos e exógenos" — ap . c it ., p. 20. 4 É representativa a seguinte passagem de M agalhães Noronha: “ acrediiamos que sinceram ente nào se pode negar o valor da crim inologia” — op. c it., p. 15. Como assinala com precisão René Ariel D otti, no Brasil, sob o influxo do pensamentode Nélson H ungria, a crim inologia “ caiu em desgraça na órbita ju ríd ica” (Reforma pen a l brasileira. Rio, 1988, p. 162). 27 juristas para com os trabalhos da criminologia” 5. Tal prevepção, infelizmente, não derivava da percepção Jo impasse metodológico e dos equívocos positivistas, pre sentes na consideração da criminologia como simples exame causal-explicativo do crime e do criminoso, nem das funções de legitimação de ordens sociais injustas desempenhadas por tal criminologia6. Tal prevenção estava ligada à prática esqui zofrênica, haurida de uma vertente neokantista que influen ciou extraordinariamente o pensamento jurídico, não de dis tinguir entre o ser e o dever-ser, mas sim de literalmente criar dois mundos epistemologicamente incomunicáveis. Tal in fluência, surgida, como lembra Zaffaroni, “ numa época em que se evidenciou a necessidade de isolar cuidadosamente o ser e o dever-ser, pois o segundo não guardava harmonia com o primeiro e o positivismo organicista burguês não lograva compatibilizá-los” 7, atingiu profundamente o direito penal brasileiro9, levando-o a um desprezo olímpico pela realidade, a um intencional isolamento1'. Na verdade, ser e dever-ser relacionam-se como fato e valor, numa relação de totalidade 5 O p. c it., p. 43. 6 Não por acaso, Basileu G arcia caracteriza as disciplinas crim inológicas como aquelas “ que se preocupam com a dciinqüência como fa to natural, procurando apontar-lhe as causas, com o em prego do m étodo positivo , de observação e experim entação" — Institu ições de direito penal, S. Paulo, s/d , v. I , t. I, p. 25. Bergalli m enciona o “ serviço que o positivism o criminológico-, especialm ente aquele de cunho lom brosiano, prestou à afirm ação do sistem a social implantado pela burguesia triunfante no processa de unificação da Itália” , acrescentando que tal serviço teve “ exitoso e rápido traslado para a Am érica do S u l” (cf. Pavarini, M assim o, Control y dom inación, trad. I. M uãagorri, M éxico, 1983, epílogo, p. 200). 7 Las necesidades dei saber penal latinoamericanò, in rev. Iusta, Bogotá, 1987, n ? 9 , p . 135. 8 V eja-se, por exem plo, o H eleno Fragoso de Conduta punível (S. Paulo, 1961), 9 Relem bre-se Nelson H ungria conclam ando professores c estudantes de direito, advogados e m agistrados, para um a “ doutrina de M onroe” : “ o direito penal é para os ju ris ta s , exclusivam ente para os ju ristas, A qualquer indébita introm issão em nosso Lcbensraum , façam os ressoar, em toque de rebate, nossos tambores e clarins!” (Novas questões juríd ico-penais, R io, 1945, p. 15). 28 dialética, como registra P o u l a n t z a s e por essa perspectiva o saber criminológico e o saber jurídico-penal se comunicam permanentemente. Releia-se o conceito de criminologia de Lola Aniyar de Castro, com o qual foi aberto este parágrafo, comparando-o ao conce i to a b s o l u t a m e n t e p r edomi nan t e nos autores brasileiros11. Devemos fugir à tentação de supor que a di ferença esteja apenas na amplitude. Para a professora vene zuelana, a criminologia englobaria os seguintes aspectos: 1, a sociologia do direito penal e do comportamento desviante; 2. a etiologia do comportamento delitivo e do comportamento desviante; 3. a reação social, compreendendo a psicologia social correspondente, as penas e outras medidas, bem como a análise das instituições que as executam1-. Para a criminologia positivista, o alcance se limitaria à metade do segundo aspecto (etiologiado comportamento delitivo). Não é essa, contudo, a diferença importante. Quando a criminologia positivista não questiona a constru ção política do direito penal (como, por quê e para quê se ameaçam penalmente determinadas condutas, e não outras, que atingem determinados interesses, e não outros, com o resultado prático, estatisticamente demonstrável, de se alcan çar sempre pessoas de determinada classe, e não de outra), 10 “ A relação dos sistem as norm ativos da superestrutura, que pertencem ao de- ver-ser soc ial, com a base, com preendendo a relação de significante a significado, ou de linguagem a realidade, é determ inante e significativa enquanto relação de dever-ser e ser, de valor e fa to , concebidos esses termos n ã o já e m su a irredutibili- dade idealista essencial, m as sim em sua relação de totalidade dialética” (El exam en m arxista dei estado y dei derecho uctuales y lacuestión de Ia alternativa, in M arx — el derecho y el estado, trud. J .R . C apella , B arcelona, 1979, p. 81). 11 O H eleno Fragoso du m aturidade, que já havia percebido ' ‘o com pleto fracasso" da crim inologia positivista (expressão em pregada no prefácio à tradução brasileira da Crim inologia da reação socia l, de Lola A niyar de Castro, c it . , p. X III), adotou, nas últim as edições de suas L ições, a seguinte definição: “ a ciência que estuda o crim e com o fato social, o delinqüente e a delinqüência, bem com o, em geral, o surgim ento das norm as de com portam ento social e a conduta que as viola ou delas se desvia e o processo de reação so c ia l" (op, c it., p. 18). 12 Op. c it., p. 52. 