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Documento não controlado - AN03FREV001 90 PROGRAMA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA A DISTÂNCIA Portal Educação CURSO DE Gestalt-terapia Aluno: EaD - Educação a Distância Portal Educação Documento não controlado - AN03FREV001 91 CURSO DE Gestalt-terapia MÓDULO IV Atenção: O material deste módulo está disponível apenas como parâmetro de estudos para este Programa de Educação Continuada. É proibida qualquer forma de comercialização ou distribuição do mesmo sem a autorização expressa do Portal Educação. Os créditos do conteúdo aqui contido são dados aos seus respectivos autores descritos nas Referências Bibliográficas. Documento não controlado - AN03FREV001 92 MÓDULO IV Gestalt na Prática 17 RELAÇÃO EU-TU Falar da relação Eu-Tu e da relação Eu-Isso é, inevitavelmente, navegar pela construção cognitiva de Martin Buber. Para a Gestalt-terapia estas duas relações representam o princípio dialógico em psicoterapia. Primeiro, vou apresentar rapidamente este filósofo religioso que nasceu em Viena (1878-1965). Embora tenha sofrido a influência de vários pensadores contemporâneos com tendências existencialistas, ele se orientou filosoficamente na temática da mística judaica. O tema da fé e suas formas era o assunto central que norteava seus pensamentos. Associado a este primeiro está a forma como ele descreve a experiência e a vivência relacional do ser humano, ou seja, como ficam as bases para estas relações. Para ele, era importante discutir e apontar os diversos tipos de relações existentes entre homens-homens e entre homens-coisas. Ele entende por relacionamento o encontro entre dois seres que dialogam. A relação sujeito-sujeito constitui o mundo do “Tu”, e a relação sujeito-objeto constitui o mundo do “Isso”. O mundo do Tu pode estar exemplificado na relação Eu- Tu e é configurado com o ser inteiro, ao contrário da relação Eu-Isso. O Eu-Isso envolve a relação entre um ser e uma parte ou elemento do outro, enquanto o Eu-Tu consiste no relacionamento pleno entre os dois seres, englobando em sua amplitude os sentimentos e ideias de ambos. Para Buber, a autenticidade do homem reside em sua inserção na relação Eu-Tu e não na relação Eu-Isso. A vida verdadeira está no encontro direto e autêntico entre os sujeitos, afinal este encontro capacita-o a tornar-se inteiro. Nesta relação direta não pode se interpor nem pensamentos e nem ideias, mantendo assim a “pureza” entre estes sujeitos. Porém, não significa que seja fácil, pois, muitas vezes, nos relacionamos com o outro despersonalizando e retirando deste Documento não controlado - AN03FREV001 93 encontro o que pode acontecer de imprevisto e inusitado. No Eu-Isso embora haja uma relação, ou um relacionar-se, o outro é visto e vivenciado como um objeto de manipulação. É negada a ele a chance de ser abordado diretamente como pessoa. Não há permissão de se conectar com a mesma parte da outra pessoa e nem de buscar o aspecto pessoal e especialmente humano desta. O que ocorre é um contatar Eu-Isso congelado, que não flui, e nunca poderá caminhar para o Eu-Tu. Para entendermos melhor este assunto, vamos pensar nas nossas relações diárias e rotineiras. Uma pessoa trabalha num escritório e todo dia, no mesmo horário, vem uma pessoa da faxina que limpa o local e retira o lixo. Muitas vezes, a pessoa nem percebe este ritual e não há uma interação direta com a pessoa. O máximo que acontece é um bom-dia que ocorre de forma automática e mecânica. Não há contato visual, e muito menos uma intenção de troca nesta comunicação. Embora sejam duas pessoas teoricamente se relacionando, segundo os princípios de Buber, a relação que acaba de ocorrer é uma relação Eu-Isso. Por outro lado, se quando a moça da limpeza chega, há uma interrupção na sua tarefa, uma comunicação sincera e autêntica e até a percepção, por exemplo, de que a pessoa não está com a “cara muito boa”, a relação que se estabelece muda, e o que ocorre é uma integração relacional baseada no mundo Eu-Tu. Este outro, representado na moça da limpeza deixa de ocupar um lugar de “objeto” e volta a ocupar o lugar do “sujeito”. O Eu está para o Tu, assim como o Tu para o Eu, pois é no olhar do Tu que o Eu se reconhece, e vice-versa. Fazendo um paralelo com a Gestalt-terapia, podemos dizer que estas são as bases da relação dialógica que se estabelece entre o terapeuta e o cliente, ampliando esta ideia, podemos afirmar que este tema é a base, o processo e o “objetivo” da terapia. Ainda segundo Buber, o homem sente necessidade de criar novos laços e personificar essas relações. Por meio do tu, o eu se encontra, e na expressão maior de sua identidade, sem a uniformidade, o eu encontra no tu a própria revelação e atualização, buscando seu lugar na sociedade. De fato, o ser humano é uma substância incompleta, e no outro encontra todas as prerrogativas de uma vivência equilibrada. Mas Buber não deixa o relacionamento Eu-Tu permanecer na linha horizontal, mas o envereda pela busca Documento não controlado - AN03FREV001 94 do Tu existencial e divino, que vai por sua vez mostrar ao Eu a sua verdadeira face, a de permanente ralação. As relações Isso são verticais e as relações Tu são horizontais. Muitos Gestalt-terapeutas utilizam os termos “Eu-Tu”, “relacionamento Eu- Tu”, “atitude Eu-Tu” como equivalência para a “atitude dialógica” ou “relacionamento dialógico”. Aqui, irei adotar a mesma medida para ficar claro que dentro da Gestalt- terapia este conceito sustenta uma base tão importante que podemos afirmar que o diálogo existencial refere-se ao comportamento que compreende o relacionamento Eu-Tu. O diálogo na Gestalt-terapia inclui o encontro real entre duas pessoas como pessoas, por meio não só das palavras, mas também dos gestos, sensações, contexto energético, expressão corporal e sons. É comum alguns casais ou amigos muito próximos conseguirem saber exatamente o que o outro está sentindo ou pensando apenas com um olhar. A relação Eu-Tu também funciona como elemento primordial para um contato autêntico entre duas pessoas. O contato humano é estabelecido por meio do relacionamento com a figura de interesse. Este processo de contato mútuo entre duas pessoas ocorre pelo processo de união e separação, considerando um ritmo e uma direção deste encontro. O relacionamento dialógico é uma forma especializada de esse contatar mútuo. Quando há uma atitude de mutualidade, um fluxo livre de energia afetiva ocorre entre elas. Dentro