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ANTROPOLOGIA CULTURAL 1 ANTROPOLOGIA CULTURAL Graduação ANTROPOLOGIA CULTURAL 37 U N ID A D E 2 ANTROPOLOGIA CULTURAL: CONCEITOS, MÉTODOS, TEORIAS E ESCOLAS Caro(a) aluno(a), É um prazer estar novamente com você e continuar contribuindo para o desenvolvimento da sua aprendizagem. Nesta segunda unidade, daremos continuidade aos nossos estudos, apresentando os primeiros esforços teóricos dispendidos pela Antropologia na passagem do século XIX para o século XX, no sentido de explicar o problema da diversidade cultural. Em seguida, buscaremos mostrar como os conceitos de história, evolução e progresso vieram a constituir a base que inicialmente sustentou esta explicação, identificando as limitações destes conceitos para a compreensão da dinâmica cultural no mundo contemporâneo. OBJETIVOS DA UNIDADE: conhecer o contexto histórico que possibilitou a legitimação da Antropologia enquanto campo de conhecimento; identificar as formas de sistematização do conhecimento antropológico através de esquemas conceituais explicativos; problematizar os conceitos de história, evolução e progresso na abordagem da diversidade cultural; compreender o conceito de etnocentrismo e os problemas colocados através de sua prática no estudo da dinâmica cultural. PLANO DA UNIDADE: • O campo antropológico e a dinâmica cultural. • A Escola Evolucionista do Século XIX: contexto histórico de formação. • O Evolucionismo Social e a abordagem da diversidade cultural: História, Evolução e Progresso. • As críticas antropológicas ao Evolucionismo Social. • A Escola Cultural Americana (Difusionismo) e o Particularismo Histórico. • O etnocentrismo e os problemas colocados através de sua prática. Seja bem-vindo à segunda unidade de estudos! Continuamos apostando em seu potencial de aprendizagem. Bons estudos! UNIDADE 2 - ANTROPOLOGIA CULTURAL: CONCEITOS, MÉTODOS, TEORIAS E ESCOLAS 38 O CAMPO ANTROPOLÓGICO E A DINÂMICA CULTURAL Como vimos na unidade anterior, o avanço do Ocidente em direção aos outros povos do mundo contribuiu para o acirramento do contato com a diferença, trazendo conseqüências profundas para a compreensão da dinâmica cultural no cenário contemporâneo. Neste sentido, não nos parece demais relembrar que, se por um lado, a percepção da variabilidade cultural já havia se firmado como um dado incontestável na história da humanidade; por outro lado, na passagem do século XIX para o século XX esta constatação não só se potencializa, como passa a constituir uma temática que cada vez mais ganha força difundindo-se por todo campo intelectual moderno. É no bojo deste movimento que a Antropologia se legitima como um campo de saber que se forjou como um subproduto do processo de expansão colonial europeu e que será, por conseguinte, profundamente marcada pelo espectro de sua influência, tanto no que diz respeito à delimitação dos seus postulados básicos, como também, no que tange aos primeiros esforços de sistematização conceitual dos esquemas interpretativos que adotará para explicar a diferença cultural. As marcas desta influência podem ser claramente atestadas quando buscamos identificar os fatores históricos que tornaram possível o projeto antropológico, que então se esboçou neste período. Partindo do postulado básico da unidade biológica da espécie humana, este projeto ganha visibilidade através da consolidação do expansionismo colonial europeu e do conseqüente questionamento dele, advindo a respeito dos modos de vida adotados pelos diferentes povos e grupos humanos que, ao se expandirem pelas mais diversas partes do mundo, acabaram por ocupar a quase totalidade dos continentes habitáveis do planeta. Em decorrência deste processo, resultaram duas questões correlatas que constituíram o cerne da discussão antropológica no momento mesmo de sua formação como campo de conhecimento. A primeira delas refere-se à constatação de que o expansionismo colonial europeu, de fato, propiciou ao Ocidente o confronto direto com o problema da diversidade cultural. Através do contato com as ditas sociedades “exóticas” – indígenas, africanas, americanas, asiáticas – ele tornou possível a percepção imediata e visível da diferença como um dado, que inegavelmente, constituiu as formas humanas de organizar a realidade e de conceber o mundo e a vida a despeito das fronteiras territoriais e geográficas consideradas. Em segundo lugar e, correlativamente, este mesmo processo desencadeou um movimento de auto-reflexão a respeito da própria identidade e superioridade do Ocidente em relação aos outros povos do mundo. Ou seja, por seu intermédio, abriu-se um espaço para a indagação a respeito da universalidade da perspectiva européia na compreensão dos povos não pertencentes às áreas da civilização ocidental. Este movimento colocou em cena um novo desafio que pode ser sintetizado à luz das seguintes questões: Os povos que acabaram de ser “descobertos” pertencem de fato a Humanidade? Se de fato pertencem, como explicar que possam viver de formas tão diversas? Como entender que possam conceber a realidade e se posicionar diante do mundo de modos tão diferentes? ANTROPOLOGIA CULTURAL 39 Indo um pouco mais além, constitui a diversidade de comportamentos, crenças e atitudes humanas, um dado passível de explicação quando se considera a mesma origem biológica? Se estes povos de fato pertencem a espécie homo sapiens por que não compartilham um único e mesmo modo de vida? Enfim, qual é o mecanismo diferenciador que torna cada um destes grupos humanos - índios, negros, asiáticos – povos tão diversos e estranhos ao europeu? Será a raça, as diferenças genéticas ou as condições ambientais sob as quais vivem? Em suma, se de fato existe este mecanismo diferenciador, como defini-lo e, mais ainda, como explicar a sua atuação sobre as atitudes e o comportamento humano? Será em torno destas questões que a Antropologia buscará sistematizar, do ponto de vista teórico, uma explicação para o problema da diversidade cultural. Este esforço de sistematização teórica se concretizará através do desenvolvimento da chamada Escola Evolucionista, cuja perspectiva analítica, na abordagem da cultura, analisaremos a partir de agora, no próximo tópico da nossa segunda unidade de estudos. Para que sua aprendizagem possa se desenvolver de forma clara e consistente, procure não desviar o foco da sua atenção e vamos em frente em nossas discussões. A ESCOLA EVOLUCIONISTA DO SÉCULO XIX: CONTEXTO HISTÓRICO DE FORMAÇÃO O chamado Evolucionismo Social representa a primeira teoria propriamente antropológica elaborada com o objetivo de explicar o problema da diversidade cultural. Nascida no final do século XIX e início do século XX, sob a égide dos efeitos gerados pelo processo de expansão colonial europeu, esta teoria, embora acabando por negar as especificidades das culturas não ocidentais, como veremos um pouco mais adiante, deve ser compreendida dentro do contexto histórico que possibilitou a sua afirmação. Isto implica em considerar os limites e os obstáculos intelectuais do período, que levaram a Antropologia a abordar a problemática da cultura a partir de uma dupla perspectiva. De um lado, como uma indagação que se insere na história das relações internacionais de poder, encabeçada pela sociedade européia, e, de outro lado; como uma preocupação que se inscreve na história da produção científica do século XIX, em associação com as áreas de conhecimento ligadas ao âmbito das chamadas Ciências Naturais, e, mais especificamente, a Biologia. Para que possamos compreender o diálogo estabelecido entre estas duas perspectivas, é necessário que recapitulemos o fato de que o século XIX marca, do ponto devista histórico, um momento em que se intensifica o poderio das nações européias em relação aos demais povos do mundo, então incorporados à sua esfera de influência e dominação. UNIDADE 2 - ANTROPOLOGIA CULTURAL: CONCEITOS, MÉTODOS, TEORIAS E ESCOLAS 40 Diante da expansão crescente dos novos mercados internacionais, as nações européias se vêem compelidas a terem que deslocar o foco do seu olhar em uma outra direção. Da atitude inicial, marcada pelo estranhamento e perplexidade, emerge uma necessidade objetiva e urgente de entendimento dos chamados povos “exóticos”, que possibilitasse não apenas a inclusão, mas fundamentalmente, a transformação destes povos em consumidores efetivos dos novos mercados capitalistas em crescimento, o que implicava, de algum modo, na incorporação de valores, crenças e atitudes então dominantes na cultura ocidental. Desta forma, a preocupação com a problemática da cultura surge marcada por uma necessidade histórica imposta pela expansão colonial, ao mesmo tempo em que, é, progressivamente, sustentada pelas novas demandas políticas e econômicas advindas do crescimento cada vez mais acelerado das sociedades ocidentais industrializadas. Alia-se a este cenário a crença na unidade biológica da espécie humana, então legitimada pela teoria darwinista oriunda da Biologia e amplamente divulgada com a publicação em 1859, do livro “A Origem das Espécies”, de autoria de Charles Darwin. Desta vinculação deriva o esforço de se estabelecer, do ponto de vista intelectual, uma analogia entre o mundo natural e o mundo social; entre o mundo da natureza e o mundo da cultura. Neste sentido, advoga-se uma posição que considera a Humanidade como uma espécie animal que se originou de outras formas de