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Textos Conceitos B�sicos de Gest�o/Artigo 01_A hora da mudan�a.pdf ©RAE executivo • 53 GESTÃO: A HORA DA MUDANÇA A hora da mudança que fazer quando sua empresa precisa passar por uma mu- dança, de grande ou de pequeno porte? Quais são os cami- nhos a serem tomados e quais os obstáculos a serem enfren- tados? Este artigo sugere um modelo para a gestão de mudanças pla- nejadas, o V.I.A.R.M.A., que se baseia na tese de que o processo transformacional pode ser realizado de cima para baixo, sustentando-se em dois pilares distintos: liderança e gestão. Somente a conjugação dessas duas dimensões de ação pode garantir o êxito da mudança planejada. O por Arménio Rego Universidade de Aveiro e Miguel Pina e Cunha Universidade Nova de Lisboa GESTÃO Processo planejado. Duas visões estreitamente relacio- nadas predominam em livros e teorias sobre processos de mudança. A primeira corresponde à idéia de que a mudança é um processo que pode/deve ser planejado. A segunda dita que a gestão da mudança é algo definido inicialmente no topo, para só então percorrer os diversos níveis e meandros da organização. Embora o processo como um todo não este- ja, como veremos, isento de dificuldades e riscos, procurare- mos descrevê-lo de forma a que esses percalços possam ser minimizados e, se possível, eliminados. Digamos, por exemplo, que a diretoria da empresa pro- cure introduzir uma política de comunicação interna menos 053-057 1/22/03, 12:47 PM53 54 • VOL.2 • Nº1 • FEV / ABR 2003 GESTÃO: A HORA DA MUDANÇA hierarquizada e mais reticular, ou que então busque incutir entre os empregados a orientação permanente para a inova- ção de produtos. Há também a possibilidade de que a direto- ria tente “inverter a pirâmide”, colocando no “topo” os agen- tes operacionais que asseguram a qualidade do serviço ao cliente, posicionando na “base” – retaguarda – os gestores e pessoal de apoio, cuja incumbência é garantir a boa atuação dos operacionais. Os diretores podem decidir criar e imple- mentar um código de ética que norteie as atuações cotidia- nas dos funcionários na relação com os diversos stakeholders da organização – clientes, fornecedores e público em geral – ou, ainda, substituir uma cultura de “emprego para toda a vida” por uma cultura de “empregabilidade”. Em todos esses casos ilustrativos, prepondera a idéia de que a mudança é um processo planejado. Não só. Essa perspectiva concebe o processo como algo que nasce na alta gerência, para depois se disseminar pelo resto da empresa. A premissa básica é a de que compete aos gestores conduzir a mudança de forma que a organização se adapte às efetivas características do ambien- te organizacional, sem sacrificar a possibilidade de ajusta- mento a diferentes condições futuras. Um modelo que representa claramente a mudança plane- jada foi defendido por J. P. Kotter em seu recente livro Leading change. Sua tese aplica-se sobretudo a mudanças de maior en- vergadura, mas também cria possibilidades para transforma- ções de menor porte. A seqüência que examinaremos consti- tui uma concepção voluntarista, atribuindo ao ápice estratégi- co da empresa a responsabilidade pela determinação do cami- nho – desenhado para que os diversos níveis da hierarquia possam percorrê-lo. Há oito etapas que os gestores devem se- Quadro 1: Os oito passos da mudança planejada Estabelecer um sentido de urgência Criar uma poderosa equipe dirigente Desenvolver visão e estratégia Estabelecer uma comunicação eficaz da visão Remover obstáculos e passar à ação Gerar ganhos de curto prazo Consolidar ganhos e produzir mais mudança Ancorar novas aborda- gens na cultura da or- ganização A análise do mercado e das realidades competitivas deve conduzir à identificação e discussão de crises reais e potenciais, bem como das principais oportunidades. É importante que todos os membros da organização sejam imbuídos de um espírito dinâmico – isto é, que adquiram consciência da necessidade de mudança e não se permitam levar pela inércia. A construção de uma equipe com poder suficiente para pôr a mudança em marcha é essencial. Equipes fracas ou sem representatividade não são capazes de remover obstáculos. A próxima etapa consiste em articular uma visão forte (compreensível, atraente e realizável), que ajude a direcionar o esforço de mudança e inspire a ação dos colaboradores. Passam então a ser definidas as estratégias que permitam alcançar essa visão. A nova visão e as respectivas estratégias devem ser comunicadas continuamente e por todos os meios possíveis. A equipe dirigente deve funcionar como um modelo de ação para os funcionários – suas ações devem ser coerentes com seu discurso. Devem ser removidos os obstáculos à mudança, alteradas as estruturas e os sistemas que a dificultem, e encorajada a aceitação do risco e das ações heterodoxas. Devem ser reforçados / recompensados os comportamentos consistentes com a nova visão e as estratégias correspondentes. Deve ser assegurado o alcance de ganhos de curto prazo e recompensados os colaboradores que os facilitem. Caso contrário, os atores organizacionais podem adquirir sentimentos de descrença diante da mudança. A credibilidade gerada pela obtenção de resultados deve ser usada para mudar todos os aspectos da organi- zação que não se conformam à nova visão. O projeto deve ser constantemente revigorado com a introdução de novos temas e objetivos. A cultura organizacional deve preservar e reforçar as novas maneiras de pensar e agir. Enquanto a mudança não tiver penetrado na cultura da empresa, as celebrações de vitória podem ser precipitadas – podendo haver retrocessos no processo de transformação. Fonte: Kotter, J. P. Leading change. Boston : Harvard Business School Press, 1996. 053-057 1/22/03, 12:47 PM54 ©RAE executivo • 55 GESTÃO: A HORA DA MUDANÇA guir se almejam ser bem-sucedidos (Quadro 1). As primeiras quatro etapas ajudam a confrontar o status quo organizacional. As três seguintes permitem a introdução de novas práticas. E a última infunde a mudança na cultura da organização. A pri- meira fase – remoção da antiga lógica de atuação – prepara o terreno para a segunda – introdução da nova lógica –, e a ter- ceira promove a consolidação da mudança. Não se deve queimar etapas. A tese sustenta que a se- qüência precisa ser observada para que surta o efeito desejado. Segundo Kotter, uma análise cuidadosa das histórias de suces- so revela duas verdades fundamentais. Em primeiro lugar, as mudanças bem-sucedidas tendem a aderir a esse processo em várias fases seqüenciais que geram poder e motivação suficien- tes para acabar com as fontes de inércia. Em segundo lugar, a eficácia do processo depende, em considerável medida, da qua- lidade da liderança – e não apenas da excelência da gestão. Modelo para a mudança. O modelo V.I.A.R.M.A., aqui proposto, assemelha-se bastante à proposta de Kotter e com- preende seis etapas: visão, implementação, ativação, reco- nhecimento, monitoração/controle e apoio (Figura 1). Apre- senta a vantagem de oferecer simplicidade e proporcionar uma associação nítida entre as fases do processo e a relevân- cia dos papéis de liderança e de gestão. A visão, a ativação e o apoio estão diretamente relacionados com a liderança. A implementação, a monitoração / controle e o reconhecimento repre- sentam o processo de gestão. A divisão entre os pro- cessos de gestão e de liderança tem sido alvo de am- pla controvérsia. Aqui, propomos sinteticamente que a liderança é um processo mais transformacional, de longo prazo e afetivo, enquanto a gestão é mais “fria”, racional, controladora e de curto prazo (Quadro 2). Embora distintos, esses processos se complementam: as empresas precisam de ambos para enfrentar os desafios da mudança permanente. Eis o significado de cada uma das seis dimensões do modelo V.I.A.R.M.A.: • A visão é o processo fundamental desse modelo. Deve representar uma imagem coerente do futuro – confiável, realizável, clara, consistente, atraente e eficazmente comunicada (Quadro 3). É ela que inspira os esforços dos membros da organização e dá orientação para as estratégias, as políticas e as ações diárias. • A implementação compreende os planos estratégicos, os pla- nos de mais curto prazo, os orçamentos e a gestão de cada projeto específico. Traduzem a visão em elementos mais es- pecíficos, tendo em vista sua realização. Predomina aqui o processo de gestão. • A ativação consiste em assegurar que os membros da orga- nização – e outros stakeholders – compreendam a visão e a mudança nela embutida, apóiem-nas e se empenhem em sua implementação. Alguns autores sugerem que a mudança passa pela participação e pela articulação de uma visão que reflita os desejos e valores das pessoas. Esse vértice do modelo está especialmente associado à liderança. • O reconhecimento incorpora as ações destinadas a reconhe- cer e incentivar as pessoas envolvidas no processo – especial- mente as mais empenhadas no sucesso da mudança e/ou que mais possam contribuir para seu êxito. Há vários tipos de ações possíveis. As recompensas materiais / financeiras – por exem- plo, aumento salarial e promoção – são um bom recurso, em- bora os prêmios simbólicos – como um elogio público – pos- sam ser mais eficazes para certas pessoas e em determinadas situações. O processo de gestão impera nessa área, especial- mente devido à lógica transacional com a qual se identifica. Figura 1: O modelo V.I.A.R.M.A. Visão Implementação Monitoração / controle Reconhecimento Ativação Apoio Liderança Gestão ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Fonte: adaptada de Hussey, D. E. How to manage organizational change. London : Kogan Page, 1995. 