da terapia, os Gestalt-terapeutas se relacionam com uma atitude Eu-Tu e com a esperança de que o Tu mútuo e completo se desenvolva. Olhe que aspecto interessante pode ocorrer nestas relações! Uma pessoa pode estar com uma atitude Eu-Tu e encontrar-se com outra pessoa também por meio da atitude Eu-Tu e não tratá-la como um objeto (Eu-Isso) e, mesmo assim, o Eu-Tu não ser completado. Quando esta situação ocorre podemos analisar que mesmo quando as pessoas estão “dispostas a entregar-se” neste encontro o Tu mútuo pode ainda não ter sido desenvolvido. Tais aspectos passam por uma questão de confiança entre estas partes que ainda não é suficiente, ou então, um suporte inadequado que não permite que o Tu entre e não acontece a mutualidade. Esse encontro, então, passa a ser entendido como um Eu-Isso em que o Eu-Tu está latente. Dentro da terapia, quando isto Documento não controlado - AN03FREV001 95 ocorre é necessárioreconhecer que é assim e aceitar o limite. Este processo faz parte da adesão ao que ocorre no “entre” da relação dialógica. Os terapeutas precisam tomar cuidado quando passam a acreditar que eles próprios detêm o conhecimento supremo e o domínio da sessão terapêutico mais do que os seus clientes. Como, por exemplo, quando sabem até que ponto emocional o cliente “precisa” ir, ou que técnica será “inevitável” para ele, assim por diante. Assim, quando os terapeutas vão ao encontro do cliente com a crença de saberem mais que eles, há uma negação do processo de autorregulação do cliente pelo terapeuta. Neste caso, a autorregulação fica subjugada ao conhecimento do terapeuta, o que é totalmente inaceitável para um Gestalt-terapeuta. Mais ainda, quando isto acontece, não está se tratando do outro, como pessoa e o que se estabelece é uma relação Eu-Isso e não uma relação Eu-Tu. Segundo Yontef (1993), há cinco características do contatar no relacionamento dialógico Eu-Tu da Gestalt-terapia: • Inclusão: é necessário incluir-se no mundo do cliente aceitando-o como ele é. Pela prática da inclusão, o terapeuta simultaneamente se relaciona com o cliente e reúne informações sobre ele. Para honrar o mundo fenomenológico do cliente e não desonrá-lo, há uma necessidade de que sejam colocadas de lado as perspectivas e as crenças do terapeuta. • Presença: quando o terapeuta torna-se realmente presente na relação dialógica, ele mostra o seu verdadeiro self. Mostrar sua atenção e respeito ocorre mais pela via da honestidade do que por sua constante delicadeza. É permitido a um Gestalt-terapeuta mostrar suas dúvidas, expressar limites, raiva, aborrecimento, compartilhar percepções, checar hipóteses, etc. • Compromisso com o diálogo: é demandado a um Gestalt-terapeuta que este esteja verdadeiramente comprometido com o diálogo e permita que o que está “entre” controle o encontro. A inclusão e a presença é que permitem este diálogo. Isto significa que o terapeuta se permite ser afetado pelo cliente (inclusão) e, também, permite que o cliente seja afetado por quem o terapeuta é (presença). Cada um precisa expressar seu mundo interior, mas também estar receptivo ao resultado que ocorre no “entre” da relação, inclusive o seu controle. Documento não controlado - AN03FREV001 96 Para o psicoterapeuta aderir a um compromisso de objetivar o diálogo e o processo, exige uma fé no valor inerente de cada pessoa e em sua capacidade de se autorregular organismicamente. Entrar em contato sem superproteger, negligenciar ou controlar exige ter como valor ou acreditar em autodeterminação. Fundamentalmente, mostrar o seu self e permitir o que está entre, controlar, são formas de rendição baseadas inicialmente na fé, confiando que ela venha a ser reforçada por dados experienciais (YONTEF, 1993, p. 256). • Não exploração: a Gestalt-terapia é não exploratória em sua essência. O terapeuta considera cada pessoa como uma finalidade em si mesma. Algumas formas de exploração podem ser discutidas com a tentativa de eliminar uma relação manipulativa e horizontal que pode ocorrer. a) A pessoa pode ser tratada como meio para um fim. Por exemplo, a pessoa pode ser tratada como um objeto a ser salvo, transformando-se num meio para satisfazer o ego do terapeuta. A relação estabelecida é Eu-Isso. b) Desigualdade de linguagem (verticalidade). A relação Eu-Tu é horizontal e não abusiva, marcada pelo diálogo e pelo trabalho conjunto, como iguais. O encontro é que tem o poder de curar, e não o terapeuta. Por meio dele são compartilhados os selves interiores. O relacionamento horizontal estrutura-se na crença de que cada pessoa é responsável por si mesma. c) O terapeuta não está realizando o seu trabalho de forma adequada. Segundo Yontef (1993, p. 260) a “boa psicoterapia exige competência técnica e bom relacionamento”. O terapeuta deverá incluir um clima propício ao diálogo, ser um guia para a experiência fenomenológica e obter uma visão holística do cliente. Além, é claro, de reconhecer a importância e aplicar na prática todos os pontos acima (inclusão, presença, compromisso com o diálogo, não ser explorador e viver o relacionamento). É importante lembrar que a terapia oferece um desafio dentro dos limites do relacionamento terapêutico. Quando falo em desafio estou colocando como um risco para o paciente Documento não controlado - AN03FREV001 97 que precisa estar em aware e para o terapeuta que assume a responsabilidade pelo trabalho de crescimento de outra pessoa. d) Desatenção com os limites apropriados. O diálogo e o trabalho de awareness exigem discrição por parte do terapeuta, para não se tornarem abusivas, em vez de criativa e libertadora. “O terapeuta é responsável pela manutenção de uma atmosfera condutora do Eu-Tu por ser especialista nas exigências técnicas do diálogo e do trabalho de awareness” (YONTEF, 1993, p. 263). • Bem-estar do consumidor: é importante que o terapeuta evite relacionamentos duplos com o cliente, assim como envolvimentos pessoais e/ou sexuais. Também é importante que sejam evitados relacionamentos em que possam diminuir o seu julgamento profissional ou aumentar o risco de exploração dos clientes. • Vivendo o relacionamento: ter contato e relacionar-se é vida e não falar sobre a vida. Por isso, os Gestalt-terapeutas concentram-se mais na experiência do que no conceito, mais na forma do que no conteúdo. Mais no como do que no por quê. Só se vive na relação e no agora. 