vida, num processo de permanente evolução que a levou ao atual estágio de complexidade, como claramente nos coloca Tylor: “O mundo como um todo está francamente preparado para aceitar o estudo geral da vida humana como um ramo da ciência natural (...) A história da humanidade é parte e parcela da história da natureza, nossos pensamentos, desejos e ações estão de acordo com leis equivalentes àquelas que governam os ventos e as ondas, a combinação dos ácidos e das bases e o crescimento das plantas e animais”. (Tylor, 1871:2). Partindo, portanto, da crença em uma suposta igualdade da natureza humana atestada pelo monogenismo da espécie, a cultura passa a ser considerada como um fenômeno natural passível de um estudo objetivo, já que possui causas e regularidades uniformes. Assim, do mesmo modo que acontece com o estudo dos demais fenômenos da natureza, a análise objetiva da cultura possibilitaria a formulação de leis gerais capazes de explicar o seu processo de desenvolvimento e evolução. Novamente aqui, Tylor é claro e preciso em suas colocações: monogenismo - Subst. masculino. Antropologia. Doutrina segundo a qual todas as raças humanas derivam de um tipo primitivo único. ANTROPOLOGIA CULTURAL 41 “Por um lado, a uniformidade que tão largamente permeia entre as civilizações pode ser atribuída, em grande parte, a uma uniformidade de ação de causas uniformes, enquanto, por outro lado, seus vários graus podem ser considerados como estágios de desenvolvimento ou evolução.” (Idem, ibidem, p.1). Cumpre destacar que, neste período seminal de formação da Antropologia como campo de saber, a possibilidade de se desenvolver um estudo neutro e objetivo das formas culturais, à semelhança do que ocorre na análise dos fenômenos naturais, é assegurada pela distância geográfica que separa a sociedade do próprio antropólogo daquelas que constituem seu campo de observação. Trata-se de sociedades autocontidas, que tiveram pouco contato com outros grupos sociais, que apresentam um baixo grau de desenvolvimento tecnológico e que são marcadas pela menor divisão e especialização do trabalho e das funções sociais, quando comparadas com a sociedade ocidental. Além de todas estas características, são sociedades que estão situadas em um espaço geográfico distante daquele em que vive o próprio antropólogo. Desta forma, o afastamento entre sujeito e objeto, necessário ao alcance da objetividade e da neutralidade, tal como exigido pelo modelo de ciência vigente à época – as Ciências Naturais – é garantido ao antropólogo por intermédio desta distância geográfica que, supostamente, asseguraria-lhe condições para a observação e análise semelhantes àquelas que predominam em uma situação de estudo realizada dentro de um laboratório. Assim, da mesma forma que o biólogo pode observar externamente os fenômenos naturais e elaborar as leis gerais que regem o seu funcionamento, o antropólogo poderia observar as formas culturais e a partir das regularidades encontráveis, formular uma explicação geral para as suas variações. É no veio deste conjunto de fatores que o Evolucionismo Social buscará formalizar um modelo explicativo para o problema da diversidade cultural, tomando como base de sua fundamentação teórica quatro idéias ou postulados básicos. Vejamos então, no tópico a seguir, quais são estes postulados e no que consistem exatamente. O EVOLUCIONISMO SOCIAL E A ABORDAGEM DA DIVERSIDADE CULTURAL: HISTÓRIA, EVOLUÇÃO E PROGRESSO Na tentativa de elaborar um modelo explicativo para a diferença, os teóricos evolucionistas – na Inglaterra, James Frazer e Edward Tylor e, nos Estados Unidos, Lewis Morgan – apóiam-se, primeiramente, na idéia básica de que a humanidade, assim como, as demais espécies vivas, se originaram de uma estrutura ou forma de vida simples para uma estrutura ou forma de vida mais complexa, num processo de evolução permanente e contínuo. UNIDADE 2 - ANTROPOLOGIA CULTURAL: CONCEITOS, MÉTODOS, TEORIAS E ESCOLAS 42 Como estamos sistematicamente falando em evolução, é importante que você entenda claramente o que esta palavra significa. No seu sentido amplo, evolução equivale à transformação, desenvolvimento, progresso, movimento regular. Com esta palavra, procuramos designar a modificação progressiva ou a transformação gradual de alguma coisa que se encontra em estado latente e oculto, em algo que se manifesta e se realiza concretamente em sua completude. Ou seja, evolução é o desenvolvimento inevitável de uma determinada unidade que se transforma em uma segunda forma mais complexa revelando, na totalidade, sua potencialidade primeira. Trata-se, portanto, de um processo progressivo de desenvolvimento, no qual uma forma simples se transforma em uma segunda, que se transforma numa terceira num movimento sucessivo e cada vez mais complexo. Desta idéia básica, fortemente influenciada pelas teorias da evolução oriundas do campo da Biologia – teoria darwinista sobre a origem das espécies – decorre um segundo postulado relativo ao modo de se conceber e ordenar a variabilidade cultural, que levará os evolucionistas a adotar uma perspectiva analítica que hierarquiza e classifica a diferença. Ou seja, se a humanidade é única enquanto espécie viva, a enorme diversidade cultural encontrada nas formas de comportamento adotadas pelos mais variados grupos humanos só poderia ser decorrente de uma diferença de graus ou estágios evolutivos. De um estágio original, no qual pôde se diferenciar dos demais seres vivos, a humanidade passaria por etapas sucessivas de evolução que a conduziria a um mesmo destino, a um mesmo caminho. Legitima-se assim, a crença postulada por Tylor quanto à existência de uma “unidade psíquica da humanidade”, que explicaria o fato de que todos os grupos humanos nascem com o mesmo potencial e capacidade para se desenvolverem. Entretanto, alguns grupos avançaram mais neste processo alcançando um maior grau de evolução e complexidade, ao passoque outros, não apresentaram o mesmo ritmo e permaneceram, portanto, no fluxo deste processo, em um estágio mais atrasado e rudimentar. Esta hierarquização da diferença se expressa no pensamento evolucionista através de um terceiro postulado, que preconiza a construção de uma escala evolutiva na qual todas as sociedades humanas, sejam elas existentes ou mesmo extintas, são enquadradas e classificadas conforme os diferentes estágios a que se encontrem quando comparadas com a sociedade ocidental. Situada em um eixo temporal, esta escala pressupõe a existência de uma linha evolutiva ascendente e unilinear a ser percorrida por todas as sociedades humanas em direção a um único fim, qual seja, atingir o mesmo grau de progresso e evolução alcançado pelas sociedades européias. Nesta escala, a explicação da variabilidade cultural encontra-se, de acordo com o que propõe Lewis Morgan, circunscrita em torno de uma tipologia básica constituída por três estágios evolutivos – selvageria, barbárie e civilização – a serem percorridos, inevitavelmente, por todas as sociedades humanas. A partir destes diferentes estágios, as sociedades humanas eram hierarquizadas, tendo como parâmetro a cultura européia, então classificada, IMPORTANTE ANTROPOLOGIA CULTURAL 43 no estágio de civilização e todas as demais, como etapas inferiores de um único e mesmo processo já percorrido pela primeira. Assim, todos os povos e grupos humanos diferentes da sociedade européia – indígenas, africanos, asiáticos – ocupariam as etapas anteriores do mesmo processo de evolução sendo, portanto, classificados como representantes dos estágios de selvageria e barbárie a serem ultrapassados em nome da civilização e do progresso. Dentro deste modelo analítico, define-se, a um só tempo, duas questões fundamentais para os evolucionistas. Por um lado, confirma-se à supremacia da sociedade ocidental face aos demais povos do mundo, já que a ela caberia a função básica de conduzi-los rumo ao progresso e a evolução. É importante que você observe que a idéia de civilização perde assim, o significado de processo e passa a constituir, em contrapartida, um estado a ser alcançado por todas as sociedades humanas sob a tutela e a batuta da cultura européia, o que em certo sentido, justifica o controle e a dominação colonial e reforça a missão civilizatória atribuída e a ser desempenhada pelo homem branco face aos demais povos do mundo. Dados historiográficos sobre a escravização negra, a pacificação e catequização indígena, dentre outros, nos mostram com riqueza de detalhes esta subjugação de uma cultura em nome de uma outra tida como superior. Por outro lado, dentro deste modelo, a lógica do trabalho do antropólogo define-se pelo esforço de transformar todas as sociedades recém- descobertas em um retrato do que foi um dia a própria sociedade ocidental. Para que este retrato pudesse ganhar forma e contorno, os evolucionistas lançam mão de um quarto e último postulado. Este postulado refere-se à comparação das instituições e costumes adotados pelas diferentes sociedades humanas no curso da história. Novamente aqui, a idéia de uma humanidade única levará os evolucionistas à afirmação de que as instituições e os costumes humanos têm uma origem comum, o que permite compará-los entre si. Na visão destes teóricos a comparação pode ser realizada na medida em que, a despeito da enorme diversidade de formas culturais encontradas, alguns costumes puderam “sobreviver” à passagem do tempo, o que possibilitaria