053-057 1/22/03, 12:47 PM55 56 • VOL.2 • Nº1 • FEV / ABR 2003 GESTÃO: A HORA DA MUDANÇA • A monitoração / controle assegura que o processo esteja no caminho correto. Implica que as ações sejam tomadas a tem- po, que as reorientações de rumo sejam formuladas e con- cretizadas, que os desvios sejam corrigidos e que os erros sejam sanados. Processos de gestão são os aqui indicados. • O apoio está muito associado ao reconhecimento, mas não se esgota nele. Representa as ações em que o líder inspira as pessoas a superar a si próprias, transmite-lhes expectativas de desempenho elevado, incute-lhes confiança, encoraja-as em momentos de dificuldade e descrença. É essencial que o líder seja íntegro e genuíno. Trata-se de um vértice claramen- te alicerçado no processo de liderança. Visão holística. As seis dimensões do modelo estão inti- mamente associadas – não sendo recomendável tomá-las como uma seqüência monolinear. De qualquer modo, podemos es- boçar uma concatenação: a visão inicia o processo; a imple- mentação é a concretização da visão; todo o processo exige que as pessoas sejam motivadas para concretizar a mudança, que sejam apoiadas, que os sucessos sejam reconhecidos; e, por fim, por meio da monitoração / controle, garante-se que o processo siga a trilha apropriada. Note-se a necessária intercomunicação entre os processos de liderança e de gestão – ambos encontram- se na raiz das várias dimen- sões do modelo. Por exem- plo, a visão apropriada que a liderança articula pede uma implementação eficaz, garantida pelos processos de ges- tão. Além disso, o apoio sócio-afetivo – da liderança – interage com os mecanismos de reconhecimento transacional – por exemplo, financeiros – para estimular nas pessoas níveis mais elevados de comprometimento. Em suma, podemos dizer que a liderança exige gestão para que a sobrevivência no curto pra- zo esteja assegurada, e que a gestão requer liderança para que a organização supere as fontes de inércia e assegure seu futuro. Nem tudo são flores. A tese segundo a qual a mudança deve ser realizada de cima para baixo predomina entre con- sultores e executivos, mas isso não torna sua materialização Quadro 2: Liderança vs. gestão: dois processos distintos mas complementares LIDERANÇA GESTÃO Focalizada no futuro Mudança Quadro orientador: visão Empowerment dos colaboradores Simplificação Intuição Relacionamento Orientação para a sociedade A mudança reflete propósitos mútuos de líderes e seguidores Estabelecimento de uma direção / visão, alinhamento das pes- soas com essa visão, motivação e inspiração dos membros orga- nizacionais Focalizada no presente Estabilidade, ordem e previsibilidade Quadro orientador: cumprimento das regras Controle dos colaboradores Complexidade Razão e lógica Autoridade Orientação para a organização Coordenação de atividades para produzir e vender bens e/ou serviços que reflitam os propósitos da empresa Orçamento, organização, estruturação, controle e resolução de problemas A eficácia do processo de transformação depende, em considerável medida, da qualidade da liderança – e não apenas da excelência da gestão. 053-057 1/22/03, 12:47 PM56 ©RAE executivo • 57 GESTÃO: A HORA DA MUDANÇA prática menos sujeita a obstáculos. Vejamos al- guns deles: • Devido a resistências, o que é planejado nem sempre é implementado. Em conseqüência, o pla- no acaba sendo adulterado – e, assim, aumentam os riscos de que não responda adequadamente aos desafios com que se defronta a empresa. • Os tomadores de decisão podem se ver sem os conhecimentos e a informação necessários para a compreensão das particularidades locais – aumentando, então, os riscos de a mudança tomar cami- nhos errados. • A luta política gerada na arena organizacional pode anular a eficácia dos planos, boicotá-los ou descaracterizá-los. • A almejada introdução de mudanças pode se inspirar em projetos de sucesso importados de outras organizações, não se adequando à realidade específica que caracteriza a empresa. Duplo comando. Os modelos aqui expostos não procu- ram esconder esses riscos e desvantagens – antes se destinam precisamente a preveni-los e a geri-los. É importante que não os tomemos como remédios para todos os males, mas como roteiros genéricos que incorporam os elementos fundamen- tais da gestão bem-sucedida de mudanças planejadas. Eles chamam, ainda, a atenção para a necessidade de con- ciliar a liderança e a gestão. Diversos autores e vários exemplos concretos sugerem a dificuldade em conciliá-las na mesma pes- soa, daí surgindo a tese que defende a dupla liderança – alguém exercendo o papel de gestão e outro o de liderança. Assim, é provável que o modelo V.I.A.R.M.A., para ser realmente bem- sucedido, não requeira somente dois processos, mas também dois parceiros que os executem em complementaridade. Quadro 3: Características de uma visão eficaz Imaginável (o que a empresa será no futuro) Desejável / atraente Ambiciosa Praticável, realizável, realista e crível Enraizada na realidade econômica Focalizada e clara Internamente consistente Incutida nas convicções do líder e/ou da equipe que encabeça a mudança Flexível Comunicável e compreensível A visão faculta uma imagem palpável do que a organização e suas atividades serão no futuro. A visão apela aos interesses de longo prazo dos diversos stakeholders – clientes, empregados, fornecedores. A visão deve ser suficientemente ambiciosa para impelir as pessoas a saírem de suas “rotinas confortáveis”. Se as metas compreendidas na visão não se mostrarem realizáveis e realistas, os diversos stakeholders perdem confiança e não se empenham em sua concretização. A visão deve considerar as tendências fundamentais da vida econômica e empresarial, a globalização e as linhas de progresso tecnológico. A visão não pode ser vaga – sob pena de as pessoas não se espelharem nela, nem nela se nutrirem como guia orientadora. Os elementos da visão devem ser congruentes. As contradições internas podem diminuir a credibilidade e o pendor inspirador. É fundamental que, por seus atos e discursos, os líderes da mudança demonstrem que estão confiantes na visão e em seu sucesso. Uma boa visão é suficientemente clara para motivar a ação, mas flexível o bastante para permitir a inicia- tiva individual e a adoção de respostas que se ajustam às condições dinâmicas da evolução. A visão deve ser facilmente transmitida, explicável em poucos minutos – sob pena de não ser compreen- dida pela grande diversidade de destinatários. A liderança exige gestão para que a sobrevivência no curto prazo esteja assegurada. A gestão requer liderança para que a organização supere as fontes de inércia e garanta seu futuro. 053-057 1/22/03, 12:47 PM57 Textos Conceitos B�sicos de Gest�o/Artigo 02_A arte da inova��o.pdf 74 • VOL.4 • Nº2 • MAIO/JUL. 2005 PONTO DE VISTA No universo das artes, especialmente no da músi- ca, inovação depende da inserção do artista em redes sociais, de sua capacidade de improvisação e de uma abertura à experiência com novos arran- jos. O artigo traça um paralelo entre os processos de inovação na música e aquele que ocorre nas empresas, analisando os fatores impeditivos à ino- vação em ambos os contextos e propondo formas de superação. por Charles Kirschbaum e Flávio C. Vasconcelos, FGV-EAESP A arte da inovação as artes, na literatura e na música o gênio criativo sem- pre apareceu como uma figura de destaque. Em uma visão idealizada do mundo artístico, o artista é um personagem dotado de sensível ca- pacidade para decifrar o que a maio- ria não vê e para criar novas obras AR M - ES TE Và O NO S AM BA , 2 00 3 - W LA DM IR C . D UR ÃO , A CR ÍL IC A S/ E UC AT EX que elevam o espírito de seus espec- tadores. A inovação, nesse contex- to, é vista como uma ação única e privada do gênio criativo. Neste artigo, mostramos que essa forma de retratar a inovação, parti- cularmente no contexto da criação musical, subestima a influência e im- portância das redes sociais em que os artistas estão inseridos. Traçando um paralelo entre o universo da música e o das empresas, o artigo oferece pis- tas sobre como podemos extrair lições de um contexto para o outro a fim de estimular os processos de inovação e criatividade. N 074-077 16.05.05, 18:2774 ©GV executivo • 75 