29 nem a aparição social de comportamentos desviantes (seja pelo silêncio estratégico do legislador, que não converte aqui lo que a maioria desaprova — desviante — em delituoso, seja pelo descompasso entre vetustas bases morais, a partir das quais se instalaram instrumentos de controle social, e sua incessante transformação histórica, seja até pela própria etio- logia enquanto processo social individualizável), nem a rea ção social (desde as representações do delito, do desvio, da pena e do sistema penal, dispersas no movimento social, ou sinalizadas na opinião pública e nos meios de comunicação, até o exame das funções, aparentes e ocultas, que a pena desempenha, nomeadamente a pena privativa da liberdade, tal como existe e é executada pelas diversas instituições que dela participam); quando a criminologia positivista não questiona nada disso, ela cumpre um importante papel político, de legiti mação da ordem estabelecida. Como anota com precisão Quinney, “ a realidade oficial é a realidade com a qual o positivista opera — e a realidade que ele aceita e suporta. O positivista toma por dada a ideologia dominante, que enfatiza a racionalidade burocrática, a tecnologia moderna, a autori dade centralizada e o controle científico” 13. Tal criminologia necessariamente tende a tratar o episódio criminal como episó dio individual e a respaldar a ordem legal como ordem natural: não por acaso, seus precursores procuraram tematizar um "homem delinqüente” , que, ao lado dos “ loucos morais” 14, viola a ordem legal, ou um “ delito natural” , que atinge 13 O controle da crim e na sociedade capitalista: um a filosofia critica da ordem legal, in T aylor, W alton e‘Y oung (org .), C rim inologia critica, trad. C irina das Santos e S. Tancredo, Rio, 1980, p. 224. 14 A o longo de lado o livro de Lombroso (L ' uomo delinqüente, Turim, 1884, ed. F. Bocca, 3: ed .), a “ triste classe do hom em delinqüen te" (p. 304) é sem pre referida e cotejada ã cham ada “ loucura m oral” . N a página citada, Lombroso exam inavaa “ estranha tenacidade e d ifusão” com as quais réus ostentavam tatuagens. Bem disse L ichtcnberg, citada po rJasp ers , que “ o estudo da fisiognom onia é, descon tada a profetização, a m ais enganosa de todas as artes hum anas que um a mente excêntricajam ais inventou” (Psicopatologia geral, trad. A . Reis, Rio, 1973, v. I, p. 326). 30 “ sentimentos” encontráveis nas “ raças superiores” , indis pensáveis pàra a “ adaptação do indivíduo à sociedade” 15, isto é, pára a manutenção da ordem legal. Se alguma abertura social se acrescenta a essa perspectiva, como se deu com F erri'\ o resultado é, como precisou, espirituosamente,Lyra Filho, “ uma espécie de progressismo idílico” 11. A racionali dade ou a justiça da ordem legal e das instituições que inte gram o sistema penal, bem como as funções por elas desempe nhadas numa sociedade dividida em classes, não são absoluta mente inquiridas pelo criminólogo positivista. A essa “ falha política” !B do positivismo (à qual, por in- serir-se num trabalho de introdução ao direito penal, conce deu-se primazia) somam-se outras, que colocam em cheque o valor de suas premissas, seus métodos e conclusões. Simplifi- cadamente, resumiremos essas falhas em: a) supor que na transcrição da objetividade cognoscível não se imprime a experiência do sujeito cognoscente; b ) reduzir a objetividade cognoscível ao que nela for em pírica e sensivelmente demonstrável; c) ter, portanto, na metodologia o centro e o limite inexorável de sua atividade científica; d ) conceber de forma mecanicista os fatos sociais, produzindo explicações com base em relações causais151. Frise-se que daquele suposto “ distanciamento” entre o objeto cognoscível e o sujeito cog noscente, com a interveniência da mitificação metodológica, o positivismo extrai outra conseqüência política: a aparente 15 O "d e lito naturai” , n ad efin içãodeG aro fa lo , ‘‘é um a lesáo daquela parte do senso m oral que consiste nos sen tim en to s a ltru ís tico s fundam enta is (p iedade e probidade) segundo a proporção m édia cin que se encontram nas raças humanas superiores, proporção essa necessária para a adaptação do indivíduo à sociedade'* (C rim inologia , Turim , 1885, p. 30). 16 Princípios de d ireito crim inal, trad. L . d ’01iveira, S . Paulo, 1931. 17 Criminologia d ia lética . R io, 1972, p. 16. 18 Quinney, loc. cit. 19 Para ura exame am plo dessas falhas, cf. Juarez Cirino dos Santos, A criminologia da repressão, R io, 1979, p. 47 ss.; Q uinney, op. c it., p. 223 ss; Lola Aniyar de C astro, op, c it ., p. 2 ss. 31 “ neutralidade” do cientista social, que seria um simples pro dutor de saberes, indiferente às tensões da realidade social, A criminologia conheceu, nos últimos vinte anos, uma verdadeira revolução, que lhe permitiu superar o impasse positivista. Chamemos, de modo genérico, Criminologia Crí tica ao conjunto das tendências — ‘ ‘espécie de frente ampla” , como registra Araújo Jr.20 — que realizaram tal superação e tornaram acessível ao estudioso do direito penal conhecimen tos até então camuflados ou distorcidos, inclusive sobre seu próprio ofício21. Ao contrário da Criminologia Tradicional, a Criminologia Crítica não aceita, qual apriori inquestionável, o código penal, mas investiga como, por quê e para quem (em ambas as direções: contra quem e em favor de quem) se ela borou este código e não outro. A Criminologia Crítica, por tanto, não se autodelimita pelas definições legais de crime (comportamentos delituosos), interessando-se igualmente por comportamentos que implicam forte desaprovação social (desviantes). A Criminologia Crítica procura verificar o de sempenho prático do sistema penal, a missão que efetivamente lhe corresponde, em cotejo funcional e estrutural com outros instrumentos formais de controle social (hospícios, escolas, institutos de menores, etc). A Criminologia Crítica insere o sistema penal — e sua base normativa, o direito penal — na disciplina de uma sociedade de classes historicamente deter 20 Os grandes m ovim entos da política crim inal de nosso tem po. R io, 1986, p. 4. 