reconhecer no presente, vestígios do passado. UNIDADE 2 - ANTROPOLOGIA CULTURAL: CONCEITOS, MÉTODOS, TEORIAS E ESCOLAS 44 O entendimento da dinâmica cultural no presente implicava assim, necessariamente, em uma espécie de visita ao passado da própria sociedade ocidental, fonte primeira de toda a variação. Assim, as nações européias e também, a sociedade norte-americana do século XIX, eram consideradas como contemporâneas dos grupos indígenas e dos aborígines australianos, classificados no estágio de selvageria, ao passo que as tribos africanas estariam, por exemplo, no estágio de barbárie. Com isto, a idéia de progresso ganha força e, associada à noção de tempo, torna-se uma questão primordial para a explicação da diferença, já que é em sua direção e sentido que a história da humanidade se desenvolve. Desta forma, os evolucionistas, tomando a sociedade ocidental como foco da comparação, buscarão identificar no desenvolvimento dos diferentes povos e grupos humanos, traços culturais que “sobreviveram” no tempo e que fossem capazes de demonstrar a ligação entre o passado e o presente em um mesmo e único processo evolutivo. Neste esforço comparativo, a definição de cultura estabelecida por Tylor é novamente reforçada e corroborada. Vejamos então de que modo esta situação pôde se configurar, resgatando mais uma vez, as próprias palavras do autor: “Cultura ou civilização tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade” (Tylor,1871:1). Se observarmos atentamente esta definição, é possível detectarmos nela dois aspectos fundamentais para a compreensão do pensamento evolucionista no que tange a comparação das instituições e costumes humanos. Em primeiro lugar, a noção de cultura como um “todo complexo” sugere a percepção de que a mesma, tal qual uma colcha de retalhos, deriva de uma série de itens isolados, unitários e identificáveis, que quando juntos lhe confere um sentido de unidade e homogeneidade. Em segundo lugar, e, correlativamente, esta suposta homogeneidade parece pressupor, em contrapartida, a existência dentro da cultura de uma espécie de lei ou princípio geral que governa as condutas humanas independentemente do tempo ou espaço considerado. Nesta lógica de raciocínio, os grupos humanos parecem ter sido confrontados ao longo de suas existências no curso da história, com os mesmos tipos de dilemas e problemas para os quais forneceram um conjunto de soluções comuns. Identificando uma série de traços culturais encontrados nas diferentes sociedades humanas – tais como, “religião”, “propriedade”, “relações de parentesco”, “governo”, “meios de subsistência”, entre outros – os evolucionistas explicam a questão da mudança como decorrente do aperfeiçoamento do “espírito científico” que possibilitou o desenvolvimento das invenções e descobertas. Para Lewis Morgan, por exemplo, a ANTROPOLOGIA CULTURAL 45 “acumulação do saber” e o desenvolvimento das “faculdades mentais e morais dos homens” constituem o critério base que distingue as mudanças culturais e demarca os diferentes estágios evolutivos das sociedades humanas rumo ao progresso e a civilização. Como consideram que o desenvolvimento do “espírito científico” esteve presente de forma mais intensa e efetiva na sociedade ocidental, os evolucionistas dispensam o contato direto com os demais povos – então intitulados como “primitivos”, “selvagens”, “bárbaros” – e baseiam seus estudos comparativos nos relatos de viagem dos cronistas coloniais, a partir dos quais estabelecem a distância, especulações, conjeturas e deduções que possam explicar a diversidade cultural tomando, sempre como modelo a sua própria sociedade. A adoção deste tipo de procedimento fez com que os teóricos evolucionistas fossem considerados, pela literatura especializada, como “antropólogos de gabinete” já que eles não se deslocavam de seus ambientes de trabalho para as áreas e/ou lugares onde viviam os povos e os grupos humanos a que pretendiam estudar. A compreensão do “outro” se processava a distância e dentro de uma lógicaque em muito se assemelha com aquela que comumente adotamos quando tentamos entender, por exemplo, o comportamento de uma criança que desconhecemos. Sem levar em conta suas particularidades, apoiamo-nos exclusivamente no fato de que, por também já termos sido criança um dia, estaríamos aptos a deduzir suas razões, entender suas motivações e explicar suas atitudes. É importante que você observe que, subjacente a esta postura, transparece, como já mencionamos anteriormente, a idéia da cultura como um fenômeno natural que possui causas e regularidades uniformes. Ou seja, sendo a espécie humana única em termos da sua constituição biológica, a análise das formas culturais não implicava em uma relação direta entre o pesquisador e o grupo estudado. Para os evolucionistas, fontes e relatos de segunda mão eram o suficiente para fornecer a base de dados necessária ao desenvolvimento de suas análises e para a elaboração de conclusões, visando explicar a diferença através da reconstrução do passado da sua própria sociedade. Assim, o “selvagem” podia ser conhecido a distância, pois afinal, representava, apenas, a variação de uma mesma espécie viva que, em função de uma diferença de momentos históricos específicos, se encontrava em uma etapa anterior de um único processo evolutivo. Em outras palavras, era possível ao europeu estudar comparativamente a diversidade de costumes e simultaneamente, compreender o “selvagem” mesmo sem conhecê-lo diretamente, posto que ele representava um retrato do seu próprio antepassado. As instituições e costumes adotados pelo “selvagem” ilustravam um estágio inferior do processo evolutivo, já ultrapassado pelo europeu e que o conduziu em direção ao progresso e a civilização. Desta forma, embora admitam a variabilidade cultural, os evolucionistas acabam por sonegá-la, posto que tomam como modelo da comparação a sociedade européia, então considerada como a encarnação máxima do UNIDADE 2 - ANTROPOLOGIA CULTURAL: CONCEITOS, MÉTODOS, TEORIAS E ESCOLAS 46 progresso e representante, por excelência, do estágio final de civilização. Extraídos dos seus contextos originais, a diferença entre os costumes adotados pelas diversas sociedades humanas era assim: universalizada à luz da cultura européia e reduzida a uma questão de momentos históricos específicos. A cultura, nesta perspectiva, passa a ser considerada como um fenômeno global que se desenvolveu por intermédio de um longo processo cumulativo que vem do passado e se inscreve, contemporaneamente, no presente, o que explicaria como, no fluxo da sua evolução, um fato causa e gera o outro subseqüente. Comungando com esta perspectiva globalizadora da cultura alia-se uma visão totalizadora da história, onde o tempo passa a constituir o medidor, o motor básico que impulsiona as sociedades humanas na marcha do progresso e do desenvolvimento. Trata-se de uma visão definida como totalizadora, pois, pressupõe uma história com “H” maiúsculo e que remete, portanto, para a “História da Humanidade”. Uma história que pode ser contada a partir do escalonamento das sociedades humanas em um eixo situado no tempo. Um tempo linear cuja passagem pressupõe um encadeamento lógico entre as instituições e os costumes humanos capaz de explicar suas origens, causas e conseqüências, seu processo de desenvolvimento, e evidentemente, o seu fim. Tempo e historia formam assim, para os evolucionistas uma equação única, capaz de explicar e sintetizar a diferença. Em suma, trata-se de uma história que enquadra todas as sociedades humanas em um eixo temporal e evolutivo unilinear a ser percorrido, inevitavelmente, por todas elas em direção a um mesmo caminho. Este caminho impõe igualmente para todas as sociedades humanas um único e mesmo desafio, qual seja, ultrapassar os estágios de primitivismo definidos pelas etapas de selvageria e barbárie, em busca de um estágio de evolução superior pelo alcance inevitável da civilização, do progresso e do desenvolvimento. Este escalonamento da história das sociedades humanas em um eixo temporal unilinear que conduziria, todas elas invariavelmente, a um fim determinado é também denominado em Antropologia como Concepção Teleológica da História. No conjunto, estas duas perspectivas – da cultura como um fenômeno global e da história como uma totalidade contínua – impediram que os teóricos evolucionistas desenvolvessem uma visão teórica que pudesse contemplar o reconhecimento pleno da diferença. Ou seja, a pressuposição de que a humanidade estaria fadada a um processo evolutivo unilinear, liderado pela cultura européia, obscureceu a possibilidade dos mesmos enxergarem as particularidades e especificidades das culturas situadas fora das áreas de influência da civilização ocidental. É preciso observar, no entanto, que esta afirmação não significa desqualificar em termos absolutos os esforços teóricos dispensados pelos evolucionistas. Pelo contrário, é inegável o mérito do empreendimento analítico construído por estes estudiosos, no sentido de enfrentar o desafio de darem o primeiro passo na busca pela sistematização de um modelo IMPORTANTE Teleológica: palavra de origem latina “telos” que significa fim. ANTROPOLOGIA CULTURAL 47 explicativo para o problema da diferença cultural e, com isto, abrirem caminho a novas possibilidades para se pensar o conceito de homem e suas relações com o mundo social. Neste sentido, há que se reconhecer, por