Organizações tradicionais tornam-se presas de inércia organizacional quando sua visão de mundo se enrijece, quando estão exageradamente comprometidas com investimentos passados ou quando a coalizão política interna não permite mudanças. pois, com a produção em massa dos long plays. Naturalmente, muitos músicos impuseram resistência à invasão tecnológica, receando que seu estilo fosse copiado por outros artistas ou que sua obra perdesse a espiritualidade da execução ao vivo. Ao mesmo tempo, a então nas- cente indústria cultural recebeu também severas críticas de intelec- tuais do início do século. Ficaram popularizadas as críticas dos filóso- fos da Escola de Frankfurt, como a de Walter Benjamim, para quem a criação de obras artísticas deu lu- gar à produção de mercadorias cul- turais. Seja qual for a perspectiva adotada, no Século XX a arte pare- ce perder, definitivamente, sua má- gica. O artista, como resultado, dei- xou de ser retratado como um cria- dor do sublime para tornar-se parte de um sistema de produção indus- trial baseado no lazer cotidiano. Inovação desmitificada. Mas não foi apenas a secularização da arte e do artista o que nos legou o Século XX. Outro grande mito foi destituído de seu poder: de que a criação artística é um fenômeno ex- clusivamente individual. O sociólo- go norte-americano Howard Becker sugere que tal criação é um fenô- meno caracteristicamente coletivo. Em primeiro lugar por que, para que um compositor escreva uma música inovadora, ele precisa con- tar com a existência de técnicos que produzam os instrumentos musicais compatíveis com a nova música. Em segundo por que é preciso que os músicos possam conhecer e então utilizar esses novos instrumentos para que a nova música seja execu- tada. Por exemplo, quando Bach compôs sua obra Cravo bem tempe- rado, ele teve de enfrentar um gran- de desafio, pois tal obra introduzia modificações no sistema tonal, exi- gindo adaptações dos instrumentos musicais então disponíveis. É também sabido que Mozart compunha óperas levando em con- sideração os cantores que poderiam interpretá-las. Suas obras eram, por assim dizer, customizadas para os músicos, sugerindo que, mesmo du- rante o romantismo, a criação artís- tica possuía uma forte natureza so- cial, e o artista não era alguém in- dependente do mundo que o cir- cundava. Inovação e status quo. Mes- mo desmitificado, o elemento de Movimento de seculariza- ção. Para o movimento romântico do Século XIX, a obra de arte sepa- rava-se do mundo cotidiano, ele- vando-se sobre ele. Sua função era a de libertar os homens de suas vi- das cotidianas. Nessa perspectiva, a arte possuía algo de mágico, permi- tindo ao apreciador um contato imediato com um universo diferen- te e distante do seu. O artista, nesse contexto, era o instrumento por meio do qual essa mágica tornava-se possível. O con- tato direto e único com esta figura singular, seja no momento de uma apresentação teatral, ou na exibição de pinturas, era uma oportunidade rara e reservada a poucos. Embora as cópias de obras de arte já fossem muito difundidas nessa época, o grande valor atribuído à unicidade da experiência artística exigia de seus criadores uma constante neces- sidade de inovação. Assim, uma obra artística só po- deria ser considerada como tal se fos- se única e absolutamente original. O artista, o criador da arte, deveria en- tão se esforçar para criar algo sem- pre novo, algo que pudesse ser dis- tinto de tudo o que já era conheci- do. Daí a obra artística ser o produ- to sublime de um gênio artístico. Essa forma de conceber a cria- ção artística perdurou sem proble- mas até a virada para o Século XX, quando a modernização tecnológi- ca chegou ao universo cultural, pas- sando a influenciar a produção dos bens simbólicos. Na música, o mo- vimento tecnológico iniciou-se pelo surgimento das rádios e, logo de- 074-077 16.05.05, 18:2775 76 • VOL.4 • Nº2 • MAIO/JUL. 2005 PONTO DE VISTA: A ARTE DA INOVAÇÃO singularidade presente na inovação artística não pode ser descartado. Por exemplo, tomemos o caso de uma banda de Jazz. Cada uma delas é única, e cada músico imprime sua forma de interpretar e improvisar na execução, tornando cada sessão um espetáculo diferente. É raro duas bandas de Jazz interpretarem a mes- ma música da mesma maneira. Nesse caso, podemos pensar que cada nova combinação de mú- sicos gera variações sobre a música original. No Jazz, a composição de músicas sempre deixa espaço para a criação do intérprete, que tem a pos- sibilidade de improvisação e de ace- lerar a geração de inovações no mo- mento da execução. A variação na execução é benéfica para a inovação. No entanto, à medida que uma banda adquire sucesso com algumas fórmulas e formas de interpretações, a tendência à inovação diminui. Com isso, muitas bandas acabam enrijecendo sua forma de tocar. O exemplo da banda de swing de Glenn Miller é ilustrativo. Após te- rem descoberto o que parecia ser a fórmula certa, já não se arriscavam a inovar, pois, se algo saísse errado poderia pôr em jogo a reputação do músico. A questão que surge neste ponto é a seguinte: como um músi- co de sucesso, que já se tornou uma espécie de “instituição viva”, pode arriscar e inovar? O poder da invisibilidade. A resposta pode ser dada observando- se os músicos de menor visibilida- de. Fora do centro das atenções do grande público e da indústria, eles têm mais liberdade para inovar. En- quanto Benny Goodman alcançava o status de rei do swing em Nova Iorque, Count Basie, em Kansas City, introduzia inovações que seriam ab- sorvidas pelo mainstream só muito tempo depois. Os músicos mais pe- riféricos podem ser incorporados pelas redes de artistas centrais, e assim suas inovações se tornam par- te da forma de interpretação mais popular. Além da maior liberdade para inovar, os músicos periféricos têm condições de entrar em contato com maior diversidade de influências. Mark Granovetter, ao estudar o pro- cesso de busca de emprego de indi- víduos em comunidades étnicas, ob- serva que os indivíduos com maior número de laços fracos fora de seus grupos têm maior acesso à informa- ção nova e privilegiada. Em contra- partida, aqueles indivíduos cujos laços entre si são predominante- mente fortes, estão geralmente ex- postos ao mesmo tipo de informa- ção, tendo menores chances de con- seguir um emprego. É muito pro- vável que o mesmo ocorra no mun- do musical. Por exemplo, Stan Getz foi pioneiro na introdução da Bossa Nova nos Estados Unidos, por tido acesso a João Gilberto. No entanto, cabe uma ressalva neste ponto. Não é sempre verdade que músicos periféricos inovam e, ao mesmo tempo, não podemos afir- mar que músicos centrais não ino- vam. Muitas vezes, mesmo situan- do-se na periferia, os músicos não inovam. Uma razão é que, ao ino- var, tais músicos podem colocar em jogo a sua identidade musical, que corresponde ao “passaporte” de en- trada na indústria fonográfica. Nes- se caso, copiar sem inovar parece muito mais cômodo, pois há sem- pre algum lugar para exibir-se, mes- mo que sem grande repercussão. Por outro lado, também não é sempre verdade que músicos cen- trais não inovam. Miles Davis é um exemplo paradigmático disso. No início da década de 1970, Miles percebeu que o Rock conquistava as novas gerações. Em reação às novas tendências, Miles introduziu instru- mentos eletrônicos na sua música, criando assim o Fusion, uma mistu- ra entre Jazz e Rock, contando com a valiosa ajuda de músicos como Chick Corea e John McLaughlin. Traçando paralelos. Quais li- ções podemos extrair de nossa aprendizagem sobre inovação ar- tística para iluminar a gestão dos mes- mos processos em nossas empresas? Para respondermos a esta questão, temos de considerar as características típicas do universo organizacional. Para W.R.Scott, as empresas são sistemas estruturados em torno de um eixo técnico, no qual os segre- dos de produção e inovação são guardados a sete chaves. Nessa perspectiva, as inovações são prove- nientes de pesquisadores protegidos do meio externo, alocados em de- partamentos de pesquisa e desen- volvimento, e daí informadas para a produção. A partir de então, cabe à produção adaptar e executar a ino- vação, com restrita margem de va- riação, em um contexto de rígida 074-077 16.05.05, 18:2776 ©GV executivo • 77 Ao contrário do rigor das divisões de tarefas em uma estrutura fabril, a inovação em música ocorre por meio de processos desestruturados de improvisação e recombinações dentro de redes sociais de músicos. divisão de tarefas. Esse é o típico sequenciamento da empresa fordis- ta, para o qual a variação é percebi- da como algo indesejável, contrária aos princípios de qualidade. Temos aqui uma primeira diver- gência com o mundo do jazz. A in- terpretação de uma música sempre permite variação, a qual pode alcan- çar patamares inimagináveis por meio da improvisação. A inovação não ocorre de forma velada, mas em público, no momento da execução. Além disso, a inovação