Buscar

Agressividade contra a mulher

Prévia do material em texto

Agressão contra a mulher
No Brasil, estima-se que cinco mulheres são espancadas a cada 2 minutos; o parceiro (marido, namorado ou ex) é o responsável por mais de 80% dos casos reportados, segundo a pesquisa Mulheres Brasileiras nos Espaços Público e Privado (FPA/Sesc, 2010).
Apesar dos dados alarmantes, muitas vezes, essa gravidade não é devidamente reconhecida, graças a mecanismos históricos e culturais que geram e mantêm desigualdades entre homens e mulheres e alimentam um pacto de silêncio e conivência com estes crimes. Na pesquisa Tolerância social à violência contra as mulheres (Ipea, 2014), 63% dos entrevistados concordam, total ou parcialmente, que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre os membros da família”. E 89% concordam que “a roupa suja deve ser lavada em casa”, enquanto que 82% consideram que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.
Diversas leis e normas nacionais e internacionais frisam que é urgente reconhecer que a violência doméstica e familiar contra mulheres e meninas é inaceitável e, sobretudo, que os governos, organismos internacionais, empresas, instituições de ensino e pesquisa e a imprensa devem assumir um compromisso de não conivência com o problema. 
Esta é uma questão grave, que impede a realização do pleno potencial de trajetórias pessoais, vitima famílias inteiras marcadas pela violência e, assim, limita o desenvolvimento global da sociedade. Dados do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento apontam que uma em cada cinco faltas ao trabalho no mundo é motivada por agressões ocorridas no espaço doméstico. Essas instituições calculam ainda que as mulheres em idade reprodutiva perdem até 16% dos anos de vida saudável como resultado dessa violência.
Uma das imagens mais associadas à violência doméstica e familiar contra as mulheres é a de um homem – namorado, marido ou ex – que agride a parceira, motivado por um sentimento de posse sobre a vida e as escolhas daquela mulher. De fato, este roteiro é velho conhecido de quem atua atendendo mulheres em situação de violência: a agressão física e psicológica cometida por parceiros é a mais recorrente no Brasil e em muitos outros países, conforme apontam pesquisas recentes.
A recorrência, porém, não pode ser confundida com regra geral: a relação íntima de afeto prevista na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) não se restringe a relações amorosas e pode haver violência doméstica e familiar independentemente de parentesco – o agressor pode ser o padrasto/madrasta, sogro/a, cunhado/a ou agregados – desde que a vítima seja uma mulher, em qualquer idade ou classe social. O que diz a Lei Maria da Penha
Violência doméstica e familiar contra a mulher é qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, conforme definido no artigo 5oda Lei Maria da Penha, a Lei nº 11.340/2006.
“Quando se fala que a Lei Maria da Penha discrimina os homens, isso não é verdade. A Lei Maria da Penha, na verdade, vai manear um sujeito que sofre uma discriminação específica, uma violência específica e que precisa, portanto, de respostas e mecanismos específicos para sanar essa ausência de direitos ou essas violências.”.
No artigo 5º da Lei Maria da Penha, quatro pontos merecem atenção:
1) A lei representa um reconhecimento do Estado brasileiro de que, em nosso contexto, os papéis associados ao gênero feminino e o lugar privilegiado do gênero masculino nas relações geram vulnerabilidades para as mulheres, que acabam sendo mais expostas socialmente a certos tipos de violência e violações de direitos.
“Há supostos papéis estabelecidos tanto para homens quanto para mulheres: criam-se estereótipos que afetam a vida das pessoas. Mas, no caso das mulheres, esse impacto acontece em maior grau porque esses estereótipos são discriminatórios e historicamente têm impedido o acesso ao poder econômico e político e a direitos, gerando desigualdade. Há toda uma série de barreiras que são criadas para as mulheres e, nesse contexto, algumas pessoas usam inclusive da violência física e psicológica para manter aquilo que acham que é ‘correto’, para manter o que avaliam ser o ‘lugar da mulher’.”