exemplo, que a vinculação do pensamento evolucionista, com as teorias oriundas da Biologia, de fato, contribuiu para retirar o homem de uma ordem religiosa e transcendente que o explicava como produto da criação divina e inseri-lo, em contrapartida, em uma ordem natural que o percebe como resultante de suas próprias experiências. Uma ordem que o considera como uma espécie viva, que se desenvolve no plano de uma existência concreta e marcada pelas determinações biológicas e pelos condicionamentos fisiológicos do seu próprio organismo. Cabe ressaltar, entretanto, que, se por um lado, este pensar teórico permitiu ao pensamento evolucionista atestar a existência de uma natureza humana, que é diversa em suas manifestações culturais concretas; por outro lado, os postulados básicos utilizados para legitimar este pensar acabaram por negar esta diversidade, em nome de uma suposta homogeneidade biológica que unifica a humanidade como um todo. Ou seja, embora reconheçam que os povos e grupos humanos são diferentes, entendem que, sendo todos parte de uma única e mesma espécie viva, a diferença é apenas um dado aparente e superficial que mascara e esconde esta unidade base. Através de um duplo movimento, atesta-se, primeiramente, a diversidade das formas culturais encontráveis e, em seguida, afirma-se a igualdade biológica entre os homens, o que acaba por homogeneizar a diferença, posto que reduzida a momentos históricos específicos. Nesta lógica, todos os povos e grupos humanos “estranhos” à cultura européia são vistos como iguais, já que parte de uma mesma espécie biológica, mas ao mesmo tempo, diferentes, pois, se encontram historicamente em um estágio “primitivo” e “atrasado” devendo ser conduzidos ao progresso e a evolução. Uma vez “pacificados” e “civilizados” pela mão do europeu, recuperam novamente a igualdade inicial. Em outras palavras, ao escalonar todas as sociedades em um eixo evolutivo único, os evolucionistas acabam por sonegar a diferença, na medida em que não levam em conta que os povos e grupos humanos possam ter vivenciado experiências diversas e, a partir delas, terem feito escolhas e opções também diferenciadas, no que diz respeito os modos de se conceber o mundo e de organizar a realidade e a vida social. Esta limitação analíticado pensamento evolucionista será alvo de uma série de críticas, que puderam se legitimar ao longo do século XX, conduzindo a Antropologia a um novo movimento teórico, cujos postulados conceituais irão abrir uma nova possibilidade para se repensar a problemática da diversidade cultural. No próximo tópico desta nossa segunda unidade de estudos, abordaremos o conteúdo analítico destas críticas, buscando mapear os desdobramentos daí decorrentes para a compreensão da dinâmica cultural. Procure não se dispersar e, principalmente, não deixe nenhuma dúvida pendente. Interaja conosco através do ambiente virtual de aprendizagem (AVA) e vamos em frente em nossos estudos. UNIDADE 2 - ANTROPOLOGIA CULTURAL: CONCEITOS, MÉTODOS, TEORIAS E ESCOLAS 48 AS CRÍTICAS ANTROPOLÓGICAS AO EVOLUCIONISMO SOCIAL A ESCOLA CULTURAL AMERICANA (DIFUSIONISMO) E O PARTICULARISMO HISTÓRICO As primeiras críticas dirigidas ao modelo analítico proposto pelos teóricos evolucionistas, na explicação do problema da variabilidade cultural, derivam dos trabalhos desenvolvidos pelo antropólogo alemão Franz Boas (1858-1949). A participação em uma expedição geográfica a Baffin Land, realizada em 1883-1884, permitiu a Boas desenvolver uma intensa investigação sobre várias áreas do conhecimento – tais como a Lingüística, a Geografia, o Folclore, a Organização Social, dentre outras – que o levou a se radicar posteriormente nos Estados Unidos, influenciando toda uma nova geração de antropólogos. A partir de então, a inovação e a fecundidade de suas idéias fizeram com que seu nome se associasse diretamente à chamada Escola Cultural Americana ou Escola Difusionista. O cerne das críticas dirigidas aos postulados evolucionistas encontra- se estruturado em um artigo publicado por este antropólogo em 1896, sob o título “As Limitações do Método Comparativo em Antropologia”. Nesse trabalho, Boas investe contra as chamadas “especulações de gabinete” desenvolvidas pelos evolucionistas com base nos relatos de viagem fornecidos pelos cronistas coloniais e redefine o papel da Antropologia, enquanto campo de saber. Nessa redefinição, Boas atribui à Antropologia o compromisso com a realização de duas tarefas básicas e correlatas. Em primeiro lugar, preocupado com a importância de se reconhecer o caráter intensamente diverso das culturas humanas, Boas advoga uma posição na qual caberia à Antropologia a realização de estudos que viabilizassem a reconstrução da história dos diferentes povos ou regiões do mundo de uma forma particularizada. Cumprida esta exigência, a Antropologia deveria, em segundo lugar, realizar a análise comparativa da vida social destes diferentes povos, cujo desenvolvimento segue as mesmas leis e princípios gerais. Para que esta dupla tarefa pudesse se realizar em sua plenitude, Boas argumenta ainda que a Antropologia deveria verificar, inicialmente, a possibilidade efetiva de ser comprovada a própria viabilidade da análise comparativa. Ou seja, contra as “conjeturas e as especulações de gabinete” dos evolucionistas, a Antropologia deveria buscar responder a uma pergunta primeira que pode ser sintetizada da seguinte forma: os dados a serem utilizados na análise comparativa podem efetivamente ser comprovados? Visando responder a esta pergunta básica, Boas desenvolve uma proposta analítica que modificará, substancialmente, as noções de cultura e história, tal como concebidas pelos evolucionistas. Esta modificação acarretará o estabelecimento de novos procedimentos para o uso do método comparativo em Antropologia, inaugurando um novo movimento intelectual no seio desta disciplina, que renova suas bases conceituais e ilustra a envergadura analítica dos trabalhos desenvolvidos por Boas no estudo da diversidade cultural. Vejamos, então, a seguir, como este movimento pôde se estruturar, buscando identificar as conseqüências daí advindas para a compreensão da dinâmica cultural. ANTROPOLOGIA CULTURAL 49 O ponto de partida dado por Boas para o desencadeamento deste movimento ancora-se, fundamentalmente, na rejeição ao modo pelo qual os evolucionistas concebiam e ordenavam o problema da variabilidade cultural. Negando a perspectiva que hierarquiza e enquadra todas as sociedades humanas, em um eixo evolutivo unilinear, Boas propõe, em contrapartida, uma visão para o entendimento da diversidade cultural, em torno da qual gravitam duas idéias básicas. A primeira destas idéias refere-se ao fato de que, para Boas, as culturas humanas constituem fenômenos particulares e únicos. Este tipo de abordagem ficou conhecido na Antropologia pela denominação de particularismo histórico, em função de postular, como o próprio nome sugere, a concepção de que as culturas humanas são resultados específicos de histórias particulares. Em consonância com este postulado, emerge uma segunda idéia, que diz respeito ao modo pelo qual as culturas humanas puderam, historicamente, se difundir e se desenvolver. Para Boas, ao longo do processo histórico, cada povo, cada grupo ou sociedade humana respondeu de forma diferenciada e particular aos problemas e aos dilemas a que foram compelidas a enfrenta, ao trilharem o seu próprio caminho. Neste ponto, diferentemente dos teóricos evolucionistas, que, se apoiando no pressuposto da igualdade biológica da espécie humana, deixavam transparecer em seu modelo analítico a crença de que a mente humana pudesse reagir de modo equivalente, quando exposta a condições ambientais e materiais similares, o que explicaria a ênfase nas semelhanças culturais; a proposta elaborada por Boas sinaliza para uma outra direção. Nela, a ênfase incide sobre a pluralidade das culturas humanas, o que o levou a ressaltar processos de mudança, difusão, troca e empréstimo cultural como aspectos capazes de interferir e influenciar o desenvolvimento de cada formação cultural específica. Dentro destes parâmetros, as culturas são constituídas de acordo com o que propõe Boas, por traços ou um complexo de traços resultantes de condições ambientais, fatores psicológicos, lingüísticos e conexões históricas, que as levaram a assumir formas extremamente diferenciadas e particulares. Em outras palavras, concebidas como fenômenos plurais derivados de processos históricos particulares, as culturas humanas, para Boas, estão inseridas em um fluxo permanente de interação que as coloca em relação. Elas são resultantes das relações que estabeleceram entre si e do modo pelo qual puderam responder e se relacionar com um gama de fatores – condições ambientais e psicológicas - que contribuíram para que, no curso do desenvolvimento histórico, adquirissem formas e traços culturais particulares e únicos. É importante que você observe que, destas considerações, derivam concepções distintas a respeito do desenvolvimento das culturas humanas, que conduziram a modos também diversos de se comparar às relações que entre elas se estabelecem no esforço de compreender a problemática da diferença. UNIDADE 2 - ANTROPOLOGIA CULTURAL: CONCEITOS, MÉTODOS, TEORIAS E ESCOLAS 50 Motivado por este esforço, o centro da abordagem elaborada por Boas, ancora-se na consideração de que o uso do método comparativo em