18 TRABALHANDO COM SITUAÇÕES INACABADAS Antes de falarmos propriamente sobre situações inacabadas, é importante criarmos o campo em que este conceito se desenvolveu. Quando a Gestalt-terapia ainda sofria influência da psicologia da Gestalt, uma de suas leis era a lei do fechamento. A percepção do indivíduo ocorre na direção do fechamento, da finalização, ou seja, há uma necessidade de fechar figuras que se apresentam de forma aberta. Em alguns casos, há uma necessidade de compensar visualmente as falhas. Na figura abaixo nós enxergamos um círculo. Documento não controlado - AN03FREV001 98 FIGURA 61 Quando nos referimos à vida de um modo geral, podemos encarar este reflexo perceptual como um reflexo pessoal básico no qual, muitas vezes, há um impedimento pelos acontecimentos sociais da vida, ou seja, fica a impossibilidade de se fechar determinada situação. Há uma interrupção no processo de viver a vida e, ocorre, a insatisfação ou uma frustração diante de coisas que as pessoas gostariam de fazer. Perls percebeu que a maioria dos problemas humanos podia ser encarada como figuras incompletas ou necessidades do passado, interrompidas, intrometendo-se no presente sempre de novo, numa tentativa de serem resolvidas ou completadas. As atividades não completadas tendem a ser lembradas com mais clareza e urgência do que as atividades completadas. Por outro lado, Polster também afirma que a maioria dos indivíduos tem uma grande capacidade para situações inacabadas – “felizmente, porque no curso da vida estamos condenados a ficar com muitas delas” (POLSTER, 1979, p. 49). Situações inacabadas também podem ser encontradas com a nomenclatura de gestalten incompletas ou gestalten abertas. Quando ocorrem tais eventos, elas ficam como formas fixas no presente, obstruindo o fluxo livre e criativo de percepção e resposta às situações novas. Essas ações que “recusando-se” a serem completadas são “forçadas” a ficar em um fundo, onde permanecem inacabadas e incômodas tomando a energia do indivíduo e distraindo-o do aqui-agora. Tentando organizarum pouco mais este conceito, podemos dizer que uma situação inacabada é toda experiência que fica suspensa até que a pessoa a conclua, ou seja, feche-a. 1 FONTE: Acervo pessoal. Documento não controlado - AN03FREV001 99 Entretanto, estes movimentos que não são completados buscam naturalmente um complemento e, quando se tornam suficientemente poderosos, o indivíduo é envolvido por preocupações, comportamentos compulsivos, cuidados, energia opressiva e muitas atividades autofrustrantes. Quanto mais ocorrerem comportamentos derivados destas situações inacabadas mais haverá uma repetição automática, e a consequência é colocar o organismo em permanente estado de prontidão, obstruindo o fluxo de sentir e distorcendo o processo de awareness. Quando a awareness é distorcida, o organismo todo funciona de forma desregulada e irá responder a uma necessidade que não é genuína. Uma esposa, pela manhã, teve uma necessidade de discutir com o marido, mas não o fez. Pode ocorrer que durante o caminho para o trabalho, ela participe de uma confusão no trânsito. O que ocorreu foi uma tentativa do organismo de dissipar a raiva que está por trás da situação que ficou inacabada. Provavelmente, esta alternativa não irá funcionar, pois é uma tentativa fraca ou parcial de terminar algo que ainda está aberto ou inacabado. Algumas situações inacabadas podem atingir uma dimensão tão grande dentro da vida da pessoa que o indivíduo nunca estará satisfeito por mais que seja bem-sucedido em outras direções, até que haja o fechamento. Quando uma situação inacabada forma o centro da existência da pessoa, o agitamento mental dela fica impedido e outros problemas aparecerão em decorrência desta Gestalt aberta. Para ocorrer o fechamento, e a volta da fluidez energética e mental, o fechamento precisa acontecer ou por um retorno à antiga questão, a questão original que gerou a situação inacabada ou as questões paralelas do presente que podem ser consideradas consequências desta primeira. O cliente que nos procura vem, muitas vezes, sentindo-se angustiado, ansioso, com uma sensação de vazio e falta de graça em sua vida, mas na maioria das vezes, não tem realmente contato com o que lhe faz sentir-se assim. Ou se tem, não consegue mobilizar-se para agir de forma a atender às suas necessidades. Por exemplo, a pessoa pode sentir-se solitária, mas não conseguir ir à busca de um contato humano que lhe seja acalentador. Quando isto acontece, a energia está provavelmente presa em situações inacabadas do passado. Documento não controlado - AN03FREV001 100 Outro ponto importante é entender que a situação inacabada é um evento que originalmente pode ter acontecido no passado, mas em razão de sua força ela ainda é presente e só pode ser completada se trabalhada dentro da contextualização no presente. Segundo Polster (1979, p. 53) “uma vez que o fechamento tenha sido alcançado e possa ser plenamente experimentado no presente, a preocupação com a antiga situação incompleta é resolvida, e a pessoa pode passar para as possibilidades atuais”. Os neuróticos são incapazes de viver no presente, pois carregam cronicamente consigo situações inacabadas do passado. Sua atenção é, ao menos em parte, absorvida por essas situações e eles não têm nem consciência nem energia para lidar plenamente com o presente e sentem-se incapazes de viver com sucesso. À medida que estas situações aparecem, pede-se ao cliente que as represente e experimente de novo, a fim de completá-las e assimilá-las no presente. Podemos dizer que, grosso modo, o objetivo terapêutico da Gestalt-terapia seria a ampliação do processo de awareness, pela relação terapêutica (dialógica), liberando energias retidas em situações inacabadas, para a criação de novas configurações ou gestalten. É necessário trabalhar um continuum de conscientização para que as situações inacabadas mais importantes possam emergir para serem elaboradas e acabadas. Nós funcionaremos mal, ao carregar muitas situações inacabadas que sempre exigem complemento (fechamento/Gestalt). A conscientização por si só pode ser terapêutica. A terapia vem, então, para ajudar a expandir o fluxo de energia e awareness, liberar a energia retida em situações antigas e inacabadas, trazendo-a para o aqui- agora, facilitando assim, por meio do suporte da relação terapêutica, a elaboração interna daquilo que antes não pôde ser bem-elaborado, novas experiências, e a compreensão e eventual transformação dos padrões de relacionamento do indivíduo com ele mesmo, com os outros e com o mundo. Quando a pessoa