Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
UFRJ Râtor Vice-râtor Coordmad<Jra M F o rum de Ciência e Cultura EDITORA UFRJ Paulo AI cantara Gomes José Henrique Vilhena de Paiva Myrian Dauelsberg Diretora Heloisa Buarque de Hollanda Editora-assistmte Lucia Canedo CoordenaMra de produção Ana Carreiro Conselho Editorial Heloisa Buarque de Hollanda (presidente) Carlos Lessa, Fernando Lobo Carneiro, Flora Süssekind, Gilberto Velho, Margarida de Souza Neves A CONSTRUÇÃO DA ORDEM A elite política imperial TEATRO DE SOMBRAS A política imperial José Murilo de Carvalho Editora UFRJ RELUME ~ DUMARA Introdução: o rei e os barões NA P R r ME I RA PARTE deste trabalho discuti a política imperial sob a ótica de seus agentes diretos, a elite política e a burocracia. Tentei relacionar as características da elite, sobretudo sua hom ogeneidade ideológica, gerada por educação e treinamento político comuns, com as características do Estado herdado da tradição portuguesa absolutista e patrimon ial. Do processo de geração mútua entre Estado e elite resultaram, segundo minha visão, alguns dos traços marcantes do sistema político imperial, como sejam a monarquia, a unidade, a centralização, a baixa representatividade. A elite produzida deliberadamente pelo Estado foi eficiente na tarefa de fortalecê-lo, sobretudo em sua capacidade de co nt role da sociedade. Ela foi eficiente em atingir o objetivo de construção da ordem, o objetivo que, parafraseando Marx, chamei de acumulação primitiva do poder1• O que faço agora é examinar com lemes mais poderosas a elite e o Estado no momento em que a tarefa de acumulação de poder estava realizada e em que novos horizontes se abriam à sua atuação. Este momento pode ser datado com alguma precisão: ele tem origem no regresso conservador de 183 7, quando as incertezas e turbulências da Regência começaram a dar lugar a um esboço de sistema de dominação mais sólido, centrad o na alian ça en tre, de um lado, o rei e a alta magistratura, e, de outro, o grande comércio e a grande propriedade, sobretudo a cafeicultura fluminense. O processo de enraizamenro social da monarquia, de legitimação da Coroa perante as forças dominantes do país, foi d ifícil e complexo. Embora se possa dizer que estava definido em 230 TEATRO DE SOMBRAS torno de 1850, ele permaneceu tenso até o final do Império. É importante que se dê à sua elaboração um pouco mais de atenção antes de entrar na análise de seu funcionamento posterior. ~ A melhor indicação das dificuldades em estabelecer um sistema nacional de dominação com base na solução monárquica encontra-se nas rebeliões regenciais. Rápido exame de sua natureza será suficiente para revelar os problemas centrais a serem resolvidos2• As revoltas podem ser divididas em dois grandes grupos. O primeiro seguiu-se imediatamente à abdicação de Pedro I e perdurou até 1835, um ano depois da morte deste príncipe e da promulgação do Ato Adicional. O segundo foi posterior ao Ato Adicional e só terminou no Segundo Reinado. O ciclo se fechou em 1848 com a revolta da Praia em Pernambuco (quadro 1). A primeira onda de revoltas traduziu a inquietação da população urbana nas principais capitais e teve como protagonistas tropa e povo. Somente as capitais das províncias do Piauí e de Santa Catarina escaparam à t~r~ulência. Na capital do Império, como era de esperar, a agitação foi mais Intensa. Entre 1831 e 1832 cinco levantes se verificaram. Em 1832 a situação esteve de tal modo séria que o Conselho de Estado foi consultado sobre que medidas tomar para salvar o imperador caso a anarquia se estabelecesse na cidade e caso as províncias do norte se separassem das do sul. Salvador foi palco cl'e. seis levantes em que a demanda de federação foi proposta abertamente. Recife não se agitou menos. Três levantes se deram entre 1831 e 1832. Na Setembrizada de 183 1, tropa, povo e escravos tomaram conta da cidade e só foram derrotados quando o governo apelou para o auxílio das milícias e de civis, inclusive dos estudantes da Faculdade de Direito de O linda. A luta deixou saldo de uns 130 mortos3. Revolta algo distinta foi a dos malês em 183 5 em Salvador. Ela c~lminou uma seqüência de rebeliões escravas naquela cidade iniciadas amda no começo do século. Denunciada, a revolta foi rapidamente controlada, mas revelou perigosa capacidade de organização entre escravos e libertos, sobretudo os de religião muçulmana. Cerca de 50 revoltosos foram mortos, centenas foram presos, quatro foram condenados à morte\ O medo difundido pela revolta, sobretudo onde havia maior concen tração de escravos, fo i tão grande que levou o Parlamento a aprovar uma lei no mesmo ano de 1835 determinando que os escravos que atentassem contra a vida dos senhores fossem condenados à morte, não sendo necessária para a condenação, como nos outros casos, a unanimidade do júri. A revolta dos malês foi a única de alguma Introdução 231 importância que teve a liderança de escravos. Em várias outras houve participação de escravos mas em aliança com