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71 I - Laicidade – Filosofia Mestiça Michel Serres De volta de uma inspeção às terras lunares, Arlequim, imperador, aparece no palco para dar uma entrevista coletiva. Que maravilhas viu, atravessando lugares tão extraordinários? O público está na expectativa de grandes extravagâncias. ___Não, não ___ ele responde às perguntas que o pressionam ___, em toda parte tudo é como aqui, em tudo idêntico ao que se pode ver comumente sobre o globo terráqueo. Só mudam os graus de grandeza e beleza. Decepcionado, o auditório não acredita: lá fora, obviamente, tem que ser diferente! Será que ele não conseguiu observar nada durante a viagem? Primeiro mudos, estupefatos, todos começam a se agitar, enquanto Arlequim repete doutamente a lição: nada de novo sob o sol, nada e novo na lua. A palavra do rei Salomão precede a do potentado satélite. Nada mais a dizer, sem comentários. Real ou imperial, quem detém o poder só encontra de fato, no espaço, obediência à sua potência, portanto à sua lei: o poder não se desloca. E, quando o faz, avança sobre o tapete vermelho. Assim, a razão só encontra a sua regra debaixo dos seus pés. Altivo, Arlequim desafia a platéia com um desdém e uma arrogância ridículos. No meio da sala, que se torna tumultuada, algum belo e maldoso espírito se levanta e estende a mão para indicar o casaco de Arlequim. ___Hei! ___ grita ele ___ você aí, que diz que tudo em toda parte é como aqui, quer que a gente acredite também que sua capa é feita de uma mesma peça, tanto na frente como na traseira? Atônito, o público não sabe mais se deve calar-se ou rir. De fato, a roupa do rei anuncia o inverso do que ele pretende. Composição descombinada, feita de pedaços, de trapos de todos os tamanhos, mil formas e cores variadas, de idades diversas, de proveniências diferentes, mal alinhavados, justapostos sem harmonia, sem nenhuma atenção às combinações, remendados segundo as circunstâncias, à medida das necessidades, dos acidentes e das contingências, será que mostra uma espécie de 72 mapa-múndi, o mapa das viagens do artista, como uma mala constelada de marcas? O lá-fora, então, nunca é como aqui. Nenhuma peça se parece com qualquer outra, nenhuma província poderia jamais ser comparada com tal outra, e todas as culturas diferem. A pelerine-portulano desmente o que se pretende o Rei da Lua. Vejam com seus próprios olhos esta paisagem zebrada, tigrada, matizada, mouriscada, recamada, entristecida, açoitada, lacunar, ocelada, multicolorida, rasgada, de cordões atados, de fitas cruzadas, de franjas puídas, inesperada em todo canto, miserável, gloriosa, magnífica de cortar o fôlego e de fazer o coração bater. Poderosa e banal, a palavra reina, monótona, e vitrifica o espaço; soberbo de miséria, o traje, improvável, deslumbra. O imperador derrisório, que repete como um papagaio, se envolve num mapa do mundo com multiplicidades mal ajeitadas. Verbo puro e simples, roupa compósita e mal combinada, reluzente, bela como uma coisa: que escolher? ___ Tu te vestes como o roteiro de tuas viagens? ___ diz ainda o belo espírito pérfido. Todo mundo ri. Eis o rei apanhado e envergonhado. Arlequim logo adivinha a única saída para o ridículo da situação: basta tirar este casaco que o desmente. Levanta-se, hesitante, olha boquiaberto os panos de seu traje; em seguida, com ar de bobo, olha para o público e de novo para seu casaco, como que tomado de vergonha. A platéia ri, um pouco abobalhada. Ele demora, se faz esperar. O Imperador da Lua enfim se decide. Arlequim se despe. Após muitas caretas e contorsões inábeis, acaba por deixar cair aos seus pés o casaco disparatado. Um outro envoltório cambiante aparece então: por baixo do primeiro véu, ele usa um segundo farrapo. Estupefata, a platéia ri de novo. É preciso então recomeçar, já que o segundo envoltório, semelhante ao casaco, se compõe de novas peças e de velhos pedaços. Impossível descrevera segunda túnica sem repetir, como uma litania: tigrada, matizada, zebrada, constelada... Arlequim continua então a desvestir-se. Sucessivamente aparecem uma outra roupa mourisca, uma nova túnica recamada, em seguida uma espécie de véu estriado e ainda uma malha ocelada, multicolorida... A sala explode, cada vez mais 73 surpreendida. Arlequim nunca chega ao último traje, enquanto o penúltimo reproduz exatamente o antepenúltimo: diversificado, compósito, rasgado... Sobre si, Arlequim traz uma camada espessa desses casacos de arlequim. Infindamente, o nu recua sob as máscaras; e o vivo, sob a boneca ou a estátua inchada de trapos. Decerto, o primeiro casaco deixa perceber a justaposição das peças, mas multiplicidade e o cruzamento dos sucessivos envoltórios a mostram, enquanto também a dissimulam. Cebola, alcachofra, Arlequim nunca acaba de se desfolhar ou de escamar suas capas cambiantes, e o público não pára mais de rir. De repente, silêncio. Seriedade e até gravidade descem sobre a sala, eis o rei nu. Retirado, o último disfarce acaba de cair. Estupor! Tatuado, o Imperador da Lua exibe uma pele multicor, muito mais cor do que pele. Todo corpo parece uma impressão digital. Como um quadro sobre uma tapeçaria, a