2) A Lei Maria da Penha define cinco formas de violência doméstica e familiar, deixando claro que não existe apenas a violência que deixa marcas físicas evidentes:
– violência psicológica: xingar, humilhar, ameaçar, intimidar e amedrontar; criticar continuamente, desvalorizar os atos e desconsiderar a opinião ou decisão da mulher; debochar publicamente, diminuir a autoestima; tentar fazer a mulher ficar confusa ou achar que está louca; controlar tudo o que ela faz, quando sai, com quem e aonde vai; usar os filhos para fazer chantagem – são alguns exemplos de violência psicológica, de acordo com a cartilha Viver sem violência é direito de toda mulher;
– violência física: bater e espancar; empurrar, atirar objetos, sacudir, morder ou puxar os cabelos; mutilar e torturar; usar arma branca, como faca ou ferramentas de trabalho, ou de fogo;
– violência sexual: forçar relações sexuais quando a mulher não quer ou quando estiver dormindo ou sem condições de consentir; fazer a mulher olhar imagens pornográficas quando ela não quer; obrigar a mulher a fazer sexo com outra(s) pessoa(s); impedir a mulher de prevenir a gravidez, forçá-la a engravidar ou ainda forçar o aborto quando ela não quiser;
– violência patrimonial: controlar, reter ou tirar dinheiro dela; causar danos de propósito a objetos de que ela gosta; destruir, reter objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais e outros bens e direitos;
– violência moral: fazer comentários ofensivos na frente de estranhos e/ou conhecidos; humilhar a mulher publicamente; expor a vida íntima do casal para outras pessoas, inclusive nas redes sociais; acusar publicamente a mulher de cometer crimes; inventar histórias e/ou falar mal da mulher para os outros com o intuito de diminuí-la perante amigos e parentes.
3) Na maior parte dos casos, as diferentes formas de violência acontecem de modo combinado.
 Cerca de 30% das mulheres que disseram ter sido agredidas pelo parceiro afirmam que foram vítimas tanto de violência física como de violência sexual; mais de 60% admitem ter sofrido apenas agressões físicas; e menos de 10% contam ter sofrido apenas violência sexual.
Segundo a pesquisa, a maioria das agressões conjugais reflete um padrão de abuso contínuo e pode ter consequências como dores pelo corpo, dificuldades para realizar tarefas cotidianas, depressão, abortos e tentativas de suicídio.
O Balanço 2014 do Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher (SPM-PR) aponta que em mais de 80% dos casos de violência reportados, a agressão foi cometida por homens com quem as vítimas têm ou tiveram algum vínculo afetivo: atuais ou ex-companheiros, cônjuges, namorados. Frequentemente essa violência torna-se parte do cotidiano dessas mulheres: em 43% dos casos de violência registrados em 2014 pelo serviço Ligue 180 as agressões ocorriam diariamente; em 35%, a frequência era semanal.
Em si impactantes, esses dados ainda podem representar apenas uma parte da realidade, uma vez que parcela considerável dos crimes em relações íntimas não chega a ser denunciado.
O estudo realizado pela OMS (Estudio multipaís sobre salud de la mujer y violencia doméstica contra la mujer (OMS, 2002) constatou que cerca de 20% das mulheres agredidas fisicamente pelo marido no Brasil permaneceram em silêncio e não relataram a experiência nem mesmo para outras pessoas da família ou para amigos. Por outro lado, a pesquisa Violência e Assassinatos de Mulheres (Data Popular/Instituto Patrícia Galvão, 2013) mostra que apenas 2% da população nunca ouviu falar da Lei Maria da Penha e que, para 86% dos entrevistados, as mulheres passaram a denunciar mais os casos de violência doméstica após a Lei. E 86% concordam também que a agressão contra as mulheres deve ser denunciada à Polícia, demonstrando que o enfrentamento a estaforma de violência tem o respaldo da população.
É comum os homens serem valorizados pela força e agressividade, por exemplo, e muitos maridos, namorados, pais, irmãos, chefes e outros homens acham que têm o direito de impor suas opiniões e vontades às mulheres e, se contrariados, recorrem à agressão verbal e física. Com base em construções culturais desse tipo, que vigoram há séculos, muitos ainda acham que os homens são ‘naturalmente superiores’ às mulheres, ou que eles podem mandar na vida e nos desejos delas, e que a única maneira de resolver um conflito é apelar para a violência.