21 Não cabe, em m ero tópico de introdução no direito penal, um a exposição das diversas crim inologias de cariz positiv ista , nem daquelas que, certam ente a partir dos estudas precursores da crim inologia interacionista, estam os reunindo sob o rótulo geral de C rim inologia C rítica. Por não haverem influenciado qualquer penalista brasileiro , não nos referim os às direções construcionista social e fenome- nológica. A lém das obras citadas, rem etem os o le ito r interessado a: T aylor, W allon e Young, The now crim inology: fo r a socia l theory o f deviance, N. Y ork, 1974; Traverso e Verde, Criminologia critica, Pádua, 1981; Baratta, A ., Crimi- nolagía c r ítica y crítica d e i derechopena l, trad . A . Bunster, M éxico, 19B6;Cirino dos Santos, A crim inologia radical. R io , 1981; Lola A niyar de C astro, C rim inolo- g(a de Ia liberación. M aracaibo, 1987; B ergalli, R ., C rítica a la crim inologia, B ogotá, 1982; R osa dei O lm o, Am érica Lati nu y sii crim inologia, M éxico, 1981, 32 minada e trata de investigar, no discurso penal, as funções ideológicas de proclamar uma igualdade e neutralidade des mentidas pela prática22. Como toda teoria crítica, cabe-lhe a tarefa de “ fazer aparecer o invisível’”3 22 "C om preender que □ sistem a legal não serve à sociedade como um todo, mas serve os interesses da classe dom inante, é o com eço de um a com preensão crítica do d ireito crim inal, na sociedade cap ita lista” — Q uinney, op. c it . , p. 240. 23 M iaille, op. c it ., p . 17. 33 § 4 ? Política criminal Do incessante processo de mudança social, dos resultados que apresentem novas ou antigas propostas do direito penal, das revelações empíricas propiciadas pelo desempenho das institui ções que integram o sistema penal, dos avanços e descobertas da criminologia, surgem princípios e recomendações para a reforma ou transformação da legislação criminal e dos órgãos encarrega dos de sua aplicação. A esse conjunto de princípios e recomenda ções denomina-se política criminal. Segundo a atenção se con centre em cada etapa do sistema penal, poderemos falar em política de segurança pública (ênfase na instituição policial), política judiciária (ênfase na instituição judicial) e política penitenciária (ênfase na instituição prisional), todas integran tes da política criminal. Como anota com precisão Pulitanò, há entre a criminologia e a política criminal a distinção — e ao mesmo tempo o relacionamento — intercorrente entre a capa cidade de interpretar e aquela de transformar certa realidade1. Convém igualmente advertir que a acepção que se confere aqui 1 Política crim inale, in M arinuci e Dolciní (org.), Diritto penale in irasfomuizione, M ilão, 1985, p. 17. Essu dualidade entre conhecer e aluar está presente na definição de Z ipf, paraquem a política crim inal im plicaria “ obtenção e realização de critérios diretivos no âm bito da justiça crim in a l" (Introducción a la política crim inal, trad. M acias-Picaveu, M adri, 1979, ed. Rev. Pen. Privado, p, 4). Zaffaroni questiona a distinção entre crim inologia e política crim inal, porquanto “ todo saber crim inológico está previam ente delim itado por uma inlencionalidade p o lítica" (Ett busca de Ias penas perdidas, B. A ires, 1989, p, 177). 34 à política criminal nada tem a ver com compromissos teóricos de um certo movimento, liderado por von Liszt no final do século XIX, que chegou a ser chamado de “ escola da política criminal” 2. O campo da política criminal tem hoje uma amplitude enorme. Não cabe mais reduzi-la ao papel de “ conselheira da sanção penal” , que se limitaria a indicar ao legislador onde e quando criminalizar condutas3. Nem se pode aceitar a primitiva fórmula lisztiana de sua relação com a política social: esta se ocuparia de suprimir ou limitar as condições sociais do crime, enquanto a política criminal só teria por objeto o delinqüente individualmente considerado4. Em ambos os casos, estão sendo pagas elevadas taxas à criminologia positivista: taxa política no primeiro caso (a aceitação legitimante da ordem legal não per mite que a política criminal visite o outro lado, circunscrevendo- a às funções de “ conselheira da sanção penal” ), taxa teórica no segundo caso (a segregação arbitrária do indivíduo delinqüente das condições sociais do crimesugere o reconhecimento de processos causais distintos — ainda que ao gênero “ fatorialista” — de ordem social e individual, tendo como seqüela que a política criminal também deve distingitir-se da política social). A política criminal será, como diz Szabó, a prima pobre da política 2 Sobre as características desses com prom issos teóricos: B ergalli, op. c it ., p. 90; Fragoso, Lições, p. 48; A . Bruno, op. c it ., p. 111. 3 Para A. Bruno, a política crim inal é “ um conjunto de princípios de orientação da E stado na luta con tra a c rim ina lidade , a través de m edidas aplicáveis aos crim inosos” (op. c it., p. 33). Para Basileu G arcia, " a política crim inal exam ina o direito em vigor, apreciando a sua idoneidade na proteção social, contra os crim inosos e , em resultado dessa crítica, sugere as reform as necessárias. Verifi cado se a legislação vigenle alcança sua finalidade, trata de aperfeiçoar a defesa jurídico-penal contra a delinqüencia '' (op. c it., p. 37). Para Marc A ncel, " to d o m undo parece concordar com que a política crim inai tem de início por objeto, indiscutivelm ente, a repressão do crim e, pelas meios e procedim entos do direito penal (ou, mais am plam ente, do sistem a penal) em v igor” (Pour une elude system atique des probiem es de politique crim inelle. in Archivcs de politique crim inelle , n" 1, Paris, 1975, p. 16). 4 von L iszt, Tratada, p. 112. 