Antropologia deveria contemplar, não a comparação de instituições e costumes isolados, e sim a comparação dos resultados obtidos, em decorrência do desenvolvimento de estudos históricos a respeito das culturas simples e dos inúmeros fatores que sobre elas atuaram e que as levaram a assumir formas específicas e particulares, ao seguirem o seu próprio caminho. Assim, ao rejeitar os postulados evolucionistas, na explicação da variabilidade cultural, o que a proposta de Boas busca defender é a primazia de investigações históricas como recurso metodológico base, capaz de fornecer não apenas, uma explicaçãopara a origem da diversidade dos traços culturais, como também, uma interpretação plausível sobre o modo pelo qual estes traços puderam contribuir para o desenvolvimento de um conjunto de formações culturais extremamente diferenciado e plural. Em outras palavras, embora os evolucionistas tenham sido os primeiros teóricos a vislumbrarem as potencialidades e a riqueza do método comparativo no estudo da diversidade cultural, Boas sugere a incorporação de novos procedimentos para a sua aplicação no trabalho antropológico. Desta forma, em substituição ao uso do método comparativo, que em sua acepção pura e simples, extraí as instituições e os costumes adotados pela diferentes sociedades humanas, de seus contextos originais, para compará-los em seguida, com uma outra formação cultural vista em sua totalidade, tal como faziam os evolucionistas, Boas lança os primeiros germes, as primeiras sementes do que, posteriormente, irá se consolidar no que se denomina, em Antropologia, como uma comparação contextualizada. Ou seja, uma comparação que busca entender como as relações existentes entre as instituições e os costumes adotados pelos diferentes povos ou grupos humanos ganham forma e sentido, levando em conta as dinâmicas próprias, os diferentes fatores – ambientais, lingüísticos e psicológicos – que sobre eles incidem e os envolvem, quando inseridos no contexto específico de cada formação cultural particular. Para facilitar a sua compreensão sobre o modo pelo qual estas duas escolas teóricas – evolucionismo e culturalismo (difusionismo) – concebem a questão da comparação dos costumes, sugerimos a você uma dica importante. Procure pensar, inicialmente, a respeito das formas de tratamento e cumprimento, que nós brasileiros adotamos para conduzirmos os nossos relacionamentos interpessoais, nas diferentes situações e espaços sociais dos quais participamos em nossa sociedade. Feito isto, procure, em seguida, pensar sobre estas formas quando comparadas com as que são utilizados pelos ingleses, por exemplo. Se observarmos o nosso modo de expressão gestual, de uma forma descontextualizada tal como faziam os evolucionistas, corremos um sério risco de sermos percebidos, aos olhos dos ingleses, como um povo que parece desconhecer as regras da formalidade que definem limites rígidos no trato e na convivência com a privacidade e a intimidade alheias. Afinal, ao nos relacionarmos e cumprimentarmos outras pessoas, nossos gestos, DICA! ANTROPOLOGIA CULTURAL 51 de um modo geral, parecem marcados pela espontaneidade e informalidade. Tocamos o corpo do outro, sorrimos descontraidamente, verbalizamos saudações despojadas e em tom de brincadeira, abraçamos, beijamos a face, com a mesma liberdade com que vamos à casa de um amigo para uma visita, sem que para isto tenhamos que marcar, previamente, um horário. Entretanto, se mudarmos o foco do nosso olhar e observarmos nossas práticas e expressões gestuais de uma forma contextualizada, tal como nos sugere Boas, uma outra percepção parece se descortinar. Inseridas no interior da nossa cultura, essas mesmas práticas e modos de expressão parecem estar associados a um conjunto de elementos e fatores envolvidos com a formação histórica da nossa sociedade. Extraídos deste contexto original, ficamos impedidos de ter sobre estas atitudes uma compreensão mais efetiva da nossa identidade como brasileiros. Em contrapartida, quando contextualizadas, o caráter informal que marca nossas práticas e costumes deixa de ser reduzido e explicado como equivalente a uma suposta ausência e desconhecimento de normas e regras para a conduta apropriada. Elas passam a indicar um jeito muito próprio e específico, através do qual, nós brasileiros, externalizamos nossas percepções e valores a respeito do modo pelo qual pensamos e vivenciamos no convívio com o outro, as relações entre público e privado, entre respeito e autoridade, entre hierarquia e amizade. Como você pode perceber, essas relações, embora possam se fazer presentes em toda e qualquer sociedade humana, não possuem a mesma maneira de expressão, isto é, o modo de expressá-las não são iguais. Desta forma, há que se observar, a partir do nosso exemplo, que, do mesmo modo, a formalidade e rigidez das formas de tratamento adotadas pelos ingleses, se retiradas do seu contexto cultural original, podem conduzir, a nós brasileiros, a uma visão distorcida dos mesmos sob o argumento de se tratar de um povo frio e insensível. Assim, tanto em um caso como no outro, o convite que Boas nos faz e que será, posteriormente, melhor elaborado e estruturado no seio da abordagem antropológica, é para que o nosso olhar seja contextualizado. Que, no esforço de compreender a diferença, realizemos, primeiramente, estudos históricos que possam nos fornecer uma explicação a respeito do significado de cada traço que compõe uma determinada formação cultural; no caso em questão, a sociedade brasileira e a sociedade inglesa. Cumprida esta etapa, podemos então, comparar, não costumes isolados, mas diferentes totalidades culturais. A partir desta proposta analítica, Boas dá início a um processo que permitirá a superação do caráter etnocêntrico, que marca o pensamento evolucionista a favor da adoção de uma prática relativizadora. Ao defender a idéia de que as culturas humanas são diversas e plurais e que devem ser entendidas a partir de seus próprios contextos, duas conseqüências se impõe de imediato para o estudo e a abordagem do problema da diversidade cultural. DICA! UNIDADE 2 - ANTROPOLOGIA CULTURAL: CONCEITOS, MÉTODOS, TEORIAS E ESCOLAS 52 A primeira delas refere-se ao fato de que o reconhecimento da pluralidade das culturas humanas põe por terra a universalidade da perspectiva européia, marcada por uma postura fortemente etnocêntrica, posto que até então, era considerada como o espelho, o modelo através do qual a diferença cultural encontrada nas mais diversas sociedades humanas era comparada e compreendida. Em segundo lugar e correlativamente, desaba também, a articulação que unificava tempo e história. Ou seja, não se trata mais de privilegiar a adoção de uma concepção universal que, ao enquadrar todas as sociedades humanas em um eixo temporal evolutivo e unilinear, desembocava em uma visão globalizadora da história. Uma história com “H” maiúsculo que como vimos anteriormente, unificava e homogeneizava a diferença cultural à luz da cultura européia, vista como representante do grau máximo de civilização a ser seguido, inevitavelmente, por todas as sociedades humanas. Com os trabalhos desenvolvidos por Boas, a Antropologia se volta para o estudo das histórias das sociedades humanas. Uma história vista agora com “h” minúsculo. Nesta acepção, as culturas humanas são concebidas como fruto de histórias múltiplas e plurais envolvidas na dimensão de suas existências concretas e motivadas por lógicas e formas de conceber o mundo e a realidade que lhe são específicas e particulares. É justamente este postulado que abrirá espaço para a adoção de uma prática relativizadora, cujos princípios, como teremos a oportunidade de verificar um pouco mais adiante, exigem que se considere os aspectos, os elementos e o conjunto de valores adotados por cada povo ou grupo humano, no contexto específico de suas existências concretas. Ou seja, o reconhecimento da diferença passa a constituir a base para o entendimento e a compreensão do mundo do “outro”. Não há mais uma cultura única, capaz de englobar a História da Humanidade, mas culturas específicas e diversas. Embora única enquanto espécie viva, a humanidade passa, nestes termos, a ser definitivamente reconhecida como uma humanidade plural no que diz respeito às formas pelas quais cada povo,grupo ou sociedade humana concebe a vida, dá sentido à realidade e se relaciona com o mundo a sua volta. O entendimento desta diversidade e pluralidade cultural exigirá o desenvolvimento de novos métodos e técnicas de investigação, que implicarão numa transformação radical da Antropologia enquanto campo de saber. Na próxima unidade, abordaremos exatamente as condições intelectuais que propiciaram esta transformação, identificando, nos trabalhos dos principais teóricos, que deram suporte e impulsionaram esta transformação, os novos modelos interpretativos, então construídos com o objetivo de possibilitar a compreensão da diferença cultural. Entretanto, antes de avançarmos nesta questão é importante que possamos abrir um parêntese na pauta das nossas discussões, visando conhecer previamente dois conceitos – etnocentrismo e relativização – que estarão diretamente associados com essa transformação e, também, com todo o desenvolvimento do campo antropológico ao longo do século XX. ANTROPOLOGIA CULTURAL 53 O ETNOCENTRISMO E OS PROBLEMAS COLOCADOS ATRAVÉS DA SUA PRÁTICA De acordo com aquilo que tivemos a oportunidade