artística não se encontra estruturada em torno de um eixo técnico, protegido por fron- teiras rígidas e bem demarcadas, como em uma organização. No caso da música, ela é rapidamente copia- da e transformada à medida em que percorre redes sociais de músicos. A contrapartida da inovação, seja no contexto organizacional ou musical, são a inércia e a rigidez das fórmulas repetitivas. No entanto, as razões que levam organizações e ar- tistas à rigidez são muito distintas. Organizações tradicionais tornam-se presas de inércia organizacional quando sua visão de mundo se enri- jece, quando estão exageradamente comprometidas com investimentos passados, ou quando a coalizão po- lítica interna não permite mudanças. Nessas situações, é difícil haver mu- danças sem que um abalo externo as demova da inércia. Mesmo assim, elas podem encontrar saídas para inovar. O lançamento de novos pro- dutos em mercados distintos, o ge- renciamento de portifólios de mar- cas ou a criação de joint ventures re- presentam algumas das opções. No caso da inércia dos artistas, a situação é distinta. Como vimos, o sucesso e o enrijecimento de uma identidade junto ao público pode ser motivo de inércia. Ao contrário das organizações, não é possível, para um artista, gerir um portifólio de marcas distintas. Sua visão de mundo pode ser congelada e, assim, acabará rejeitando as novas tendên- cias. Em compensação, o artista não está preso a uma organização: sua decisão de mudança não precisa passar pelo crivo de uma delibera- ção de grupo. Dessa forma, a im- plementação de mudanças radicais pode ser feita concomitantemente à adoção de uma nova identidade musical. Quando Miles Davis ado- tou o fusion, ele também mudou sua aparência: já não parecia um sisu- do músico de jazz, mas se vestia como um músico de rock. Idéias para organizações tra- dicionais. Encerramos este artigo lançando um convite para os gesto- res de organizações tradicionais. Se- ria o mundo artístico realmente di- ferente do mundo das empresas? Quando traçamos distinções entre organizações tradicionais e o mun- do artístico, consideramos um am- biente de negócios em que as trans- formações estão sob controle do pla- nejamento estratégico da empresa. No entanto, em muitas ocasiões, as transformações não estão sob con- trole. Como sugeriria Schumpeter, mudanças tecnológicas externas po- dem varrer setores inteiros, fazen- do com que segredos industriais percam completamente seu valor. Por outro lado, o desenvolvimento de novas tecnologias pode revelar- se proibitivo para ser conduzido por organizações isoladas. Para tentar mitigar ambos os efeitos, as organi- zações poderiam simular caracterís- ticas das redes de artistas, criando novas redes de alianças e joint ventures que possam diminuir os custos de pesquisa e reduzir as chances de surpresa. Charles Kirschbaum Doutorando em Estratégia Empresarial e Estudos Organizacionais na FGV- EAESP E-mail: kircharles@gvmail.br Flávio C. Vasconcelos Prof. do Departamento de Administra- ção Geral e Recursos Humanos da FGV- EAESP Doutor em Sciences de Gestion, HEC, Paris E-mail: fvasconcelos@fgvsp.br 074-077 16.05.05, 18:2777 Textos Conceitos B�sicos de Gest�o/Artigo 03_Al�m da globaliza��o.pdf 80 • VOL.4 • Nº1 • FEV./ABR. 2005 PONTO DE VISTA Em entrevista concedida à GV-Executivo, Omar Aktouf, professor titular da HEC Montreal, fala sobre os paradoxos e desafios da globalização. Autor do livro Pós-globalização, administração e racionalidade econômica, recentemente publica- do pela Editora Atlas, Aktouf nos convida a re- pensar o papel do gestor e a capacidade de as empresas obterem sucesso ao se deparar com a pós-globalização. por Eduardo Davel Télé-université, CANADÁ e Carlos Milani UFBA Além da Globalização Diante da leva de tensões e debates gerados na última década, a globalização ainda é uma noção relevante para pensar a sociedade e as empresas contemporâneas? OA: Minha resposta será, paradoxal- mente, sim e não. Sim, porque é difí- AR M - ES PE RO P OR U M A M AN Hà , 2 00 3 - R OD RI GO C . C AE TA NO , Ó LE O S/ TE LA cil, senão impossível, viver em um sistema autárquico, pouco importa o país e a região. Assim, de um lado, na condição de evolução do comér- cio e de trocas favorecendo uma maior integração entre diversos países e mercados, uma melhor repartição das riquezas e um melhor equilíbrio de complementaridade entre os países, a globalização é um processo desejá- vel. Por outro lado, eu também digo não, pois a globalização que nos é imposta pelas instituições de Bretton Woods e do Consenso de Washing- ton é uma pura e simples tutela da economia planetária por parte das 080-084 10.02.05, 14:0480 ©GV executivo • 81 A empresa bem-suced ida em contexto de pós- globalização é aquela que, em sua estratégia e em sua gestão, colocará, em ordem prioritária de cuidado e preocupação, primeiramente o empregado, em seguida o cliente e finalmente o acionista. tradicionais. Tais reajustes devem ser pensados de outra forma, admitindo- se que a globalização neoliberal é um fracasso. Para se chegar a essa con- clusão, basta considerar os exemplos relacionados ao fracasso do Nafta com relação à participação do México; ao fracasso do Consenso de Washington perante o caos na Argentina; à po- breza endêmica da África e de vários países em desenvolvimento; à ago- nia do sistema capitalista financei- ro de estilo estadunidense que é testemunhado pela Enron, Tyco, Andersen, Xerox, Aol, Nortel, Vivendi e Parmalat, entre muitos outros. As- sim, a pós-globalização envolve a ação de constatar essas mutações e de tentar elaborar uma análise que nos tire dos círculos viciosos da do- minação do ponto de vista financei- ro e do neoliberalismo. Envolve tam- bém constatar e aceitar o fracasso do ideário neoliberal e do capitalismo financeiro de estilo estadunidense e de entrar em uma nova (“pós”) for- ma de analisar a problemática da eco- nomia mundial. Em que consiste essa nova forma de análise? OA: Consiste em reforçar análises a partir das demandas nacionais, o que implica pensar a globalização em ter- mos das soberanias nacionais e de projetos sociais que vão além de sim- ples e puras leis de mercado. Consis- te também em favorecer acordos de livre comércio, respeitando as espe- cificidades socioculturais e econômi- cas de cada país, de cada região, bem como a dimensão do “bem comum” de tudo que diz respeito à sobrevi- vência de todos, como o ar e a água. De forma geral, consiste em organi- zar a globalização como “bonecas rus- sas”: organizar, antes de qualquer coi- sa, o livre comércio local e regional, respeitando e valorizando as vanta- gens comparativas e competitivas de cada um, para, em seguida, firmar acordos mais globais. Quais são os principais impactos da pós-globaliza- ção para a empresa e suas práticas de gestão? OA: Antes de qualquer coisa, é ne- cessário deixar de pensar o comércio internacional e o comércio em geral como se pensava antes. Nesse senti- do, a pós-globalização afeta também a forma pela qual as empresas vão adotar posturas distintas das tradicio- nalmente defendidas pelo neolibera- lismo financeiro. Essas empresas dão multinacionais. Como disse Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de economia, “o livre comércio não é apenas a li- berdade de trocar”. Com o avanço da globalização neoliberal, estamos as- sistindo ao aumento do abismo entre pobres e ricos, à competição e à beli- gerância comerciais e ao rebaixamen- to dos países mais desvalidos, como testemunha a situação experimenta- da pelo México, por exemplo. A glo- balização ainda é uma noção perti- nente, todavia necessita de revisão total para que possamos pensar a so- ciedade e as empresas contemporâ- neas a partir de um verdadeiro espí- rito de reciprocidade de relações e do princípio da ajuda mútua. Isso no sentido de conduzir, gradualmente, o conjunto dos países a desenvolver capacidades de produção e troca que permitam harmonizar os ganhos re- cíprocos e a qualidade de vida. Seria uma situação parecida com o que a União Européia está fazendo para fa- vorecer uma maior integração da Espanha e de Portugal. Em seu livro recentemente publicado pela Editora Atlas, o senhor fala de pós-globalização. O que é pós-globalização? OA: O que eu chamo de pós-globa- lização diz respeito ao fato de que a economia planetária tende, perigosa- mente, em direção a uma estrita “financiarização” das atividades e das trocas. Inclui também o fato de que entramos em um novo ciclo de rea- justes dos parâmetros da economia global, que não permite mais encon- trar explicação nas teorias neoliberais 080-084 10.02.05, 14:0481 82 • VOL.4 • Nº1 • FEV./ABR. 2005 PONTO DE VISTA: ALÉM DA GLOBALIZAÇÃO mais importância ao emprego du- rável e qualificado, tratam os funcio- nários mais como ativos e investi- mentos a longo prazo do que como recursos a serem explorados o mais rápido possível ou como custos a se- rem reduzidos. É claro que esse tipo de procedimento afeta diretamente