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0 KARLA CRISTINA FERRO FREIRE QUE REGGAE É ESSE QUE JAMAICANIZOU A “ATENAS BRASILEIRA”? Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão para obtenção do Título de Mestre em Ciências Sociais. Orientador: Profº Dr. Carlos Benedito Rodrigues da Silva São Luís 2010 1 Freire, Karla Cristina Ferro Que reggae é esse que jamaicanizou a ―Atenas brasileira‖? / Karla Cristina Ferro Freire. — São Luís, 2010. 217f. Impresso por computador (fotocópia). Orientador: Carlos Benedito Rodrigues da Silva. Dissertação (Mestrado) — Universidade Federal do Maranhão, Programa de Pós–Graduação em Ciências Sociais, 2010. 1. Reggae — Identificação — São Luís–MA I. Título CDU 316.7:784.75 (812.11) 2 KARLA CRISTINA FERRO FREIRE QUE REGGAE É ESSE QUE JAMAICANIZOU A “ATENAS BRASILEIRA”? Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão para obtenção do Título de Mestre em Ciências Sociais. Aprovada em: 12/03/2010 BANCA EXAMINADORA _____________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Benedito Rodrigues da Silva (Orientador) Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UFMA _____________________________________________________ Prof. Dr. Álvaro Roberto Pires Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UFMA _____________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Sergio da Costa Neves Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UFS 3 À Maria e Celeste, que me incentivaram a ouvir e dançar reggae desde criança; e à minha avó, Isabel (in memoriam), exemplo de força e coragem. 4 AGRADECIMENTOS Ao longo desses dois anos, muitas pessoas contribuíram das mais diversas formas para que eu conseguisse seguir em frente com otimismo e perseverança na formulação deste trabalho. E, por isso, quero agradecer: Aos meus pais, Graça e Miguel, por terem se dedicado incondicionalmente a mim e à minha formação, pelo amor e incentivo. E aos meus irmãos, Eduardo, Flavio e Claudio, e à Vívia e Fernanda, pelo apoio e amizade. Aos professores do Mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão, principalmente, Profº Dr. Carlos Benedito Rodrigues da Silva, meu orientador, por me ajudar a construir este trabalho, e aos membros da banca de qualificação, Profº Dr. Benedito Souza Filho e Profª Dra. Elizabeth Beserra Coelho, que contribuíram com importantes sugestões e críticas à minha pesquisa, e pelo interesse em me ajudar. Agradeço também aos professores com os quais tive contato direto na sala de aula: Profº Dr. Álvaro Roberto Pires, Profª Dra. Maristela de Paula Andrade, Profº Dr. Sérgio Figueiredo Ferretti, Profº Dr. Igor Gastal Grill e Profº Dr. Alexandre Fernandes Corrêa, pelas contribuições valiosas fornecidas ao longo do curso. Aos professores do Curso de Comunicação Social e da especialização em Jornalismo Cultural da UFMA, em especial, Ester Marques, pelo incentivo, amparo e amizade, desde a época da graduação; Junerlei Dias e Flávio Reis por serem tão inspiradores e instigadores. A meus colegas da universidade, pela troca de conhecimento, pelos bons momentos e pelas discussões fundamentais para a sedimentação deste trabalho. A todas as pessoas que contribuíram com esta pesquisa durante o trabalho de campo, quer seja fornecendo informações importantes, concedendo entrevista ou apenas conversando sobre o meu tema de estudo. Agradeço especialmente, a Fauzi Beydoun, pela disponibilidade e pelo interesse em minha pesquisa; a Tarcísio Selektah, fonte de muitas informações e inquietações, a Ramúsyo Brasil, pela troca de ideias e fotos cedidas, e a todos os freqüentadores e apreciadores de reggae que se dispuseram a conversar comigo. Aos meus amigos, que estão sempre presentes em minha vida nos momentos bons e nos difíceis, alegrando-me e animando-me, pelos necessários dias de festa e farra, e por compreenderem as minhas faltas quando eu precisava ler, pesquisar ou escrever. Aos meus colegas de trabalho, que me deram força e suporte para que eu tivesse tempo e pudesse me dedicar para desenvolver esta pesquisa. 5 E, finalmente, a Bruno, meu companheiro, pela paciência, amor e compreensão nos momentos de angústia, pelas conversas e pelo silêncio na hora certa, por me ajudar lendo e opinando sobre o meu trabalho. Obrigada a todos! 6 “Não tenho dúvida nenhuma: a novidade mais importante da cultura brasileira na última década foi o aparecimento da voz direta da periferia falando alto em todos os lugares do país. A periferia se cansou de esperar a oportunidade que nunca chegava, e que viria de fora, do centro. A periferia não precisa mais de intermediários (aqueles que sempre falavam em seu nome) para estabelecer conexões com o resto do Brasil e do mundo. Antes, os políticos diziam: „vamos levar cultura para a favela‟. Agora é diferente: a favela responde: „Qualé, Mané! O que não falta aqui é cultura! Olha só o que o mundo tem a aprender com a gente!‟” Hermano Vianna, no programa Centra da Periferia, TV Globo. “Do not tell me about my own culture!” Raj, personagem indiano do seriado The Big Bang Theory, para Sheldon, cientista que tentava “explicar” a Raj que, na cultura indiana, as vacas são como deuses. 7 RESUMO O reggae originário da Jamaica desde os anos setenta do século XX, instalou-se em São Luís do Maranhão como um fenômeno sócio-cultural diversificado. Popularizado, inicialmente, entre as classes sociais menos abastadas, sendo marginalizado por setores das elites, sem incentivo governamental ou apoio da mídia hegemônica, conquistou adeptos na Ilha através de um processo de identificação e ressignificação, tornando-se uma opção de lazer importante, principalmente, para a juventude urbana da periferia. Com a adesão de segmentos das classes médias a partir de meados dos anos oitenta, esse estilo musical assumiu novas proporções e significados, estimulando o surgimento de bandas e bares voltados para esse novo público e despertando o interesse dos veículos de comunicação de massa e dos órgãos governamentais ligados ao turismo, uma vez que o reggae se mostrou, também, um forte elemento de identificação da capital maranhense, que passou a ser denominada ―Jamaica brasileira‖. O presente trabalho dedica-se a interpretar o fragmentado cenário atual do reggae em São Luís: a diferenciação dos espaços, do público, dos tipos de música, dos produtores e mesmo das formas de publicização do ritmo. Investigam-se, também, os conflitos e as convergências de interesses, apropriações, gostos e identificações de quem produz, consome e promove os vários estilos de reggae na capital maranhense. Palavras-chave: Reggae Identificação São Luís 8 ABSTRACT Reggae, first started in Jamaica in the 1970‘s, was inserted in São Luís do Maranhão as a wide socio-cultural phenomenon. Initially appreciated among the lower income classes and being therefore marginalized by the elite, without governmental incentive or media support, reggae music conquered adepts in the island trough identification and adaptation becoming an importantleisure option mainly to the slam urban youth. With the middle class joining the style in the 1980‘s, reggae took new statements and means that stimulated the creation of bands and bars aimed to that new market and also caught the attention of mass media and tourism authorities as it also became a strong element from which the capital of Maranhão had turned to be known as ―Brazilian Jamaica‖ (Jamaica Brasileira). The current paper is an interpretation of the currently fragmented reggae scene in São Luís, its different spaces, audience, types of music, producers and even the broadcasting forms. Conflicts and convergences of interests, appropriation taste and identification of those who produce, consumes and promotes the various styles of reggae in the capital of Maranhão. Keywords: Reggae Identification São Luiz 9 LISTA DE FIGURAS Figura 1- Reprodução da capa do disco "Do the Reggae" ........................................................... 28 Figura 2 - Jimmy Cliff em "The Harder They Come" ................................................................. 32 Figura 3 - Reprodução da capa de "Catch a Fire" .........................................................................34 Figura 4 - Casais dançando reggae em clube na Vila Palmeira .................................................. 39 Figura 5 - Tambor de crioula .......................................................................................................42 Figura 6 - Bumba meu boi em São Luís ..................................................................................... 42 Figura 7 – ―Boizinho Regueiro‖ e a banda Filhos de Jah na Praça Maria Aragão ...................... 44 Figura 8 - Seminário Reggae e Turismo ...................................................................................... 49 Figura 9 - Clube "Barraca de Pau" na Cidade Operária ............................................................... 64 Figura 10 – ―Clubão Cidade‖ na Vila Bacanga .......................................................................... 64 Figura 11 - Clube ―Arena Show‖ na Ponta D´Areia .................................................................. 65 Figura 12 - Paredão de uma radiola em São Luís ....................................................................... 