tatuagem ___ estriada, matizada, recamada, tigrada, adamascada, mourisca ___ é um obstáculo para o olhar, tanto quanto os trajes ou os casacos que jazem no chão. Quando cai o último véu, o segredo se liberta, tão complicado como o conjunto de barreiras que o protegiam. Até mesmo a pele de Arlequim desmente a unidade pretendida por suas palavras. Também ela é um casaco de arlequim. A platéia tenta rir ainda, mas não consegue: seria preciso talvez que o homem se esfolasse. Assobios, apupos... pode-se pedir a alguém para arrancar a própria pele? A platéia viu e fica em suspenso: poderia ouvir-se uma mosca a voar. Arlequim não é imperador, nem mesmo derrisório. Arlequim só é Arlequim, múltiplo e diverso, ondulante e plural, quando se veste e se desveste: nomeado, condecorado porque se protege, se defende e se esconde, múltipla e indefinidamente. Brutalmente, os espectadores, juntos, acabam de esclarecer todo o mistério. Ei-lo agora desvendado, entregue sem defesa à intuição. Arlequim é hermafrodita, corpo mesclado, macho e mulher. Escândalo na sala, perturbada até as lágrimas. O andrógino nu mistura os gêneros sem que se possam distinguir as vizinhanças, lugares ou bordas onde terminam e começam os sexos: homem perdido na fêmea, mulher mesclada com o macho. Eis como ele ou ela se mostra: monstro. 74 Monstro? Esfinge, animal e donzela: centauro, macho e cavalo; unicórnio, quimera, corpo compósito e misturado; onde e como distinguir o lugar da solda ou do corte, o sulco onde a ligação se ata e se aperta, a cicatriz onde se juntam os lábios, o da direita e o da esquerda, o de cima e o de baixo, mas também o anjo e a besta, o vencedor vaidoso, modesto ou vingador, e a humilde ou repugnante vítima, o inerte e o imbecil, o senhor e o escravo, o imperador e o palhaço. Monstro, é verdade, mas normal. Que semblante afastar, agora, para melhor conhecer o lugar de junção? Arlequim-Hermafrodita serve-se das duas mãos, não como ambidestro, mas como canhoto completado destro até do lado esquerdo, viu-se claramente quando ele se despia, suas capas dando viravoltas nos dois lados. Encantos da infância e rugas próprias dos idosos, misturados, levam a que se pergunte sua idade: adolescente ou ancião? Mas, quando apareceram a pele e a carne, todos descobriram, sobretudo sua mestiçagem: mulato, temperado, híbrido em geral, e em que medida? Um quarto de sangue negro? Um oitavo? E se ele não brincasse mais de rei, mesmo de comédia,daria vontade de chamá-lo de bastardo ou mestiçado, cruzado. Sangue misto, marrom, amarronzado, impuro. Que nos poderia exibir agora o monstro comum, tatuado, ambidestro, hermafrodita e mestiço sob a própria pele? Sim, o sangue e a carne. A ciência fala de órgãos, de funções, de células e de moléculas, para finalmente confessar: faz tempo não se fala mais de vida nos laboratórios: mas ele nunca se refere à carne que, precisamente, designa, num dado lugar do corpo, aqui e agora, a mistura de músculos e de sangue, de pele e de pêlos, de ossos, de nervos e de funções diversas, que mescla aquilo que o saber pertinente analisa. A vida joga os dados e embaralha as cartas. Arlequim põe à mostra, para terminar, a sua carne. Misturados, a carne e o sangue mestiço de Arlequim parecem confundir-se ainda com um casaco de arlequim. Há algum tempo, numerosos espectadores já tinham deixado a sala, cansados dos golpes teatrais frustrados, irritado com essa viravolta da comédia em tragédia, tendo chegado para rir, decepcionando-se por ter que pensar. Alguns mesmo, especialistas eruditos sem dúvida, haviam compreendido, por sua própria conta, que cada porção do seu saber parece também com o casaco de Arlequim, cada um trabalhando na interseção ou na interferência de várias outras ciências e, às vezes, de 75 todas, quase. Assim, sua academia, ou enciclopédia, se aproximava formalmente da comédia dell’arte. Quando todos já estavam virando as costas, quando os candeeiros davam sinais de fraqueza e sentia-se que naquela noite a improvisação terminaria em fiasco, alguém lançou um súbito apelo, como se algo novo estivesse acontecendo num lugar onde tudo, até então, se repetira. O público inteiro se voltou de um só golpe e todos os olhares convergiram para o palco, dramaticamente iluminado pelos últimos fogos moribundos dos projetores. ___ Pierrô! Pierrô! ___ gritaram ___ Pierrô lunar! No lugar do Imperador da Lua erguia-se agora uma massa ofuscante, incandescente, mais clara que pálida, mais transparente que diáfana, liliácea, cândida, pura e virginal, inteiramente branca. ___ Pierrô! Pierrô! ___ gritavam ainda os tolos, quando a cortina se fechou. Eles saíram perguntando: ___ Como as mil cores do casaco podem se dissolver numa soma branca? ___ Assim como o corpo ___ respondiam os doutos ___ assimila e retém as diversas diferenças vividas durante as viagens e volta para casa mestiçado de novos gestos e de novos costumes, fundidos nas suas atitudes e funções a ponto de fazê-lo acreditar que nada mudou para ele, também o milagre laico da tolerância, da neutralidade indulgente, acolhe, na paz, todas as aprendizagens, para delas fazer brotar a liberdade de invenção e, portanto, de pensamento.