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1 FUNDAMENTOS DA GINÁSTICA Carlos Alberto de Andrade Coelho Filho “Escolhemos a ginástica, base fundamental da Educação Física...”. Oswaldo Diniz Magalhães1 INTRODUÇÂO Quatro compreensões basilares são destacadas introdutoriamente: 1. A ginástica era uma designação genérica. Da mesma forma que resgatava o ideal grego de valorização das atividades físicas para “desenvolver o homem nu”, incorporava várias outras práticas corporais desenvolvidas no medievo, por exemplo, associadas à preparação para os diversos jogos da época (Grécia e Roma). A origem etimológica da palavra ginástica vem do grego gymnikos, adj. que é relativo aos exercícios do corpo, e de gimn(o), elemento de composição culta que traduz a idéia de nú, do grego gyminós, “nú, despido”, não coberto, que se limita a ser alguém ou alguma coisa, puro e simples, sem acessórios ou sem modificações... que não traz vestuário exterior, que só traz a roupa interior, a túnica; sem armadura ou armas (MACHADO apud SOARES, 1998, p.20). 2. A sistematização pedagógica das práticas corporais (esgrima, equitação, jogos populares, exercícios de flexibilidade, exercícios respiratórios, equilíbrios, corridas, saltos, arremessos, exercícios ritmados etc.) recebeu inicialmente a denominação de ginástica e posteriormente educação física. Como observa Soares (1998), o “movimento ginástico europeu” foi o lugar de onde partiram as teorias da hoje denominada educação física no ocidente. Professor Associado da Universidade Federal de Juiz de Fora. Faculdade de Educação Física. Departamento de Ginástica e Arte Corporal. 1 Depoimento do professor, extraído do livro: CARVALHO, S. Hora da ginástica: resgate da obra de Oswaldo Diniz Magalhães. Rio Grande do Sul: Editora da Universidade Federal de Santa Maria, 1994. 2 A sistematização pedagógica é aquela em que se pode reconhecer uma proposta de ensino que articule a teoria e a prática, certa compreensão do processo ensino-aprendizagem, que envolve: - Para que ensinar (objetivos que se pretende alcançar: habilidades e competências a se desenvolver no aluno)? - O que ensinar (conteúdos curriculares)? - Como ensinar (estratégias metodológicas)? - Quando ensinar (sequenciação didática)? - O que e quando avaliar (verificação da aprendizagem)? 3. A ginástica, na Europa, ao longo de todo o século XIX, foi organizada principalmente pelos militares e obteve respaldo científico dos médicos. Ciência e técnica parecem ter sempre comparecido para afirmar a Ginástica como instrumento de aquisição de saúde, de formação estética e de treinamento do soldado (SOARES, 1998, p. 21). As fontes inspiradoras de militares e médicos brasileiros foram países europeus que, durante o século XIX, forneceram as principais contribuições em favor da prática da Educação Física e da sistematização do seu trabalho nos meios militar e civil (CUNHA JUNIOR, 2008, p. 60). 4. Práticas corporais que se tornaram tradicionais no campo da educação física escolar: as ginásticas, os esportes, os jogos e as danças. Os esportes são aqueles que obedecem a regras institucionalizadas, controladas pelas Federações e/ou Confederações. Contudo, importa verificar a abrangência do conceito de esporte e suas possíveis conexões, por exemplo, com as noções de prática de atividades físicas e de promoção da saúde.2 Os jogos respondem ao contexto imediato, com regras adaptadas e/ou vinculadas a esse contexto. É interessante pensar que uma prática como a capoeira, por exemplo, pode ser compreendida como ginástica, como esporte, como jogo, como dança. 2 Sobre este assunto, indico a leitura do artigo de Melo (2010). 3 Com base no que precede, aponto para o objetivo de reconhecer a gênese da ginástica/educação física. Esse objetivo se desdobra, em certa medida, no sentido de identificar a ginástica no quadro geral das atividades corporais. 4 GINÁSTICA: UMA APROXIMAÇÃO HISTÓRICA Langlade e Langlade (1970), mesmo assinalando que as “atividades físicas” acompanham o homem desde sua aparição sobre a terra, e que de todos os períodos histórico-evolutivos, o Renascimento é o que nos legou (com relação à nossa cultura atual) as mais profundas contribuições (a influência do Renascimento sobre os “exercícios físicos”3 é considerável, iluminando um novo sentir e uma nova filosofia associada ao corpo e aos seus cuidados), é somente no começo do século XIX que podemos localizar as origens dessa nossa ginástica/educação física. Para esses autores, desde 1800 aparecem claramente diferenciadas quatro zonas que demarcam distintas formas de encarar os exercícios físicos, três delas especialmente vinculadas à evolução desta “recém- nascida”, a ginástica. A primeira zona de atividades compreende a Escola Inglesa, que satisfaz suas necessidades sobre a base dos jogos, das atividades atléticas e do esporte. As orientações da Escola Inglesa não estabelecem relação direta com o campo ginástico, a não ser indiretamente na dimensão de “influências recíprocas e universalização de conceitos”. A segunda zona de atividades enfoca o nascimento da ginástica na Alemanha e sua ulterior evolução. A terceira zona nos mostra a evolução da ginástica nos países nórdicos, especialmente a partir das contribuições de P. H. Ling, criador da Ginástica Sueca. Finalmente, uma quarta zona representa uma terceira abordagem e solução dos problemas ginásticos, que no seu conjunto constitui a corrente francesa. 3 Conceitualmente, destaca-se certa distinção entre atividade física e exercício físico. Atividade física pode ser compreendida de forma genérica, isto é, associada aos mais variados movimentos corporais, e que resulta em gasto de energia maior do que os níveis de repouso. Exercício físico, por sua vez, pode ser compreendido como uma atividade física planejada, ou, em outras palavras, uma atividade física sistematizada que tem como objetivo, por exemplo, dentre outros possíveis, a promoção e/ou a manutenção da saúde. A prática da ginástica, por exemplo, pode ser compreendida, portanto, em certo sentido como exercício físico, mas também como atividade física. 5 A ginástica na escola alemã4 A ginástica é apontada pelos historiadores como a primeira proposta de ensino da educação física enquanto disciplina curricular. Essa proposta foi inicialmente vivenciada na Alemanha, na “escola filantropina”. Podemos interpretar a escola filantropina, em certo sentido, como um modelo educacional que formalizou os valores éticos, os códigos cívicos e ideais políticos de uma época em conteúdos pedagógicos. Para nos aproximarmos desta compreensão, é preciso considerar o período em que o “Philanthropum” de Johann Bernhard Basedow (1723-1790), entra em funcionamento5, isto é, momento de efervescência das chamadas Revoluções Burguesas. Por isso, não é possível entender a reforma educacional proposta por Basedow e o apoio financeiro que recebeu das “classes superiores” se não entendermos o contexto da Europa no fim do século XVIII, premida pelas transformações econômicas, socioculturais e político-ideológicas. O “Philanthropum”, ou escola filantropina de Dessau (da cidade de Dessau), foi a realização prática das propostas teóricas do reformador alemão. Basedow delineou uma reforma, a começar pela organizaçãodas disciplinas e dos métodos de ensino, considerando as necessidades de uma ordem social que começava a se expandir. O projeto político-pedagógico associado a essa reforma educacional, visando oferecer uma nova formação para o cidadão, foi bem aceito por reis, príncipes, católicos, protestantes, judeus e maçons. Após ter conseguido apoio do príncipe Leopoldo de Anhalt, da cidade de Dessau, que providenciou as edificações necessárias, o salário dos professores e outras facilidades, Basedow estabeleceu uma escola para educar meninos de famílias abastadas e de famílias humildes, dos seis aos dezoito anos. Era uma instituição educacional que funcionava 4 Importa registrar que as ideias/informações que são apresentadas em termos sumários nos quatro tópicos subsequentes (quais sejam: “A ginástica na escola alemã”; “A ginástica na escola sueca”; “A ginástica na escola francesa”; “A transplantação da cultura corporal europeia para o Brasil”) estão ancoradas, fundamentalmente, no trabalho de Gomes da Silva (1998). 5 A literatura não é consensual quanto ao ano de criação da “escola filantropina” de Basedow. Por exemplo: Langlade e Langlade (1970) indicam o ano de 1771; Gomes da Silva (1998) o ano de 1774; Tesche (2001) o ano de 1775. 6 em forma de internato, cujo título pretendia desvelar “a ideia de que a instituição era filha da filantropia, o amor dos homens pela humanidade e pela educação dos jovens para fins humanitários” (BASEDOW apud GOMES da SILVA, 1998, p. 42). A reforma educacional efetivada por Basedow abriu caminho para a educação na modernidade, pois os ideais de laicidade e estatalidade, propostos pelos enciclopedistas, foram realizados. Basedow afirma a laicidade de sua escola: “aqui não há católicos, nem luteranos, nem reformados, mas somente cristãos. Nós somos filantropos e cosmopolitas [...]