66 Figura 13 - Parte de trás do rack de uma radiola ......................................................................... 68 Figura 14 - Mesa de som, mixer e IPods da radiola Super Itamaraty ......................................... 69 Figura 15 - Móvel da radiola "Musical Neto Discos" ..................................................................69 Figura 16- Naifson com casal que pediu para tirar foto com ele, na Praça Maria Aragão .......... 72 Figura 17 - Lançamento da radiola "Super Itamaraty" no Ceprama ........................................... 73 Figura 18 - Reprodução do chat de discussão do site "Reggae Total" ........................................ 74 Figura 19 - Cortejo do velório de Antônio José ........................................................................... 76 Figura 20 - Performance do DJ Antônio José .............................................................................. 77 Figura 21 - Rosy Valença no palco .............................................................................................. 80 Figura 22 - Ricardo Luz ............................................................................................................... 82 Figura 23 – ―Sunsplash Reggae Festival‖ no Centro Histórico ................................................... 84 Figura 24 - Pinto da Itamaraty e a equipe da "Caravana do Sucesso" ......................................... 85 Figura 25 – Pinto da Itamaraty cumprimentando regueiros na festa do Dia do Regueiro em 2008 ............................................................................................................................. .......... 88 Figura 26 - Casal dança o ―robozinho" ........................................................................................ 97 Figura 27 – ―Bar do Nelson‖ na praia do Calhau ...................................................................... 116 Figura 28 - Discotecagem do DJ Waldiney no ―Bar do Nelson‖ .............................................. 117 Figura 29 - Reprodução da capa da coletânea de reggaes de Betto Pereira e César Nascimento ................................................................................................................................ 120 Figura 30 - Banda "Tribo de Jah" .............................................................................................. 122 Figura 31 - Banda "Mystical Roots" .......................................................................................... 124 10 Figura 32 - Banda "Manu Bantú" .............................................................................................. 126 Figura 33 - Festival Unireggae em 2008 no Circo da Cidade ................................................... 132 Figura 34 - Bar "Chama Maré" na Ponta D´Areia ..................................................................... 135 Figura 35 - Público dança no Bar "Chama Maré" ..................................................................... 136 Figura 36 - Marcos Vinícius e Netinho Jamaica ........................................................................ 146 Figura 37 - Swicher (cabine) de produção do programa Itamarashow ...................................... 148 Figura 38 - Dançarina do Bloco do Reggae em 2009 ................................................................ 156 Figura 39 - Reprodução de detalhe do folder da FUMTUR ...................................................... 170 Figura 40 - Reprodução de detalhe de folder da Prefeitura de São Luís ................................... 171 Figura 41 - Dançarinos do Bloco do Reggae em 2009, na presença da câmera da TV Globo ...173 Figura 42 - Reprodução da capa do Guia Turístico do Reggae de São Luís ............................. 180 Figura 43 - Reprodução das páginas 12 e 19 do Guia Turístico do Reggae de São Luís .......... 184 Figura 44 - Reprodução dos detalhes de fotos da capa e páginas 7 e 25 do Guia ..................... 185 Figura 45 - Reprodução do detalhe da boina posta digitalmente na cabeça do dançarino ........ 185 Figura 46 - Reprodução de detalhes das páginas 26 e 28 do Guia ............................................ 188 11 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 13 Os mil pedacinhos que fazem o reggae ludovicense ................................................................ 15 Entre o reggae e a lambada ....................................................................................................... 15 O reggae é “perigoso” ................................................................................................................ 16 Por que reggae? .......................................................................................................................... 19 A abrangência da pesquisa ........................................................................................................ 23 1. É POSSÍVEL FALAR DE REGGAE NO SINGULAR? .................................................... 25 1.1. Reggae: um ritmo híbrido e diaspórico ............................................................................. 28 1.2. Made in Jamaica para o mundo ......................................................................................... 30 2. AS PEDRAS VÃO ROLANDO E CHEGANDO: O REGGAE EM SÃOLUÍS .............. 36 2.1. A festa onde “o reggae é a lei” ........................................................................................... 40 2.2. O reggae marginalizado ...................................................................................................... 45 2.3. São Luís: Jamaica brasileira? ............................................................................................ 53 3. A GEOPOLÍTICA DO REGGAE EM SÃO LUÍS: RADIOLAS, PEDRAS,MELÔS, BANDAS, CLUBES, BARES .................................................................................................... 63 3.1. O domínio das radiolas ....................................................................................................... 65 3.2. “O reggae faz parte da minha vida”: o regueiro como fã e o jogo das disputas ............ 69 3.3. O DJ é a estrela ................................................................................................................... 76 3.4. Indústria regueira: poder político e simbólico ................................................................. 82 3.5. Pedras, melôs e a dinâmica da exclusividade .................................................................... 89 3.6. “Tudo vira pedra”: a corrida pelas regravações e o reggae feito por encomenda ........ 92 3.7. Reggae robozinho x reggae roots ........................................................................................ 96 3.8. O reggae de salto alto: os bares dentro do processo de legitimação do ritmo pela classe média .............................................................................................................................. 111 3.8.1. Os bares, as bandas, a MPM: o reggae da/para a classe média .................................113 3.8.2. A proposta das bandas: o reggae “cabeça” ................................................................. 123 3.8.3. O gosto pelo reggae como distinção e como moda ....................................................... 133 4. REFAZENDO O CAMINHO DAS PEDRAS: A MIDIATIZAÇÃO DO REGGAE EM SÃO LUÍS ................................................................................................................................. 140 4.1. O reggae que se vê na TV ................................................................................................. 146 4.1.1. A expansão do reggae nos meios de comunicação de massa ludovicenses ................ 150 4.1.2. O reconhecimento da “Jamaica brasileira” pela TV Mirante ................................... 153 12 4.1.3. O dito e o não dito .......................................................................................................... 156 5. REGGAE COMO PRODUTO TURÍSTICO EM SÃO LUÍS .......................................... 162 5.1. O turismo como negócio ................................................................................................... 165 5.2. Por que o reggae vira produto turístico? ........................................................................ 167 5.3. Turismo: em busca do “diferente” .................................................................................. 168 5.4. “São Luís Ilha do Reggae”: projeto para transformar o reggae em produto turístico ..................................................................................................................................... 178 5.4.1. Guia Turístico do Reggae de São Luís: intenções e contradições .............................. 183 5.4.2. Seminário Reggae e Turismo: que reggae é esse? ....................................................... 193 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 201 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 205 ANEXOS .................................................................................................................................. 214 Mapa dos espaços de reggae em São Luís ................................................................................ 215 Modelo do questionário aplicado ............................................................................................... 