a gestão. Ou seja, diante dos desa- fios da pós-globalização é necessá- rio ultrapassar, o mais rápido pos- sível, a concepção neoliberal que coloca como principal preocupação da empresa e de seus gestores a ma- ximização de dividendos no curto prazo. Nesses termos, os maiores ganhadores no contexto da pós-glo- balização são as empresas do capi- talismo industrial, como é o caso do Japão, da Alemanha e dos países escandinavos, que não praticam a mesma forma de gestão que as em- presas estadunidenses e as que ado- tam seu estilo de gestão. O que determina o sucesso de uma empresa em contexto de pós-globalização? OA: A empresa bem-sucedida em contexto de pós-globalização é aquela que, em sua estratégia e em sua gestão, colocará, em ordem prioritária de cuidado e preocupa- ção, primeiramente o empregado, em seguida o cliente e finalmente o acionista. Primeiro o empregado, porque sem sua vontade e sua ade- são não é possível gerar nem pro- dutividade nem qualidade. Segun- do o cliente, porque sem a sua sa- tisfação honesta e durável em ter- mos de qualidade, preço e perfor- mance, não é possível existir sobre- vivência para os negócios de uma firma. O acionista em terceiro lu- gar, porque sua satisfação é reali- zada de forma inteligente e susten- tável somente quando o emprega- do e o cliente foram satisfeitos a priori. O sucesso empresarial não estaria também vinculado à capacidade de pensar e de praticar a gestão em função das singularidades locais ou regionais? Ou seja, de se AR M - S/ TÍ TU LO , 2 00 2 - M AR IA V. D OS S AN TO S, A CR ÍL IC A S/ TE LA 080-084 10.02.05, 14:0482 ©GV executivo • 83 A responsabilidade primordial do gestor consiste em implantar condições de trabalho que suscitem nos trabalhadores vontade de fornecer sua inteligência, sua vigilância ativa, seu cuidado para evitar desperdícios e sua capacidade de inovação em prol da prosperidade geral. escapar de um modelo universalizante de gestão que acompanha o processo de globalização? OA: Claro, mas essa prática pode comportar dois sentidos. O primeiro é de atuar de acordo com os princi- pais determinantes locais e regionais para permitir que o trabalhador se realize na condição de cidadão e de pessoa humana, mas também para satisfazer os gostos, tradições e valo- res dos consumidores. O segundo sentido refere-se ao que os japoneses foram os primeiros a compreender e explorar, ao estudar os gostos, hábi- tos e desejos do outro em seu con- texto cultural para, em seguida, con- duzi-lo a aceitar os bens produzidos no Japão. Eis aqui um dos raros as- pectos inteligentes da globalização que contradiz o modelo universali- zante de gestão proposto pelos Esta- dos Unidos. O problema desse mo- delo é a pretensão de acreditar que o planeta goste do hambúrguer norte- americano e que todos os seres hu- manos são animados pelo mesmo tipo de motivação. Podemos fabricar car- ros e sanduíches em qualquer lugar do mundo, mas o sucesso consiste em saber produzir o carro e o sanduíche da maneira localmente apreciada e valorizada. Como é possível ser executivo e reagir ativamente aos desafios da pós-globalização? OA: A partir da compreensão de que a pós-globalização diz respeito à pre- dominância de um modo de concep- ção da economia, da sociedade, da troca e da gestão com relação a um outro, entendo que o desafio primor- dial do gestor é o de se distanciar do modelo financeiro estadunidense. Reagir ativa e inteligentemente à pós- globalização significa romper com o que produziu a globalização e seus fracassos. No âmbito mais geral, sig- nifica, por exemplo, admitir que o Estado e o sindicato não são inimi- gos ou freios, mas complementos e contra-poderes democráticos indis- pensáveis. Significa também admitir que os seres humanos e a natureza não são simplesmente recursos a se- rem utilizados até à exaustão para, em seguida, deslocar a produção em direção a áreas nas quais a explora- ção seja mais fácil e globalmente destruidora em termos ecológicos. Na esfera da empresa, significa tor- nar os empregados parceiros e as- sociados ativos, e não considerá-los mercenários assalariados do mais baixo nível. Resumidamente, a pa- lavra-chave dessa mudança e desse desafio é a suspensão da prática do “lucro que destrói o lucro”, já que a partir de determinados níveis de lucro, torna-se inevitável para aumentá-lo, preservar os fatores que o permitem existir: o trabalho e a natureza. Além das dimensões econômicas e financeiras da pós-globalização, há também repercussões socioculturais, tanto no plano individual quanto organizacional. Nesse sentido, a capacidade de colaboração, de inovação e de comprometimento organizacional estariam em jogo? OA: Antes de qualquer coisa, exis- tem repercussões em termos da con- cepção e do papel do Estado e da so- ciedade civil e, por conseguinte, das relações estabelecidas entre empresa, mercado, Estado e sociedade. É ne- cessário pensar em novas formas de relacionamento entre Estado, sindi- cato e empresa, qualificando-as pelo respeito mútuo, pela busca de com- plementaridade e de equilíbrio. Nes- se trajeto, a responsabilidade primor- dial do gestor consiste em implantar condições de trabalho que suscitem nos trabalhadores vontade de forne- cer sua inteligência, sua vigilância ati- va, seu cuidado para evitar desperdí- cios, sua capacidade de inovação em prol da prosperidade geral. Essas con- dições de comprometimento e de co- laboração organizacional diferem, é 080-084 10.02.05, 14:0583 84 • VOL.4 • Nº1 • FEV./ABR. 2005 claro, da busca de empregados que demonstrem uma obediência passiva e que sejam considerados como “re- cursos” utilizáveis e descartáveis a todo e qualquer momento. Contudo, tais condições são traços marcantes das práticas de gestão observáveis em países em que o capitalismo indus- trial predomina, mesmo se, de uma forma ou de outra, tais países sejam atingidos pela crise da insolvência que, por causa dos efeitos da globali- zação neoliberal, agride o planeta em sua totalidade. É possível fazer reformas de cunho social e políticas neokeynesianas de investimento e, concomitan- PONTO DE VISTA: ALÉM DA GLOBALIZAÇÃO temente, manter a política macroeconômica amarrada às regras do Programa de Ajuste Estrutural? AO: Não, de forma nenhuma. As medidas de ajuste estrutural impos- tas pelo FMI e pelo Consenso de Washington são incompatíveis com toda possibilidade de equilíbrio en- tre interesses nacionais, interesses da sociedade civil, interesses ecológicos e interesses do dinheiro globalizado. É incompatível pela simples razão de que a lógica desses ajustes é absurda na medida em que obriga os países mais fracos a renunciarem toda sobe- rania nacional e a praticarem uma política monetária de curto prazo. Toda política econômica que se preo- cupa com os interesses da população, de sua educação, de sua saúde, deve ignorar as prescrições do FMI, bem como sua ideologia neoliberal, antikeynesiana e antiintervencionista do Estado. Eduardo Davel Prof. do Departamento de Trabalho, Eco- nomia e Gestão na Télé-université, Uni- versidade do Quebec. E-mail: edavel@teluq.uquebec.ca Carlos Milani Prof. do Departamento de Estudos Orga- nizacionais na Escola de Administração da UFBA. E-mail: cmilani@ufba.br Os sentidos da globalização Depois de muito se haver escrito sobre o tema, cabe aqui a pergunta: que sentidos pode ter a globalização? Ao defini-la, descrevemos rigorosamente a realidade das trocas globais ou falamos do que a globalização deveria ser? Analisamos seus efeitos positivos e negativos ou defendemos uma norma do viver global? Enfatizamos somente suas dimensões econômi- cas e financeiras ou também consideramos seus corolários so- ciais, espaciais e culturais, suas origens históricas, ideológicas e políticas? Além de serem variados, os sentidos conferidos à globalização navegam entre os seus defensores freqüentemente pouco críticos e a radicalidade heterogênea dos chamados movimentos da contestação internacional. Aqueles que defendem a globalização, conhecidos como globalófilos, colocam como regra a economia acima das rela- ções humanas e do bem público. Confundem o bem público com um serviço de mercado regido pela lei da oferta e da pro- cura, desconhecendo a importância, por exemplo, de bens cul- turais como valores de identidade. Ao darem ênfase suprema à esfera econômica em detrimento das esferas da sociedade e da vida (a natureza), ignoram a relevância do meio ambiente em que se dão os processos econômicos e a centralidade das diferenças históricas e contextuais nesses processos. Esse mo- vimento de apoio, quase cego, à globalização é impulsionado pelas principais organizações intergovernamentais que gerem as questões relativas à dívida externa e os programas de ajus- te estrutural, bem como por algumas firmas transnacionais e alguns dirigentes políticos. Os globalofóbicos, que integram o movimento de con- testação, questionam o caráter absoluto dos postulados da globalização. Suas palavras de ordem são o questio- namento, a mobilização social e política, a solidarieda- de, assim como a democratização dos processos de to- mada de decisão. No entanto, não se trata de um grupo homogêneo nem uniforme, coexistindo em seu seio ato- res políticos, movimentos sociais, pensadores e redes internacionais altamente diversos. 