se relaciona de forma em que os impedimentos não ocorrem, ela fica livre para se envolver de forma espontânea, intensa e inteira com qualquer coisa de seu interesse. Este é o processo natural, que capacita a pessoa a Documento não controlado - AN03FREV001 101 ficar especialista em si mesma, ou seja, esse ritmo organísmico faz com que ela experiencie a si mesmo de forma flexível, clara e efetiva. Entender este processo é uma arte, afinal as situações ou nossas necessidades (físicas, emocionais, espirituais, etc.) não se configuram de forma clara. Muitas vezes, o contato da pessoa com sua interioridade, com os outros e com a situação presente é pobre. Outras vezes, a pessoa não sabe experimentar esta inteireza e, mesmo quando o fechamento já ocorreu, o indivíduo não consegue perceber. É sempre necessário que haja um movimento de atualização de comportamentos e de necessidades com o indivíduo. Assim, ele poderá viver a intensidade de cada situação e não correrá o risco de estar vivendo uma situação cristalizada que atribui uma avaliação arcaica às situações atuais. 19 O CORPO A Gestalt-terapia concede um lugar privilegiado para o corpo dentro do processo terapêutico. Quando falamos em corpo, estamos nos referindo a um corpo metafórico e real que estabelece um diálogo multidirecional entre o corpo e a palavra e entre a palavra e o corpo, tanto do cliente quanto do terapeuta. O corpo constitui uma poderosa alavanca terapêutica e, para um Gestalt-terapeuta, exige uma atenção grande e permanente. Na verdade, o corpo representa uma dimensão vital dentro das relações interpessoais. Ginger (1995, p. 161) afirma que “em Gestalt, o sintoma corporal é deliberadamente utilizado como ‘porta de entrada’ que permite um contato direto com o cliente”. O que vocês acham que é percebido no corpo, por um Gestalt-terapeuta? Na verdade, tudo. São observadas a respiração, seu ritmo e seus bloqueios, a disposição energética das partes do corpo do cliente e sua energia de forma geral, posturas e movimentos aparentes (que podem ser voluntários ou involuntários), gestos ou microgestos, “manias ou vícios corporais” (mexer o cabelo, balançar o pé, franzir a testa, levantar a sobrancelha, etc.), a voz (tom, intensidade, fluência), palidez ou ruboração, e assim por diante. Documento não controlado - AN03FREV001 102 Enfim, qualquer indício de que o corpo possa estar querendo se comunicar e que está difícil ou inacessível por meio das palavras. Ouvir o corpo e “dar-lhe a palavra” é uma forma de amplificar o que está sentindo ou mesmo, perceber mais claramente um sintoma. É dar a devida atenção ao fenômeno corporal que surge antes mesmo de lhe atribuir um significado. O corpo é uma linguagem profunda, rica e matizada que ajuda a fazer com que a mente entre na mesma ressonância dele. Os sentimentos evocados repercutem neste canal corporal ampliando um feedback mútuo. Por exemplo, se você está falando que está com raiva, sua respiraçãopode ficar alterada, seu rosto pode ficar energizado e suas veias sobressaltadas. Além disso, o corpo está sempre enraizado no aqui-agora enquanto as palavras podem se extraviar e se perder nos “o quês” em detrimento dos “comos”. Nivelar as palavras ao corpo é, mesmo para os dias atuais, uma quebra de paradigma. Primeiro, porque em nossa cultura as expressões do corpo e das emoções são censuradas e estritamente filtradas. Muitos sentimentos foram negados, como sendo algo não “digno” de se ter. Raiva, inveja, ciúmes, expressões efusivas de alegria, tudo isso, foi proibido desde a infância. Segundo, porque o pensamento cartesiano corpo-mente ainda prevalece como modelo vigente entre estas partes. A Gestalt-terapia tenta quebrar esta dicotomia e esta barreira acessando os sentimentos por meio, também, do corpo e de suas expressões. É muito importante não tentar dominar as emoções, mas sim, reconhecê-las, conhecê-las, domá-las e integrá-las evitando tanto o transbordamento quanto o seu ressecamento. Isto vai garantir uma boa saúde emocional às pessoas. Minha experiência é que quando eu focalizo totalmente qualquer lugar de um corpo, o meu pensamento para lá... Quando alguma dor ou tensão não desaparece com facilidade, eu sugiro: veja se consegue explorá-la – suavemente, sem força, como se tivesse fazendo amizade com ela – e veja se consegue descobrir o que está querendo acontecer ali e deixe acontecer. Veja se surge algum movimento da dor ou da tensão. Pode ser algum movimentozinho que você tenha no presente e que não é visível para mim. Pode ser um movimento grande, que eu possa ver. Deixe acontecer aquilo que está querendo acontecer (PERLS, 1977, p. 213-214). Documento não controlado - AN03FREV001 103 O trabalho corporal da Gestalt consiste em descontrolar o próprio corpo. O corpo atua inconvencionalmente, por algum tempo, até a pessoa se tornar o seu próprio corpo. As pessoas não precisam procurar, vasculhar um significado para o que está acontecendo, pois este significado aparecerá, fechando uma Gestalt aberta e significando uma situação geral. Um erro comum é buscar este significado enquanto o corpo ainda não está preparado para a integração total. Procurar este significado é um movimento da cognição, do pensamento que ocorre na mente, no intelecto, e lá não há esta resposta. O resultado desta busca incessante pode ser a frustração, o desânimo e a confusão, ou até se pegar a um significado falso apenas para satisfazer a razão. Quando os significados aparecem sozinhos não existe a procura, eles são simplesmente aceitos, sem confusão. A Gestalt-terapia, inspira-se no psicodrama para conseguir percorrer o percurso da palavra ao corpo. Para isso, ela utiliza-se das técnicas de dramatização. É bastante comum um Gestalt-terapeuta sugerir a dramatização corporal simbólica de um sentimento que tenha aparecido dentro da terapia. Técnicas de grupos como jogos ou exercícios favorecem a utilização do corpo, e multiplicam as suas possibilidades de utilização. Outra possibilidade que não pode ser descartada é a utilização do corpo do próprio terapeuta como uma ótima possibilidade para desencadear emoções profundas. Mesmo sendo um forte recurso de mobilização de emoção, este contato ainda é pouco usado e envolve muitos tabus e várias discussões teóricas. Por exemplo, uma cliente que sempre teve uma relação pouco íntima com a mãe e nunca recebeu um colo aconchegante pode experienciar tal situação junto ao terapeuta. Ele dará um colo confortável e protetor e ela ampliará sua awareness