35 social5, mas está indissoluvelmente ligada a ela. Por isso mesmo, muito nlais do que a histórica tensão entre a política criminal (concebida como aquela “ conselheira” , que procura aprimorar a funcionalidade repressiva do sistema penal) e o direito penal (concebido pela perspectiva garantístico-liberal), tão lapidar- mente expressa por von Liszt (“ o direito penal é a barreira infranqueável da política criminal” ), os grandes debates se tra vam entre finalidades políticas diversas que pretendam modelar o instrumento jurídico6, ou seja, entre políticas criminais diversas. É ilustrativo perceber a influência do fracasso da pena priva tiva de liberdade em concretas propostas de política criminal. Há um século, von Liszt preconizava a suspensão condicional, subs titutivos de caráter pedagógico para criminosos jovens, e se insurgia contra as penas curtas, que “ não corrigem, não intimidam’ ’ e, “ muitas vezes, encaminham definitivamente para o crime o delinqüente novel” 7, A constatação, pela pesquisa empírica nos últimos cinqüenta anos, do fracasso da pena priva tiva da liberdade com respeito a seus objetivos proclamados, levou a uma autêntica inversão de sinal: uma política criminal que postula a permanente redução do âmbito de incidência do sistema penal. Assim se entende Fragoso: “ uma política criminal moderna orienta-se no sentido da descriminalização e da desjudi- cialização, ou seja, no sentido de contrair ao máximo o sistema punitivo do Estado, dele retirando todas as condutas anti-sociais que podem ser reprimidas e controladas sem o emprego de sanções criminais” 8, isto é, no sentido de uma “ conselheira da sanção não-penal ” . Baratta propõe quatro indicações “ estratégicas” para uma política criminal das classes dominadas9, das quais apresentare 5 ' ‘p a r ie n te p o b re '' — C rim ino log iaypo lítica en m atéria crim inal, trad, F. B lanco, M éxico, 1980, p. 169. 6 Pulitanò, op. c it ., p. 9: “ la tensione posta in evidenza non è tanto fra diritto e politica crim inale , quanto fra Fmalità politiche divcrse, tutte confluenti a modella- re lo strum ento g iu rid ic o " . 7 Tratado, p. 113 e 114. 8 Lições, p. 17. 9 Op. c it., p. 213 ss. 36 mos a seguir um resumo. Em primeiroíugar, numa sociedade de classes a política criminal não pode reduzir-se a uma “ política penal” , limitada ao âmbito da função punitiva do estado, nem a uma “ política de substitutivos penais” , vagamente reformista e humanitária, mas deve estruturar-se como política de transformação social e institucional, para a construção da igualdade, da democracia e de modos de vida comunitária e civil mais humanos. Em se gundo lugar, a partir da consideração do direito penal como direito desigual, deve-se empreender dois movimentos: 1?) instituir a tutela penal em campos que afetem interesses essenciais para a vida, a saúde e o bem-estar da comunidade (o chamado “ uso alternativo do direito” ): criminalidade econômica e financeira, crimes contra a saúde pública, o meio ambiente, a segurança do trabalho, etc; 2?) contrair ao máximo o sistema punitivo, obser- vando-se que muitos dos códigos penais vigentes foram elabora dos sob o signo de uma concepção autoritária e ética do estado (para o Brasil, basta Ier a Exposição de Motivos do vigente Código Penal), descriminalizando pura e simplesmente ou subs tituindo por formas de controle legal não estigmatizantes (sanções administrativas ou civis)1". A esses objetivos correspon deria uma profunda transformação no processo e na organização judiciária, bem como na instituição policial81. Em terceiro lugar, 10 Sòbre descrim inalização, cf. The decrim inaliiation, M ilão, 1975 (que contém as atas do colóquio de Bellagio de 1973 sobre a tema; o relatório Hulsman faí traduzido e publicado na R evista de D ireito P enal (RDP) n? 9-10, p. 7 ss); Report on ílt'criminiüizíitiun,Cnunc'ü o f Europc, Estrasburgo, 1980; Peris R iera, J.M . ,£ '/ proceso despenalizador, V aléncia, 1 9 8 3 ;M ig u e lR ea leJr., D escrim inalização, in Rev. do Instituto dos Advogados Brasileiros (IA B ), ano V II, n" 29, p. 189 ss; IvetteSen ise Ferreira, Política crim inal e descrim inalização, inflev . IAB , ano VII, nf 29, p. 196 ss; N ilo B atista, A lgum as palavras sobre descrim inalização, in RDP n? 13, p. 28 ss. Com o acentuou Figueiredo Dias, “ uma Políticu C rim inal que sc queira válida para o presente e o futuro próximo e para ura Estado de Direito m aterial, de cariz social e dem ocrático, deve exigir do direito penal que só intervenha com os seus instrum entos próprios de atuação ali onde se verifiquem lesões insuportáveis das condições com unitárias essenciais de livre realização c desenvolvim ento da personalidade de cada hom em ’ ’ (O s novos rum os da política crim inal e o direito penal português do fu tu ro , L isboa, 1983, p. I I ) . 11 A esse propósito , merecem leitura e reflexão as recom endações concretas form ula das por Zaffaroni, era seu estudo sobre o que denom inou, adequadam ente, de 37 e tendo como premissa o fracasso histórico da prisão, em suas ftmções de controlar a criminalidade e promover a reinserção social do condenado, bem como os verdadeiros fins que tem exercido, pugnar pela abolição da pena privativa de liberdade12; para aproximar-se desse objetivo, sugerem-se as seguintes táticas: a) implantação de “ substitutivos penais” ; b) ampliação de formas de suspensão condicional de execução e livramento condicional; c) introdução de formas de execução em regime de semiliberdade; d) reavaliação do trabalho carcerário; e) abertura da prisão para a sociedade, mediante a colaboração de órgãos locais. Por essa linha, a alternativa oferecida ao mito da reeduca ção consistiria na criação de condições que levassem o conde nado a compreender as contradições sociais que o conduziram a uma reação individual e egoística (o cometimento do crime), que, desenvolvida nele a consciência de classe, se transformaria em participação no movimento coletivo. Em quarto e último lugar, preocupado com os processos ideológicos e psicológicos que se desenvolvem em tomo da opinião pública, ao escopo de legitimação do direito penal desigual (com referência especial aos processos de indução de alarma social, que se apresentam em “ campanhas de lei e ordem” manipuladas por forças políticas, "n o v a defesa ind iv idual" (P olítica crim inal latinoamericana, B. A ires, 1982, pp. 2B a 30). 