. Nós queremos formar somente europeus” (BASEDOW apud GOMES da SILVA, 1998, p. 42-43). A proposta de uma educação filantropina, amiga do homem (fil- antropos) ou amante da humanidade, era essencial para a existência de uma sociedade laicizada e de um estado respaldado não pela Igreja, mas pelo povo. Essa proposta se difundiu por toda a Europa, inspirando vários teóricos, dando origem a outras escolas filantropinas. Dentre os vários institutos que foram criados nesse período, um merece destaque: o Instituto de Schnepfenthal. A escola filantropina de Schnepfenthal foi criada em 1784 por um companheiro e discípulo de Basedow, o educador Cristian Gotthilf Salzmann (1744-1811), que conservou o ideário de formar homens sadios, cultos, bons e felizes. Enquanto pressupostos teórico-metodológicos, as indicações pedagógicas de John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) influenciaram decisivamente o currículo das escolas filantropinas. Esse estabelecimento merece destaque porque foi nele que se concretizou a primeira sistematização pedagógica da ginástica, a partir das formulações de Johann Cristoph Friedrich Guts Muths (1759-1839)6. Dizia Guts Muths: As crianças hão de brincar não apenas para descansar dos trabalhos escolares: os exercícios devem fazer parte de sua educação geral e se acham em ligação intelectual, moral e estética dos educandos. Chegou a 6 Segundo Tesche (2001), Guts Muths ingressou, em 1785, no educandário de Schnepfenthal, na instrução de ginástica, com a liberdade de realizar suas publicações. Usuario Highlight 7 hora em que o corpo, até agora descuidado, deve exercitar-se ao ar livre, com vento e chuva, para fortificar-se contra a influência do tempo, robustecer seus pulmões por meio de exercícios como andar, correr, atirar, alentando em seu espírito os germes do valor, da perseverança e da reflexão (GUTS MUTHS apud GOMES da SILVA, 1998, p. 75-76). Segundo Gomes da Silva (1998), Guts Muths é reconhecido como “O Pai da Ginástica Pedagógica”. Nasce assim, na Alemanha, um novo enfoque dos exercícios físicos, a ginástica, que se disseminaria rapidamente por todo o continente europeu. Contudo, na Alemanha, as ideias pedagógicas de Guts Muths foram, de certo modo, encobertas pelo conteúdo patriótico-social da obra de Johann Friedrich Ludwig Jahn (1778/1852). É possível destacar dois fatores que impulsionaram a proposta de “ginasticar” (turnen) de Jahn: derrotar a França e promover a unidade dos estados germânicos. Esses dois fatores foram desencadeados a partir de 1806, quando a Prússia, o estado mais forte do norte da Alemanha, foi invadida e derrotada pelo poderoso exército francês. O sistema de ginástica de Jahn não era destinado especificamente para a escola. Sua preocupação era com uma educação física comunitária e popular que pudesse envolver todo o povo alemão. Jahn criou uma nomenclatura alemã para o seu sistema de ginástica. Iniciou substituindo a palavra grega de caráter universal, gymnastik, por uma específica do idioma alemão, turnkunst (arte da destreza, portanto, arte da ginástica, ou arte alemã da ginástica), cuja abreviatura, turnen, comum na língua materna desde o início do século XI, significava torcer, virar, voltear, dirigir, mover, fazer grande movimento. No turnkunst (arte alemã da ginástica) de Jahn, os exercícios físicos eram elaborados a partir de situações de guerra: a marcha, o desempenho no “cavalo”, a “luta braço a braço”, os exercícios de esquiva, o equilíbrio, a desenvoltura na superação dos obstáculos. Todas as atividades, de alguma forma, colocavam o praticante em condições que lhe exigiam coragem, vigor e habilidades guerreiras. 8 O local destinado para a prática do turnen não era mais o pentatlo de Dessau7, mas os “campos de ginástica”. Além da pista de corrida, do recinto de luta, do espaço para os aparelhos e do local de reunião, o lugar dos jogos estava assegurado nos “campos de ginástica”, pois eles eram valorizados por Jahn, que dizia: Sem os jogos a essência da ginástica não progride; sem local para os jogos não é possível pensar em local de ginástica. Nos jogos se juntam trabalho e prazer, seriedade e alegria, os jovens aprendem desde pequenos o respeito, a igualdade, a justiça e as leis (JAHN apud GOMES da SILVA, 1998, p. 108). Os jogos, que foram introduzidos como conteúdo programático do turnen, eram atividades populares nacionais praticadas na infância e na juventude. Os “campos de ginástica” não eram apenas locais para exercitar o “físico”, mas também para se ouvir discursos. Nas salas de reunião, no intervalo dos exercícios, os alunos escutavam palestras do professor sobre algum tema que enaltecesse a pátria e que desafiasse a juventude para a guerra. Após derrotar a França, o “exército de ginastas” começou a ser olhado pela aristocracia como uma ameaça, passando a questionar a necessidade de a juventude ser educada para a resistência. O Rei da Prússia, temeroso com a agitação dos ginastas, desencadeou uma perseguição contra as forças progressistas, por considerar os “campos de ginástica” como o “abc purulento que deveria ser extirpado, uma escola que preparava as desordens”. Aproveitando um incidente (1819) em que um estudante ginasta assassinara um poeta russo inimigo dos liberais, o Rei fechou todos os “campos de ginástica” existentes na Prússia. Os aparelhos de ginástica foram destruídos e os ginastas perseguidos, além de se condenar Jahn à prisão por crime de “alta traição”. 7 “Basedow criou na sua escola o pentatlo, composto de corrida, salto, transporte, equilíbrio e trepar. Tinha elepor objetivo um plano educacional onde os treinamentos físico e mental caminhassem juntos e proporcionassem à educação dos jovens a possibilidade do desenvolvimento integral da personalidade humana” (TESCHE, 2001, p. 59). 9 Esse período de interdição à ginástica (denominado de “bloqueio ginástico”) conseguiu se sustentar por 20 anos (1820/40). Porém, na década de 1840, o movimento ginástico, incentivado pela burguesia economicamente forte, tomou novo impulso. No entanto, os órgãos dos estados feudais voltaram a perseguir os ginastas. Fuzilamentos, prisões, emigração forçada e dissolução de muitos clubes aconteceram. Assim, durante a década de 1850, só foram preservadas as sociedades que praticavam apenas a ginástica, sem qualquer envolvimento político, como era de costume. Além do mais, precisavam se adequar às condições impostas pela classe feudal. Nessas sociedades, desenvolveram-se duas orientações: 1) a ginástica artística dirigida para o “belo”, isto é, segundo seu conteúdo, a própria ginástica de aparelhos; 2) a ginástica popular, também designada por ginástica natural, que englobava o atletismo e outras atividades físicas populares. Mesmo em meio às perseguições, o movimento ginástico, que lutava por uma “pátria unida e livre”, não se acomodou; ao contrário, organizou-se a partir de vínculos de classe e criou o primeiro dos vários clubes operários de ginástica. Como reação, o governo se viu obrigado a incorporar a ginástica na escola formal, como um esforço para frustrar as sociedades de ginástica. Adolf Spiess (1810-1858) foi o organizador da ginástica escolar, elaborando seu sistema de ginástica a partir de suas experiências como professor na Suíça. Seu sistema não foi só aceito pelo governo prussiano, como também adotado oficialmente. A ginástica escolar foi adotada a partir da década de 1850, ao lado da ginástica artística e popular. A introdução da ginástica escolar foi consentida pela classe feudal, porque fazia parte do movimento ginástico que se preocupava apenas em praticar a ginástica na sua especificidade técnica, sem nenhum envolvimento político- social. Portanto, os principais fomentadores do “método alemão” foram Guts Muths e Jahn, mas a participação de Spiess também deve ser assinalada. A Alemanha é o primeiro país a fazer dos exercícios físicos uma parte definida dos programas educativos da escola primária (a 10 ginástica olímpica, hoje denominada de ginástica artística, teve origem nesse país). A ginástica na escola sueca Ao analisarmos a Ginástica Sueca é preciso identificar as repercussões da ginástica filantropina no século XIX, numa outra cultura que não a germânica. Ao mesmo tempo, é necessário observar que a sistematização pedagógica da Suécia foi apenas protótipo do movimento ginástico escandinavo que abrangia os países da Dinamarca, Noruega, Finlândia, Islândia e Estônia-Letônia. Foi nos países nórdicos que a concepção pedagógica que animou a obra de Guts Muths encontrou mais compreensão, frutificando em outras formas de ginástica. O ideário filantropino talvez tenha se desenvolvido mais na Escandinávia que na própria Alemanha. Isso, devido ao trabalho de Fue Franz Nachategall (1777-1847) que fundou, em 1799, um Instituto de Ginástica em Copenhague nos moldes filantropinos. Foi nesse instituto que o sistematizador da Ginástica Sueca, Per Henrik Ling (1776-1839), entrou em contato com as ideias de Guts Muths. A Suécia é destacada dentre os países nórdicos, porque esse país foi palco de uma das maiores sistematizações pedagógicas da educação física escolar no século XIX. Na primeira década desse século, a Suécia enfrentava os problemas comuns a qualquer país europeu que tinha iniciado seu processo civilizador de urbanização e industrialização, ou seja, o povo encontrava-se na sua maioria doente; alguns acometidos pela tuberculose, outros com problemas de raquitismo, além do problema do alcoolismo que estava em evidência. Essas