dentro de uma relação de confiança e segurança. Todo corpo tem um limite de aproximação. Estas barreiras representam as “fronteiras da bolha” e existem para proteger, dar segurança e permitir um contato satisfatório. Estes fatores envolvem aspectos individuais, sociais e culturais para cada pessoa. É normal na cultura norte-americana amigos de sexo diferentes, quando têm muita intimidade, cumprimentarem-se com um “selinho” na boca. Já no Brasil, onde as pessoas são geralmente mais abertas para o toque, este comportamento, em Documento não controlado - AN03FREV001 104 especial, não é aceitável com naturalidade. Esta distância adequada é um elemento essencial para o ciclo completo do contato. Vivemos muito tempo na era da razão, da racionalidade, do pensamento lógico. Atualmente, o corpo tem conquistado o seu lugar, incluindo toda a dimensão de suas exigências e beleza (estou falando dos rígidos padrões de beleza da sociedade contemporânea). Podemos dizer que este corpo vive com um sinal e um reflexo desta complexa totalidade. Diante de tal cenário, o corpo não pode ser mais ignorado! Ele precisa fazer parte da busca pela emocionalidade de cada indivíduo por meio de uma linguagem mais clara, compondo todos os mistérios e as grandezas deste contexto. 20 EXPERIMENTOS O experimento é o método que a Gestalt-terapia utiliza para alcançar o processo de awareness do paciente. A experimentação entra numa dimensão estética e ética (mais adiante irei retornar a este assunto). Neste contexto, “experimentação” não compartilha a concepção científica do termo. Aqui, a experimentação passa a ser um recurso fenomenológico para emergir as circunstâncias existenciais presentes. Voltamos aos primórdios do sentido do termo, nos quais a experimentação, derivado do perire grego, significava arriscar, tentar... Ou seja, certa arte de perigar. Perigo, perigação, que também derivam do verbo perire. No seu sentido científico, a experimentação está ligada à reprodução controlada, frequentemente laboratorial, de uma dada realidade. Embora a Gestalt-terapia tenha se aproximado muito da Psicologia da Gestalt, neste ponto estas linhas de pensamento se distanciam. Perls, com sua atitude eminentemente visceral e experimental critica a dificuldade da Psicologia da Gestalt de se afastar do conceito da experimentação com o olhar científico. Lembramos que a Psicologia da Gestalt é experimental no sentido de ocorrerem experimentos em laboratórios com todo o rigor e a preocupação científica. Perls criticava a monotonia, a falta de interesse e falta de excitação dos experimentos laboratoriais. Para ele, o experimento só faz sentido se tiver sendo Documento não controlado - AN03FREV001 105 usado com o seu devido risco, como algo novo. Por este motivo, ele afiliava-se a uma concepção artística, estética, compreensiva, existencial, da experimentação. Perls define experimento como: (...) um ensaio ou observação especial feitos para provar ou descartar algo duvidoso, especialmente sobre condições determinadas pelo observador; um ato ou operação realizado a fim de descobrir algum princípio ou efeito desconhecidos, ou, para testar, estabelecer ou ilustrar alguma verdade conhecida ou sugerida; teste prático; prova (PERLS et al., 1951, p. 14). Fazendo um paralelo com as artes, podemos dizer que a Gestalt-terapia é o expressionismo em terapia. Esta frase vem da ideia de que a utilização da experimentação neste contexto não é nova. Os orientais já entendiam desta forma e, no ocidente, o próprio movimento artístico do Expressionismo também a compreendia assim. O Expressionismo era consonante com a observação de que a possibilidade é mais importante do que a realidade. Esta posição advinha de uma contraposição ao positivismo do real. É muito comum as pessoas criaram o hábito de “falar sobre” determinado assunto ou problema. Geralmente, o processo ocorre da seguinte forma: as pessoas conversam com os outros sobre o que as incomoda até chegarem a posição que se sintam confortáveis, chegam auma solução. Caso não tenha passado o momento de agir, elas partem para ação. O problema ocorre, pois, na maioria das vezes, esta ação está ligada a uma forma já conhecida de funcionamento, a um padrão de comportamento. Ao falar sobre, as pessoas não incluem nenhum elemento novo, sufocam a inovação e a improvisação indutiva. O grande risco destas intervenções baseadas no passado é de que tais atitudes tornem-se mecânicas e sem vida. Além disso, ao ficar preso ao passado, as ações tornam-se congeladas e o processo de mudança fica apenas na possibilidade. A Gestalt-terapia tenta recuperar a conexão entre o discurso (“falar sobre”) e a mudança (a ação propriamente dita), integrando estas partes por meio do experimento e libertando as pessoas das influências das ruminações empobrecedoras sobre os temas existenciais. Uma relação experimental entre terapeuta e cliente permite um privilégio da Documento não controlado - AN03FREV001 106 atualização da experiência do cliente, potencializando a vivência ativa pelo cliente dos elementos que constituem o presente desta pessoa, e não padrões desatualizados de ação. Vive-se o problema, sente-se o problema, para então, resolvê-lo. Por meio do experimento o cliente se mobiliza na direção da confrontação de suas emergências, dentro de uma segurança relativa propiciada na relação terapêutica. Essa segurança baseia-se em dois pontos importantes: primeiro, o suporte oferecido pela relação dialógica; depois, a possibilidade de se correr um risco “calculado” dentro de um ambiente seguro e privado. Por outro lado, o experimento não deve se transformar num paliativo ou num substituto para o envolvimento válido. Muito pelo contrário, ele tem a possibilidade de interligar a experiência do mundo (lá fora) com a sua experiência emocional interior, e por esta nova configuração, há uma descoberta, uma nova síntese que permite que surja algo novo e que pode ser devidamente aplicado em sua vida. O que não o impede de que ao chegar ao mundo exterior, ele também, possa fazer diferente do que experimentou na relação terapêutica. Isso depende de sua sensibilidade para entender e sentir o ritmo de seu próprio movimento existencial. Afinal, o experimento não é nem um ensaio, nem um ato póstumo. O objetivo do experimento sugerido dentro do processo terapêutico é para que o cliente descubra qual o mecanismo que está alienando parte dos processos de seu self, evitando o fluxo natural em direção a awareness. Segundo Yontef (1993, p. 79), em seu livro Processo, Diálogo e Awareness: (...) um experimento típico é pedir que os participantes formem uma série de sentenças começando com as palavras “aqui-e-agora eu estou consciente (aware) de...”