de estudar até este momento, é possível concluirmos que, ao longo do processo de constituição da Antropologia como campo de conhecimento, a preocupação em encontrar uma explicação para o problema da diversidade cultural esteve marcada por uma questão permanente e ao mesmo tempo contraditória. Se de um lado, a constatação da variabilidade cultural se impôs como um fato que, inegavelmente, acompanhou o desenvolvimento da história da humanidade em diferentes épocas, tempos e lugares; de outro lado, o reconhecimento pleno dessa variabilidade não parece ter desfrutado em igual medida, dessa mesma base de concordância e unanimidade. Muito pelo contrário, no decorrer do processo de formação histórica das sociedades humanas, o rechaço e a não aceitação da diferença cultural parecem ter definido, no contexto das relações sociais, a regra e não a exceção. Dados historiográficos a respeito do expansionismo colonial europeu ilustram, com riqueza de detalhes, essa dificuldade e demonstram, claramente, como a resistência à aceitação da diferença cultural constituiu um terreno firme sob o qual floresceu, com vigor, intensas polêmicas e disputas acirradas. Envolvendo uma enorme gama de interesses políticos, econômicos e sociais, estas disputas acabaram em um grande número de casos, colocando em risco e sob ameaça, a própria sobrevivência física de vários grupos e povos humanos, situados nas mais diversas áreas e continentes do planeta. Afinal, tratava-se naquele momento, de legitimar e consolidar a dominação colonial do Ocidente sobre os demais povos do mundo, então subjugados à sua esfera de influência e controle. Do contato com sociedades situadas em espaços geográficos exteriores às áreas de influência da civilização ocidental – as chamadas sociedades “exóticas” (indígenas, africanas, asiáticas) – resultou uma atitude de perplexidade e estranhamento diante da diferença cultural que foi definida na Antropologia pela denominação de Etnocentrismo. Traduzida, inicialmente, pela experiência vivenciada através do que comumente chamamos de “choque cultural”, a atitude etnocêntrica vai além de períodos ou épocas históricas previamente determinadas. Seu alcance e envergadura não se aprisionam em delimitações temporais ou espaciais rígidas e fortemente demarcadas. Do ponto de vista conceitual, o Etnocentrismo, refere-se, na verdade, a um tipo de fenômeno que pode ser definido a partir de três características básicas e intimamente correlacionadas. Em primeiro lugar, trata-se de um fenômeno que possui um caráter universal; o que significa dizer que sua presença se faz sentir em todo e qualquer tipo de sociedade humana, independentemente do tempo, da localidade ou da época considerada. Em segundo lugar, etnocentrismo diz respeito a certo tipo de atitude ou posicionamento adotado pelas sociedades humanas, diante do contato com uma cultura diferente. Marcada pela perplexidade e pelo estranhamento, esta atitude tende, em terceiro lugar, em avaliar as formas de vida, hábitos UNIDADE 2 - ANTROPOLOGIA CULTURAL: CONCEITOS, MÉTODOS, TEORIAS E ESCOLAS 54 e costumes diferentes, tomando como parâmetro da comparação elementos oriundos da própria cultura. Na atitude etnocêntrica, tendemos a raciocinar com base em uma dicotomia, que opõe o nosso mundo, o mundo do “eu” ao mundo do “outro”. Tudo aquilo – hábitos, atitudes, costumes, crenças, comportamentos, etc. – que difere do nosso mundo é percebido e avaliado de uma forma valorativa, o que acaba por desqualificar a diferença. O foco da comparação é a nossa própria cultura, então considerada como a “melhor”, a mais “correta” e “normal”, a mais “justa” e “perfeita”, a mais “civilizada” e “avançada”. Ela constitui uma espécie de modelo ou espelho, através do qual olhamos para o mundo do “outro” que é, em contraposição, percebido como o mais “errado” e “anormal”, o mais “injusto” e “imperfeito”, o mais “inferior” e “atrasado”. É com este estranhamento que olhamos, por exemplo, para a atitude dos chamados “homens bombas” oriundos dos países árabes, que numa ação suicida coordenada pela Al-Qaeda, guiaram suas aeronaves de encontro às torres gêmeas do World Trade Center, em Manhattan, Nova York, no ataque deflagrado em onze de setembro 2001, contra alvos civis dos Estados Unidos. Estes homens, tal como os pilotos “kamikases” japoneses, que na Segunda Grande Guerra Mundial, atacaram Hiroshima e Nagasaki, foram capazes de colocar em risco a própria vida em nome de convicções políticas extremas, numa atitude que para nós, é no mínimo classificada como “anormal” e “irracional”, já que não atribuímos as nossas posições políticas e partidárias, um papel tão relevante, quando comparado ao sentido que conferimos a nossa própria vida e existência. Do mesmo modo, ficamos perplexos com o estilo de vestuário das mulheres mulçumanas, que, em seu segmento mais ortodoxo, chegam através do uso das “burcas”, a esconder o próprio rosto em espaços públicos, o que na nossa visão ilustra um comportamento “inadmissível” “insano” e “inaceitável”, considerando o papel que atualmente a mulher exerce no contexto da nossa sociedade. De um modo ou de outro, em todos estes casos, procuramos encontrar, na nossa própria cultura, elementos capazes de justificar e explicar as motivações para tais comportamentos tidos como “exóticos” e “estranhos” na nossa percepção imediata. Neste processo de tradução, através do qual tendemos a perceber o mundo do “outro”, nos termos dos elementos específicos que compõe o mundo do “eu”, nossa visão fica como que distorcida e obscurecida para a Dicotomia: Divisão de um conceito em dois elementos, em geral, contrários. ANTROPOLOGIA CULTURAL 55 compreensão da diferença, na medida em que ele envolve o plano dos nossos próprios sentimentos, nossas racionalidades, afetos e subjetividades. Encarado à luz desta perspectiva, o problema do etnocentrismo parece apontar para uma questão, bem mais ampla e profunda, que remete para toda e qualquer dinâmica envolvida com a vida dos homens em sociedade. Ele se estende para além das relações estabelecidas entre diferentes sociedades e atinge de formas diversas e com intensidade também distintas, os indivíduos e os grupos que participam de uma mesma sociedade. Extrapolando o âmbito da discussão propriamente antropológica, o fenômeno do etnocentrismo pode ser facilmente percebido até mesmo por um observador desatento e desavisado, quando direcionamos o foco do nosso olhar para o conjunto das ações, atitudes e comportamentos que adotamos na nossa própria vida em sociedade. Convidamos vocêpara que, conjuntamente, pensemos sobre esta situação tomando como referência a nossa própria sociedade, ou seja, a sociedade brasileira vista em sua totalidade. De imediato, uma indagação parece se impor ao nosso campo de observação. Qual é o mecanismo básico que permite que comunguemos e compartilhemos de um mesmo sentimento de brasilidade, apesar de sermos individualmente, tão diferentes e distintos uns dos outros? A resposta a esta indagação ancora-se no postulado que considera que, uma vez socializados em uma determinada cultura – no nosso caso em particular, a cultura brasileira – passamos a compartilhar com os nossos semelhantes um conjunto de normas que parecem regular as nossas condutas no plano da vida social. Estas normas correspondem, na verdade, a uma série de padrões de comportamento que aprendemos a conhecer e a reconhecer como corretos e adequados em decorrência de um longo processo de socialização a que fomos submetidos no transcorrer da nossa existência, enquanto membro de uma determinada sociedade. Eles fazem parte de uma herança cultural coletivamente compartilhada por todos os membros, inclusive por nós, desta mesma sociedade. São eles que informam e prescrevem modos e formas de se conceber a vida e o mundo, tanto no que diz respeito ao plano da realidade objetiva e concreta, quanto no que se refere às avaliações de caráter moral, ético ou valorativo. Ao compartilharmos com os nossos semelhantes destes padrões de comportamento, desenvolvemos um sentimento de pertencimento ao grupo, que faz com que nos movimentemos com um certo conforto e tranqüilidade no plano da realidade cotidiana; posto que conhecemos seus limites e suas regras de funcionamento. Entretanto, a despeito deste compartilhar mútuo, é preciso que relembremos, como vimos na unidade de estudos anterior, que as culturas humanas não constituem totalidades uniformes e homogêneas. Ou seja, os indivíduos participam e atuam de maneiras extremamente diferenciadas do contexto cultural do qual são partes integrantes. É exatamente neste ponto que o problema do etnocentrismo ganha força e expressão, enquanto fenômeno, que se faz presente no interior de uma mesma sociedade. Assim, embora sejamos todos brasileiros, somos UNIDADE 2 - ANTROPOLOGIA CULTURAL: CONCEITOS, MÉTODOS, TEORIAS E ESCOLAS 56 também indivíduos únicos e singulares, portadores de biografias e trajetórias de vida pessoais, detentores de subjetividades, personalidades e visões de mundo distintas. Nossa identidade como brasileiros não significa que tenhamos as mesmas preferências estéticas, que acreditemos nas mesmas crenças religiosas ou que torçamos pelo mesmo time de futebol. Isto explica o fato de que, do mesmo modo que olhamos com estranheza para as formas culturais distintas da nossa própria sociedade, também tendemos a rejeitar os “outros” coletivos sociais e grupos