12 O abolicionism o penal, caracterizado por Scheerer com o uma ' 'leoría sensibiliza- dora” , na acepção que Scheff atribuiu ao interacionism o, ou seja, como uma " te o r ia '' que, dispondo da capacidade de superar de algum a forma as classifica- ções, pressupostos e modelos tradicionais, não consegue, entretanto, proporcio nar, com seus próprios instrum entos m etodológicos e conceituais, a adequada verificação das novas idéias produzidas (Scheerer, Sebastían, La abolición dei sistem a penal: una perspectiva en la crim inologia contem porânea, in R ev . D erecho Penal y Crim inologia, v . V III, n? 2fi, Bogotá, 1985, p. 205), tem seu mais m ilitante profela em Louk H ulsm an, para quem o sistem a dc reação social formal penal é algo com pletam ente inútil e problem ático em si mesmo, podendo, à míngua de qualquer função, se r deixado de lado (Sistem a penal y seguridad ciudadana: hacia una a lternativa, trad . S. Politoff, B arcelona, 19B4). Para outros, como N ils C hristie, só após alterações estruturais nas sociedades pós-ín- dustriais, com a reorganização dos processos de controle social, será possível a abolição ÍLim its to pain , Oslo, 1983). 38 produzindo a falsa representação de uma solidariedade social gerâl contra um comum “ inimigo interno” ), propõe Baratta uma “ batalha cultural e ideológica em favor do desenvolvimento de uma consciência alternativa no campo das condutas desviantes e da criminalidade” , tentando-se inverter as ‘ ‘relações da hegemo nia cultural com um trabalho de decidida crítica ideológica, de produção científica e de informação” 13. Um pequeno, mas decisivo, capítulo dessa batalha pode ser travado nos livros dedicados ao ensino do direito penal. 13 O p. c it., p. 219. Farto m aterial sobre política crim inal pode ser encontrado na ftevue Internationale de D roit Pênal, n? 1, 1978, contenda i»s atas do colóquio de Madri sobre PoKtica C rim inal e Direito Penal. 39 Capítulo II A DESIGNAÇÃO “DIREITO PENAL” E SUAS ACEPÇÕES. PRINCÍPIOS BÁSICOS DO DIREITO PENAL. MISSÃO DO DIREITO PENAL. A CIÊNCIA DO DIREITO PENAL. § 5v Direito “penal” ou direito “ criminal” ? Uma conduta humana passa a ser chamada “ ilícita” quando se opõe a uma norma jurídica ou indevidamente pro duz efeitos que a ela se opõem. A oposição lógica entre a conduta e a norma (cuja consideração analítica dá origem a um objeto de estudo chamado ilícito) estipula uma relação, de caráter deôntico — denominada relação de imputação' — , que traz como segundo termo a sanção correspondente. Quando esta sanção é uma pena, espécie particularmente grave de sanção2, o ilícito é chamado crime. 1 Cf, Raffo, J , , Introdução ao conhecim ento juríd ico . R io, 1983, p. 16. 2 As sanções jurídicas tém geralm ente caráter reintegrativo (visando, real au sim bolicam ente, a restabelecer a situação jurídica anterior ao ilícito) oü com pensa tório (visando, na im possibilidade da reintegração do stato t/uo ante, a uma reparação). A pena tem caráter retributivo: ela implica inflig irão responsável pelo crim e, sob a form a de perda ou restrição de bens ju ríd icos ou direitos subjetivos, um mal que excede a sim ples possível reintegração ou a com pensação devidas. Sobre o tem a, cf. Soler, Conceito e objeto do direito penal, in RDP 4/30 ss; F ragoso, Lições, p. 292. Para H art, o prim eiro elem ento da definição de pena reside na im plicação de “ dor ou outras conseqüências norm almente consideradas desagradáveis" (Punishm ent and responsability, Londres, 1973, p. 4 ). Cf. ainda R oss, On guill, responsability, and punishm ent, Londres, 1975, p . 36. Diz Jescheckque “ negar o caráter de mal à pena eqüivaleria a negar o próprio conceito de p en a” (Tratado de derecho penal, trad. Puig-Conde, Barcelona, 1981, v. I, p, 91). D iz nosso Aníbal Bruno: “ é de sua essência o caráter aflitivo e re trib u tiv o '' (op. c it., t. 3?, p. 23). E im portante ter presente que o caráter retributivo, embora ofereça um critério relativam ente seguro para distinguir a pena das demais san ções, nem , por um lado, esgota ou lim ita a discussão sobre objetivos e funções da pena, nem , por outro, circunscreve-a com exclusividade ao campo do direito 43 Vemos, portanto, que o elemento que transforma o ilícito em crime é a decisão política — o ato legislativo — que o vincula a uma pena. Esse é o substrato das definições formais de crime3, e ele nos revela que a pena não é simples “ conseqüência jurídica” do crime, mas sim, antes disso, sua própria condição de existência jurídicaJ. Se nos dermos conta de que, no momento da aplicação da norma penal, através de penal. Sanções de natureza retributiva existem no direito privado, com o a indigni dade para a sucessão do art. 1.595 CC (“ a indignidade constitui pena c iv il” — Barros M onteiro, Curso de d ireito civil, S, Paulo, 1962, p. 63), no direito processual, corno a m ulta para quem indevidam ente recebe custas do art. 30 CPC (cham ada de “ p en a lid ad e" por Pontes de M iranda, C om entários ao código de processo civil, R io , 1974, t. I, p. 434) ou algum as das sanções do sistem a de responsabilidade das partes por dano processual (das quatro espécies de sanções “ de vária na tu reza" apreendidas por Barbosa M oreira, as três prim eiras têm caráter retributivo, sendo a terceira verdadeira e própria pena — cf. Temas de direito processual, S. Paulo, 1977, p . IB e 19), e no direito adm inistrativo, como as sanções disciplinares que atingem o funcionário público faltoso , ou as com ina- ções do Código N acional de T rânsito contra o m otorista infrator {hipóteses que podem ser adequadam ente cham adas, respectivam ente, de penas disciplinares