216 CD de músicas reggae ............................................................................................................... 217 13 INTRODUÇÃO Quem lê o título desta dissertação pode pensar que São Luís, a capital do Maranhão, apelidada de ―Atenas brasileira‖ em virtude de sua efervescência literária e científica do século XIX, converteu-se na cidade do reggae, ―jamaicanizou-se‖. Se isso fosse verdade (e, neste momento, não estou dizendo que é nem que não é), caberia procurar saber como se deu essa transformação. A ―Atenas brasileira‖ evoca um passado glorioso, de grandes nomes da literatura, artes e ciências nacionais e de uma elite que, estudando na França no século XIX, retornava a São Luís trazendo consigo os costumes e a cultura letrada européia, produzindo romances e poesias, forjando este cognome, sustentado com orgulho por alguns intelectuais ludovicenses. Na década de 1980, devido à forte presença do reggae, a capital maranhense começou a ser chamada pelos adeptos do ritmo de ―Jamaica brasileira‖, denominação prontamente condenada pelos defensores da ―Atenas‖. As disputas pela classificação (BOURDIEU, 1996) de São Luís ganharam visibilidade nos jornais nos anos 1990. Artigos raivosos foram publicados execrando a ―alcunha‖ ligada ao reggae, ―ritmo estrangeiro‖, ―cultura importada‖. Não era possível admitir que em lugar de ou além de ―Atenas brasileira‖, São Luís passasse a ser conhecida como ―Jamaica brasileira‖1, como demonstrou o professor de língua portuguesa, Ubirajara Rayol, em artigo publicado no jornal O Estado do Maranhão: Não se conhece na história da Jamaica feitos nos campos das letras, artes e ciências [...]. Por outro lado, a Grécia antiga continua sendo um ponto de referência para a cultura ocidental [...]. Eis que a ignomínia parece contagiar a cidade, profanando a sua cultura, maculando um passado fastígio literário e artístico [...] Protesta-se contra o insulto à memória maranhense (RAYOL, 1991). No entanto, apesar dos protestos que ocorrem até hoje, a ―Jamaica‖ foi ganhando força ao longo dos anos 1980 e 1990. Divulgada entre os fãs do ritmo, nas festas, nos salões de reggae da cidade, e massificada pelos programas de rádio e televisão especializados no ritmo (arrendado pelos empresários do ramo), a expressão ―Jamaica brasileira‖ foi sendo incorporada ao imaginário do ludovicense, adotada pelos demais meios de comunicação de massa, pelo discurso turístico e até pelos órgãos governamentais. 1 São Luís também tem outras denominações: além de ―Ilha do Amor‖, ―Upaon-Açu‖, nome que os índios Tupinanbás davam para a cidade, que quer dizer ―Ilha Grande‖, e ―Ilha Rebelde‖, em virtude das revoltas populares e manifestações políticas ocorridas em décadas passadas. 14 Aos poucos, os argumentos contra a ―Jamaica brasileira‖ foram enfraquecendo. Pesquisas acadêmicas foram feitas e, através delas, o reggae em São Luís foi deixando de ser concebido como ―cultura importada‖ e começando a ser visto como um elemento cultural adaptado pela população local, de início, principalmente pela juventude negra concentrada nos bairros pobres da capital (SILVA, 1995). Anos depois, o ritmo foi conquistando diversas camadas sociais, possibilitando sua expansão para além das periferias2. É sobre essa expansão e sobre como se dá essa diversificação do reggae em São Luís que se trataesta pesquisa. Voltando ao título, é sobre que reggae é esse que ganhou tanta força a ponto de, no jogo da luta de classificação, o cognome ―Jamaica brasileira‖ fazer frente à ―Atenas brasileira‖. O que se quer dizer aqui não é que a ―Jamaica‖ tenha suprimido a ―Atenas‖, pois ambas convivem às vezes consensualmente, às vezes conflituosamente, dependendo dos interesses de quem lança mão dessas denominações. Busca-se entender os motivos pelos quais esse reggae conseguiu se ampliar no cenário cultural ludovicense e como essa dilatação modificou esse reggae. A jamaicanização a qual me refiro é, portanto, a capacidade que o reggae teve na capital maranhense de se afirmar enquanto mais uma expressão da identidade cultural da cidade, mesmo com os preconceitos que ainda existem em relação ao ritmo, a alguns adeptos e locais onde este é dançado e ouvido. Esse alargamento do reggae pelos espaços culturais da cidade foi possível, principalmente, graças ao envolvimento das classes sociais com maior poder econômico e/ou capital cultural mais elevado. É a partir do interesse dessas camadas que o turismo, a mídia e o aparato governamental, em geral, passam a promover o reggae, embora essa jamaicanização não tenha se dado (e nem se dá) harmoniosamente, na medida em que, muitas vezes, é praticada com violência simbólica, e o reggae, apropriado de modo estereotipado. O reggae feito para e por esses setores sociais é diferente do reggae vivenciado nas periferias da cidade desde a década de 1970: os locais, tipos de música, público frequentador, os ídolos, tipos de aparelhagem de som, a publicização do ritmo; há muitas diferenças. A percepção dessa diferenciação foi o ponto de partida para este trabalho. 2 Periferia aqui entendida como um espaço geográfico, mas também simbólico: bairros ou áreas da cidade onde vive e/ou frequenta a população com menor poder aquisitivo, abrangendo, além de áreas de palafitas, bairros considerados populares, geralmente, mais afastados do centro da cidade. 15 Os mil pedacinhos que fazem o reggae ludovicense Quando ingressei no Mestrado de Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão, em 2008, tinha a intenção de estudar o ―fenômeno‖ do reggae em São Luís como um movimento segmentado, dividido em partes. Até então, eu pensava o reggae como blocos segmentados: ―reggae de radiolas3‖, ―reggae das bandas‖, ―público dos bares‖, ―público dos clubes‖ etc., sem me dar conta das suas especificidades, como se cada ―bloco‖ pudesse ser descrito e apreendido de forma consistente e, até mesmo, homogênea. Mas, à medida que a pesquisa foi avançando com as leituras e, principalmente, com o trabalho de campo, pude constatar, como coloca Canclini (2008, p.81), que ―o olhar telescópico dos questionários e o olhar íntimo do trabalho de campo indicam de diversas maneiras, parcialmente legítimas, a mesma cidade inapreensível‖. Percebi então que havia segmentos dentro de cada segmento. Desta maneira, aquilo, por exemplo, que eu estava querendo chamar de ―reggae de radiola‖ como se fosse, metaforicamente, um pano liso só, era uma colcha de retalhos, demarcada por um jogo de interesses entre seus agentes, que ora se conflitavam, ora confluíam, engendrando um universo variado de gostos, interesses e formas de identificação. Passei a pensar a partir de palavras como ―diferenciação‖ e ―diversificação‖, que apontam para uma maior fluidez, demonstrando a fragmentação, os mil pedacinhos que comecei a enxergar no reggae em São Luís. Aliás, passei a pensar em ―reggaes‖ dentro de uma noção de ―identidades‖ ou mesmo a partir da categoria ―identificação‖, que indica uma constante construção e reformulação. Entre o reggae e a lambada Quando eu era criança, na década de 1980, via as empregadas domésticas da minha casa indo aos salões de reggae e ouvia os chamados melôs no rádio com elas em casa. Na época, a lambada era moda. Eu lembro bem que, quando chegava do colégio à tarde, tomava banho, vestia uma saia rodada e ia dançar lambada junto com Maria e Celeste. Entre uma 3 Radiola – a radiola considerada ―tradicional‖ pelos empresários do ramo do reggae e pelo público frequentador dos clubes – é a aparelhagem de som móvel que toca vinil, MD, pen drive e IPod, e possui até oitenta caixas de som, com alto-falantes de grande potência. É também o nome que se dá à empresa que comanda a aparelhagem. As maiores de São Luís chegam a ter até trinta funcionários, que se mobilizam para fazer as festas nos clubes de reggae. 16 lambada e outra, elas sintonizavam o rádio em algum programa de reggae e eu dançava reggae também. Até onde me lembro, eu não posso dizer que gostava nem desgostava, apenas ouvia e dançava. Eu gostava mesmo era de dançar. No entanto, após ouvir e dançar reggae na infância, cresci com uma visão pré- concebida – que acredito ser a dominante na época entre as pessoas do meu convívio – de que o reggae em São Luís significaria ―invasão cultural‖, ―cultura importada‖, ―estrangeirismo‖, uma vez que as letras eram em inglês e, a maioria das pessoas que ouviam, quase nunca entendiam o seu significado. Porém, anos depois, um fato mudou a minha visão. Em 2004, quando decidi fazer uma matéria sobre o ―título‖ de ―Jamaica brasileira‖, atribuído a São Luís, para a revista Canal Com, do Curso de Comunicação Social da UFMA, deparei-me com a publicação Da terra das primaveras à ilha do amor: reggae, lazer e identidade cultural (SILVA, 1995), cuja leitura me revelou outros (importantes) significados do reggae na capital maranhense. Compreendi que, para além do mercado, da perda do significado originário das letras4 e da filosofia regueira jamaicana, o ritmo incorporou outros sentidos e foi ressignificado na Ilha. O estudo etnográfico trouxe relatos, depoimentos, informações e conclusões sobre como o reggae chegou em São Luís adquirindo tanta força entre as classes populares. A reportagem ficou pronta após entrevistas com donos de radiolas, músicos, promotores de festas de reggae e com o autor do livro, mas a revista não saiu. Então, abandonei o tema por um tempo. Só quando comecei a especialização em Jornalismo Cultural em 2007 e, no ano seguinte, ingressei no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, ambos na UFMA, retomei o problema que continua se apresentando a mim como uma questão multifacetada. O reggae é “perigoso” Em uma conversa ao telefone com a minha mãe, em julho de 2009, ela pergunta: - Você tem visitado seus sobrinhos? - Não, ando fazendo minha pesquisa, indo nos reggaes, entrevistando gente. Tô sem tempo. Ontem mesmo fui numa festa... - É? Onde? 4 A mensagem textual das letras da música jamaicana não é compreendida por muitos apreciadores do ritmo, pois estes não entendem inglês. As canções são apreendidas muito mais pela melodia, que tem a ver com a forma de dançar (SILVA, 1995). 