080-084 10.02.05, 14:0584 Textos Conceitos B�sicos de Gest�o/Artigo 04_Caminhos do desempenho.pdf 86 • VOL.4 • Nº4 • NOV. 2005 A JAN. 2006 PONTO CRÍTICO Em uma época de indiscutível guerra por competitivi- dade e conquista de mercados, exigências de desem- penho superior pesam sobre as empresas. Paradoxal- mente, porém, quando conseguem um desempenho considerado satisfatório, muitas empresas acomodam- se e passam a se movimentar por inércia. A conse- qüência é a perda progressiva de liderança e, no limi- te, a derrocada. O artigo analisa as razões desse fenô- meno e destaca soluções que envolvem mudanças nos sistemas de gestão, liderança e de gestão de pessoas. por Betânia Tanure FDC e Sumantra Ghoshal (in memoriam) Caminhos do desempenho os últimos anos, temos visto empresas bem-sucedidas em passado recente perderem a lideran- ça do setor e, não raro, mergulharem em um período de crise e dificulda- des. O fenômeno, que não poupou gigantes transnacionais como IBM, General Motors ou Xerox, é visível AR M - CA M IN HO S, 2 00 4 - E M ÍL IA A LV ES C AV AL LI ER I, ÓL EO S / TE LA também em economias emergentes como a do Brasil. Uma amostra disso é que, das 40 melhores empresas em atuação no país em 1997 – nos seg- mentos de transportes, de confecções e têxteis, de higiene, limpeza e cos- méticos e de metalurgia e siderurgia, apenas 4, ou seja, um décimo delas, mantinham a condição de liderança em 2002. O artigo explora algumas das ra- zões desse fenômeno a partir de uma pesquisa com empresas na Europa, nos Estados Unidos, na Índia e no Brasil. Foram cinco os indicadores de comparação utilizados: vendas por N 086-090 05.12.05, 10:3686 ©GV executivo • 87 A manutenção do status quo empurra a empresa para o subdesempenho satisfatório, no qual ela mantém um desempenho medíocre necessário e se movimenta por inércia. ses líderes acabam se transformando em celebridades. Viraram capa de re- vistas de negócios como Fortune e Exame e são requisitados para dar palestras. A conseqüência de tudo isso cos- tuma ser que eles passam a acreditar que são mesmo os melhores e se tor- nam arrogantes não só com subordi- nados como também com clientes e fornecedores. Paralelamente, a em- presa cresce. Em certo momento, sur- ge a percepção de que é necessário aumentar o controle operacional para garantir que tudo continue funcio- nando da mesma forma e que a orga- nização mantenha seu crescimento. Ocorre que a combinação de ar- rogância e controle produz um efeito nefasto na organização – reprime a iniciativa e o entusiasmo das pessoas, em todos os níveis. Nesse ambiente, quem sabe fazer política progride, enquanto quem defende os interes- ses dos funcionários e clientes ou ain- da questiona o modo como as coisas funcionam é marginalizado ou elimi- nado. Em lugar do entusiasmo e do comprometimento, tão salutares para o sucesso das organizações, instalam- se o temor e a obediência. A manu- tenção do status quo empurra a em- presa para o subdesempenho satisfa- tório, no qual ela se movimenta por inércia. Os líderes atribuem a perda do impulso de crescimento a fatores externos e reduzem suas expectativas de desempenho para criar uma satis- fação artificial. Mais cedo ou mais tar- de, porém, desnuda-se a situação de crise. Mantendo a crise. A doença do subdesempenho satisfatório é fre- qüente em todo o mundo. Nossa per- cepção é que os executivos têm cons- ciência de que as empresas precisam mudar, pois a lógica cruel dos mer- cados em uma economia desregula- mentada e competitiva as força a isso. Os gestores contratam consultorias e palestras, pesquisam a literatura so- bre o assunto, estudam a gestão de mudanças. Sabem o que têm de fa- zer, mas muitas vezes não acreditam no que sabem, no que falam às suas equipes, no que registram em seus relatórios. Intimamente, supõem que uma mudança radical de desempenho não é possível. Algumas crenças sustentam esse pensamento. Uma delas é o incre- mentalismo. Fundamentado na idéia de que nas empresas tudo acontece paulatinamente, pressupõe que elas sejam como imensos petroleiros, pesados demais para alterar mais ra- pidamente o rumo. Portanto, qual- quer mudança mais profunda é temi- da. Outra crença que constitui uma armadilha contra a melhoria radical de desempenho é o determinismo funcionário, estoque/vendas, vendas/ ativos fixos líquidos, margem opera- cional e retorno sobre o patrimônio líquido. Os números mostraram que os resultados da empresa européia eram sensivelmente inferiores. Em vez de analisar a situação apresentada, os exe- cutivos agarravam-se ao faturamento de US$ 400 milhões que obtiveram e relativizavam a significância dos dados comparativos. Porém, se coletivamente negavam a perda de desempenho da empresa, eles reconheciam, individual e privadamente, que a realidade era digna de preocupação. Para citar um exemplo local, nos anos de 1990, uma empresa brasi- leira que havia sido ícone em seu setor na década anterior foi vendida por um sexto do montante que valia nos tempos de liderança. Isso ocor- reu a despeito de, poucos anos an- tes, as famílias proprietárias terem sido confrontadas com os dados de desempenho e a visão de futuro que se colocavam para a empresa. Ape- nas uma das famílias reagiu e ven- deu sua parcela do negócio. Nivelar por baixo. O que pro- duz esse comportamento é o que cha- mamos de “subdesempenho satisfa- tório”, doença que se desenvolve por um processo bastante previsível. Em determinado momento de sua traje- tória, a empresa adota uma estratégia de negócios bem-sucedida, torna-se competitiva e é recompensada com crescimento e lucro. Com isso, o brilhantismo dos dirigentes é reco- nhecido e sua experiência torna-se referência para outras empresas. Es- 086-090 05.12.05, 10:3687 88 • VOL.4 • Nº4 • NOV. 2005 A JAN. 2006 PONTO CRÍTICO: CAMINHOS DO DESEMPENHO setorial. Ocorre porque há gestores que não acreditam em um espetacu- lar crescimento das empresas de se- tores em que a vida é difícil ou existe crise. Há ainda uma terceira crença, segundo a qual empresas de sucesso não são capazes de obter expressivas melhorias de performance, que seriam uma particularidade das organizações em crise. Culinária agridoce. Além de to- das essas crenças, também as filosofias de gestão impedem que as empresas tenham uma melhoria de desempenho expressiva e sustentável, capaz de ga- rantir sua sobrevivência nos duros tempos da globalização e da acirrada competitividade nos mercados. No Brasil, como no resto do mun- do, temos observado que a grande maioria das organizações busca maior performance por um de dois caminhos possíveis: a racionalização ou a revi- talização. No entanto, os resultados que elas obtêm mostram que nenhum desses caminhos, isoladamente, é su- ficiente para elevá-las e mantê-las no patamar desejado. Fechar fábricas, reduzir o quadro de pessoal, reestruturar o portfólio de produtos e/ou negócios, diminuir o número de fornecedores e forçá-los a dar descontos, sanear as finanças da empresa e reduzir as plataformas de produção são as principais medidas da racionalização. Como para a maioria dos gestores essas medidas são desa- gradáveis, costumamos nos referir à racionalização como “culinária azeda”. No Brasil, pode-se dizer que es- sas medidas têm peso negativo ainda maior, em virtude da dimensão for- temente relacional da nossa cultura: as pessoas criam vínculos emocionais com os colegas de trabalho e compro- metem-se com as metas dos líderes. Assim, não apenas para os executi- vos como também para os funcioná- rios remanescentes, as demissões são especialmente dolorosas, pois repre- sentam a quebra de vínculos existen- tes nas equipes de trabalho. Nos últimos anos, muitas orga- nizações vêm tentando melhorar o desempenho somente por meio dos ingredientes dessa culinária e têm colhido resultados desastrosos. Ficam presas a uma espiral descendente e, em algum momento, apresentam que- da de desempenho. Visando ao au- mento da rentabilidade, seus dirigen- tes reduzem custos e atividades. Os resultados financeiros melhoram, mas por pouco tempo, pois os verdadei- ros desequilíbrios da empresa não são corrigidos. O desempenho volta a pio- rar e a organização se vê obrigada a uma nova rodada de cortes, enreda- da na cruel espiral que a leva para o fundo do poço. Se a experiência ensina que usar exclusivamente ingredientes azedos não é suficiente para levar uma em- presa à melhoria de desempenho, o 086-090 05.12.05, 10:3688 ©GV executivo • 89 A empresa deve perseguir a melhoria da produtividade por meio da racionalização constante das atividades ao mesmo tempo em que cria oportunidades de crescimento pela revitalização contínua