e penas governativas'). Fala-se hoje num “ direito adm inistrativo pen a l’’, que se aproxima do direito penal exatamente pelo uso de sanções retributivas, e ao qual, por isso m esmo, devem aplicar-se os princípios básicos do direito penal (cf. Revue Internationale de D ro it Pénal, T oulouse, 1988, v. 59, nfs 1-2, p. 520). Com ple m enta-se a d istinção observando que a pena, além do caráter retributivo, é comi- nada pela lei com o pena crim inal, ou seja, dentro do quadro constitucional ou legal das penas adm itidas, subordinada sua aplicação às condições constitucionais e le g a is c o r re sp o n d e n te s , a p r im e ira d as q u a is é a ju r is d iç ã o p e n a l. Ao “ procedim ento ju risd ic ional” com o distintivo com plem entar também recorre B oscarelli (Com pêndio d i d iritto pena le, P .G ., M ilão, 1980, p. 2). V eja-se o quinto elem ento da definição de pena oferecida por H art (op. c it., p. 5). Fragoso m enciona a “ conotação p ro cessu a l" que as expressões crim en e delictunt tiveram durante certa fase do direito rom ano (L ições , c it . , p . 25). 3 “ Crim e é todo aquele com portam ento hum ano que o ordenam ento ju ríd ico castiga com uma pen a” '{Jescbeck, op. c i t . , p, 70); “ crim e é toda conduta que o legislador sa n c io n aco m u m ap en a” (M unozC onde, In troducc ió n a ld erech o p en a l, Barcelo na, 1975, p . 28); “ crim e é toda ação ou om issão proibida pela le i, sob am eaça de pena'* (Fragoso, Lições, p . 147); etc. 4 Já o intuíra Tobias Barreto; ‘ 'O conceito de pena não é um conceito juríd ico , mas um conceito político. O defeito das teorias correntes em tal matéria consiste justam ente no erro de considerar a pena com o um a conseqüência de direito, logicam ente fu n d ad a" (op. c it., p. 177). 44 uma decisão judiciária — que é também um ato político — , o crime se põe como condição de existência jurídica da pena5, compreenderemos a relação dialética que continuamente as socia e distingue esses conceitos opostos, que se fundamentam e se negam reciprocamente.Assim vistas as coisas, o debate sobre a designação direito “ penal’ ’ ou direito “ criminal” poderia sugerir o debate sobre o ovo ou a galinha, não fosse o concurso de três variáveis, que examinaremos a seguir. A expressão “ direito criminal” é mais antiga, e historica mente se observa uma gradual prevalência da expressão “ direito penal” , que teria sido empregada pela primeira vez, segundo Mezger6, por Regnerus Engelhard, em 1756, popula rizando-se, segundo Bustos, após a promulgação do código penal francês de 18107. A primeira variável que se deve considerar é a influência da. opção do legislador. Entre nós, no Império, a Constituição recomendou que se elaborasse um código criminal\ no que foi obçdecida com o Código Criminal de 1830. Já o primeiro código da república, de 1890, se chamou Código Penal, ainda que a Constituição republicana de 1891 viesse a referir-se a “ direito criminai” 1'. As demais constituições adotaram a de signação direito penal10, e o código de 1940 se chamou Código 5 Navarrete fala era “ ca u sa " : “ O crim e é a causa juríd ica da pena, e mais exata mente o seu fundam ento" (D erecho p en a l, P .G ., B arcelona, 1984, p. 28). 6 Tratado de derecho penal, trad. R. M unoz, M adri, v. I, p. 27. 7 Introducciân al derecho p en a l, Bogotá, 1986, p. 3. 8 Constituição de 1824, art. 169, inc. XVIII: "ó rgan izar-se-á quanto antes um código civil, e criminal, fundado nas sólidas bases da Justiça e Eqüidade” , 9 No inciso 23 do artigo 34, que previa a com petência do C ongresso Nacional: ' ‘legislar sobre o direito c iv il, com ercial e criminal da República e o processual da ju stiça fe d e ra l" . 10 1934— art. 5?, inc. X IX , al. a; 1937 — art. 16, inc. XVI; 1946— art. 5?, inc. XV, al. a; 1967 — art. 8 :, inc. X V II, al. b (m antido na Em enda n° 1 de 1969); 1988 — art. 22, inc. I. Entre nós, foi- Roberto Lyra quem cham ou a atenção para a im portância do texto constitucional, num livro que , por influência do positivismo ferriano, se cham ava Introdução ao estudo do direito crim inal, R io, 1946, p. 47. 45 Penal. Tal influência é perceptível em Damásio", Mayrink da Costa12, Batsileu Garcia13, Mirabete14 e Magalhães Noronha15. A segunda variável diz respeito a paradigmas doutrinários que impliquem nomear o direito penal dessa ou daquela ma neira. No processo histórico de prevalência da expressão direi to penal, Bustos vê certa intenção de “ acentuar o caráter sancionador deste direito como seu traço mais distintivo e definitório” 16. Partilha dessa linha, entre nós, Brito Alves, que privilegia a locução direito penal por ver na punibilidade a “ nota específica do crime, a sua conseqüência jurídica mais natural ou lógica, como a circunstância predominante, como a característica maior” 17. É sempre lembrada a designação Có digo de Defesa Social, introduzida (1936) em Cuba18. O uso da expressão direito criminal, em 1946, por Roberto Lyra, expri me a influência que sobre ele exercia o pensamento de Ferri” . 11 ‘ ‘Nós possuím os um código penal, razão pela qual preferim os n expressão D ireito Penal, aceitando a predileção do leg islador’’ (op. c it . , p . 4). 12 . . . 1 ‘a partir de 1890 nossa legislação passou a denominar-se Código Penal. Seguimos a tradição” (op. c it., p. 5). 13 1‘Possuím os um Código Penal, não um Código Crim inal. Deve ser aceito, pois, para título da m atéria, o sugerido pela lei p ositiva" (op. c it . , p. 8). 14 . . . “ em consonância com a legislação pátria” (op. c it . , p . 14). 15 ‘ ‘O ptam os, en tretan to , pela de direito penal, em consonância com o C ód igo" (op. c it., p. 3). 16 Iníroducción, c i t . , p . 4. A m udança im portante, registra B ustos, estava no aban dono da idéia de expiação, substituída pela de p e n a , associada historicam ente " à concepção de estado de direito e ao princípio nuílum crim en nu! Ui poena sine lege” . 