eram algumas consequências da brutal exploração do trabalhador no modo de produção capitalista industrial. Além disso, a Suécia estava arrasada pelo imperialismo russo e pelas guerras napoleônicas. Foi nesse contexto de doenças, vícios e guerras que Ling, poeta e educador, propôs reverter esse quadro social através de um sistema de 11 ginástica capaz de interferir nos hábitos higiênicos e, consequentemente, na saúde individual e coletiva. Sentindo o perigo da decadência que ameaçava seu país, Ling, em 1813, dirigiu-se ao Rei Carlos XIII e solicitou apoio para criar um Instituto de Ginástica. O seu pedido foi atendido após análise do Comitê para a Melhoria da Educação e Instrução na Suécia. No mesmo ano foi fundado, através de decreto, em Estocolmo, o Instituto Real Central de Ginástica, pedra fundamental de toda obra educativa e científica, celeiro dos professores de Ginástica Sueca. No trabalho de Ling, assim como no do seu filho e continuador de sua obra, Hjalmar Ling (1820-1886), os exercícios eram estabelecidos com um critério localizado, analítico, enfocados sobre uma articulação e o acionamento do grupo muscular que a mobilizava. As demais partes do corpo mantinham-se na posição inicial, fixando-a e evitando todo movimento, a fim de assegurar assim a máxima localização (DALLO, 2007, p. 277). A ginástica na escola francesa A influência básica é alemã e o início é essencialmente militar, tendo como marca principal o que ficou conhecido como as “sete famílias do método francês”: 1) marchar; 2) trepar / escalar; 3) saltar; 4) levantar; 5) correr; 6) lançar; 7) atacar e defender. A ginástica militar se torna, com o tempo, restrita aos quartéis. A ginástica escolar passa a ser a fonte de inspiração para o desenvolvimento do método francês. Os principais idealizadores são: - Francisco Amorós y Ondeano (1770-1848); coronel do exército espanhol, exilado em Paris (1814). A ginástica amorosiana é uma conjunção de exercícios tomados de Guts Muths e Jahn (mais ou menos modificados, especialmente no que se refere à utilização de equipamentos), acrescida dos exercícios “elementares” (com finalidades “corretivas”, de “modelagem” corporal) de Jean Henri Pestalozzi (1746-1827) e das ideias do seu próprio autor. 12 - Dr. Fernand Lagrange (1845-1909) aplicou-se em estudar e divulgar os efeitos fisiológicos e higiênicos dos exercícios físicos. - Dr. Philippe Auguste Tissié (1852-1935) dedicou-se a defender e implantar as ideias de Ling (Ginástica Sueca, ginástica higiênica) na França. - Dr. Georges Demeny (1850-1917) foi responsável por uma consistente elaboração pedagógica para a educação física escolar da segunda metade do século XIX, incursionando no campo prático dos exercícios ginásticos. Demeny contribuiu sobremaneira para a sistematização de uma educação física científica para a escola pública na França. - Em 1906, o Tenente de Navio George Hébert (1875-1957) cria o seu “método natural”, baseado na vida em contato com a natureza e em suas necessidades. Hébert, como tenente da marinha, conheceu diversas culturas chamadas “primitivas” e se surpreendeu com a beleza, forma atlética e saúde de seus habitantes. O “método natural de Hébert” segue a linha das “famílias do método francês”, acrescentando o quadrupedismo, a natação e o equilíbrio, perfazendo o total de 10 grupos de atividades. A transplantação da ginástica europeia para o Brasil No sentido de educar o corpo para uma funcionalidade produtiva, a cultura burguesa foi introduzida no Brasil. As Ginásticas Alemã e Sueca foram introduzidas na segunda metade do séculoXIX, e a Ginástica Francesa no início do século XX. A Ginástica Alemã foi a primeira a se instalar no país, sendo praticada desde o início do século XIX, tanto pelos imigrantes quanto pelos militares. Apesar de ter os seus primeiros sinais entre os imigrantes do Rio Grande do Sul (1824) e na Guarda Imperial Prussiana da Coroa no Rio de Janeiro, a transplantação dessa ginástica se consolidou na segunda metade do século XIX. No sul do país, a ginástica patriótica de Jahn, estruturada nas Sociedades de Ginástica Alemã, funcionou para os imigrantes e seus descendentes como uma forma de preservação da identidade étnica (cultural). No meio militar, devido aos 13 serviços que os soldados alemães prestaram ao Exército Brasileiro, a ginástica de Jahn foi adotada oficialmente na Escola Militar nos anos de 1860. Além dessas duas experiências, houve também um esforço do império em adotar essa sistematização na escola brasileira. Após a guerra do Paraguai, na reforma proposta pelo Ministro do Império Paulino José Soares de Souza (1870), o manual de ginástica de Spiess foi traduzido e recebeu indicação normativa para a escola pública. A instalação da Ginástica Sueca foi posterior à da Ginástica Alemã, localizando-se inicialmente no meio civil carioca. Sua transplantação não ocorreu através de imigrantes ou militares, mas resultou do processo político-civilizador de formar uma sociedade nacional “independente”, racional e higiênica. Esse projeto burguês foi desencadeado por políticos liberais e médicos higienistas. Em meio às recomendações médicas (que valorizavam as atividades físicas e os hábitos higiênicos como meios para a eugenização) e aos dispositivos legais (que regulamentavam os exercícios ginásticos livres e os banhos), Rui Barbosa8 (1882) sugeriu a adoção da Ginástica Sueca como disciplina obrigatória para o sexo masculino em todas as séries (jardim de infância, primário e secundário). A Ginástica Francesa foi a última a ser transplantada, nas primeiras décadas do século XX, mas foi a que efetivamente tornou-se obrigatória no território brasileiro. Sob um vínculo militar, a ginástica da Escola de Joinville-le-Pont9 foi introduzida inicialmente em São Paulo, através da Missão Militar Francesa que foi contratada para instruir a Força Pública do Estado de São Paulo (1906) com o objetivo de capacitá-la para controlar os movimentos operários reivindicatórios. Importa destacar a capacidade de instrução da Missão Francesa, porquanto três anos após sua contratação, criou a Escola de Educação Física da Força Pública de São Paulo, a primeira do país. A passagem da Ginástica Francesa, da especificidade da cidade de São Paulo e do meio militar, para o âmbito nacional como disciplina 8 Ruy Barbosa de Oliveira (1849-1923). 9 A Ginástica Francesa recebeu nessa escola suas maiores alterações e sistematizações, iniciando o século XX projetando o método francês para várias partes do mundo. 14 obrigatória da escola civil, ocorreu vinculada ao seguinte processo. O Exército Brasileiro, tendo em vista tornar-se uma instituição moderna e nacional, devido às exigências sociais, desencadeou três perspectivas políticas de transformação: (a) intervenção nacional reformista (tenentes); (b) profissionalismo e neutralidade política (“jovens turcos”); (c) intervenção nacional controladora (Missão Francesa). Foi no bojo desta última perspectiva, na década de 1920, que a Ginástica Francesa ganhou repercussão nacional, sendo defendida por Washington Luiz (1920, 1930), difundida por Fernando de Azevedo (1929) e adotada como disciplina obrigatória na Reforma de Francisco Campos (1931). Podemos considerar que o método francês foi a grande influência da educação física brasileira, sendo adotado oficialmente no exército e no sistema escolar. O único modelo de conduta motora burguesa introduzido no Brasil sem a ação direta de agentes estrangeiros foi a Ginástica Sueca. A Ginástica Alemã foi absorvida pela cultura brasileira por intermédio dos imigrantes alemães instalados, principalmente, na região sul do país, bem como pelos soldados prussianos que colaboraram com o Exército Brasileiro. A Ginástica Francesa foi transplantada através de cursos oferecidos pela Missão Francesa, seja na Força Pública de São Paulo, seja no Exército Brasileiro. Entretanto, a Ginástica Sueca, como fez parte de uma longa discussão, teórica e jurídica, de políticos e médicos, foi implantada por educadores brasileiros. A primeira sistematização pedagógica da cultura corporal burguesa, formulada e adotada oficialmente no Brasil, se deu no final do século XIX (1896) a partir das experiências de Arthur Higgins, professor de ginástica da Escola Normal e do Colégio Nacional no Distrito Federal. Higgins era jornalista e se aproximou da Ginástica Sueca, em 1885, por recomendação médica. Depois de 11 anos como professor de ginástica (“arte utilíssima”), ele publica seu método de ginástica. Num clima de cientificismo médico-higienista e de nacionalismo político, Higgins organizou os exercícios livres (suecos), dando-lhes sistemática e nomenclatura próprias, e adaptando-os ao nosso clima. 