. O terapeuta continuamente devolve o relato daquilo que o paciente está percebendo (experienciando) e encoraja a continuação do experimento perguntando: “Onde você está agora?”, “O que você está experienciando agora?”. As questões do paciente são transformadas em: “agora você está consciente (aware) de imaginar...”. Quando o paciente começa a evitar a instruções, isto também é transformando num relato de awareness: “Agora estou consciente (aware) de querer parar”. Documento não controlado - AN03FREV001 107 A partir deste experimento básico, muitos outros podem ser criados. A necessidade que o terapeuta tem de criar e de ousar é uma premissa importante da Gestalt-terapia. Os experimentos podem ser arranjados em forma de séries graduais. Afinal, o desafio do cliente precisa ser alcançado segundo o seu tempo e ritmo. É importante lembrar que embora o terapeuta elabore e proponha o experimento, tudo pode acontecer. É sempre um resultado imprevisível e autêntico, inclusive para o cliente. Este resultado pode indicar direções para novos experimentos, e todo o controle sobre este processo também é dividido entre o terapeuta e o cliente, incluindo sua observação. Um experimento pode ser algo bem simples ou algo extremamente complexo. Para entender melhor, vou apresentar um exemplo desta forma mais simplificada de experimento. Podemos estar com um cliente que está falando sobre a constante sensação que tem tido em sua vida de estar sempre “correndo atrás do rabo”. Note que toda vez que o cliente já traz uma metáfora, uma imagem ou uma cena pronta, isso é material precioso que precisa ser trabalhado pelo terapeuta. Voltando ao caso, um experimento simples, porém bem apropriado para este contexto, seria o de pedir para o cliente levantar e representar com um gesto corporal o que seria para ele, literalmente, “correr atrás do rabo”. A partir daí, poderá ser explorada as sensações, os sentimentos, as ideias (introjeções, por exemplo), padrões de comportamento, o “para que” desta situação, etc. Isto é um experimento! Muitas vezes, o terapeuta acredita que o experimento é sempre algo muito complexo e elaborado e não é verdade. Um impacto emocional deste exemplo relatado é imprevisível e poderá ajudar muito o cliente na direção da ampliação do seu processo de awareness. A Gestalt-terapia apresenta quatro possibilidades ou formas de se sugerir um experimento: pela representação, pela fantasia, pelo comportamento dirigido ou por meio de lições de casa. A representação é uma dramatização de algum aspecto da existência do paciente dentro do ambiente terapêutico e demanda uma ação. Esta seria uma primeira possibilidade de ação de um cliente, e talvez seja, naquele momento, a única via de expressão aberta. Uma pessoa que está representando ou atuando trabalha com o que gostaria de ser, e não o que realmente é. Mas, para isso, Documento não controlado - AN03FREV001 108 mantêm viva a necessidade de fazer coisas novas e muitas vezes, mostra um novo lado de si mesmo, abrindo novas direções. Segundo Polster, podemos representar quatro tipos de situações: uma situação inacabada do passado distante, uma situação inacabada do presente, uma característica ou mesmo uma polaridade. O comportamento dirigido, muitas vezes, é negado e quase um tabu em algumas abordagens psicológicas. Na Gestalt-terapia é usado, com propósitos exploratórios e de forma seletiva. Algumas vezes, o comportamento dirigido se confunde com a representação, o que tem de diferente é o fato de que é mais prático, mais limitado, em relação a comportamentos específicos e ter instruções mais diretas. A intenção não é a criação de um cenário dramático, mas de colocar um novo comportamento em ação. Uma aplicação clara e usual desta técnica ocorre quando o terapeuta quer mobilizar a autossustentação do cliente. Outra aplicação ocorre quando o terapeuta quer recuperar a sensação perdida pelo cliente. Às vezes, durante uma sessão, podemos pedir para o cliente parar sua narrativa e, simplesmente, contar tudo de novo, usando toda a emoção contida na cena e na situação vivida, como se ele próprio fosse um ator, e que precisasse colocar uma onda de paixão e envolvimento nos fatos. É comum os clientes se surpreenderem com a intensidade e com o poder de sua energia presa. A fantasia pode ser considerada a alavanca mestre do processo terapêutico. Por meio da fantasia as pessoas podem se relacionar expansivamente em suas vidas. Em várias sessões utilizando a fantasia (como, por exemplo, depois de uma viagem fantasia), a intensidade e a força da experiência chega a níveis tão elevados que podem ser mais significantes do que algumas situações da vida real. Em alguns momentos, a terapia pode tomar outro rumo e tornar-se mais produtiva, a partir de uma experiência com a fantasia. Segundo Polster (1979), há alguns propósitos principais a que se destina afantasia: contato com um acontecimento, sentimento ou característica pessoal que encontra resistência; contato com uma pessoa não disponível ou com uma situação inacabada; exploração do desconhecido; exploração de aspectos novos ou não habituais de si mesmos. Ainda segundo este autor (1979, p. 25), “embora a fantasia seja Documento não controlado - AN03FREV001 109 essencialmente não ação, ela pode ser acompanhada por ação ou é capaz de produzir ação que pode formar um núcleo dinâmico para a experiência”. O que Polster está colocando na frase acima é que quando o cliente fantasia uma situação, há uma liberação de energia que pode sustentar a ação, que, na maioria das vezes, só ocorre após uma reação real, mas que é possível ser acessada por meio da fantasia. Por outro lado, a fantasia permite o reconhecimento e o retorno dos sentimentos muito importantes para o processo de awareness do cliente. Esta assimilação de suas próprias emoções é importante independentemente de acontecer a resolução real da situação na vida. Ocorre, também, que muitas situações da vida real não estão mais disponíveis para serem vividas e a fantasia torna-se o único recurso possível. Nestes casos, a fantasia recria a situação angustiante, e de uma forma segura, permite a inserção de elementos novos e reestruturantes, indo além da fofoca ou da especulação ruminativa. Mas a fantasia demanda esforço. Não