Mecanismos como esses estão nas raízes dos níveis de tolerância social a diferentes formas de violência e atuam em muitos casos em que agressões acontecem para ‘justificar’ ou minimizar a responsabilização de quem cometeu o ato violento, atribuindo as ações praticadas por uma pessoa à biologia ou, pior ainda, a quem foi vítima da agressão. “Grande parte dos homens autores de violências contra suas parceiras dizem: ‘eu bati nela porque ela me tirou do sério, me irritou, a culpa é dela’. Quando a gente começa a analisar isso junto com eles e questionar – ‘por que você acha que tem direito de controlar a maneira como ela se veste? Por que você acha que ela deve cozinhar para você?’ – é quase impossível separar o que eles entendem como ‘ser homem’ e os direitos que isso lhes dá, da maneira que eles se comportam e de suas atitudes’.”
Um problema que acontece com frequência é que os agressores, autorizados pela cultura de desigualdade entre homens e mulheres, não enxergam que cometeram uma violência e jogam a responsabilidade dos seus atos na vítima. Outro senso comum amplamente disseminado é apontar o uso de álcool, drogas ou o ciúme como causas da violência, mas atenção: esses são apenas fatores que podem desencadear uma crise de violência, não são as causas e nem devem ser aceitos como justificativa para a agressão. Um dos pontos mais importantes para compreender a violência doméstica e familiar é reconhecer que não existem perfis de vítimas e agressores e nem padrões absolutos de comportamento.
A violência doméstica não escolhe idade, classe social, raça/cor ou escolaridade rica ou pobre, branca ou negra, jovem ou idosa, com deficiência, lésbica, indígena, vivendo no campo ou na cidade, não importa a religião ou escolaridade. Toda mulher pode sofrer violência, uma vez que, no Brasil (e em outros países do mundo), o processo social, histórico e cultural naturalizou definições das identidades do masculino e do feminino que, carregadas de desigualdades, contribuem para que as mulheres estejam mais expostas a certos tipos de violência, como a doméstica e a sexual. Com a Lei Maria da Penha cada vez mais conhecida pela população brasileira (99% declaram conhecer a Lei, ao menos de ouvir falar; Pesquisa Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (DataSenado, 2013), essa mensagem tem sido cada vez mais dirigida não só às mulheres que sofrem agressões físicas e psicológicas, mas a toda a sociedade. A proposta é mostrar definitivamente que esta violência não é um assunto da esfera privada, mas sim uma violação de direitos humanos que demanda respostas do Poder Público e um pacto de não tolerância de toda a população. Denunciar, porém, não é fácil quando as agressões partem de uma pessoa com quem a vítima mantém relações íntimas de afeto, cujo rompimento coloca questões emocionais e objetivas, que envolvem a desestruturação do cotidiano e até mesmo o risco de morte para a mulher.
Neste cenário complexo, enfrentado por muito tempo de forma solitária, é fundamental que a mulher que rompe o silêncio seja bem acolhida pela sua rede pessoal e pelos serviços de atendimento. Na prática, entretanto, a falta de conhecimento sobre as especificidades deste tipo de violência faz com que a mulher, muitas vezes, acabe sendo julgada por não colocar um ponto final naquela situação.
A própria dinâmica da violência doméstica, que costuma se repetir e se tornar cada vez mais grave e frequente, pode minar a capacidade de reação da mulher. A isso se associam ainda outros fatores, como a falta de informação e conhecimento sobre seus direitos e sobre a rede de atendimento, sentimentos de medo, culpa e vergonha, a dependência econômica do agressor para a criação dos filhos e a falta de acesso e/ou confiança nos serviços de atendimento a mulheres em situação de violência.
Viver sem violência é um direito. A mulher que se encontra nessa situação precisa saber que não está sozinha e que, como se trata de um problema social, existem leis e políticas públicas para protegê-la.
Procurar informações e buscar apoio são os primeiros passos para sair da situação de violência. Romper com a violência é uma decisão difícil, mas é importante pedir ajuda – e quanto antes melhor, uma vez que a tendência dos episódios de agressão é de agravamento.
Ana Carolina Fernandes Coelho

Continue navegando