da estratégia, da organização, das pessoas e da cultura. mesmo vale para a “culinária doce”, que é como chamamos o caminho do crescimento. Por motivos óbvios, é muito mais agradável para os ges- tores expandir os negócios, nutrir uma visão grandiosa de futuro e fa- zer com que a empresa alcance o ce- nário dessa visão. A lição é simples e universal: o desempenho corporativo superior e sustentado se baseia na capacidade de administrar a tensão entre duas forças aparentemente contraditórias: a racionalização “azeda” e a revitali- zação “doce”. Embora pareçam mu- tuamente excludentes, os dois cami- nhos devem, sim, ser conciliados: a empresa pode perseguir a melhoria da produtividade por meio da racio- nalização constante das atividades e criar oportunidades de crescimento pela revitalização contínua da estra- tégia, da organização, da cultura e das pessoas. Nisso consiste o que chamamos de “culinária agridoce” e já temos entre nós bons exemplos dela (ver Quadro). Nova filosofia de gestão. O equilíbrio entre doce e azedo é uma importante conquista das organiza- ções que buscam a melhoria de de- sempenho e sua sustentação. Entre- tanto, a nosso ver esse é apenas um dos aspectos que constituem o gran- de desafio de manter o curso do cres- cimento. Após anos de pesquisas e contatos com empresas, chegamos à convicção de que as organizações pre- cisam promover uma abrangente mu- dança de sua filosofia básica de ges- tão – e, a rigor, algumas já estão fa- zendo isso. Uma determinada geração de di- rigentes aprendeu a enxergar suas ta- refas predominantemente pela lógi- ca do controle, que influencia deci- sivamente a filosofia de gestão. Seu desenho modular sustentou a onda de diversificação de conglomerados nos anos de 1960 e o início da glo- balização nas duas décadas seguin- tes, já que para entrar em um novo ramo de negócios ou área geográfica bastava à empresa acrescentar uma nova divisão. As mudanças por que vem pas- sando a economia mundial, incluída a brasileira, tornaram inadequado esse modelo. Hoje, o desafio não é mais estabelecer controles sobre as pessoas. É atrair, desenvolver e reter os melhores talentos; interligar e ex- pandir o acervo de conhecimentos, capacidades e iniciativas; criar inova- ções e oportunidades. Essa é a dire- ção tomada por algumas empresas, do Brasil e de fora, que têm sido bem- sucedidas nessa experiência. Nelas, os conceitos de estratégia, estrutura e sis- temas evoluem para os de propósito, processos, pessoas e cultura. Cada vez mais, na formulação das estratégias de negócios, deve-se utili- zar todo o potencial existente na em- presa. Assim, o papel primordial dos líderes passa a ser ultrapassar os li- mites da estratégia para criar e difun- dir um propósito corporativo, uma vi- são empresarial que alcance cada in- divíduo e faça-o sentir-se parte inte- grante dela. A formatação de um con- junto de valores – tradução daquilo que a empresa deseja ser – torna-se imprescindível. Os líderes devem cui- dar da modelagem dessa cultura, ou seja, para que esses valores penetrem na alma da organização, para que não sejam apenas belas palavras ditas da boca para fora, mas as bases da con- duta organizacional para com as co- munidades interna e externa. Nas empresas brasileiras, tradicio- nalmente, o dirigente é uma figura de forte autoridade, que mantém em suas mãos as decisões. Tal característica cultural representa um sério entrave à transição da estratégia para o propósi- to, processo que faz com que os diri- gentes deixem de ver a si mesmos como os grandes estrategistas da em- presa. No ambiente operacional alta- mente complexo das organizações atuais, onde as mudanças são constan- tes e os conhecimentos exigidos para a tomada de decisões estão na linha de frente de cada negócio, não se pode esperar que os executivos tenham to- das as informações e respostas. 086-090 05.12.05, 10:3789 90 • VOL.4 • Nº4 • NOV. 2005 A JAN. 2006 Mais desafios. A transição de es- trutura para processos devidamente articulada com a cultura implica re- ver os organogramas complicados e as hierarquias rígidas que até então se acreditavam necessários para o fun- cionamento da organização. Gestores seriamente engajados na gestão participativa têm-se concentrado no desenvolvimento de processos que configuram a empresa, não como mero conjunto de atividades, mas como sistema social alicerçado nas funções que as pessoas exercem e nos relacionamentos que as interco- nectam. Em nosso país, o grande desafio a vencer, nesse aspecto, é incentivar a participação das pessoas. A forte hierarquia e a concentração de poder, características ainda marcantes de nossa cultura, não favorecem a parti- cipação. Os liderados assumem a pos- tura de espectadores, têm baixa ini- ciativa e forte medo de errar. Em con- trapartida, não se pode deixar de ob- servar também que nossa cultura tem traços que favorecem essas mudan- ças. Um deles é o caráter relacional, que estabelece fortes vínculos entre as pessoas e pode facilitar sobrema- neira o seu engajamento em projetos. Finalmente, ir além de sistemas até pessoas e cultura implica substituir os mecanismos de controle dos indi- víduos por relacionamentos interpes- soais e interações diretas ancorados pela percepção de integridade e jus- tiça. Significa mudar da ênfase nos sistemas que automatizam o trabalho para o foco nas pessoas que fazem o trabalho, promovendo a intensa tro- ca de informações, conhecimentos e experiências. Os líderes trabalham com afinco não só para delegar tare- fas como também para dar o apoio necessário aos que realizam as ta- refas; exigem mais de seus colabora- dores, mas também investem neles para aumentar suas competências. Aqui, novamente, o caráter re- lacional da cultura brasileira facilita a nova filosofia de gestão. O ambien- te relacional estimula o trabalho em equipe; as relações, quando positi- vas, incentivam o compartilhamen- to de informações. Assim, pode-se produzir um clima de confiança e ca- maradagem, sob cuja influência as pessoas normalmente trabalham melhor e são mais facilmente mobi- lizáveis do que nos ambientes em que prevalecem a racionalidade e o individualismo. Essa capacidade de mobilização, que é um dos grandes temas mundiais quando se fala em gestão, está na pele do povo brasi- leiro. Betânia Tanure Profa. da Fundação Dom Cabral Doutora em Business Administration (Brunel University – Inglaterra) E-mail: betaniat@fdc.org.br Sumantra Ghoshal (in memoriam) Ex-professor da London Business School PONTO CRÍTICO: CAMINHOS DO DESEMPENHO Culinária de sucesso Várias organizações, tanto no Brasil como na Índia, têm sido capazes de obter melhoria radical de desempenho por meio dessa simbiose agridoce. Entre os muitos casos brasileiros destaca- mos o da Caloi, tradicional fabricante de bicicletas que, com a abertura do mercado nacional nos anos de 1990, buscou a di- versificação dos negócios para enfrentar a dura concorrência que surgiu em seu setor. Em pouco tempo, porém, essa estraté- gia doce ampliou as dificuldades da empresa; foi preciso reali- zar demissões e terceirizar atividades. As dificuldades persisti- ram, levando a empresa a contratar uma consultoria externa para gerir os negócios por dois anos. Em um primeiro momento, a nova gestão da Caloi intensificou a culinária azeda com cortes de custos ainda mais profundos. Mudou os métodos de produção, saneou as finanças e se reestruturou. Atividades consideradas fora do core business fo- ram interrompidas, dando lugar a negócios de alto potencial e mais próximos da vocação da empresa, como o de fitness. Por fim, a Caloi buscou aporte de capital para financiar os investi- mentos que subsidiariam seu crescimento. Em 2000, passou a ser de propriedade da EVM Empreendimentos, que instalou mais claramente o equilíbrio entre doce e azedo e estabeleceu um novo modelo de negócio para a Caloi, focado no conceito de vida saudável. Atualmente, a empresa enfrenta o desafio de crescer ao mesmo tempo em que se reposiciona. Tem pela frente um caminho árduo, mas já escolheu como percorrê-lo, o que é fundamental. 