é suficiente apenas imitar a fantasia, a pessoa tem que se esforçar para descobrir suas próprias fontes de criatividade dentro da fantasia. A partir daí, direcionar estas fontes para as exigências básicas da tarefa. Neste caso, a espontaneidade é substituída pela dedicação necessária para o contato autêntico, respeitando as exigências da vida. Os sonhos também são considerados experimentos básicos. Para a Gestalt- terapia, é necessário que o sonho seja trazido para a experiência de vida do cliente e para o aqui-agora. Por este motivo, Perls solicitava que o sonhador recontasse seu sonho no presente, como se estivesse acontecendo naquele momento. Depois, o sonhador iria representar partes do seu sonho como aspectos de sua própria existência. Podemos considerar que a partir do sonho há um ponto de partida para uma experiência completamente nova. O sonho sempre representa uma projeção. Então, tudo que vier do sonho, todos os elementos, todos os personagens, todas as emoções, não importando o tamanho ou a intensidade, são representantes de quem está sonhando. Quando o sonhador representa todos os papéis ele está na direção da total identificação, e pode, gradativamente, rejeitar a alienação. A Gestalt-terapia é uma abordagem que prevê em seu modelo prático, apenas uma sessão semanal (no geral, é claro, que há exceções e pedidos de Documento não controlado - AN03FREV001 110 emergência e sessões extras). A intensidade das experiências vividas é forte e exige um tempo para a sua absorção. Em contrapartida, algumas situações demandam uma necessidade de que o cliente fique mais tempo em contato com suas dificuldades ou necessidades. Quando o terapeuta percebe esta necessidade de continuar algum contato, para garantir um nível intenso de impacto, está na hora de incluir as “lições de casa” dentro do processo terapêutico. Neste ponto, há uma troca direta entre a vida e terapia, entre o real e o imaginário. Só quando há uma vivência da própria vida que novas possibilidades são reveladas na terapia. É um processo de retroalimentação entre terapia e sensação de realidade. As lições de casa precisam ser feitas em conformidade com a área de conflito do cliente e, esta, não pode mobilizar algo que ele ainda não possa dar conta. O envolvimento terapêutico é ampliado, porém ele mesmo explora e comanda suas próprias ações e awareness, aumenta seu autossuporte e sua autonomia, afinal ele fez “tudo” sozinho. Mas, ao mesmo tempo, sabe que está sob a supervisão de seu terapeuta, e por isso, “protegido”. Este cliente não só está trabalhando em direção de sua awareness, como vai rumando para a autoterapia. 21 CASAIS, FAMÍLIAS, GRUPOS Quando se executa o trabalho de Gestalt-terapia com casais utilizam-se os mesmos princípios para o trabalho com famílias. Uma das diferenças, porém, é que o trabalho com famílias é mais complicado do que com casais, em razão da maior quantidade de informações e número de pessoas criando uma maior complexidade nos arranjos. Esta articulação com família demanda do terapeuta mais atenção à estrutura das intervenções, mais ação e agilidade de compreensão dos fatos. Quando se trabalha com casais ou família, o primeiro passo é fazer com que todos os participantes façam um contato inicial uns com outros. Muitas vezes, esse canal de comunicação precisa ser resgatado, outras, precisa ser criado. Neste momento, o terapeuta deve apenas prestar atenção a tudo que acontece, tudo que ouve, vê e experiencia. A partir de um dado momento, algo vira Documento não controlado - AN03FREV001 111 figura e poderá ser pedido para a família conversar sobre o que foi observado, ou então, sugerir um experimento para expandir sua observação, ou até, ensiná-los um novo comportamento. No final, é preciso fechar o trabalho que foi feito no sentido de uma compreensão dos familiares/casal ou mesmo apontar algo que foi aprendido por um ou por todos. Existem alguns princípios orientadores que norteiam o trabalho de Gestalt- terapia com casais e famílias. O primeiro princípio é: esclarecer ou ressaltar para as famílias/casais o que eles fazem bem. Descobrir como estão agindo dá um suporte importante para descobrir como estão, para aceitar melhor o processo terapêutico e fortalecer o potencial de mudança. É necessário entender que os limites de uma família são fluidos. O conceito de família é variável dentro de cada estrutura, cada família tem sua própria configuração. O terapeuta deverá entender quem e o que constitui aquela família. Lembrando que os “agregados” têm um papel importante dentro desta organização. Uma estrutura familiar pode mudar conforme determinada situação ou evento ocorrido. Por exemplo, o filho que se casa e sai de casa, ou o filho que se casa e fica em casa com a esposa, etc. A capacidade de mudança é uma referência para a saúde da família. Porém, as mudanças não ocorrem na terapia, mas sim, na vida. Elas acontecem porque as situações também são novas, exigem novas soluções. Cada família tem ciclos distintos que representam o estágio de desenvolvimento de cada grupo ou até de cada componente familiar. Como as famílias lidam com cada fase também é uma articulação única e variável. É necessário que se inclua, também, os aspectos sociais, econômicos e culturais dentro das intervenções terapêuticas. É mais comum a família trazer para a terapia as influências culturais do que os casais. A família é uma transmissora de cultura, por este motivo, a importância de se conhecer os valores religiosos, crenças, preconceitos, valores sociais, etc. Segundo Zinker (2001, p. 230): Um bom terapeuta familiar, competente, é parte sociólogo, parte antropólogo, parte filósofo e, mais importante, um observador confiável que Documento não controlado - AN03FREV001 112 está verdadeiramente no modo como esta família funciona dentro de sua própria vizinhança e de seu meio social. Muitas vezes, o terapeuta é um mediador dos conflitos transgeracionais, principalmente relacionados com o choque cultural entre pais e filhos. Cada geração tem seus próprios comportamentos, jogos, linguagem, música, moda, arte e objetivos. Uma alternativa para trabalhar os conflitos transgeracionaisé a utilização da técnica do sonho (pode, inclusive, estar combinada com as técnicas sistêmicas de famílias). Tudo o que já foi dito deixa claro que o papel do terapeuta familiar é muito complexo. É preciso que a atenção esteja aguçada a todo o momento. Algumas atitudes ou reações são indícios de que algo está acontecendo