15 Elementos esclarecedores associados à história da ginástica/educação física no Brasil Com o objetivo de resgatar elementos esclarecedores associados à história da ginástica/educação física no Brasil, a obra de Inezil Penna Marinho emerge como referência fundamental. No sumário do livro “História da educação física no Brasil” (MARINHO, 1980), no capítulo (terceiro) denominado “Brasil República (1889-1979)”, o autor indica os seguintes períodos: - Primeiro Período (1889-1920): (a) a ginástica de origem alemã; (b) a ginástica de origem sueca; (c) as práticas desportivas. - Segundo Período (1921-1945): (a) a ginástica de origem francesa; (b) a Calistenia; (c) as práticas desportivas. - Terceiro Período (1946-1979): (a) ainda a ginástica de origem francesa; (b) o Método Natural Austríaco; (c) a Hatha-Ioga; (d) o Halterofilismo; (e) a Ginástica Feminina; (f) a influência japonesa; (g) o desenvolvimento das práticas desportivas. Portanto, são “movimentos” que foram gradativamente se disseminando por diferentes países; “movimentos” que contribuíram e que contribuem, efetivamente, para a prática da ginástica/educação física no Brasil. Parece-me interessante destacar, nesse ponto, a percepção de Cunha Junior (2008): A defesa dos exercicios gymnasticos realizada pelos médicos brasileiros ao longo do século XIX foi tema de vários estudos. No campo dos trabalhos da História da Educação Física é comum a visão de que esta ação esteve atrelada ao (re)ordenamento da sociedade brasileira desencadeado pela implantação do capitalismo em nosso país. Desta forma, entendidos no âmbito de um projeto médico-higienista, os exercicios gymnasticos foram considerados como um meio de controle social, de formação moral e disciplinar, de regeneração/aperfeiçoamento da raça, de construção/inculcação de um sentimento de identidade nacional, de desenvolvimento e aprimoramento do físico e da saúde. A explicação é válida, mas é preciso repensar o modo pelo qual parte desses trabalhos descreveu o papel exercido por médicos e demais higienistas, considerados por vezes “vilões” da nossa história. Se for certo que suas 16 ações não visavam alterar de maneira radical as condições de vida e de trabalho da maioria da população, e que estavam atrelados aos “objetivos capitalistas”, também é preciso notar o idealismo de alguns destes agentes e sua contribuição para o desenvolvimentoe consolidação da Educação Física no meio escolar (p. 61).10 A Calistenia Calistenia (“Kallistenés”) é palavra de origem grega (kallós ‒ belo; sthenos ‒ força; sufixo ‒ ia); em tradução livre, pode significar “força harmoniosa”. Segundo Pithan (s.d.), desde a Antiguidade grega a Calistenia é conhecida e praticada. Em Roma, foi empregada como parte dos exercícios preparatórios para os jogos do circo (seria o que hoje pode ser denominado como “exercícios de aquecimento”). Com a proibição dos Jogos Olímpicos pelo Imperador Teodósio, no ano 393 (D. C.), a Calistenia desaparece. Nos tempos modernos, ela reaparece na escola filantropina de Schnepfenthal. O livro “Kallistenie” (“Exercícios para Beleza e Força”), publicado em 1829 pelo suíço Phoktion Heinrich Clias (1782-1854), professor de ginástica na França e na Inglaterra, é um marco importante no processo de reaparecimento da Calistenia. Per Henrik Ling, sistematizador da Ginástica Sueca, era um estudioso da Calistenia (PITHAN, s.d.). Contudo, é nos Estados Unidos que a Calistenia ganha impulso, sobretudo, a partir dos anos 1860 quando o Dr. Dio Lewis (1823-1886) introduz nas escolas americanas “A Nova Ginástica” (de alguma forma, deu-se a “A Nova Ginástica” o título de Calistenia). Lewis propunha o melhoramento físico dos americanos; não dos fortes jovens praticantes de jogos atléticos. Seu sistema era dedicado ao “homem gordo, ao homem fraco ou enfermiço, aos jovens e às mulheres de todas as idades ‒ as classes que mais necessitavam de treinamento físico” (MARINHO, s.d., p. 265). 10 O trecho, bem como parte do que está posto anteriormente, remete para a ideia de “ginástica educativa”, de ginástica vista pelo prisma da “civilização do comportamento” ou da “conduta motora”. Sobre o assunto, indico a leitura do livro “Imagens da educação no corpo” (SOARES, 1998). 17 Lewis atacou vigorosamente a crença popular de que uma grande força era a essência do bem-estar, e de que a ginástica era exclusivamente para ginastas. Combateu a ideia de que o jogo livre (sem supervisão) das crianças era suficiente para desenvolver convenientemente as formas do corpo. Lutou contra o treinamento militar, pois afirmava que o mesmo desenvolvia só a parte superior do corpo, e que conduzia à rigidez e a posições forçadas. Os desportos atléticos, como meio de educação física, estavam longe de ser eficazes como a ginástica organizada, porque estimulavam demasiadamente algumas partes do corpo e descuidavam de outras. Para Lewis, não havia razão para que homens e mulheres não pudessem estar juntos na mesma aula de ginástica, acrescentando a sociabilidade ao prazer advindo da prática. Em 1861, Lewis fundou o Instituto Normal de Educação Física de Boston, primeira escola dos Estados Unidos a graduar uma turma de professores de educação física. “Em 1868 mais de 250 professores tinham sido graduados e trabalhavam as teorias e práticas de Lewis por todo o território dos Estados Unidos” (MARINHO, s.d., p. 266). A Associação Cristã de Moços (ACM) nos Estados Unidos adotou no seu programa de Educação Física “A Nova Ginástica” (Calistenia) de Lewis, favorecendo sua disseminação no próprio país e no mundo. A primeira Associação Cristã de Moços instalada no Brasil (é também a primeira da América do Sul) data de 1893, quando foi fundada a do Rio de Janeiro, com orientação norte-americana (primeiro núcleo de Calistenia implantado no país). Dez anos mais tarde, nos mesmos moldes e com idênticas finalidades da do Rio de Janeiro, é fundada a Associação Cristã de Moços de São Paulo. Essas duas ACMs, juntamente com o Mackenzie College, constituíram poderosa fonte de propagação da Calistenia. Vejamos o que elabora Oswaldo Diniz Magalhães sobre sua experiência com ginástica na ACM do Rio de Janeiro: Em 1921, pretendia ingressar na Escola Militar, na época, situada em Realengo. Pouco tempo depois, porém, numa viagem de bonde, vi um cartaz colorido da Associação Cristã de Moços anunciando as atividades 18 do seu Departamento de Educação Física: aulas de ginástica, de aparelhos, voleibol, basquete e outras práticas. Interessei-me e guardei o endereço: Rua da Quitanda nº 47. No dia seguinte, fui conhecer a sede da Associação e gostei de tudo que vi: desde a entrada até o segundo andar, onde funcionava o Departamento de Educação Física. Quando entrei no Departamento, fui recebido pelo Diretor Henry Sims, risonho e acolhedor, que me levou para assistir a uma das aulas de ginástica com música, que ia acontecer. Foi a primeira vez que vi ginástica acompanhada ao piano. Todos sorridentes, muita disciplina, exercícios agradáveis. Fiquei entusiasmado! Quando me despedi do Diretor, dei-lhe os parabéns pela perfeita execução da classe e lhe disse: “Vou agora à secretaria, para assinar a minha proposta de sócio da A. C. M.” Após aprovação do meu exame físico-antropométrico, realizado pelo Diretor, recebi permissão para frequentar as aulas. Dias depois, fui convidado a conhecer o Corpo de Monitores, grupo de alunos selecionados e preparados, capazes de ajudar os Professores das diversas classes do Departamento de Educação Física. Essa colaboração era gratuita e voluntária. O Professor Sims convidou-me para pertencer ao Corpo de Monitores e, aceitando, fui conhecer os componentes desta turma especial. Comecei como monitor, numa classe de jovens, de grande frequência. Tempos depois, tive ótima oportunidade: o Diretor ofereceu-me o cargo de funcionário do escritório além da função de monitor. Em poucos dias, já desempenhava devidamente minhas novas funções. Nos momentos oportunos, conversava com o Professor Sims sobre os objetivos da Educação Física. Foram esses interessantes e repetidos diálogos que me fizeram mudar os planos da carreira militar pela forte determinação de ingressar no Instituto Técnico das Associações Cristãs de Moços Sul-Americanos. O Professor Sims empregava, com frequência, uma frase valiosa, que ainda guardo na memória: “A Educação Física é necessária e benéfica em qualquer parte” (MAGALHÃES apud CARVALHO, 1994, p. 24-25). As ACMs fundadas em outras cidades, dentre as quais Belo Horizonte e Porto Alegre, continuaram a difundir a Calistenia, que teve seu período áureo após a Segunda Guerra Mundial, quando chegou a ser adotada pelo exército nacional, que utilizava nos exercícios, ao invés de halteres, bastões ou massas, os fuzis. A Marinha do Brasil, pelo seu entrosamento com a dos Estados Unidos, também adotou a Calistenia, 19 método de ginástica ideal para ser praticado no tombadilho dos navios e nos locais de espaço reduzido. A própria Escola de Educação Física do Exército, que sempre fora baluarte do Método Francês, promoveu várias demonstrações de Calistenia. Com a orientação eclética das escolas de educação física brasileiras, a Calistenia passa, a partir de 1947, a fazer parte do currículo das mesmas. Para Marinho (s.d.), a Calistenia é um sistema de ginástica que encontra suas origens na ginástica sueca e que apresenta, como características, a predominância de formas analíticas, a divisão dos exercícios em oito grupos, a associação da música ao ritmo dos movimentos, a predominância dos movimentos sobre as posições e exercícios à mão livre e com pequenos aparelhos (halteres, bastões, maças etc.) (p. 265). Observe-se: Assim como se estabelece relação entre a Calistenia e a Ginástica Sueca, pode-se estabelecer relação, por exemplo, entre essas duas “sistematizações” e a prática contemporânea das ginásticas de musculação e/ou localizadas. É umexercício de