17 - Na Vila Palmeira. - Vixe, na bagunça mesmo...? Cuidado, é perigoso. Quer dizer, pelo menos a gente acha, né? Nunca fui, mas a gente ouve falar... É preconceito, né? - Fica tranquila. Lá tinha mais segurança que em qualquer show de axé. - Então tá. Por que esse diálogo pessoal é importante, a ponto de merecer ser descrito aqui? Ele expõe um preconceito, que não é só da minha mãe, uma funcionária pública aposentada, de classe média, ligada aos movimentos sindicais; uma pessoa que considero ―esclarecida‖. A questão central é: se ela nunca foi a um clube de reggae, de onde ―ouviu falar‖ que é perigoso? ―Principalmente dosjornais‖, ela me disse depois, quando eu voltei a tocar nesse assunto. Assim como a minha mãe, eu também fui e estou exposta a esses preconceitos, (disseminados talvez pela mídia e nas relações interpessoais). Afinal, o que fez com que eu gostasse de dançar e ouvir reggae aos oito, dez anos de idade, e depois só retornasse a ele aos 18 anos, quando já estava na universidade? O que me fez seguir esse caminho, diferente do de várias pessoas que entrevistei nos clubes da periferia, que me deram relatos do reggae como parte da vida delas, desde a infância? Gente que cresceu ouvindo reggae, sonhava em ser ―grande‖ para poder ir ao clube ouvir a sua radiola? Por que elas têm a sua radiola e eu não? São essas diferenças entre o ―eu‖ e o ―outro‖ que me intrigam principalmente nesta pesquisa. E nessas diferenças, tomo para objeto os meus próprios preconceitos os quais, durante a pesquisa, lutei para superar. Seria desonesto de minha parte dizer que – quando estive nos clubes da periferia os quais passei a frequentar somente quando comecei esta pesquisa – não tive medo, que sabia perfeitamente como me comportar em campo, que sabia como abordar as pessoas em lugares onde eu me sentia uma estranha, muitas vezes confundida com turista, olhada de cima a baixo, perceptivelmente como uma peça fora do lugar. Vianna (1987) relata um fato interessante em sua dissertação sobre o funk carioca: ele não dançava enquanto fazia o trabalho de campo nos bailes. A sua atitude contemplativa, no início, incomodava os frequentadores, que perguntavam se ele estava triste, se não estava gostando da festa. Mas depois, segundo ele, todos foram se acostumando a sua presença, pois ele virou assíduo frequentador do mesmo baile funk por mais de um ano. ―Não me cansei de observá-los, em silêncio, quieto, sem dançar‖ (p.13). Assim como Geertz (1989)5, Vianna 5 ―Não estamos procurando, pelo menos eu não estou, tornar-nos nativos (em qualquer caso eis uma palavra comprometida) ou copiá-los. [...] o que procuramos, no sentido mais amplo do termo, que compreende muito 18 defende que o antropólogo não pode sentir o que o ―nativo‖ sente. Eu também nunca tive a intenção de sentir o que o frequentador dos clubes de reggae, o que o fã de radiola sente. Apesar disso, fui a campo com o meu bloco de anotações, meu gravador, às vezes com a minha máquina fotográfica (e, nessas vezes, era muito mais confundida com turista), ficava nos cantos observando quieta, mas também dançava. Não para me ―enturmar‖ ou parecer menos deslocada, mas porque dançar reggae faz parte da minha vivência. Não nego que senti tremer o corpo todo quando presenciei a festa das radiolas – numa sensação física que, com sensibilidade, se transforma em emoção – mas como alguém de ―fora‖ que se encanta com o que encanta aquelas pessoas. A presença do pesquisador altera a rotina dos lugares e suscita reflexão dos interlocutores, uma vez que o que lhes é perguntado os faz pensar (BOURDIEU, 1997, p. 695). Na tentativa (acredito que inconsciente ou mesmo comodista de minha parte) de passar ―despercebida‖, sem alterar a dinâmica das festas de reggae, quando em campo, adotei uma atitude que considero contemplativa, na medida em que mais observava os comportamentos, as roupas, as formas de dançar, as relações estabelecidas, a disposição espacial do lugar e das pessoas, a formação de grupos, a interação entre os frequentadores etc., do que buscava algum tipo de interação. A cada festa, no entanto, abordava algumas pessoas para fazer perguntas, sempre me apresentando como alguém que está ―pesquisando o reggae‖. Mas acredito que no decorrer do trabalho de campo tenha permanecido algumas vezes invisível àquelas pessoas; minha presença não era importante, e só era perceptível talvez por eu ser uma ―estranha‖ – até meu modo de vestir, e a cor da minha pele e dos meus olhos eram signos dessa ―estranheza‖ (VIANNA, 1987, p. 10). Mesmo nos eventos dos quais participei, como o Seminário do Reggae e Turismo, procurei ficar anônima, mais ouvindo do que interferindo nos pontos de vista expostos. Dizer quem eu era, o que estava fazendo ali e quais eram minhas intenções, poderia influenciar as falas dos agentes. Paralelamente às observações em campo, muitas entrevistas foram feitas com diversos agentes sociais componentes do universo da minha pesquisa. Além de tomar vários interlocutores como fontes de informações que não estão disponíveis em papel, as entrevistas serviram para perceber as estratégias de afirmação de si pela exclusão do outro, as rivalidades, a reprodução de discursos padronizados na produção de ―verdades‖ e as motivações das opiniões expressadas, uma vez que o que é dito para uma pesquisadora no campo faz muita diferença, na medida em que há nessa interação um desequilíbrio de forças, uma dissimetria, mais do que simplesmente falar, é conversar com eles, o que é muito mais difícil, e não apenas com estranhos, do que se reconhece habitualmente‖ (GEERTZ, 1989, p. 23-24). 19 como lembra Bourdieu (1997, p.695): ―É o pesquisador que inicia o jogo e estabelece a regra do jogo, é ele quem, geralmente, atribui à entrevista, de maneira unilateral e sem negociação prévia, os objetivos e hábitos, às vezes mal determinados, ao menos para o pesquisado‖. Além das conversas informais e de algumas entrevistas gravadas com os frequentadores dos locais de reggae, tentei aplicar questionários para obter informações sobre quem eram esses frequentadores e saber as predominâncias de gostos e preferências deles. Queria saber sexo, idade, bairro onde residiam, profissão, renda mensal familiar, escolaridade, frequência com que iam e motivos pelos quais iam para festas de reggae, cantor/banda preferidos, tipo de reggae que gostavam de ouvir e o que achavam dos ―títulos‖ de ―Jamaica brasileira‖ e de ―Atenas brasileira‖. Na prática, entretanto, foi decepcionante, pois, na porta e dentro dos locais de festa, quase ninguém parava sequer para saber do que se tratava aquele questionário. Era de se esperar, afinal, acredito que ninguém, além de mim e das pessoas que trabalhavam (como seguranças, vendedores de comidas e bebidas etc.), estava ali por outro motivo que não para se divertir, dançar, ouvir a música tocada bem alta. Como, então, parar para responder a perguntas? Eu me sentia desconfortável atrapalhando as pessoas, que paravam contra a vontade. Algumas até respondiam, mas as respostas eram sempre dadas como que para ―se livrar‖ do incômodo. Depois de tentar aplicar o questionário na fila de espera da entrada do festival Cidade do Reggae (onde as pessoas passavam, no mínimo, meia hora paradas, sem ter o que fazer) e ouvir vários ―não, obrigado‖, desisti dos questionários. Uma decisão difícil foi em relação à delimitação do trabalho de campo. No início, pensei em adotar dois ou três locais de reggae e frequentá-los assiduamente, estabelecendo comparações. No entanto, com o passar do tempo, fui percebendo que era mais proveitoso não ficar ―presa‖ ao limite de alguns lugares, pois a dinâmica das festas me conduziria a outros espaços interessantes. Assim, durante o ano de 2009, além de frequentar locais específicos (tanto os considerados de classe média como os mais populares), fui a festas pontuais como, por exemplo, a Cidade do Reggae, realizada no Parque Folclórico da Vila Palmeira, o Dia Municipal do Regueiro, comemorado na Praça Maria Aragão, e o Bloco do Reggae durante do carnaval, na Praça João Lisboa. Por que reggae? Alguémpoderia me fazer essa pergunta (na verdade, sou eu mesma me perguntando). Parafraseando Vianna (1987, p. 130), que justificou o estudo do funk carioca 20 alegando que ―não existe um complô da indústria fonográfica multinacional tentando impor o consumo de música negra norte-americana nos subúrbios do Rio‖, eu poderia dizer quase o