com este terapeuta. Reagir rapidamente a um comentário ou opinião é um destes sinais. Sentimentos fortes como amor ou ódio por uma família, casal ou pessoa, também exige um foco especial. “Tomar partido” de um membro ou subsistema em detrimento de outro, demanda atenção. É saudável querer saber sobre as competências, dificuldades e a história passada de cada família. A maioria das famílias conhece mais seus defeitos e fracassos do que seus talentos e sucessos. Dentro das famílias há subsistemas dinâmicos e flexíveis. Quanto maior é o número de subsistemas mais saudável é esta família. Outra função do terapeuta é clarificar a estrutura e as qualidades dinâmicas desses subsistemas. Chamamos de subsistemas as identificações e as alianças que vão se entrelaçando conforme os conflitos e as situações difíceis vão se apresentando. Quando os subsistemas se apresentam como na forma de gestalten fixadas, ou seja, as pessoas se enrijecem numa posição e tem dificuldade de entrar e sair dos diversos subsistemas, então o terapeuta precisa ficar atento a estas triangulações. Um agrupamento muito comum é a aliança entre um dos pais e um filho, por exemplo, a mãe e o filho caçula. Isto pode ser disfuncional e impede que os adultos interajam entre si e, também, que o filho saia livremente. Caso isto aconteça, a mãe provavelmente terá um sentimento de traição deste filho. As relações pais e filhos denotam um capítulo extenso e à parte. Porém, uma coisa é evidente. O controle e o poder da família têm que estar nas mãos dos Documento não controlado - AN03FREV001 113 pais e quanto mais claro isso ficar, mais favorável será a dinâmica familiar. Famílias desorganizadas exigem que os terapeutas assumam mais poder e liderança até que possam assumir comportamentos mais adaptativos e coesos. As crianças não conseguem sustentar todo o medo (de crescer, de encarar o mundo, etc.) sem a segurança de pais responsáveis. Quanto menor é a criança mais proteção ela exigirá. Um bebê morrerá se não for alimentado. Só que à medida que as famílias crescem, os filhos precisam cada vez menos desta proteção. Proteger demais é tão prejudicial quanto proteger de menos. Isso não significa que as famílias não errem esta medida. Pais saudáveis e atentos estão sempre reavaliando estas posições intermediárias na busca de uma construção mais correta. Em relação ao trabalho de Gestalt-terapia com grupos, encontramos alguns modelos propostos, tais como: John Brinley, Joen Fagan, Erving Polster, Irma Shepherd, etc. Perls em seus últimos anos de profissão criou um novo modelo. Irei me concentrar neste modelo em especial. Diante do grupo, Perls não tinha um tempo determinado para trabalhar. Podia trabalhar diretamente com um voluntário (nunca esta escolha é solicitada) por dez minutos ou por horas, dependendo da necessidade do paciente. O resto do grupo observa principalmente e se mantinha em silêncio. Entretanto, num determinado ponto, ele entra com o grupo em jogo de um modo original, “método do coro grego”. O “coro grego” sublima e consolida os esforços e realizações do paciente operante, de modo que combina o condicionamento com uma forma muito efetiva de integração grupal. Por exemplo, o paciente chegou num ponto que diz que não pode viver conforme as expectativas do outro. O terapeuta solicita que percorra todos os membros do grupo, reformulando esta frase e acrescentando algo pessoal. “Eu não estou aqui para responder às suas expectativas”. Os membros do grupo respondem brevemente conforme suas percepções e reações, por exemplo: “Sinto-me mais aliviado de ouvir isso, você tem toda a razão.” São permitidas as expressões de afeições e rejeição entre os participantes. Perls focava-se nas discrepâncias óbvias e sutis das expressões físicas e verbais. Desafia o paciente a entrar num diálogo representado (role-play) entre as facetas discrepantes da sua personalidade. Outra forma muito usada por ele era o pedido de representar um sonho e, depois, cada parte do sonho fala por si mesmo. Documento não controlado - AN03FREV001 114 Ficam proibidas as referências do tipo: se, mas, não posso, sinto-me culpada durante a sessão terapêutica. “Se” e “mas” tornam-se “e”, “não posso” é substituído por “não quero” e “sinto-me culpada” por “ressinto-me de”. Estas alternativas evidenciam o conflito emocional que há na pessoa. Fica mais claro o padrão de dominação existente e os “deverias” que foram introjetados durante a vida da pessoa. A habilidosa separação de conflito em sua dualidade e subsequência reencenação leva, após uma série de diálogos, a sentimentos de vacuidade, confusão, desamparo, etc. Essa experiência é o impasse: a expressão fundamental de duas formas puxando em direções opostas (FAGAN, 1971, p. 191) O grupo é apoiado por múltiplas projeções entre a cena ou o diálogo e eles próprios. Suas reações, associações e interpretações ajudam o paciente a ampliar e aprofundar sua compreensão. Os membros de um coro grego parecem, de fato, experimentar os sentimentos das respostas do paciente dentro deles próprios. FIM DO MÓDULO IV Documento não controlado - AN03FREV001 115 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Ed. Cortez e Morais, 1979. CAPRA, F. A teia da Vida: uma nova concepção científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 2007. _____. O ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix, 1995. CIORNAI, Selma. Em que acreditamos? Disponível em: <http://www.gestaltsp.com.br/textos/acreditamos.html> Acesso em: 20 abr. 2010. FAGAN, J. Teorias, técnicas e aplicações. São Paulo: Summus, 1973. FAGAN, J.; SHEPHERD, I. L. Gestalt-terapia: teoria, técnicas e aplicações. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. GINGER, S.; GINGER, A. Gestalt - Uma Terapia de Contato. São Paulo: Summus, 1995. HALL, C. S.; LINDZEY, G. Teorias da Personalidade. São Paulo: EPU, 1973. HALL, C.; LINDSEY, G.; CAMPBELL, J. B. Teorias da Personalidade. Porto Alegre: Artmed, 2000. HYCNER, R. De pessoa a pessoa: psicoterapia dialógica. São Paulo: Summus, 1985. PERLS, F. Ego, Fome e Agressão. São Paulo: Summus, 1985. _____. Gestalt-Terapia Explicada. São Paulo: Summus, 1977. _____. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997. POLSTER, E.; POLSTER M. Gestalt -terapia Integrada. São Paulo: Summus, 1979. Documento não controlado - AN03FREV001 116 RODRIGUES, H. E. Introdução à Gestalt-terapia: conversando sobre os fundamentos da abordagem gestáltica. 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