reflexão que se estabelece associado ao objetivo de reconhecer, nas manifestações contemporâneas de ensino da ginástica/educação física, vestígios dos métodos/sistemas históricos do referido ensino. O método natural austríaco Segundo Marinho (1980), o desmembramento do império ‒ após a guerra de 1914/1918 ‒ e os sofrimentos suportados pelo povo austríaco provocaram uma reação no sentido de regenerar física e moralmente a juventude através de exercícios físicos. Muitos autores tentaram incorporar a educação física aos programas de educação geral. Seus esforços foram orientados para uma ginástica natural, com aplicação da higiene. No entanto, a campanha só tomou forma definitiva quando orientada pela Dra. Margarete Streicher (1891- 1983). Ela colaborou ativamente com o Dr. Karl Gaulhofer (1885-1941), que dirigiu o “Instituto para Cuidados Físicos e Exercícios Corporais” em Viena, e, mais tarde, foi nomeado Inspetor de Educação Física para 20 se tornar, em 1922, Conselheiro de Estado, encarregado de organizar a ginástica escolar. Streicher e Gaulhofer viram malograr seus esforços de tantos anos, quando, a partir de 1938, foi a Áustria anexada à Alemanha, primeiro passo de Hitler na sua expansão imperialista. Uma das imediatas consequências desse golpe político-militar foi a adoção, em caráter compulsório, do método alemão de ginástica (que, na ocasião, já estava influenciado pela chamada ginástica natural). Depois da ocupação alemã (1938), sofreram os austríacos a ocupação soviética, da qual só se libertaram mediante manobras de paciente diplomacia. Depois de libertada da opressão estrangeira, o Método Natural Austríaco (ginástica, exercícios e jogos populares, esportes de verão e inverno, natação, esgrima e luta, camping, alpinismo, ginástica artística) ressurgiu, encontrando boa acolhida em vários países, inclusive no Brasil, onde já existia uma tendência à adoção das atividades naturais. Muitos professores emigraram da Europa Central para os Estados Unidos e para países da América Latina, dentre os quais o Brasil; a professora Illona Peuker (1915-1995), que se fixou no Rio de Janeiro, trouxe valiosa contribuição à Ginástica Feminina Moderna. Para Marinho (1980), a influência austríaca, em nosso país, tornou-se muito mais evidente na ginástica feminina do que na masculina. O yoga (ioga) Os yogues consideram o corpo humano como o templo do “espírito vivo”, merecendo, portanto, ser elevado ao maior grau de perfeição. É para o bem da “alma” que os yogues desejam o bem-estar corporal. O Yoga representa contribuição (milenar) da sabedoria hindu para o mundo ocidental. Importa destacar que o Yoga integra um sistema filosófico de vida e não um sistema ginástico. Contudo, é certo que forneceu e fornece elementos/ensinamentos que contribuíram e contribuem para o trato com a complexidade biopsicossocial do corpo através da ginástica/educação física. Nesse sentido, dentre outros 21 elementos/ensinamentos, pode-se destacar a prática de asanas (posturas) e de pranayamas (respirações). Prana é a fonte de energia; energia encontrada no ar sob forma fluída. Sem prana, não há vida. Através da respiração, absorvemos o prana. Em certo sentido, o pranayama representa conhecimento e controle do prana. As posturas, juntamente com as respirações, proporcionam ao “corpo” flexibilidade, vigor, força, concentração, relaxação, dentre outros benefícios biopsicossociais. Para Marinho (1980), a formação de professores de educação física ficaria incompleta sem, pelo menos, noções fundamentais sobre Yoga. Considere-se, portanto, que a ginástica/educação física envolve, também, relaxamento, descontração, “meditação”; os benefícios de atividades corporais provenientes, por exemplo, do Yoga e do Tai chi chuan.11 Como assinala a reportagem do jornal: “Aulas de ioga para desestressar as crianças. Colégios usam técnica milenar em turmas de educação infantil, o que ajuda a aumentar a concentração nos estudos” (jornal O Globo, 11 nov. 2007). O halterofilismo Segundo Marinho (1980), o uso dos halteres perde-se nos primórdios da cultura helênica. Halter é palavra tipicamente grega e não originariamente latina, muito embora nos tenha chegado por intermédio do latim. Os gregos utilizavam os halteres como balancins para saltar. O moderno halterofilismo se expande no final do século XIX e início do século XX. Em nosso país, o halterofilismo surge praticado nas academias de cultura física e clubes de regatas, em cujas “garagens” constitui atividade de grande relevo. O número de halterófilos, não apenas em nosso país, cresce dia a dia. 11 Movimento que aponta também para a ideia de “ginásticas suaves” e/ou alternativas; expressão e consciência corporal etc. Sobre o assunto, indico a leitura do livro “Saúde e espiritualidade nas atividades corporais” (LACERDA, 2001). 22 Parece-me importante, então, estimular uma atividade analítico- reflexiva associada ao fato de jovens se esquivarem da educação física escolar (apresentam justificativas para não praticar), ao mesmo tempo em que praticam, por exemplo, ginásticas de musculação e/ou localizadas em academias. As questões emergem consequentemente: Como lidar com o conteúdo (ou manifestação da cultura corporal) “musculação/ginástica localizada” no interior da escola? Em que medida esse conteúdo pode contribuir com a práxis da educação física escolar? A ginástica feminina moderna Para Marinho (1980), a Ginástica Feminina Moderna não se trata de um sistema ou método de ginástica feminina, mas de um movimento renovador, tal qual ocorreu no campo artístico com a chamada arte moderna. A transferência do campo objetivo ao subjetivo que se opera nas artes alcança também a ginástica, compreendida como uma importante manifestação de arte. Segundo Marinho (1980), a chamada Ginástica Feminina Moderna reveste-se de todas as características que a identificam como uma mensagem não apenas aos sentidos, mas às supremas exigências da razão e da sensibilidade, satisfazendo à inteligência e à vida emocional. É das mais relevantes a contribuição das artes para a Ginástica Feminina Moderna. Analogicamente ao que ocorre no campo da dança, por exemplo, quando corpos procuram expressar-se através dos seus movimentos, ou dos movimentos coreográficos, ocorre também na (com a) ginástica; o movimento ginástico vinculado à expressividade, isto é, a prática da ginástica como possibilidade de expressão subjetiva. Essa dimensão é hoje valorada por professores que praticam uma ginástica em que a objetividade do movimento (por exemplo, vinculada ao ganho de força, de flexibilidade etc., à busca por determinado modelo de aparência física) não é a prioridade, senão consequência associada à continuidade do trabalho que se realiza. 23 SUBSÍDIOS PARA O DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO DO(A) PROFESSOR(A) DE GINÀSTICA/EDUCAÇÃO FÍSICA Consideremos uma justificativa para a prática da educação física escolar: Assegurar o ensino-aprendizagem crítico-reflexivo da “cultura corporal de movimento”12, no sentido da aquisição da autonomia necessária a uma prática intencional, que considere o lúdico e os processos sociocomunicativos, nas perspectivas da formação cultural e da adoção de um estilo de vida ativo, prazeroso e saudável (adaptada de RESENDE, 1992). Lembremo-nos das práticas corporais que se tornaram tradicionais no campo da educação física escolar: as ginásticas, os esportes, os jogos e as danças. É interessante observar queas práticas corporais acima indicadas passam a fazer parte do conteúdo da educação física escolar, porquanto são manifestações da cultura. Como tais (manifestações da cultura escolar e não escolar, sublinhando a complexa relação dialética que se estabelece entre ambas), é de se compreender que existem demandas/expectativas a elas associadas, como por exemplo, saúde/estética, lazer, estrutura psicomotora, rendimento. Reflitamos sobre as questões: (1) Por que praticar educação física escolar? (2) Por que crianças e jovens adolescentes praticam educação física escolar? (3) Por que alunas(os) se esquivam da prática da educação física no interior da escola e a seguem praticando fora dela (em academias de ginástica, em clubes, em projetos sociais etc.)? (4) Por que a ginástica não parou de crescer fora da escola? (5) Por que a ginástica não cessou de perder espaço dentro da escola? (6) A “ginástica aeróbica” e suas variações, a “musculação/ginástica localizada” e os exercícios de flexibilidade, por exemplo, podem contribuir com o trabalho que se pretende desenvolver com a educação física na escola? (7) Saúde e estética são ideias/conceitos que podem ser considerados indissociáveis, porquanto associados a condições 12 Expressão utilizada nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998). 