mesmo sobre o reggae em São Luís: que, apesar de as radiolas (me refiro às empresas) lucrarem muito e formarem sim uma espécie de indústria cultural, elas não cresceram incentivadas pela ―indústria fonográfica multinacional‖ ou mesmo nacional, nem o reggae foi ―empurrado‖ a qualquer custo à população ludovicense, como discorrerei nesta dissertação. No entanto, prefiro dizer que o tema que escolhi tem a ver com a pessoa que sou. Ou, como dizem Beaud e Weber (2007, p. 28): ―as questões que você tem vontade de colocar para a sociedade são também questões que você se coloca a si mesmo‖. Eu sou a pesquisadora de classe média, que antes via a coisa de forma preconceituosa e há alguns anos teve uma reviravolta na percepção, a partir do livro de Silva (1995). Eu gosto de reggae. Gosto de dançar e de ouvir, mas nunca fui uma grande fã daquelas que vivem a filosofia ou que todo fim de semana estão lá na casa de show para curtir o som. Eu sou a universitária que frequentava para se divertir com amigos as festas de reggaes nos bares de classe média, alguns que eram considerados pelo público como ―alternativos‖ e depois viraram bares ―da moda‖. Isso, particularmente, me intrigou muito: o que fez com que o reggae, enquanto um fenômeno de identificação cultural da juventude da periferia de São Luís, uma expressão da cultura marginal6, assumisse um caráter midiático, uma força de identidade cultural da cidade – ―Jamaica brasileira‖ e passasse a ser incentivado pelo poder público e por um aparato turístico, e ser apreciado pelas classes sociais que comumente estão afastadas dos setores populares: classes média/alta e turistas. E aí, me pergunto, até que ponto esse reggae ainda está na ―periferia‖? E que reggae é esse que se ouve e se dança nos espaços da classe média? A tentativa de me objetivar como pesquisadora e compreender de onde e como estou vendo é um esforço para realizar um trabalho etnográfico coerente, que busque ultrapassar as pré-noções. No caso de uma etnografia sobre o reggae em São Luís, a tarefa não é apenas de expor fatos estranhos e distantes em categorias familiares, mas, principalmente, realizar o exercício inverso de estranhar o que parece ―natural‖ (VELHO, 2004). Assim, o empenho é de tomar para objeto as categorias que foram naturalizadas como ―regueiro‖, ―reggae de raiz‖ 6 Aqui, parto do preceito de Silva (1995) que, embora não utilize esse termo, fala de um reggae que estava à margem da sociedade, um ritmo que foi (e ainda é, em vários aspectos) marginalizado pelas instâncias governamentais e midiáticas; um reggae que expressa a capacidade de mobilização da juventude negra das periferias de São Luís em torno de uma opção de diversão escolhida por gosto e identificação e não por imposição de uma indústria cultural. 21 e ―massa regueira‖, por exemplo. Uma vez que as categorias são fruto de uma construção, elas tornam-se obstáculos epistemológicos assim como todas as pré-noções e representações preestabelecidas sobre o objeto (LENOIR apud CHAMPAGNE, 1998). Deste modo, a intenção não é dizer, por exemplo, quem é ou não ―regueiro‖, mas discutir o processo através do qual os indivíduos são classificados (e/ou se auto-classificam) como tal. Para romper com as pré-noções e com a naturalização dessas categorias, recorro ao seu percurso: como as coisas chegaram a ser como são? No caso da categoria ―regueiro‖, quando e por quem passou a ser usada? Em que contexto? Com que interesse? Para designar que pessoas? Além do empenho de ―estranhamento‖ às categorias e às pré-noções, houve também o necessário esforço de ―desambientação‖ a um mundo do qual faço parte, dos bares de reggae voltados para a classe média, os quais frequento por diversão desde o início dos anos 2000. Mas, por outro lado, um exercício de ―aproximação‖ também foi feito, do mundo desconhecido e complexo dos clubes e das festas realizadas na periferia, onde o reggae funciona em outra lógica, que não aquela que eu me acostumei a vivenciar nos bares de classe média. Porém, como adverte Velho (2004, p. 126), dentro do nosso próprio mundo, do nosso grupo, podemos ter a experiência do ―distanciamento‖ e do ―estranhamento‖: ―o que vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser exótico, mas, até certo ponto, conhecido‖. Assim, se entendermos o trabalho de campo como uma ―vivência longa e profunda‖ com outros modos de vida, outros valores e outros sistemas de relação social (DA MATTA, 1981), principalmente se pensarmos na experiência da antropologia urbana, na qual o ―outro‖ está entre ―nós‖ (VIANNA, 1987), o que é ―familiar‖ pode ser estranho e desconhecido e o que é ―exótico‖ pode estar bem perto do pesquisador. Seguindo o conselho de Lenoir (1998, p. 68), não tenho o intuito de tomar parte das lutas travadas no cenário do reggae ludovicense, mas sim analisar os agentes envolvidos nelas: ―Para o sociólogo, o que constitui o objeto da pesquisa não é tomar partido nessas lutas simbólicas, mas analisar os agentes que as travam, as armas utilizadas, as estratégias postas em prática‖. Também Canclini (2008, p. 23) diz que quem realiza um estudo da cultura pouco tem a ganhar estudando-a a partir de identidades parciais, quer seja de grupos subalternos, das minorias, das elites, de uma disciplina isolada ou do saber totalizado. ―Aquele que realiza estudos culturais fala a partir das interseções‖ e é justamente a partir dos ―entre-lugares‖, cenários de tensão, encontro e conflito que tento enxergar o(s) reggae(s) em São Luís. 22 Adotar o ponto de vista dos oprimidos ou dos excluídos pode servir na etapa da descoberta, para gerar hipóteses ou contra-hipóteses que desafiem os saberes constituídos, para tornar visíveis campos do real descuidados pelo conhecimento hegemônico. Mas no momento da justificação epistemológica convém deslocar-se entre as interseções, nas regiões em que as narrativas se opõem e se cruzam (CANCLINI, 2008, p.23). As ―narrativas‖ que aqui me interessam são as dos diferentes sujeitos que dançam, ouvem, gostam, produzem, consomem, vivem do reggae. Para entender o jogo de representações e de poder que envolvem este universo, busquei saber como cada um deles interpreta o reggae e que tipos de relações existem entre esses sujeitos. Como os frequentadores de locais diferentes de reggae se veem e se percebem, e como classificam o reggae que o outro dança, toca e ouve? Como os donos de radiolas ditas tradicionais enxergam a expansão do reggae para áreas elitizadas7 da cidade? Como as bandas que tocam geralmente em clubes de classe média entendem o reggae feito pelas radiolas? Deste modo, a intenção desta dissertação é distinguir, separar, perceber as diferenças, as nuances do que o senso comum (e talvez o senso comum erudito também) vê como sendo ―o‖ reggae ludovicense. Se existem vários ―reggaes‖, quais seriam eles? Em que espaços eles se constituem? Quem são os agentes que fazem esses reggaes existirem? Se, como adverte Bourdieu (2003, p. 713), o trabalho do pesquisador consiste em ―um ponto de vista que é um ponto de vista sobre um ponto de vista‖, como interpretar e dar sentido aos pontos de vista de cada sujeito que se identifica ou está ligado de alguma forma ao reggae? Como o processo de construçãoda(s) identidade(s) se dá também pela exclusão (daquilo que não somos)8, na tentativa de afirmar o que o reggae é, quem é o regueiro, quem é da massa regueira, cada interlocutor muitas vezes adota um discurso de exclusão das práticas diferenciadas das que acredita serem legítimas. É preciso, portanto, tomar para objeto e questionar tanto as representações do reggae pelas instâncias midiáticas e governamentais, quanto pelos depoimentos dos agentes. As primeiras porque fazem referência a um indivíduo genérico (o ―regueiro‖, o ―turista‖, o ―reggae de raiz‖ etc.); e as segundas porque colocam em destaque a vivência individual9. 7 Ou, para usar uma expressão de Silva (2007), áreas ―higienizadas‖: os bares de reggae que estão localizados, geralmente, em pontos turísticos e locais de difícil acesso por meio de transporte público e, assim, são mais frequentados pela classe média; diferentemente dos clubes e salões de reggae (onde tocam as radiolas ditas tradicionais), cuja estrutura física é geralmente mais precária e têm como público, predominantemente, as classes populares. 8 Como defende Hall (2003, p. 85), toda identidade é relacional e situacional, e fundada sobre uma exclusão; ―todos os termos da identidade dependem do estabelecimento de limites – definindo o que são em relação ao que não são‖. Aprofundarei esta questão no capítulo quatro. 9 O raciocínio foi conduzido a partir de uma analogia ao que escreveu Pinto (1998, p. 15) sobre as relações estabelecidas dentro do serviço militar e o funcionamento da instituição militar. 