humanos, cujas práticas e atitudes não se coadunam com os nossos próprios valores e visões de mundo, ainda que eles façam parte da mesma sociedade que nós. Vejamos alguns exemplos. Até muito recentemente, as religiões afro-brasileiras, como o candomblé e a umbanda, foram alvos de críticas acirradas, dirigidas por parte de diversos segmentos e setores dominantes da sociedade, tendo sido, inclusive, durante um certo período da história, perseguidas e reprimidas pela força da ação policial. As práticas e os rituais adotados por estas religiões – tais como o “sacrifício animal” e a “oferenda aos santos e orixás” - longe de serem entendidas como mecanismos específicos de externalização da fé, através dos quais os seus adeptos – os “filhos de santo” – estabelecem contato com as forças divinas, com o mundo dos deuses e com a ordem sobrenatural, foram ao contrário, fortemente rechaçadas e discriminadas. Percebidas, nos termos dos elementos que compõem outros sistemas religiosos, cujos preceitos doutrinários fundam-se em uma estrutura de crenças distinta, as práticas e os rituais afro-brasileiros, foram, via de regra, interpretadas como “primitivas”, “bárbaras”, voltadas para o “mal” posto que praticam a “magia”, a “macumba” e a “feitiçaria”, como fruto da “ignorância”, do “despreparado” e do “desconhecimento” dos seus adeptos. Em todos estes casos, trata-se de atributos que desqualificam estas religiões enquanto expressão cultural própria de um grupo social e, que, da mesma forma que outros sistemas de crenças, possuem um conteúdo doutrinário e ritual que lhe é particular e que deve ser visto no contexto da sua especificidade. Uma outra situação bastante semelhante a esta, envolveu o crescimento das denominações evangélicas pentecostais – tais como, a Igreja Universal do Reino de Deus, a Igreja de Nova Vida, a Igreja Renascer em Cristo, dentre outras – que, no decorrer dos últimos anos, mudaram o perfil do cenário religioso brasileiro, tradicionalmente marcado pela hegemonia católica. Algumas destas denominações tiveram o seu nome estampado nas manchetes dos principais jornais do país sob a acusação de que suas práticas e crenças religiosas estariam baseadas na “exploração” e na “manipulação da ingenuidade dos fiéis”, tendo como conseqüências o “enriquecimento ilícito” de suas principais lideranças, num processo de expansão francamente marcado pela “comercialização e mercantilização da fé”. As polêmicas envolvendo esta questão foram tão intensas que os meios de comunicação chegaram a falar em “Guerra Santa” no “mercado religioso brasileiro”, expressões que exprimem a dificuldade dos diversos grupos sociais em lidar com a diferença, neste caso, especificamente, a diferença religiosa. ANTROPOLOGIA CULTURAL 57 Entretanto, se ampliarmos um pouco mais, o nosso campo de observação e considerarmos, por exemplo, questões de gênero, classe social, relações raciais ou opção sexual, dentre tantas outras, um cenário equivalente parece se descortinar, confirmando esta mesma dificuldade em lidarmos com a diferença cultural. Dados historiográficos sobre o processo de formação sócio-histórico da sociedade brasileira, indicam como que, ao longo de várias décadas sucessivas, estes diferentes coletivos sociais – mulheres, negros e homossexuais – foram percebidos e tratados pelos setores dominantes como “categoriais menores”. Deste tipo de posicionamento deriva uma situação paradoxal e contraditória, revestida por um conteúdo fortemente etnocêntrico e facilmente percebido por qualquer observador da vida social. Encarados como “minorias sociais”, a estes grupos, foram negados, pelos setores dominantes da sociedade, quando não explicitamente, de uma forma disfarçada e velada, condições iguais de acesso e participação em vários domínios da vida social, não obstante ser o Brasil um país cujos preceitos constitucionais preconizam a igualdade de todos os cidadãos perante a lei. A título de ilustração pensemos, rapidamente, em algumas situações práticas diretamente associadas ao nosso cotidiano. Até bem recentemente, algumas empresas e instituições ligadas ao mundo do trabalho, quando não chegavam ao extremo de excluir, pelo menos, dificultavam, imensamente, o ingresso e a participação destas minorias sociais – negros, mulheres e homossexuais – em seus quadros funcionais. Nas próprias novelas brasileiras, é recente a participação de atores negros em papéis de destaque e de maior representatividade. Do mesmo modo, no nosso senso comum mais abrangente, circulam com certa freqüência, piadas e jargões que em geral, associam o negro a situações depreciativas, quase sempre correlacionadas a sujeira, restos, sobras e excrementos, numa alusão deliberada à cor da pele ou a uma suposta falta de caráter e inaptidão para a vida social. Expressões como “Fulano é um preto de alma branca”, “Negronão é gente, é urubu”, “Negro quando sobe na vida é para limpar vidraças” ou ainda, “Negro é tudo igual, quando não suja na entrada, suja na saída” são ilustrativas do tom discriminatório e revelam a dificuldade de lidarmos com a diferença racial. Este mesmo tom pejorativo parece se fazer presente nas referências aos homossexuais. Considerado por alguns como doença, por outros como UNIDADE 2 - ANTROPOLOGIA CULTURAL: CONCEITOS, MÉTODOS, TEORIAS E ESCOLAS 58 pecado e ainda, como prática decorrente da falta de caráter e de princípios éticos, igualmente aos negros, este grupo também tem sido alvo de piadas e referências depreciativas tais como “boiola”, “frutinha”, “veado”, “bichinha”, “baitola”, etc., que exprimem a pouca aceitação da sociedade a escolhas e opções sexuais consideradas divergentes daquelas que são comumente tidas como o modelo adequado e correto a ser, invariavelmente, seguido por todos. Quanto às relações de gênero – embora a entrada e a inserção da mulher no mundo do trabalho tenha alterado os papéis sociais tradicionalmente por ela desempenhados – ainda se observa, neste domínio da sociedade, diferenças salariais substantivas quanto à remuneração a ela destinada, comparativamente ao sexo masculino. Além disto, é curioso observarmos como que, até muito recentemente, o rompimento com os “laços insolúveis do matrimônio” constituía um dado suficiente para colocar a mulher, no centro de um debate bastante acalorado e discriminatório. A chamada “mulher desquitada” enfrentou sérias dificuldades no âmbito da aceitação social. Sobre ela incidiram avaliações pautadas numa lógica de valores fortemente masculina que, quase sempre, colocava em dúvida a “idoneidade da sua fidelidade”, a “honestidade do seu caráter” e a “pureza da sua honra” conduzindo, via de regra, a atributos como “leviana”, “desonesta”, “safada”, “mulher de vida errada e desregrada”, etc. Trata-se, portanto, de atributos que estigmatizam o comportamento do “outro”, ao desconsiderar suas próprias particularidades e singularidades. Estes exemplos todos remetem para a tensão que existe na relação estabelecida entre indivíduo e grupo e apontam para os problemas decorrentes da adoção de uma atitude etnocêntrica diante da diferença cultural. Ou seja, quando a valorização que damos as nossas próprias práticas, crenças e comportamentos extrapolam o âmbito individual e ganham força no plano coletivo, elas tendem a assumir o status de verdades absolutas e universais. Encaradas nesta perspectiva, elas podem conduzir a atitudes preconceituosas e intolerantes diante da diferença que, se levadas ao extremo, desencadeiam conseqüências trágicas para a dinâmica da vida social; podendo envolver atos de agressão e violência acentuados desembocando, muitas vezes, em morte e assassinato. Vejamos então, alguns exemplos. Do ponto de vista da história do século XX, o massacre judeu pelo nazismo, durante a Segunda Grande Guerra Mundial, pode ser considerado como o exemplo mais emblemático da intolerância diante da diferença. Após assumir o poder em 1933, Adolf Hitler, estabeleceu na Alemanha, um regime totalitário que, baseado numa doutrina racial, de acordo com a qual os alemães pertenciam a “raça pura”, a “raça mestre”, ou mais especificamente, a chamada “raça ariana”, serviu como pretexto para justificar uma ação violenta e cruel contra o povo judeu, então considerado como subumano, ou seja, um povo não pertencente a raça humana. A crença na superioridade racial – a “raça ariana” – além de instalar a instituição do medo e do terror no interior da sociedade alemã – respaldou um projeto político cuidadosamente arquitetado e planejado pelas forças nazistas, cujo gerenciamento e implantação culminou com o genocídio e o Genocídio: Crime contra a humanidade que consiste em destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso; em cometer contra ele atos de violência tais como: matar e agredir a integridade física, mental e moral dos seus membros, submeter o grupo a condições de vida capazes de o destruir fisicamente, adotar medidas que visem a evitar nascimentos no seio do grupo, realizar a transferência forçada de pessoas ou crianças de grupo para outro. ANTROPOLOGIA CULTURAL 59 aniquilamento de aproximadamente seis milhões de judeus entre homens, mulheres, idosos e cerca de 1,5 milhão de crianças. Inicialmente, segregados em guetos e posteriormente conduzidos para os campos de concentração e trabalho forçado – na verdade, campos de extermínio – o equivalente a um terço do povo judeu, à época, foi exterminado por pelotões de fuzilamento nazistas e por