24 subjetivas? (8) Realizam-se movimentos (práticas corporais) sem objetivos, sejam eles conscientes ou inconscientes? Transitamos pelo campo pedagógico, pelo processo de ensino- aprendizagem, pela complexidade/responsabilidade que envolve elaborar um plano de aula e/ou de trabalho (pensemos em um conjunto de aulas). A disciplina é a educação física e o conteúdo a ginástica; mas não aquela ginástica que assume características de esporte, como por exemplo, a “ginástica artística”. Questão: Por que a ginástica “não esportivizada” como conteúdo da educação física escolar? As indagações não são simples. Para que possamos encontrar um caminho, respostas que nos forneçam um sentido teoricamente fundamentado, parece ser necessário estimular nosso potencial crítico- reflexivo. Façamos então um exercício de análise das “tendências pedagógicas” abaixo listadas. Algumas das “tendências pedagógicas” que se encontram presentes no cenário da educação física escolar subsidiando uma (reflexão sobre a) práxis da ginástica Biológico-funcional Trabalhar as qualidades/capacidades físicas, objetivando o desenvolvimento da aptidão física e a promoção/manutenção da “saúde”. Um exemplo: Solicitar que o jovem corra em volta da quadra de esportes, durante certo período de tempo, com o objetivo de avaliar/trabalhar sua resistência aeróbia. Outro exemplo: Aplicar testes de força e de flexibilidade, com o objetivo de mensurá-las/avaliá-las, para subsidiar certa práxis da ginástica. Técnico-esportiva Trabalhar as habilidades físicas, técnicas e táticas, tematizadas nas diferentes modalidades esportivas, objetivando o estímulo à prática do esporte institucionalizado e a descoberta de talentos esportivos. 25 Por exemplo: Atribuir nota/conceito para a execução “correta” da técnica do “toque” no voleibol, esporte que está sendo trabalho no bimestre letivo. Ao final do bimestre, organizar um torneio entre turmas, em que cada turma será representada por um time (dos “melhores” da turma). Ao longo do bimestre letivo e do torneio, pinçar potenciais talentos para o voleibol, no sentido de que façam parte da “seleção da escola” etc. Formativo-recreativa Vivenciar prazerosamente/recreativamente diferentes atividades físico- esportivas. Trabalhar as estruturas psicomotoras de base, objetivando contribuir com o domínio/controle do corpo. Criando possibilidades: Vivência lúdica de jogos e brincadeiras (estafetas, circuitos etc.) que exijam habilidades psicomotoras diferenciadas. Pensemos, aqui, em como o domínio/controle do corpo pode ser lúdico, estético, quando, por exemplo, o sujeito percebe e passa a dominar um movimento novo, criativo. Pensemos em como as estruturas psicomotoras de base podem assumir importância na vida adulta; por exemplo, quando o desprazer corporal se manifesta associado à dificuldade de execução do movimento ginástico. Sociocultural Conhecer e vivenciar, com qualidade, o maior número possível de manifestações da “cultura corporal de movimento” (de ginásticas, de esportes, de jogos e de danças), com destaque para aquelas que são mais valorizadas/praticadas no âmbito da própria cultura, objetivando uma prática intencional, crítico-reflexiva, autônoma e saudável. Criando possibilidades: Vivência de ginásticas (exercícios físicos, atividades físico-esportivas) utilizadas na cultura/comunidade em que a escola está inserida, ou seja, ginásticas que são praticadas pelas pessoas da cultura/comunidade com finalidades diversas (por exemplo, de saúde/estética, como preparação para a prática de outras atividades físico-esportivas, recreativa, de convívio social etc.). Conhecer os 26 fundamentos técnico-científicos dessas ginásticas. Conhecer e avaliar criticamente os motivos/impulsos pessoais, subjacentes às práticas. Ao considerarmos as quatro “tendências pedagógicas” acima listadas, os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) nos oferecem elementos interessantes para a compreensão de que os objetivos da educação física escolar devem seguir prioritariamente em sentido diverso daqueles associados às tendências pedagógicas “biológico- funcional” e “técnico-esportiva”. Observemos os parágrafos abaixo: Com apoio nas discussões que vinham ocorrendo nas áreas educacionais e na tentativa de romper com o modelo hegemônico do esporte praticado nas aulas de Educação Física, a partir da década de 80 (1980, o parêntese é meu) são elaborados os primeiros pressupostos teóricos num referencial crítico, com fundamento no materialismo histórico e dialético. As abordagens críticas passaram a questionar o caráter alienante da Educação Física na escola, propondo um modelo de superação das contradições e injustiças sociais. Assim, uma Educação Física crítica estaria atrelada às transformações sociais, econômicas e políticas, tendo em vista a superação das desigualdades sociais. Esta abordagem levanta questões de poder, interesse e contestação. Acredita que qualquer consideração sobre a pedagogia mais apropriada deve versar não somente sobre como se ensinam e como se aprendem esses conhecimentos, mas também sobre as suas implicações valorativas e ideológicas, valorizando a questão da contextualização dos fatos e do resgate histórico. Busca possibilitar a compreensão, por parte do aluno, de que a produção cultural da humanidade expressa uma determinada fase e que houve mudanças ao longo do tempo. Essa reflexão pedagógica é compreendida como sendo um projeto político pedagógico. Político porque encaminha propostas de intervenção em determinada direção, e pedagógico porque propõe uma reflexão sobre a ação dos homens na realidade, explicitando suas determinações. Quanto à seleção de conteúdos para as aulas de Educação Física, sugere que se considere a sua relevância social, sua contemporaneidade e sua adequação às características sociocognitivas dos alunos. Em relação à organização do currículo, ressalta que é preciso fazer o aluno confrontar os 27 conhecimentos do senso comum com o conhecimento científico, para ampliar o seu acervo. Além disso, sugere que os conteúdos selecionados para as aulas de Educação Física devem propiciar uma melhor leitura da realidade pelosalunos e possibilitar, assim, sua inserção transformadora nessa realidade (BRASIL, 1998, p. 25-26). A ideia de inserção transformadora na realidade aponta para outra, que é a de cidadania. O cidadão é aquele que conhece (por exemplo, os afetos associados às práticas ginástico-corporais); conhecendo, pode avaliar/questionar (por exemplo: Em que medida a prática da “musculação” é saudável? Meu desejo é saudável? Mas, o que é saúde?); ao conhecer e avaliar, pode se posicionar, criticar, rejeitar, apropriar-se com autonomia, democratizar a avaliação e o conhecimento etc. Sobre o assunto, verifiquemos os trechos abaixo, extraídos dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 2000): No mundo contemporâneo, marcado pelo apelo informativo imediato, a reflexão sobre as linguagens e seus sistemas, que se mostram articulados por múltiplos códigos, e sobre os processos e procedimentos comunicativos é mais do que uma necessidade, é uma garantia de participação ativa na vida social, a cidadania desejada (BRASIL, 2000, p. 6). Os objetivos da Educação Básica, no Art. 22 da LDB, já apontam a finalidade da disciplina, ou seja, desenvolver o educando, assegurar-lhe formação indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos superiores. De que forma o ensino da disciplina pode visar a esse desenvolvimento? Essa é a primeira decisão a ser tomada na sua inclusão curricular (BRASIL, 2000, p. 17). A LDB nº 9.394/96 aponta as finalidades específicas do Ensino Médio: a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental; o prosseguimento dos estudos; o preparo para o trabalho e a cidadania; o desenvolvimento de habilidades como continuar a aprender e capacidade de se adaptar com flexibilidade às novas condições de ocupação e aperfeiçoamento; o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; e a compreensão dos 28 fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando teoria e prática. A visão legal, quando confrontada com a realidade do ensino de Educação Física, apresenta-nos um paradoxo: a nossa prática pedagógica em pouco tem contribuído para a compreensão dos fundamentos, para o desenvolvimento da habilidade de aprender ou sequer para a formação ética. Nesse sentido, uma vinculação das competências da área com os objetivos do Ensino Médio e a opção pela aproximação desses com o ensino de Educação Física parece-nos a saída para o impasse com o qual nos deparamos. O motor dessa transformação é a real constatação de que o educando vem, paulatinamente, se afastando das quadras, do pátio, dos espaços escolares e buscando em locais extra-escolares experiências corporais que lhe trazem satisfação e aprendizado como parques, clubes, academias, agremiações, festas regionais (BRASIL, 2000, p. 33-34). Darido et al. (2001) contribuem com o debate produzindo um texto em que sintetizam elementos correlacionados aos Parâmetros Curriculares Nacionais e ao fazer pedagógico do professor de educação física. Considero esses elementos fundamentais para o fazer pedagógico do professor no sentido mesmo de planejar, mas também no de colocar em prática esse planejamento, isto é, na lida cotidiana com a educação física no interior (chão) da escola. Um primeiro elemento reforça a ideia de formação para a cidadania: Eleger a cidadania como eixo norteador significa entender que a Educação Física na escola é responsável pela formação de alunos que sejam capazes de: a) participar de atividades corporais adotando atitudes de respeito mútuo, dignidade e solidariedade; b) conhecer, valorizar, respeitar e desfrutar da pluralidade de manifestações da cultura corporal; c) reconhecer-se como elemento integrante do ambiente, adotando