17 D ireito penal, P .G ., R ecife, 1977, p. 111. A Ênfase na pena não significa que este autor atribua ao direito penal funções estritam ente sancionadoras (cf. p. 115). 18 Fortem ente influenciado pelo positivism o e , “ segundo os próprios autores, ins pirado na idéia fen ian a de defesa soc ial’ ’ (M artínez R incones, Socied a d y derecho p ena l en Cuba, B ogotá, 1986, p. 62), tal código, ao contrário do que possa pensar-se, não conferiu vigência aos postulados da prim eira defesa social; disso se queixava G ram atica (Princípios de defensa social, trad. Prado e A paricio, M a dri, 1974, p. 209). 19 Introdução ao estudo do direito crim inal, cit. Em 1953, Lyra publica sua Expres são m ais sim ples do d ireito pen a l (R io, ed. J . K onfino). Sua peculiar form a de organizar as disciplinas crim inais contem plaria, doravante, um direito p enal normativo e um direito penal científica (cf. Novo direito penal, R io, 1980, p. 1). 46 Outras designações de regência doutrinária costumam ser evocadas20. A variável mais importante, contudo, diz respeito ao al cance descritivo da designação proposta, isto é, à sua capaci dade de compreender determinados conteúdos. Mestieri, por exemplo, opta por Direito Criminal porque deseja abranger também o direito processual penal e respectiva organização judiciária21. Aqui, a principal objeção à designação direito penal foi oposta pelo advento, no final do século XIX, das medidas de segurança22. Como diz Mir Puig, “ o direito penal 20 Tais designações nem sem pre significam nom ear, senão orientar o direito, ao contrário do que pode supor o iniciante. D erecho pro tector de tos crím inales, sem pre lem brado em textos brasileiros de iniciação, não é o nome de um antepro je to de código elaborado por Dorado M ontero, e sim o nome da segunda edição revista e aum entada, em dois volum es (1915), de seus Estúdios de derecho penal preventivo . Atrás dessa designação estava a mais hum antstica e generosa vertente que □ positivism o consentiu — por isso m esm o, rom pida com ele na vulgaridade detsrm infstica do hom em delinqüente — , capaz de pretender da adm inistração da ju stiça uma função de m edicina social, fraternalm ente com prom etida com o crim inaso-paciente, com quem deve repartir, enquanto agente social, a responsa bilidade — solidária e coletiva — pelo crim e-doença (Bases para um nuevo derecho p en a l, B. A ires, 1973, pp. 65 ss). Do mesmo m odo, “ direito repressivo” é apenas titulo de um livro publicado, em 1883, cm Turim , pelo positivista Ferdinando Puglia (Prolegom eni alio studio dei diritto repressivo). 21 O p. c it ., p . 4 . Frosali reuniu num a só obra o estudo do d ire ito e do processo penal sem renunciar a esta designação, porém atribuiu à obra o titulo geral de Sistema p e n a l ita lia n o , e d es ig n o u os três prim eiros v o lu m es.d e " d ire i to penal substancial” e o últim o de ‘‘direito processual penal” (Frosali, R .A ., Sistema pena le italiano, T urim , 1958). 22 Da verificação do fracasso prático da pena (expresso na m ulti-reincidência e na ascensão da crim inalidade) e do determ inism o positivista, que lhe questionava os fundam entos, surgiram as m edidas de segurança com o segunda ordem de reação juríd ica ao crim e, aplicáveis no pressuposto da perigosidade e não, como a pena, da culpabilidade do indivíduo. Ao lado das penas, autonom am ente aplicáveis, as m edidas de segurança com poriam um regime binário (pena e m edida). Recebidas no direito brasileiro pelo Código Penal de 1940, por direta influência do Código Rocco, com desem penho inteiram ente ineficaz, foram consideravelm ente reduzi das em 1984, suprim indo-se seu aspecto m ais polêm ico (m edida de segurança detentiva para im putãveis). H oje, subsistem somente a internação em hospital de custódia e tratam ento psiquiátrico e o tratam ento ambulatorial para inim putáveis ou, sob regime vicariante (pena ou medida), para semi-impatáveis. 47 já não é hoje apenas o direito da pena’ ’; diante das medidas de segurança, “ direito penal parece expressão demasiado estreita para abranger tudo o que pretende significar hoje” 23. E essa a razão que levava Costa e Silva a dizer que “ a denominação de código penal não se adapta com exatidão à matéria contida nesse diploma” 24, ou Magalhães Noronha a reconhecer que a expressão código criminal “ é mais compreensiva” ’5, ou Ba- sileu Garcia a referir-se ao “ plausível fundamento” da locu ção “ direito criminal” 36. Deve prevalecer a expressão direito penal. Em primeiro lugar, porque, como vimos, a pena é condição de existência jurídica do crime — ainda que ao crime, posteriormente, o direito reaja também ou apenas com uma medida de se gurança. Pode-se, portanto, afirmar com Mir Puig que a pena “ não apenas é o conceito central de nossa disciplina, mas também que sua presença é sempre o limite daquilo que a ela pertence” 37. Em segundo lugar, porque as medidas de se gurança constituem juridicamente sanções com caráter retri butivo, e portanto com indiscutível matiz penal. Na Exposição de Motivos da lei que reformou a Parte Geral do Código28, representando a opinião comum no Brasil, está registrado que a medida detentiva para imputáveis é “ na prática uma fração de pena eufemisticamente denominada medida de seguran ça” . Afirma Zaffaroni que, “ salvo o caso dos inimputáveis, 23 Introducción a Ias bases dei derecho penal, Barcelona, 1976, p. 18. 24 Com entários ao código pen a l brasileiro, S . Paulo, 19S7, p. 16. 25 O p. c it., p. 4 . Roberto L yra dizia que a denom inação direito crim inal é “ mais substanciosa, m ais com preensiva, m ais duradoura, abrangendo os irresponsáveis que não são apenados e as m edidas de segurança que não sâo pen as" (In trodução , c it-, p . 47). 26 Op. c it., p. 7. 