23 A abrangência da pesquisa Para tentar entender como se deu a diversificação do reggae em São Luís, percorro um universo bastante amplo e complexo: desde a constituição da dinâmica de produção do reggae até os variados públicos, as formas de midiatização e de apreensão do ritmo pelos meios de comunicação de massa, por empresários do ramo e órgãos governamentais. Sendo assim, no primeiro capítulo busco na constituição do reggae na Jamaica, enquanto música, filosofia e estilo de vida, um modo de entender o fenômeno que ainda iria chegar a São Luís. Compreendendo o reggae como um elemento de múltiplas faces e que nasce fruto de uma hibridização cultural, influenciado pela diáspora africana e pela colonização européia na Jamaica, procuro perceber as configurações e o contexto em que o ritmo foi concebido, encontrou espaço – primeiramente nos guetos de Kingston – e depois se expandiu, a ponto de virar um estilo musical disseminado em várias partes do mundo, incluindo o Brasil e, destacadamente, a capital do Maranhão. A segunda parte do trabalho se dedica a fazer uma tentativa de resgate histórico de como o reggae chegou a São Luís e como este foi adquirindo características próprias, através de um processo de identificação e de adaptação do ritmo jamaicano, principalmente, nas áreas periféricas da cidade. Demonstrando a ressignificação do ritmo, este capítulo também se ocupa em traçar semelhanças e compreender a convivência do reggae com os ritmos folclóricos considerados da cultura popular local. Enquanto estilo musical e opção de lazer escolhidos pela população mais pobre da Ilha, o reggae foi (e ainda é) marginalizado pelas classes sociais mais abastadas que ocupam tanto as instâncias midiáticas quanto as governamentais (através, principalmente, da polícia e de órgãos que desenvolvem políticas culturais e turísticas voltadas ao reggae). As formas pelas quais se dá essa marginalização – que muito está relacionada ao fato de o reggae das periferias ser apreciado por uma população predominantemente negra – são discutidas neste capítulo. Ainda no segundo capítulo, discuto sobre a denominação ―Jamaica brasileira‖, atribuída a São Luís, buscando saber quem criou a expressão, a que setores sociais ela interessa e a quais não interessa; assim como debater os conflitos gerados a partir desse cognome frente a outros (principalmente, ―Atenas brasileira‖) e as implicações desta ―Jamaica brasileira‖, uma vez que a partir dela se configura a importância, a força e o alcance do reggae em São Luís. A geopolítica que consegui perceber no reggae em São Luís é esmiuçada na terceira parte do trabalho. Nesta, procuro explanar, através dos mais diversos interlocutores que 24 constituem o reggae, a dinâmica de produção e de consumo do reggae em São Luís, assim como a diversificação do mercado, do público, dos espaços, produtores, formas de percepção e de apropriação do reggae. É neste capítulo da dissertação que busco descrever e discutir a respeito dos clubes, das radiolas, DJs, cantores, bandas, empresários, fãs e frequentadores dos locais de reggae, da legitimação do ritmo por frações da classe média, dos bares voltados para esta camada social, dos conflitos e convergências que se configuram nesse espaço no qual o reggae se realiza enquanto um fenômeno múltiplo. O capítulo quatro é destinado a compreender como se dá o que chamo de midiatização do reggae, desde a dinâmica das radiolas, que vão de salão em salão divulgando o ritmo, passando pelo uso de carros de som nos bairros, programas de rádios e televisão, especializados em reggae, até a publicização do ritmo como parte da identidade cultural de São Luís nos demais veículos de comunicação de massa da cidade, exemplificados através de um estudo das inserções na TV Mirante e TV Globo. Por fim, a tentativa de transformar o reggae em produto turístico e suas implicações são avaliadas no quinto capítulo. Tendo como base a análise do projeto da Prefeitura denominado ―São Luís Ilha do Reggae‖, do Guia Turístico do Reggae de São Luís e do III Seminário Reggae e Turismo (os dois últimos são etapas do projeto), essa parte se dedica a verificar como o reggae é apropriado pelas instâncias governamentais e empresários do turismo, e perceber que reggae é esse que está sendo empacotado e vendido como produto. Pela abrangência da pesquisa, estou ciente que vários aspectos relacionados ao reggae poderiam ter sido mais explorados ou mesmo aprofundados. Entretanto, por falta de tempo, de material de pesquisa e, em alguns casos, de interesse (a princípio) de minha parte, assuntos e detalhes importantes não foram abordados ou precisariam ser mais esmiuçados, em detrimento de outros aspectos igualmente importantes que consegui ver, me instigar, pesquisar e, assim, me aprofundar. Portanto, esta dissertação é o começo de um estudo sobre este fenômeno multifacetado com o qual me deparei. Quanto mais a pesquisa de campo foi avançando, mais minúcias e pequenas diferenciações fui constatando, mais fui adentrando em um mundo complexo, o qual me esforcei para interpretar. 25 1. É POSSÍVEL FALAR DE REGGAE NO SINGULAR? “Se você for ouvir a música de Bob Marley mesmo e traduzir, você vai ver que é a coisa mais linda. É por isso que eu viajo, viajo” (Claudinei Guimarães, instrutor de capoeira, em matéria exibida em 11 de maio de 2006 pela TV Mirante). “Em Belém eu conhecia aquela coisa básica: Bob Marley, Jimmy Cliff, Peter Tosh. Quando eu vim ao Maranhão passei a conhecer outros que eu não sabia e passei a gostar, e aí buscar a partir daí começar a colecionar” (Sônia Soares, colecionadora de reggae, em depoimento no making of de gravação do DVD da Tribo de Jah, dia 02 de outubro de 2008). “[...] não existe entre os regueiros de São Luís uma ligação forte com Bob Marley. A preferência é por outros cantores considerados mais românticos, como John Holt, Gregory Isaacs, Erick Donaldson, entre outros” (Carlos Benedito Rodrigues da Silva, 1995, p. 94). “A gente fala massa regueira, nação regueira, não é a galera que vai pro bar doNelson. É uma referência direta à massa popular do reggae, aquela que frequentava o Pop Som, o Espaço Aberto, que ia pras grandes festas de reggae” (Fauzi Beydoun, cantor da banda Tribo de Jah, em entrevista no dia 03 de outubro de 2008). A cidade de São Luís, no Maranhão, é conhecida por muitos brasileiros como ―Jamaica brasileira‖ ou mesmo ―capital nacional do reggae‖. No programa de televisão veiculado pela extinta TV Manchete, ―Documento Especial: Maranhão em ritmo de Reggae‖, em 1991, o locutor afirma: ―o reggae já está tão arraigado em São Luís, que passou a fazer parte do cotidiano de toda a população‖. Pode ser exagero falar de ―toda população‖, mas em uma manhã de sábado, em junho de 2009, andando pela cidade, ouvi reggae seis vezes em lugares diferentes: um taxista parado na Praça Deodoro com som no carro; em uma loja que vende confecções a preços populares na Rua Grande; em outra loja (de CDs) na Rua do Passeio; no carro ao lado ocupado por um jovem branco quando parei no semáforo perto do Plantão Central da Beira-Mar; no bairro da Liberdade, o som saía alto de uma casa, e de outro ponto não identificado (talvez uma casa ou carro de som) da Vila Jaracaty, que fica próxima à ponte Bandeira Tribuzzi. É perceptível que o reggae mobiliza, em São Luís, milhares de pessoas e até envolve, de acordo com a Secretaria Municipal de Turismo, uma ―cadeia produtiva‖ que agrega bandas, cantores, colecionadores, pesquisadores, grupos de dança, DJs, radioleiros10, associações e ONGs, e empresários do ramo11. Mas o que é o reggae ludovicense? Quais são 10 Radioleiro é um termo muito usado por meus interlocutores para designar os donos de radiolas, empresários do reggae. 11 A Secretaria Municipal de Turismo desenvolve, desde 2006, o projeto ―São Luís – Ilha do Reggae‖, cujo objetivo, segundo o folder de divulgação, é ―promover o Reggae como produto turístico, por meio do fortalecimento de sua identidade, valorização dos costumes locais, da articulação e integração dos segmentos, 26 as representações desse ritmo na mídia? Qual é a imagem do reggae divulgada pela indústria turística? Que relação existe entre a ―massa regueira‖ da qual fala Fauzi Beydoun e a música de Bob Marley? Por que os regueiros de São Luís não têm uma ligação forte com Bob Marley, considerado maior ícone do reggae mundial? E por que uma colecionadora de reggae diz que Bob Marley é ―básico‖? Se o bar do Nelson é um bar que toca predominantemente reggae, por que o público de lá não é a massa regueira? A resposta que me parece mais sensata a essas perguntas é outra pergunta: é possível falar de reggae em São Luís no singular? Para pensar nesse reggae (ou seria melhor falar em reggaes?) recorro ao Mundo em pedaços de Geertz (2001). Se o mundo em que vivíamos não existe mais e o que nos resta é um mundo ―estilhaçado‖, é preciso pensar nos fragmentos, questionar as categorias que representam uma visão universal como, por exemplo, a que mais me interessa aqui: identidade. Como fica a identidade nesse mundo onde domina um ―sentimento de dispersão, particularidade, complexidade e descentramento‖? (Idem, p. 192). A unidade e a identidade têm que ser refletidas a partir da diferença, pois ―o catálogo de identificações disponíveis se expande‖ (Idem, p. 197). No entanto, como a cultura é complexa, é um desafio perceber as representações da realidade, as demarcações culturais, os processos que levam às identificações. Apreender o fenômeno do reggae em São Luís, que é múltiplo, é tentar perceber, dentro da diversificação, as fronteiras entre os diversos, os pontos de conflitos e as convergências. Entretanto, como adverte Geertz (2001, p. 216-217), ―discernir rupturas e continuidades culturais [...] é bem mais fácil na teoria do que na prática‖, pois a cultura é uma complexa rede de significados construídos socialmente e na qual o indivíduo permanece amarrado. A cultura não pode ser percebida como pura, como algo ligado a uma identidade única e integral, ainda mais se pensada a partir de uma perspectiva de um mundo fragmentado: A visão da cultura, de uma cultura, desta cultura, como um consenso em torno de elementos fundamentais – concepções comuns, sentimentos comuns, valores comuns – parece muito pouco viável, diante de tamanha dispersão e dasarticulação; são as falhas e fissuras que parecem demarcar a paisagem da identidade coletiva (Idem, 2001, p. 219). visando a satisfação dos visitantes, comunidade e agentes dos segmentos do Reggae em São Luís‖. No projeto, a Prefeitura considera como cadeia produtiva do reggae todos os segmentos acima citados. Foi, inclusive, formada uma Comissão Maranhense do Reggae, que tem representantes de cada um desses setores. Esse projeto será analisado no próximo capítulo. 