hábitos saudáveis relacionando-os com os efeitos sobre a própria saúde e de melhoria da saúde coletiva; d) conhecer a diversidade de padrões de saúde, beleza e desempenho que existem nos diferentes grupos sociais, compreendendo sua inserção dentro da cultura em que são produzidos, analisando criticamente os padrões divulgados pela mídia; e) reivindicar, organizar e interferir no espaço de forma autônoma, bem como reivindicar 29 locais adequados para promover atividades corporais de lazer (DARIDO et al., 2001, p. 18). Outros três elementos auxiliam na compreensão de uma “proposta de Educação Física cidadã” (DARIDO et al., 2001, p. 19): 1) o princípio da inclusão; 2) as dimensões dos conteúdos (atitudinais, conceituais e procedimentais); 3) os temas transversais (ética, meio ambiente, trabalho e consumo, orientação sexual, pluralidade cultural, saúde). Inclusão A sistematização de objetivos, conteúdos, processos de ensino e aprendizagem e avaliação tem como meta a inclusão do aluno na cultura corporal de movimento, por meio da participação e reflexão concretas e efetivas. Busca-se reverter o quadro histórico da área de seleção entre indivíduos aptos e inaptos para as práticas corporais, resultante da valorização exacerbada do desempenho e da eficiência (BRASIL, 1998, p. 19). Mas se tratamos de inclusão, lidamos necessariamente com o seu contraponto que é a exclusão, e com a não exclusão. Observemos o que dizem Darrido et al. (2001): De todos os fatores de exclusão, talvez o mais grave esteja relacionado à exclusão social. Na escola percebemos que este fator está relacionado não apenas ao ingresso, mas também à permanência na escola. Por inúmeras razões, tais como não possuir o material adequado para acompanhar as aulas, por terem que ingressar rapidamente no mercado de trabalho para auxiliar a família ou por repetirem de ano, crianças e adolescentes acabam desistindo ou mesmo sendo obrigadas a abandonar a escola. Todavia, a exclusão, discriminação e/ou preconceito não se refere apenas ao abandono escolar, reflete-se em ações de todos os envolvidos no contexto educacional, mesmo que sem intenções, culpas ou clareza quanto a esse processo. [...] Em Educação Física, tais fenômenos ainda são pouco estudados em conjunto, mas a exclusão das práticas de atividades físicas dos menos habilidosos, dos “gordinhos”, dos portadores de necessidades especiais, dos que usam óculos, das meninas em determinados esportes, entre 30 outros, são exemplos que mostram a extensão da complexidade do problema. A história da Educação Física no Brasil sugere que, mesmo dentro do contexto escolar, sempre houve a seleção dos mais aptos em detrimento dos inaptos, propiciando a exclusão de muitos alunos do contexto da cultura corporal de movimento. [...] Mesmo quando alertados para tal fato, muitos professores, em virtude do enraizamento (tradição) de determinadas atividades excludentes possuem dificuldades em refletir e modificar tais atividades (DARIDO et al., 2001, p. 19-20). Dimensões dos conteúdos “Os conteúdos são apresentados segundo sua categoria conceitual (fatos, conceitos e princípios), procedimental (ligados ao fazer) e atitudinal (normas, valores e atitudes)” (BRASIL, 1998, p. 19). [...] o papel da Educação Física ultrapassa o ensinar esporte, ginástica, dança, jogos, atividades rítmicas, expressivas e conhecimento sobre o próprio corpo para todos, em seus fundamentos e técnicas (dimensão procedimental), mas inclui também os seus valores subjacentes, ou seja, quais atitudes os alunos devem ter nas e para as atividades corporais (dimensão atitudinal). E, finalmente, busca garantir o direito do aluno de saber por que ele está realizando este ouaquele movimento, isto é, quais conceitos estão ligados àqueles procedimentos (dimensão conceitual) (DARIDO et al., 2001, p. 19-20). Dimensão procedimental → saber fazer. Dimensão atitudinal → o movimento como um meio para o aluno aprender sobre seus potenciais e suas limitações. Dimensão conceitual → o movimento como um meio para o aluno refletir sobre um corpo objetivo de conhecimentos e se apropriar do mesmo. Temas transversais Tais temas são chamados de Temas Transversais, pois podem/devem ser trabalhados por todos os componentes curriculares, logo, sua interpretação pode se dar entendendo-os como as ruas principais do currículo escolar que necessitam ser atravessadas/cruzadas por todas as disciplinas. Os 31 temas desenvolvidos apresentam as seguintes problemáticas: Ética, Meio Ambiente, Trabalho e Consumo, Orientação Sexual, Pluralidade Cultural e Saúde, ou outros temas que se mostrem relevantes (DARIDO et al., 2001, p. 22). Ética O desenvolvimento moral do indivíduo está intimamente relacionado à afetividade e à racionalidade, e nas aulas de Educação Física escolar ocorrem situações que permitem uma intensa mobilização afetiva e interação social. Tal cenário apresenta-se como ambiente ideal para explicitação, discussão, reflexão e aplicação de atitudes e valores considerados éticos ou não éticos para si e para os outros (DARIDO et al., 2001, p. 23). Assim, há de se observar, por exemplo, que nas aulas de educação física ocorrem situações em que certos alunos fazem com colegas o que não gostariam que os colegas fizessem com eles (desrespeitam, excluem, ironizam etc.). Meio ambiente O mesmo referencial capaz de trazer esclarecimentos sobre o relacionamento entre a sociedade e a natureza, traz também contribuições para o entendimento da relevância da Educação Física como parte integrante da escola, para trabalhar com atitudes, formação de valores, com o ensino e aprendizagem de habilidades e procedimentos, no sentido da construção de comportamentos “ambientalmente corretos” (DARIDO et al., 2001, p. 24-25). Se pensarmos, por exemplo, na apropriação desequilibrada dos recursos naturais, e compreendendo o ser humano como parte integrante do “meio ambiente”, analogicamente ao lixo que se joga em um rio, o sangue contaminado pelo uso de drogas (lícitas ou ilícitas) polui o nosso planeta? 32 Trabalho e Consumo O tema pretende problematizar com os alunos a quantidade e diversidade de “trabalho” presente em cada produto ou serviço e suas relações, que são muitas e bastante complexas. A globalização, o trabalho escravo, infantil, a maximização do lucro a qualquer custo, o incremento da tecnologia, a diminuição dos postos de trabalho, o desemprego, as estratégias de vendas agressivas, a manipulação de desejos criando-se necessidades e novos padrões de consumo, o consumo de marcas, de qualidade, durabilidade, adequação ao uso, preço e os direitos do consumidor são alguns dos temas que devem ser discutidos dentro da escola, por todos os componentes curriculares (DARIDO et al., 2001, p. 25). Quando refletimos sobre as mudanças que ocorreram nas vestimentas destinadas à prática do esporte e dos exercícios físicos, ou acerca do consumo de aparelhos para ginástica. O que é necessário? O que é meramente comercial? Qual a durabilidade, preço e qualidade dos produtos esportivos? Quem os produz? De que forma os produz? Por que os produz? Ao consumir um tênis o jovem está consumindo um símbolo? E se problematizarmos acerca da empregabilidade/desempenho no campo esportivo? A performance atlética do espetáculo ou a performance esportiva humana? De um lado, estão implicados valores próprios da sociedade atual, como o trabalho alienante onde o corpo é usado e manipulado pelo próprio sujeito- atleta e/ou pelos especialistas (comissão técnica etc.), para alcançar o rendimento máximo, em um curto espaço de tempo, atendendo aos interesses que gravitam no entorno do espetáculo, como a venda de produtos e a imagem do próprio sujeito-atleta ou do patrocinador. De outro lado, mais do que se preocupar com a performance e/ou superfície do corpo para se apresentar na cena social, atende a uma melhora do ser humano por meio do esporte. E aqui a atividade físico-esportiva seria um instrumento, um meio para o ser humano descobrir, manter, ou desenvolver suas potencialidades (COELHO FILHO, 2007, p. 163-164). 