086-090 05.12.05, 10:3790 Textos Conceitos B�sicos de Gest�o/Artigo 05_Azul Linhas A�reas.pdf caso 36 vol.8 nº2 ago/dez 2009 gvexecutivo 37 gvexecutivo 37 Por HUMBErTo FILIPE BETTINI E ALESSANDro oLIvEIrA Antes mesmo do começo efetivo de suas operações, a Azul Linhas Aéreas disparou uma série de reações de suas duas principais concorrentes, TAM e goL. A con- solidação dessa empresa promete dinamizar a estru- tura competitiva do setor aéreo no Brasil Azul linhAs AéreAs 38 vol.8 nº2 ago/dez 2009 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> caso: azul linhas aéreas AA entrada de novas empresas em mercados sem barreiras comerciais ou regulatórias é hoje fato cotidiano. Para empresas consolidadas, e que terão seus mercados disputa-dos, o acompanhamento dos planos estratégicos das novas entrantes é um exercício fundamental. Nesse âmbito, a veiculação, intencional ou não, de sinalizações, boatos e ameaças por meio de declarações públicas pode dar origem a movimentos reativos antes mesmo da entrada efetiva. Este artigo investiga os movimentos estratégicos que a mais nova empresa aérea brasileira, a Azul Linhas Aéreas, tomou desde seu anúncio oficial, em janeiro de 2008. Especialmente, enumera e analisa algumas reações de con- correntes que se materializaram meses antes do início de suas operações, em dezembro do mesmo ano. o INÍCIo. A Azul Linhas Aéreas nasceu do interesse do empresário David Neeleman em investir na aviação do país. Neeleman ficou famoso por ter fundado duas das maiores e mais lucrativas empresas aéreas seguidoras do conceito low- cost, low-fare na América do Norte – a americana jetBlue e a canadense Westjet. Uma de suas particularidades é a combi- nação de experiência na indústria e a isenção legal no que se refere à propriedade de empresas aéreas no Brasil. Cidadão brasileiro e americano, Neeleman pôde contornar os limites de propriedade de capital estabelecidos na legislação e apli- cados a não-brasileiros pela Agência Nacional de Aviação Civil. De fato, estrangeiros não podem deter mais que 20% do capital de empresas aéreas nacionais. As primeiras veiculações públicas do interesse de Neeleman em se estabelecer no mercado brasileiro ocorreram em janeiro de 2008. Naquele momento, aspectos-chave do plano estratégico da nova empresa foram anunciados ostensi- vamente, como a data de início previsto de operações, o tamanho da frota e das aeronaves que a comporiam e a mor- fologia da rede. A partir de então, o cronograma de eventos que antecedeu o lançamento da nova empresa manteve-se em ritmo contínuo e intenso, o que atribuiu plena credibilidade à entrada de Neeleman no mercado brasileiro. CAUSANDo BArULHo. Dois aspectos incrementaram muito a visibilidade da nova empresa aérea. Primeiramente, menos de dois meses após seu anúncio de lançamento, a nova empresa conduziu uma campanha de alcance nacio- nal que decidiria seu nome por meio de votação pública. Após contar com quase 160 mil votos provenientes de mais de 100 mil cadastros, a escolha do nome ocorreu em duas fases: a primeira, de caráter sugestivo; a segunda, por meio de votação a partir dos 10 nomes mais frequentes. Em segundo lugar, concomitante ao anúncio do nome escolhido, oficializou-se a compra de 36 aeronaves da Embraer, mantendo-se fiel ao plano estratégico de trabalhar com apenas um tipo de aeronave e com tamanho menor que as operadas pelas principais empresas estabelecidas. Para se ter uma ideia do que isso representa, da frota ativa de 315 aeronaves comerciais de transporte de passageiros no Brasil ao final de 2007, 222 aviões possuíam mais de 118 assentos, ou seja, uma proporção de 7 em cada 10 aeronaves apresentava configuração superior à escolhida pela entrante. Levando-se em conta que, das 93 aeronaves com capacidade igual ou inferior a 118 assentos, apenas 28 eram jatos, todos de geração anterior, o plano de frota da Azul representou um marco importante de uma nova etapa da aviação comercial brasileira. Outro aspecto marcante no processo de lançamento da empresa foi a insistência no modelo de negócios que preten- dia seguir: diferenciação de produto como vantagem compe- titiva, malha de voos na ligação direta entre mercados que requerem escalas ou conexões, especialmente entre capitais de estados, e ônibus grátis para paulistanos no acesso ao gvexecutivo 39 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> caso: azul linhas aéreas aeroporto de Viracopos, em Campinas. Em termos de pre- ços, o discurso inicial foi o de prática de “preços não preda- tórios”, alinhados com o mercado e respeitando flutuações na cotação do preço do petróleo - afirmações condizentes com um comportamento de baixa agressividade e de “con- testação responsável” a um mercado caracterizado por um quase duopólio formado por GOL e TAM, que, juntas, atu- almente, detêm mais de 90% do total das viagens domésti- cas. As promoções foram surgindo, entretanto, na medida em que foi necessário promover o marketing tático da empresa, divulgar os novos mercados atendidos, manter o compromisso com a expansão das operações e aumentar o aproveitamento das novas aeronaves recebidas. Por exem- plo, no início de julho de 2009, ao divulgar o início do voo ligando Campinas a Belo Horizonte, a Azul anunciou passa- gens ao preço inicial de R$ 39 por trecho. No entanto, além de diretrizes básicas, alguns detalhes operacionais e constantes no plano de negócios da empresa foram revelados ao regulador, ao grande público e aos con- correntes: a pretensão de estabelecer bases operacionais nos aeroportos centrais de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro, assim como em Curitiba, e ausência (temporária, ao menos) no mercado da ponte aérea Rio de Janeiro-São Paulo. São justamente essas informações que balizaram as empresas incumbentes em suas primeiras reações. rEAÇÕES À ENTrADA. Em meados de 2008, decorridos pouco mais de seis meses desde a divulgação dos primeiros esboços de Neeleman sobre a nova empresa aérea brasilei- ra, já se detectava no ar um conjunto bastante interessante de ações tomadas por empresas rivais. A primeira se vinculava diretamente à escolha do Aeroporto Santos Dumont como sede operacional. Santos Dumont estava destinado a servir, com voos diretos, apenas as operações regionais estaduais ou com estados limítrofes, e os voos da Ponte Aérea, fruto de um processo destinado a reavivar o Aeroporto do Galeão, na Ilha do Governador. As intenções da Azul em utilizar o aeroporto com a realização de voos regulares irrestritos com suas aeronaves (118 assen- tos) para capitais brasileiras conferiu a essa empresa a possi- bilidade de vantagem competitiva em um nicho ainda inex- plorado devido às restrições regulatórias então vigentes. A escolha da Azul pelo Aeroporto Santos Dumont rea- briu, assim, de imediato, o debate referente à liberação do acesso a esse aeroporto. Como medidas reativas, GOL e TAM oficializaram o pedido de permissão para explorar inúmeras frequências diárias entre esse aeroporto e Belo Horizonte, Brasília e Vitória junto à Comissão de Coordenação de Linhas Aéreas Regulares – a instância regulatória encarrega- da das análises dos pleitos dessa natureza por parte das empresas aéreas. A rigor, as restrições ao acesso ao Aeroporto da Pampulha também foram colocadas sob escrutínio na mesma ocasião, havendo pedidos, similares de GOL e TAM, para a abertura de ligações entre esse aeroporto mineiro e Brasília, São Paulo e Vitória. Todo esse processo culminou na remoção das restrições operacionais vigentes em Santos Dumont e, em última instância, abriu caminho para um debate mais amplo sobre a necessidade de revisão do marco regulatório do setor aeroportuário brasileiro. DIFERENCIAÇÃO DE PRODUTO COMO VANTAGEM COMPETITIVA, MALHA DE VOOS NA LIGAÇÃO DIRETA E FREQUENTE ENTRE MERCADOS E ÔNIBUS GRÁTIS DE ACESSO CARACTERIZAM A ESTRATÉGIA DA AZUL 40 vol.8 nº2 ago/dez 2009 >>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> caso: azul linhas aéreas A segunda ação se refere a medidas de expansão de redes e de conectividade nacional, assim como composição de frotas por parte das duas maiores incumbentes. Nos últimos meses, houve o reforço da presença da TAM em Campinas, com voos diários para as principais capitais das regiões sul, sudeste e centro-oeste. Adicionalmente, a TAM recebeu quatro A319 para 144 passageiros, mudando sua estratégia de somente receber novos A320 (aeronaves com capacidade de até 176 assentos). A GOL anunciou que somente receberia aeronaves B737-800 SFP (Special Field Performance), modelo concebido em conjunto com o fabricante Boeing e apto a operar em aeroportos críticos, a exemplo de Santos Dumont. MAIS rEAÇÕES. A terceira reação se refere à expansão comercial, nacional ou internacional, que GOL e TAM empreenderem. A TAM ingressou numa aliança global de companhias aéreas – a Star Alliance –, preenchendo o vácuo deixado pela antiga Varig nesse quesito de integração da malha nacional ao mundo, o que lhe conferirá maior poder de alimentação de voos e trará maior conveniência a seus passageiros. Em caminho semelhante segue a GOL: na sequência de indicadores decrescentes para o fator de apro- veitamento dos voos e da publicação de prejuízos operacio- nais, a empresa vem expandindo o inovador programa “Voe Fácil”, por meio da contratação de vendedores autônomos comissionados, encarregados de vendas diretas de passa- gens aéreas. Em adição a esse esforço na área de vendas, a Nova Varig, agora uma marca do Grupo GOL, praticamen- te retirou-se do cenário internacional, dedicando-se somen- te a voos domésticos e a ligações de pequena distância com países limítrofes do Brasil, tendo recebido uma quantidade de sete novas aeronaves para operação nesses mercados. Em níveis nacionais, GOL e TAM fazem-se mais fortes. A quarta, e
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