27 Op. c it., p. 26. M ir Puig desenvolveu um argum ento de Rodrtguez D evesa, versando as m edidas de segurança pré-delituais, para concluir que mesmo aí o direito penal atua na suposição de um fato apertado pela lei. 28 Lei n? 7 .209 , de l l . ju l .8 4 . Cf. Exposição de M otivos, n? 87, da M ensagem n? 241/83, do Poder Executivo. 48 sem pre que se tira a liberdade do homem por um fato por ele praticado, o que existe é uma pena” 25. Contudo, não hesitamos em afirmar que mesmo as medi das concernentes a inimputáveis, ainda que se orientem para fins de proteção e melhoramento,"operam pela via retributiva da perda ou restrição de bens jurídicos ou direitos subjetivos, e ostentam igualmente matiz penal. Neste sentido, peremptória- mente, Fragoso: “Não existe diferença ontológica entre pena e medida de segurança” 30. Em todo caso, quem não quisesse ir tão longe poderia contentar-se na verificação de que mesmo a imposição dessas medidas pressupõe o cometimento de um crime — algo que só se constitui juridicamente a partir da pena. Por tudo isso, e também porque, histórica e antropologicamente, são as penas, tais como efetivamente executadas, que definem objetivos e perfil da categorização jurídica de condutas humanas como crimes e de seu correspondente tratamento político, o melhor nome para nossa disciplina é direito penal. 29 D a tentativa, S. Paulo, 1988, p . 27. 30 Lições, cit.', p . 293. 49 As três acepções da expressão” direito penal” § 6 A essa altura, já se percebeu que a expressão “direito penal” é utilizada, freqüentemente no mesmo contexto, cm três acepções distintas. Por direito penal se designa, inicialmente, o conjunto das normas jurídicas que, mediante a cominação de penas, estatuem os crimes, bem corno dispõem sobre seu próprio âmbito de validade, sobre a estrutura e elementos dos crimes e sobre a aplicação e execução das penas e outras medidas nelas previstas. Chama-se a esta acepção direito penal em sentido objetivo ou simplesmente direito penal objetivo. A seu lado, introduz-se uma acepção segundo a qual direito penal exprime a faculdade de que seria titular o estado para co- minar, aplicar e executar as penas, apreendida como direito subjetivo (daí, direito penal em sentido subjetivo ou simplesmente direito penal subjetivo). Se com respeito ao direito penal objetivo Uus poenale), dentro evidentemente de quadrantes doutrinários bem distintos, prevalece certo consenso, o direito penal subjetivo Unspitniendi) despeita acirrada controvérsia, havendo quem negue sua existência enquanto direito subjetivo ou o valor teórico da classificação. Outras vezes, contudo, ao empregarmos a expressão direito penal estamos nos referindo ao estudo do direito penal, à apro priação intelectual de conhecimentos sobre aquele conjunto de normas jurídicas ou aquela faculdade do estado; usa-se a ex- 50 pressão, aí, numa acepção de ciência do direito penal, ou direi to penal-ciência. Já foi muito observado que, especialmente para o iniciante, o fato de a ciência e de seu objeto terem o mesmo nome (“ direito penal é a ciência que estuda o direito penal” ) pode gerar alguma perplexidade e confusão. Nos próximos parágrafos, procuraremos desenvolver al guns aspectos essenciais dessas três chaves de abóbada que, nos planos normativo, político e científico, se relacionam e se dis tinguem, embora usem o mesmo nome. 51 O direito penal como direito público O posicionamento do direito penal objetivo dentro do direi to público interno costuma ser extraído, por uma perspectiva conteudística, de supostos objetivos sociais gerais de suas nor mas, ou, por uma perspectiva formalista, da exclusividade e imperatividade com as quais o estado as impõe. À primeira perspectiva se integra Magalhães Noronha: “ Pertence o direito penal ao direito público. Violada a normapenal, efetiva-se o jus puniendi do Estado, pois este, responsável pela harmonia e es tabilidade sociais, é o coordenador dos indivíduos que com põem a sociedade” 1; à segunda, Basileu Garcia: “ Se só pode ser exercido pelo estado, se a função de impor penas (...) é essencialmente pública, o direito penal constitui necessaria mente um ramo do direito público interno” 2. Em seu texto de iniciação, Miguel Reale, caracterizando uma relação de direito público pelo “ fato de atender, de maneira imediata e prevale- cente, a um interesse de caráter geral” , afirma que a criminali- zação da apropriação indébita não atende apenas ao interesse da vítima, e sim ao interesse social, e “ por esse motivo, o direito penal é um direito público, uma vez que visa a assegurar bens essenciais à sociedade toda” 3. Filiando-se a ambas as perspec- 1 Op. cit., p. 4. 2 Op. c it., p . 12. 3 Lições pre lim inares de direito, S. Pauto, 1973, p. 385: "quando uma norm a proíbe que alguém se aproprie de um bem alheio, não está cuidando apenas do interesse da vítim a, m as, im ediata e prevalecentem ente, do interesse so c ia l" . §7? 52 tivas, Fragoso fundamenta a inclusão dodireito penal no direito público não só porque sua proteção “ refere-se sempre a interes ses da coletividade” como também porque “ o estado detém o monopólio do magistério punitivo, mesmo quando a acusação é promovida pelo ofendido” 4. Uma revisão dessas perspectivas fundamentadoras supõe a intervenção de três linhas críticas: 1? critica da distinção a- histórica entre direito público e direito privado; 2; critica do estado como abstração a-histórica; 3? crítica do positivismo jurídico-penal. Em primeiro lugar, portanto, cumpre verificar que a distin ção direito privado— direito público era completamente des conhecida das práticas penais primitivas, nem faria sentido perante elas5, aparecendo pela primeira vez no direito romano, na famosa passagem de Ulpiano6. Sabemos como se deu, em Roma, a superação
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