33 Orientação Sexual Esse tema engloba os conceitos de sexualidade ligada naturalmente à vida e à saúde; às questões de gênero dando ênfase ao papel social de homens e mulheres e os estereótipos e preconceitos da relação entre ambos; além das discussões relacionadas às doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez na adolescência. [...] A tarefa do professor de Educação Física é perceber, levantar e discutir essas questões mantendo uma postura crítica e reflexiva de tal maneira que seus próprios valores não sejam explicitados e tomados como verdadeiros. [...] As aulas de Educação Física (que, na maioria das vezes, são mistas) também se encontram repletas de situações ligadas às relações de gênero, ou seja, a construção social e cultural do masculino e do feminino. Os valores preconceituosos são explicitados nas atitudes cotidianas dos alunos (DARIDO et al., 2001, p. 25-26). Assim, nas aulas de educação física podemos objetivar, por exemplo, empoderar meninas para as práticas físico-esportivas tradicionalmente consideradas masculinas (esportes como o futebol, ginásticas de “musculação” etc.), correlativamente, empoderar meninos para as práticas físico-esportivas tradicionalmente consideradas femininas (danças, ginásticas rítmicas etc.). Pluralidade Cultural O tema tem como objetivo o desenvolvimento do respeito e da valorização das diversas culturas existentes no Brasil e no mundo, contribuindo assim para uma convivência mais harmoniosa em sociedade, com o repúdio a todas as formas de discriminação. Por meio da vivência de diferentes “manifestações da cultura corporal” (ginásticas, danças, esportes, jogos), pode-se demonstrar a riqueza e a diversidade de expressões. [...] em virtude de sua riqueza sociológica, o esporte pode ser um grande polo de reflexão sobre os problemas relacionados à diversidade étnica e cultural, principalmente em virtude de estar sempre presente na mídia, revelando conflitos, que poderiam significar uma grande oportunidade de se discutir com os alunos, questões como: a) a prática de declarações preconceituosas em momentos de grande tensão; b) motivos da presença 34 de determinados grupos étnicos em esportes populares (futebol, atletismo, basquete), em detrimento da pequena participação destes mesmos grupos em esportes mais elitizados (automobilismo, golfe, tênis); c) a possibilidade de integração entre diferentes povos, quando da realização de eventos internacionais maciçamente divulgados (olimpíadas, copas do mundo de futebol); e, d) outras questões que estejam em destaque na mídia (DARIDO et al., 2001, p. 24). Saúde O conceito de saúde apresenta limitações quando se pretende defini-lo de maneira estanque e conclusiva. Isto porque quando se fala em saúde não podemos deixar de considerar seus fatores de influência e determinação: o meio ambiente, os aspectos biológicos, socioeconômicos, culturais, afetivos e psicológicos. Com esse significado mais dinâmico do conceito de saúde, os PCNs fundamentam a concepção de saúde no exercício da cidadania, argumentando que é preciso capacitar os sujeitos a se apropriarem de conceitos, fatos, princípios,tomar decisões, realizar ações e gerar atitudes saudáveis na realidade que os mesmos estão inseridos (DARIDO et al., 2001, p. 26). Como possibilidade reflexiva, parece importante problematizar a crença na relação de causa e efeito entre exercício físico e saúde, reproduzida pelos meios de comunicação de massa e possivelmente pelo próprio professor de educação física. Como observa Devide (2003), a grande maioria dos formandos de cursos de Licenciatura em Educação Física deixa a universidade em direção ao mercado de trabalho reproduzindo o conhecimento reificado a respeito do binômio exercício físico-saúde, estabelecendo uma relação de causalidade, não discutindo ou reconhecendo os múltiplos fatores que influenciam o status da saúde individual e coletiva. Alguns temas que podem ser trabalhados em aula referem-se às inúmeras associações da saúde com o esporte. O professor necessita desnudar esse cenário, pois afinal de contas, será que o esporte é só saúde? Como explicar, por exemplo, a utilização abusiva do “doping” no meio esportivo? Ou ainda, qual a justificativa saudável entremeio a tantas lesões causadas pela prática do esporte? Outra discussão possível, associando Educação Física com a saúde, diz respeito à “malhação” desmedida. Será que 35 somente a prática de atividades físicas garante uma vida saudável? E os modelos de corpo ditados pela mídia, onde está a saúde nesta história? Ser magro(a) será que é sinônimo de ser saudável? (DARIDO et al., 2001, p. 27). 36 ANÁLISE CONCEITUAL DE MOVIMENTOS-EXERCÍCIOS UTILIZADOS NA GINÁSTICA/EDUCAÇÃO FÍSICA Diferentes formas de olhar os movimentos ginásticos, de acordo com objetivos de trabalho Naturais: Próprios da evolução “natural”13 do ser humano. Digamos que os exercícios naturais seguem relacionados aos movimentos básicos ou fundamentais do homem, isto é, relacionados, por exemplo, aos movimentos que os bebês e as crianças vão “naturalmente” realizar nos seus processos de desenvolvimento: rolar, quadrupedar, escalar, andar, lançar, correr, saltar... Para Dallo (2007), “os movimentos do homem são naturais porque sua estrutura psicoanatomofisiológica o habilita a realizá-los. São próprios da natureza humana” (p. 30). As características dos exercícios naturais surgem das possibilidades próprias do movimento, síntese funcional do corpo humano, originando ações motoras, que o relacionam com o meio físico, e ordenando sua permanente relação tempo-espaço-objeto (DALLO, 2007, p. 32). Os movimentos naturais tornam-se exercícios ginásticos quando são utilizados didaticamente/pedagogicamente para direcionar a formação corporal. Por exemplo, “quando se enquadra o ato de ‘correr’ (movimento natural) dentro de normas de distância e velocidade, para atingir um tipo específico de resistência” (DALLO, 2007, p. 30). Os exercícios naturais respondem a um tratamento “global” do corpo. Como dizem Langlade e Langlade (1970), uma das “principais características mecânicas dos exercícios naturais é demandar a quase total ou a total intervenção de todo o corpo para sua execução (estruturas sintéticas e/ou globais)” (p. 383). 13 O termo aparece grifado em função de certa complexidade associada a sua utilização/compreensão. A distinção entre “natural” e “não natural” adquire mais sentido no mundo animal; assim se dirá que o movimento animal é natural em vista de seguir um instinto e não um adestramento (instrução). O “natural humano comporta sempre ambiguidade. Existe de uma parte a ingenuidade, a espontaneidade primeira, e existe de outra parte um natural adquirido e secundário” (LANGLADE; LANGLADE, 1970, p. 427). 37 Lembrando: “A principal fonte de inspiração de Hébert (‘método natural’, o parêntese é meu) foi a observação dos costumes de povos primitivos e sua repercussão sobre a formação física e viril de seus membros” (LANGLADE; LANGLADE, 1970, p. 271). Construídos (“artificiais”, formais, sistematizados, metodizados): Aplicados com objetivos determinados: por exemplo, alcançar efeitos sobre as qualidades físicas, sobre o gesto esportivo e/ou sobre a construção técnica dos movimentos (de relaxamento, de balanço e/ou condução, de impulsos, explosivos etc.), sobre os processos de reabilitação... Características dos exercícios construídos, com base em Dallo (2007): Eles são sempre consequência de um projeto de construção inserido em normas específicas para assegurar um efeito que modifica qualitativamente partes do corpo, ou todo ele, e suas possibilidades de movimento. O enfoque nas partes do corpo ou em sua totalidade, as localizações, sua mecânica corporal e sua energia, o uso do espaço corporal e o tempo de acionamento são definidos e combinados de maneira ajustada em uma forma precisa de movimento. Essa forma pode ser aberta ou fechada, quer corresponda a um tratamento localizado (enfoque parcial), quer global (enfoque total) do corpo. Esse tipo de exercício vincula-se às possibilidades de análise e precisão de efeitos, constituindo-se em um meio eficaz de alcançar ajustes ‒ na formação corporal e em sua motricidade ‒ por meio da integração da ação das partes do corpo. Sua estruturação construída não é um obstáculo para que, na execução prática, os exercícios tendam à síntese, por um princípio de ajuste, automatização e economia de esforço, e à naturalidade de acionamento, como consequência do amadurecimento da aprendizagem (p. 33). Observações: É preciso não confundir “naturalidade” na execução com exercícios “naturais”. Os denominados exercícios “naturais” e “orgânicos”, não podem opor-se aos tradicionalmente chamados “construídos” ou “artificiais”, porque todos 38 são “construídos”, embora respondam a diferentes objetivos na construção e coloquem a seus serviços distintos procedimentos técnico-metodológicos (LANGLADE; LANGLADE, 1970, p. 434). A origem dos movimentos-exercícios sempre foi natural, pela capacidade de realização do homem e por solucionar suas necessidades relacionais. Quanto ao uso do movimento para a formação do homem no campo da pedagogia, sempre se construíram as situações de aprendizagem e direcionaram-se especificamente as tendências dos movimentos- exercícios para formas construídas que, pelo processo de aprendizagem e automatização, são incorporadas como ações ou hábitos motores naturais (DALLO, 2007, p. 36). As formas naturais e as formas construídas de movimento foram preservadas ao longo da história do desenvolvimento da ginástica. Ambas deram origem a diferentes escolas, que fundamentaram sua sistematização a partir de: um enfoque anatomofisiológico (formas construídas); um enfoque em ações de movimentos corporais (formas naturais). A preponderância de uma dessas formas de movimento- exercício, que definiram as propostas de diferentes escolas, gera também estilos de trabalho característicos, que tendem à formação corporal e/ou à formação do movimento. As duas tendências sempre partiram da análise das partes do corpo para culminar, em algumas escolas, no predomínio do tratamento de sua integração no acionamento do todo corporal. Esse aparente predomínio do movimento, ao ressaltar seus aspectos pela percepção visual da forma e do estilo de um exercício, com frequência pode encobrir ou fazer com que passem inadvertidos os aspectos corporais (força, mobilidade articular, alongamento muscular, flexibilidade corporal) que também são desenvolvidos e participam
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