27 São essas falhas e fissuras que fazem a cultura ser constantemente (re)construída. Segundo Warnier (2003, p. 163), as lacunas da percepção são preenchidas pelo imaginário na constituição constante da identidade. Então, se a cultura está em permanente mudança, a identidade cultural não pode ser solida e única, ela é fluida e é composta também de pedaços. Como a realidade sócio-cultural não é ―dada‖, ela deve ser interpretada. Para tentar apreender a(s) identidade(s) do reggae ludovicense, me proponho a buscar na hermenêutica cultural – que é ―o entendimento do entendimento‖ (GEERTZ, 1998, p.13) – uma ferramenta para entender esse reggae, ou seja, ler um texto que já é fruto de uma interpretação. É importante considerar que a descrição etnográfica é datada e situacional, pois o objeto de investigação está em constante mudança. A minha descrição, portanto, é feita a partir da minha posição, de como estou vendo, e é a construção do meu olhar, o meu recorte, que aponta as possibilidades de interpretação dos fenômenos e da realidade. Ciente disso, lanço mão da reflexividade proposta por Bourdieu (1997, p. 694), [...] que é sinônimo de método, mas uma reflexividade reflexa, baseada num ―trabalho‖, num ―olho‖ sociológico, permite perceber e controlar no campo, na própria condução da entrevista, os efeitos da estrutura social na qual ela se realiza. De acordo com Bourdieu (1997), a compreensão é subjetiva e, no ato de explicar, o subjetivo é objetivado através de uma construção feita pelo pesquisador tanto no campo, quanto na transcrição de entrevistas com os interlocutores da pesquisa (que, para ele, mais que transcrever, é o ato de reescrever a fala do outro). Também na antropologia interpretativa que Geertz (1989, p. 20) propõe, a investigação antropológica é feita através dos diversos níveis de interpretação, incluindo a dos sujeitos imersos no objeto de estudo. O que o etnógrafo enfrenta é: [...] uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas e amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele [o etnógrafo] tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. [...] Fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de ‗construir uma leitura de‘) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos. O estudo da cultura se dá, portanto, através da interpretação dos significados apresentados pelos sujeitos em suas práticas sociais e da descrição microscópica e densa da realidade em questão. No caso do reggae em São Luís, os entendimentos dos diferentes sujeitos são tão diversos que é impossível descrevê-lo como uma práticasócio-cultural, pois tanto pode ser filosofia de vida, forma de dançar, mercado lucrativo, tipo de música, opção de 28 lazer, instrumento de diversão, campo de disputa social, política e simbólica, produto turístico. Interessa-me, portanto, analisar as apropriações feitas pelos sujeitos e a construção, a partir de conflitos e de permanentes negociações, daquilo que cada um denomina como sendo reggae. 1.1. Reggae: um ritmo híbrido e diaspórico O reggae é um ritmo que nasceu de um processo de hibridização na Jamaica e se internacionalizou, principalmente na voz de seu maior ícone, Bob Marley. Surgido no início dos anos 1970, o ritmo é uma mesclagem do mentho – música folclórica jamaicana – com vários gêneros musicais como os ritmos africanos, o ska e o calipso. De acordo com Albuquerque (1997, p. 27-28), o ritmo tomou forma depois de uma sequência de acontecimentos musicais: rhythm and blues, mentho, calipso, jazz, ska e rock-steady. Segundo reza a lenda, um verão extremamente quente de 1966 fez com que [...] reduzissem, gradativamente, a velocidade do ska, tornando-o mais lento [...]. A batida, de fato, desacelerou-se. A guitarra ganhou o papel da marcação. Baixo e bateria, os grandes beneficiados com a mudança, tornaram-se condutores da música. A própria origem da palavra reggae é diversa. É provável que o nome seja originado da mistura entre as línguas afrocaribenhas e inglesa, presentes na Jamaica. Assim, ela significaria ―revolta‖ ou, ainda, ―desigualdade‖. Apesar de muitas pessoas reivindicarem a autoria do nome, esta nunca foi confirmada. No entanto, a palavra apareceu escrita pela primeira vez em uma música do grupo Toots and Maytals, cujo titulo era ―Do the Reggae‖. O vocalista da banda, Toots Hibert, a definiu como ―o que vem do povo, do gueto, da maioria que sofre‖ (ALBUQUERQUE, 1997). Figura 10- Reprodução da capa do disco "Do the Reggae" 29 Ao analisar a diáspora africana, Gilroy (2001, p.41) ressalta que, além de ser um elemento de fragmentação e de trocas identitárias, o processo gerou o encontro de visões de mundo: é a partir desse deslocamento que alguns intelectuais passam a trabalhar ideias como hibridismo cultural e pan-africanismo12, por exemplo. Ele afirma que pensadores como C.L.R. James, Stuart Hall, Cornel West, entre outros, contribuíram para que o foco da crítica cultural ultrapassasse a perspectiva nacionalista e ofereceram conceitos situados entre o local e o global. Isso implica em pensar na cultura não mais como uma unidade que tem uma origem, mas como algo híbrido. É o que Bhabha (2007) chama de desterritorialização da cultura: esta passa a não ter mais um lugar de origem (pode até ter, mas isso já não interessa tanto) e se estabelece nos entre-lugares. Se a cultura caribenha é diaspórica (HALL, 2003, p. 34) e a diáspora provoca o encontro/confronto de culturas e tem como consequência a relativização de valores, essa cultura é deslocalizada, como explica Hall (2003, p. 36): Como outros processos de globalização, a globalização cultural é desterritorializante em seus efeitos. Suas compressões espaço-tempo, impulsionadas pelas novas tecnologias, afrouxam os laços entre a cultura e o ―lugar‖ [...] As culturas, é claro, têm seus ―locais‖. Porém, não é mais tão fácil dizer de onde elas se originam. O que Hall propõe é que a hibridização das culturas não seja encarada como perda, mas como ganho13. A ideia é compartilhada por Canevacci (1996, p.08), que defende a visão da diáspora africana como um processo enriquecedor e de reciprocidade: Uma diáspora marcada não mais pela erradicação violenta, pelo domínio etnocêntrico, pela perda; mas uma diáspora contra a esterilidade de uma condição imóvel, contra a miséria de uma identidade estável e segura [...] Diáspora como escolha, como necessidade de trânsito, de transposição de fronteiras interiores e exteriores. Por isso, Hall argumenta que as novas formas musicais híbridas que surgem como fruto da mistura não devem ser analisadas a partir da lógica centro/periferia, pois tanto centro quanto periferia produzem músicas novas que só são possíveis por causa dos encontros decorrentes da diáspora. A expressão musical do negro, por exemplo, se traduz na América 12 A ideia de pan-africanismo tem a ver com o processo de construção da(s) identidade(s) das culturas negras espalhadas pelo mundo a partir da diáspora africana, que é multicultural, transnacional, multi-linguística e multi- religiosa (GILROY, 2001). 13 Ele cita Laclau: ―Essa universalização e seu caráter aberto certamente condenam toda identidade a uma inevitável hibridização, mas hibridização não significa necessariamente um declínio pela perda de identidade. Pode significar também o fortalecimento das identidades existentes pela abertura de novas possibilidades. Somente uma identidade conservadora, fechada em si mesma, poderia experimentar a hibridização como uma perda‖ (LACLAU apud HALL, 2003, p. 87). 30 de várias maneiras. Do blues ao hip-hop, nos Estados Unidos, a cultura africana foi-se enraizando e tomando formas próprias, tornando-se ícone dos movimentos sociais e da identidade negra. No caso do hip-hop, Gilroy (2001) argumenta que um poderoso movimento de jovens negros urbanos pobres americanos, transformou a autopercepção da ―América negra‖, além de tomar proporções globais e influenciar grande parcela da indústria da música popular. 