envenenamento nas câmaras de gás, numa ação em grande escala e que, marcada pela crueldade, truculência e atrocidade, tem sido considerada como um dos maiores Holocaustos do século XX. Mesmo diante deste genocídio, o mundo contemporâneo parece não ter assimilado, com a profundidade merecida, as conseqüências dramáticas deste fato histórico; pelo menos a ponto de estabelecer, no que tange ao âmbito de atuação do Estado, condições econômicas, políticas e sociais efetivas visando promover práticas mais tolerantes e flexíveis para o convívio com a diferença. Apesar dos esforços despendidos nesta direção, garantir o reconhecimento pleno da diversidade; de forma que a diferença cultural possa ser tratada com igualdade, parece constituir, de fato, um dos maiores desafios e dificuldades enfrentadas pelos Estados modernos. Conflitos recentes na antiga Iugoslávia, envolvendo sérvios (cristãos ortodoxos), croatas (católicos) e bósnios (muçulmanos), assim como todo e qualquer tipo de fundamentalismo religioso e/ou político, como também, manifestações extremadas de xenofobia trazem, de um modo ou de outro, à baila, a ocorrência de ações marcadas pela prática de genocídio em diferentes partes do mundo e que, traduzidas por expressões como “limpeza étnica”, nos dão conta, já em pleno século XXI, desta dificuldade e da não superação do problema da intolerância diante da diferença. Todos estes exemplos apontam para as conseqüências, o alcance e a gravidade das situações a que a adoção de uma atitude etnocêntrica diante da diferença pode conduzir os grupos humanos e sinalizam para o papel estratégico que a cultura ocupa no plano das suas relações sociais e, por conseguinte, para a compreensão da dinâmica envolvida com a vida do homem em todo e qualquer tipo de sociedade. Visando contribuir para superação desta atitude, em busca de uma visão mais tolerante e aberta à aceitação e ao reconhecimento da diferença, é que a Antropologia advoga uma posição favorável à adoção de uma prática relativizadora. A esta altura, você deve estar se perguntando: o que significa exatamente isto? Como e o que fazer para tornar possível este tipo de prática? Em Antropologia, a relativização refere-se a um modo de se posicionar diante da diversidade cultural, que pode ser definido à luz de dois aspectos ou características básicas. A primeira delas, como você já deve ter deduzido, refere-se ao fato de que se trata de uma posição, cujo tratamento da diferença se opõe radicalmente à atitude etnocêntrica. Deriva desta oposição, uma segunda característica que envolve um certo tipo de procedimento Holocausto: Oferecer, em forma de sacrifício; expiação; imolação; abrir mão; abstrair a vontade própria para satisfazer a outrem. Xenofobia: aversão a pessoas e coisas estrangeiras; nacionalismo exacerbado; ódio ao estrangeiro. UNIDADE 2 - ANTROPOLOGIA CULTURAL: CONCEITOS, MÉTODOS, TEORIAS E ESCOLAS 60 intelectual por meio do qual promovemos um “estranhamento” dos nossos próprios valores e visões de mundo. Desta forma,do mesmo modo que estranhamos o “mundo do outro”, visto por nós como desconhecido e exótico, a adoção deste procedimento exige que num movimento simétrico inverso; estranhemos também, o nosso próprio mundo, o “mundo do eu”, considerado por nós como conhecido e familiar. É exatamente este estranhamento que possibilita uma abertura e flexibilização do modo pelo qual, a princípio, percebemos o “outro”, seja ele parte de uma cultura distinta, seja ele parte da nossa própria cultura. Isto é, da cultura na qual fomos formados e socializados. Para tanto, é preciso que sejamos capazes de abrir espaço para o diálogo, com dúvidas e incertezas, de não encarar nossas próprias opiniões e certezas como verdades universais. Por outro lado, isto não significa postular que tenhamos que abrir mão, inteiramente, dos nossos valores, crenças e convicções pessoais, que definem as formas particulares, através das quais concebemos o mundo e a vida. Ao contrário, o convite que a Antropologia nos faz é para que “estranhemos” do ponto de vista mental e intelectual, estas formas de percepção que são, via de regra, tomadas por nós como “naturais”, como as mais “corretas”, “coerentes”, “sensatas”, “justas” e “normais”. Em outras palavras, relativizar é não considerar o nosso modo de olhar e conceber o mundo como pontos de vista absolutos e melhores, diante do que lhe é diferente, exótico e desconhecido. É desnaturalizar nossas práticas, comportamentos e atitudes num exercício que se volta para a compreensão do “mundo do outro” a partir dos seus próprios termos, dos seus contextos específicos, da sua própria lógica e motivações internas e não mais, através de um processo que procura traduzi-lo à luz dos elementos que definem o “mundo do eu”, então considerado como o modelo absoluto e perfeito que deve ser universalmente seguido por todos. Relativizar é não hierarquizar a diferença numa perspectiva comparativa, que estabelece gradações entre “superiores” e “inferiores”, “civilizados” e “primitivos” ou ainda “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”, e sim, compreendê-la numa perspectiva mais aberta que a considera como um dado que constitui, inexoravelmente, a condição humana a despeito de qualquer tempo, época ou lugar. É ver a diferença em toda a sua dimensão de riqueza e variabilidade de formas, cujo esforço de compreensão coloca o homem diante de um dos mais fascinantes desafios da sua vida em sociedade: o diálogo com a alteridade. Um diálogo que, baseado na diferença, permite-o repensar e transformar o plano sob o qual se funda a sua própria subjetividade através da experiência do “outro”. Um “outro” que, na sua diferença, nos ajuda a construir o nosso próprio senso de identidade; a descobrir o nosso lugar no mundo e o papel que nele temos a desempenhar. É, portanto, através do exercício relativizador que o homem se percebe a um só tempo, como um ser único e plural, parte e todo, indivíduo e, também coletivo, posto que carrega em si mesmo, na dimensão singular e particular da sua própria Alteridade: palavra que possui o prefixo “alter” de origem latina e que significa, no âmbito das relações interpessoais, a valorização, a identificação e o diálogo com o outro. Além das relações interpessoais, a prática da alteridade se conecta também, aos r e l a c i o n a m e n t o s estabelecidos entre grupos culturais, religiosos, científicos, étnicos, políticos, profissionais, etc. Em todos estes casos, ela diz respeito ao convívio harmonioso que busca respeitar a divergência. Alteridade, portanto, diz respeito à capacidade humana de conviver com o diferente, de se permitir um olhar interior a partir das próprias diferenças, vistas na sua singularidade e especificidade. Significa reconhecer o “outro” em mim mesmo. Um “outro” que como eu, constitui um sujeito humano, que detém, igualmente, os mesmos direitos a que disponho e faço jus. Nem mais e nem menos, nem melhores e nem piores. Apenas iguais na sua diferença. ANTROPOLOGIA CULTURAL 61 existência, as marcas das descobertas que faz e das transformações que experiência e vivencia através da convivência com os seus semelhantes, diferentes e iguais. Para facilitar a compreensão do conteúdo que você acabou de estudar, pegue seu caderno de anotações e anote algumas sugestões de filmes para você assistir “Casamento Grego”, dirigido por Joel Zwick e “A Lista de Schindler”, dirigido por Steven Spielberg. Em ambos os casos, procure ficar atento às formas pelas quais o problema da diversidade cultural é abordado e como ele pode ser correlacionado com as conseqüências de uma atitude etnocêntrica diante da diferença. Temos certeza de que, além de se tratar de duas belíssimas produções cinematográficas, estes dois filmes irão ampliar o seu olhar e enriquecer sua percepção para a importância do respeito à diferença no convívio social. Aproveite a sugestão e não se esqueça de registrar, na forma de anotações, todas as suas percepções, fatos e imagens que lhe chamaram a atenção, de uma forma mais intensa. LEITURA COMPLEMENTAR: Procure enriquecer e aprofundar seus estudos através da leitura dos seguintes textos: LEVI-STRAUSS, Claude. Raça e História, In: Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 1973, cap. XVIII, p.328-363. ROCHA, Everardo. O que é etnocentrismo. São Paulo, Editora Brasiliense, 2ª. Ed., 1985. É HORA DE SE AVALIAR ! Lembre-se de realizar as atividades desta unidade de estudo, presentes no caderno de exercício! Elas irão ajudá- lo a fixar o conteúdo, além de proporcionar sua autonomia no processo de ensino-aprendizagem. Caso prefira, redija as respostas no caderno e depois as envie através do nosso ambiente virtual de aprendizagem (AVA). Interaja conosco! Nesta unidade você estudou os pressupostos conceituais básicos utilizados por duas escolas teóricas da Antropologia – o Evolucionismo Social e a Escola Cultural Americana (ou Difusionismo) – e suas implicações para o entendimento da diversidade cultural. Na próxima unidade, estudaremos como o campo antropológico pôde, a partir das idéias propostas por estas escolas, se transformar na busca de novos modelos explicativos para a diferença cultural. Desejamos a você bons estudos e relembramos que estamos permanentemente a sua disposição para auxiliá-lo em todas as etapas da sua aprendizagem. Acreditamos no seu potencial! SUGESTÃO DE FILME:
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