1.2. Made in Jamaica para o mundo “É apenas quando compreendemos que todas as afirmações e sistemas culturais são construídos nesse espaço contraditório e ambivalente da enunciação que começamos a compreender porque as reivindicações hierárquicas de originalidade ou de „pureza‟ inerentes às culturas são insustentáveis, mesmo antes de recorrermos a instâncias históricas empíricas que demonstram o seu hibridismo” Hommi Bhabha14 Também na Jamaica, o reggae nasceu como um ritmo dos guetos e foi possibilitado pelo encontro proporcionado pela diáspora africana: Constituindo-se na maioria populacional da Ilha, os africanos vindos de nações diferentes sobreviveram aos 250 anos de escravidão e, após a abolição em 1838, construíram novas relações interétnicas, criando as bases da cultura jamaicana com seus cultos e danças rituais (SILVA, 2007, p. 94). Os africanos escravizados trouxeram, portanto, na travessia do Atlântico, a memória das formas musicais ouvidas em suas comunidades, que serviram de base para as músicas caribenhas. E a maior parte da população descendente desses africanos continuou sendo excluída, vivendo na miséria. ―A música não podia ser separada da trágica experiência da escravidão e da discriminação a que foram submetidos e teria sido um fator crucial para a emancipação da ‗escravidão mental‘ de que falavam Bob Marley e Peter Tosh15‖ (VIDIGAL, 2008, p. 25). Além da sonoridade africana, predominante no reggae, o professor de música Francisco Pinheiro (2009) cita a influência da colonização inglesa na constituição musical do ritmo: 14 2007, p.67. 15 Nota de roda pé do autor: ―Bob Marley usou essa expressão na letra ‗Redemption Song‘ no verso ‗se emancipe da escravidão mental‘ [emancipate yourself from mental slavery], canção que pode ser encontrada no álbum Uprising. Peter Tosh associa a liberação da maconha à eliminação da ‗mentalidade escrava‘ [slavish mentality] dos jamaicanos na canção ‗Bush Doctor‘, do álbum do mesmo nome. Na Jamaica é chamada de ‗emancipação‘ (ocorrida em 1838) o que ficou conhecido na historiografia do Brasil como ‗abolição‘ da escravatura‖ (2008, p.25). 31[...] Como música, ele [o reggae] é uma arte de combinar os sons, de onde vem também uma rítmica própria. De onde vem tudo isso? As células rítmicas do reggae são oriundas quase que 90% da África. O timbre, os instrumentos usados para se tocar reggae têm muito da África também. Na África se trabalha muito a exaltação dos sons graves. Por isso que no tambor de crioula o solista é o maior tambor, é o tambor grande, o meião, o roncador, como queiram chamar. Então, os solos são de instrumentos graves, um pouco diferente da Europa, que exaltou muito os violinos, que são mais agudos de uma orquestra. Isso é uma característica das músicas oriundas dessa região [...]. Isso quer dizer que a África não explora os sons médios e agudos? Explora, mas há muita ênfase aos sons graves. Daí lá na Jamaica aquilo foi tudo sintetizado porque o reggae tem, assim como o bumba-boi aqui e todas as manifestações chamadas de ―autênticas‖, tem influências européias, indígenas e africanas. Então o reggae tem muita influência européia, sobretudo inglesa, porque a Jamaica foi colonizada pelos ingleses, tem também alguns dialetos africanos, alguns ―ioiôiô‖ ainda aparecem [...]. Segundo White (1992), influenciados pelo calipso, ritmo de Trinidad e Tobago que dominou o Caribe por muitos anos, e também pelas antigas canções folk inglesas, os jamaicanos foram misturando diversos ritmos até solidificar o mentho, nos anos 1950. Na mesma década, com o processo de industrialização que se iniciou, ocorreu também o inchamento da capital Kingston – em virtude da imigração do campo para a cidade – e o surgimento de várias favelas. O ska veio depois, influenciado pelo rhythm and blues, que se expandia em Miami e New Orleans, nos Estados Unidos. Mais dançante e acelerado, o ska possibilitou a efetivação de uma indústria fonográfica na Jamaica nos anos 1960 (WHITE, 1999). E, com o passar do tempo, a batida predominantemente instrumental do ska foi se modificando com a introdução de vocalistas nas bandas e ―nessa evolução, impulsionadas por novas misturas, surgiu o rock-steady‖ (SILVA, 2007, p. 97), com letras que falavam de problemas sociais e políticos. O reggae viria logo depois desses movimentos musicais. Um dos registros que se tem dessa época é o filme The Harder They Come, de 1972, dirigido por Perry Henzell e estrelado por Jimmy Cliff. Na película, esse cenário jamaicano é mostrado a partir da história real de Ivan Martín, um negro pobre que sai do interior para tentar sucesso musical em Kingston. A miséria e a falta de oportunidade fazem com que ele se torne um dos bandidos mais procurados pela polícia, mas também uma espécie de herói para o povo. Antes de virar traficante e de matar um policial, Ivan chega a gravar uma música, ―The harder they come‖ (composta por Cliff especialmente para o filme), mas, apesar da canção fazer sucesso nas festas, é boicotada pelo produtor, que tenta explorar o cantor aspirante. Assim, no filme, percebe-se a existência de uma indústria cultural do reggae na década de 1970, na qual algumas gravadoras e produtoras dominam o mercado, impondo o que deve ser 32 ouvido e o que deve ser tocado, de acordo com seus interesses comerciais16. A própria realização deste filme pode ser vista como parte dessa indústria funcionando, como pontua Vidigal (2008, p.73): Diversos autores atestaram o papel catalisador de The Harder They Come nos processos transculturais que levaram o reggae para todos os cantos do planeta, fazendo com que muitos considerassem o filme como parte de uma estratégia maior da gravadora, com o objetivo de tornar o reggae aceitável para o público americano e europeu17. Figura 11 - Jimmy Cliff em "The Harder They Come". Foto: Divulgação Segundo depoimento do jamaicano Chris Blackwell, dono da gravadora Island Records, empresa que lançou tanto o disco quanto o filme The Harder They Come, ―havia muita criatividade no meio musical, [...] assim achamos que seria ótimo se conseguíssemos capturar algo da essência da Jamaica em filme‖ (apud VIDIGAL, 2008, p.73). Deste modo, entre músicas como ―You can get if you really want‖, de Jimmy Cliff, e ―Sweet and dandy‖, 16 Albuquerque (1997, p.63) narra, em ―O eterno verão do reggae‖, história parecida que ocorreu com Bob Marley, quando ainda jovem procurou um estúdio para tentar emplacar a carreira de cantor: ―A sessão foi rápida e conduzida pelo próprio Kong [Leslie Kong, do estúdio Musik City], que usou a banda do estúdio para acompanhar aquele jovem candidato ao estrelato. Marley acatou as ordens do produtor e abriu a boca apenas para cantar. Pelo seu trabalho, ficou combinado – ou melhor, determinado – que ele receberia cerca de 15 dólares e nenhum centavo a mais. Ele não teria mais direito algum sobre a música. Se ela se transformasse em um hit, os lucros seriam todos de Kong. Era o primeiro encontro de Marley com a máfia dos estúdios jamaicanos‖. 17 Nota de roda pé do autor: ―Sobre o papel de The Harder They Come na criação de um mercado consumidor para o reggae, podem ser consultados artigos e livros escritos em várias épocas, com enfoques diversos (Gilroy, 1987, p. 169; Thelwell, 1992, p. 176; Fulani, 2005). Para outros comentários sobre o filme, ver Cooper (1995, p. 96), Warner (2000, p.76) e Marshall (1992, p.98). A revista de cultura pop Rolling Stone considerou a trilha sonora do filme como um dos 500 álbuns musicais mais influentes de todos os tempos, onde ocupa a 119ª posição (2003). Os documentários Hard Road to Travel (1991) e Midnight Movies (2005) trataram da recepção do filme na Jamaica e nos Estados Unidos, respectivamente‖ (2008, p.73). 33 dos Maytalls, o filme retrata de maneira quase documental a efervescência da Jamaica na qual o reggae surgiu. A música-título demonstra bem o espírito da época: Eles me falam sobre um lugar lá no céu/ Esperando por mim quando eu morrer/ Mas entre o dia que você nasce e o dia que você morre/ Eles nunca ouvem nem mesmo seu lamento/ Por isso, tão certo quanto o nascer do sol/ Eu vou pegar minha parte do que é meu agora/ E então, quanto mais duro eles vierem/ Mais dura será a queda deles/ Um por um (Jimmy Cliff, tradução minha).18 Em diversas outras letras de canções dessa época está o protesto contra a miséria e a influência do rastafarianismo19, que se disseminava cada vez mais na Ilha: falava-se de opressão, da luta do negro, de Jah, da Babilônia, de retorno à África e de rebeldia, como no disco de 1972 do grupo The Wailers – formado por Bob Marley, Peter Tosh e Bunny Livingston – ―Catch a Fire‖. A letra-título do álbum diz: Escravocrata, a mesa tá virando (Toca fogo)/ Toca fogo, para que você possa se queimar agora (Toca fogo)/ Toda vez que ouço o estalar de um chicote/ Meu sangue corre frio/ Lembro-me nos navios negreiros/ Como eles brutalizavam as próprias almas/ Hoje dizem que somos livres/ Só para sermos acorrentados na pobreza (Bob Marley, tradução minha).20 No começo dos anos 1970, na Jamaica, a palavra reggae ainda era pouco conhecida. O termo não é utilizado em momento algum no filme The Harder They Come. De acordo com Albuquerque (1997, p.59), a música era vendida em compactos, cuja prensagem e distribuição eram fáceis, os custos baixos e a vendagem rápida, seguindo o modus operandi do mercado fonográfico da época. 18 A letra original é: They tell me of a pie up in the sky/ Waiting for me when I die/ But between the day you're born and when you die/ They never seem to hear even your cry/ So I sure as the sun will shine/ I'm gonna get my share now what is mine/ And then the harder they come/ The harder they fall/ One and all. 19 O movimento, surgido na Jamaica
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