outros grupos, aliança às vezes incômoda. Havia grande cuidado em não envolver escravos em revoltas. A população urbana livre e o campesinato constituíram o maior perigo à ordem vigente. Mesmo assim, a revolta dos malês serviu para dar argumentos aos partidários do fim do tráfico. Ela mostrou o perigo · que podia constituir a acumulação de escravos nas cidades. QUADRO 1 Principais Revoltas, 1831-1848 1831-1835 Duração Localização Participantes principais 1. Seis rebeliões 1831-32 Corte Tropa e povo 2. Setembrizada 183 1 Recife Tropa 3. Novembrada 183 1 Recife Tropa 4. Abrilada 1832 Pernambuco Tropa 5. Pinto Madeira 1831-32 Ceará Tropa 6. Cabanas 1832-35 Pernambuco/ Pequenos Alagoas proprietários, camponeses, índios, escravos 7. Crise Federalista 1832-33 Salvador Tropa 8. Sedição de Ouro Preto 1833 O. Preto Tropa 9. Carneirada 1834-35 Recife Tropa 10. Revolta dos Malês 1835 Salvador Escravos 1835-1848 1. Cabanagem 1835-40 Pará Camponeses, índios, escravos 2. Farroupilha 1835-45 R.G. do Sul Estancieiros e charqueadores 3. Sabinada 1837-38 Salvador Tropa e povo 4. Balaiada 1838-41 Maranhão Proprietários, camponeses, escravos 5. Revolução Liberal 1842 São Paulo/ Rio de Janeiro Proprietários 6. Revolução Liberal 1842 Minas Gerais Proprietários 7. Praieira 1848-49 Pernambuco Proprietários 232 TEATRO DE SOMBRAS Os levantes urbanos tinham caráter predominantemente popular e nativista. Era a população urbana, aliada à tropa de primeira linha, protestando contra o alto custo de vida, contra a desvalorização da moeda (que causava o encarecimento das importações), contra a invasão de moedas falsas. Sendo o comé~cio nas principais capi.tais controlado por portugueses, eram eles o alvo predileto e dominante da ira popular. O antilusitanismo encontrara apoio também fora daS' camadas populares, entre o pequeno comércio nas mãos de brasileiros, entre os oficiais brasileiros da tropa de linha e m esmo entre senhores de engenh o endividados aos grandes comerc.iantes portugueses. Mas a base das revoltas era popular e militar. Tornava-se problema sério controlar a população urbana, de vez que não se podia contar com a força armada. Foi necessário desmobilizar o exército no Rio de Janeiro e recorrer à criação de milícia civil, a Guarda Nacional, para manter a ordem. Concebida de início como instrumento liberal para retirar do governo o controle sobre os meios de coerção, ela foi rapidamente transformada em instrumento de controle das classes perigosas urbanas. Para fazer parte da Guarda exigia-se renda de 200 mil-réis nas cidades e de 100 mil-réis no interior5• A segunda onda de revoltas teve caráter diverso da primeira. Descentralizado o poder graças ao Ato Adicional, o conflitotambém se descentralizou e se deslocou para o interior, para as áreas rurais, e aí remexeu nas camadas profundas da fábrica social do país e revelou perigos muito mais graves para a ordem pública e para a própria sobrevivência do país. Estas revoltas tinham sido prenunciadas pela Guerra dos Cabanos (1832-35). O mais fascinante movimento popular da época, esta guerra envolveu pequenos proprietários, camponeses, índios e escravos e contou com o apoio de ricos comerciantes portugueses de Recife e de políticos restauracionistas do Rio. Lutando pelo retorno de Pedro I e pela religião católica, os cabanos sustentaram por três anos uma guerra de guerrilha nas matas na fronteira entre Pernambuco e Alagoas. Ao fim da luta, os rebeldes remanescentes foram caçados como animais, um a um. Segundo depoimento do próprio comandante das forças legais, viviam de frutos silvestres, lagartos, cobras, insetos e mel6. · · As outras revoltas rurais foram ainda mais profundas e mais violentas. A mais trágica foi sem dúvida a Cabanagem no Pará entre 1835 e 1840. Iniciada como conflito entre facções da elite local, fugiu aos poucos ao controle e tornou-se uma rebelião popular. A capital, Belém, foi tomada em 1835 pelos rebeldes, compostos de índios e pretos, em luta de casa Introdução 233 ::1 casa. Cerca de 180 brancos foram mortos na luta; os restantes, cerca de nove mil, refugiaram-se, junto com o presidente da província, em navios de guerra portugueses e ingleses. Foi proclamada a independência do Pará. A luta, agora sob o comando de Eduardo Angelim, um cearense de 2 1 anos e talvez o mais extraordinário líder popular da época, espalhou- se pela província e pelo rio Amazonas acima até Manaus. Forçado a deixar Belém com seus cinco mil homens, devido ao bloqueio naval da cidade, Angelim transformou a luta em guerra de guerrilha, em que a, ferocidade campeava dos dois lados. O novo presidente, general Andreia, prendeu em massa, mandou fuzilar na hora os que resistissem, m ilitarizou a província, obrigou todos os não-proprietários a se alistarem em corpos de trabalhadores. Governistas passeavam pela cidade com rosários de orelhas de cabanos ao pescoço. Os últimos rebeldes renderam-se após a anistia de 1840. Calculou-se em 30 mil o número de mortos, divididos entre governistas e rebeldes em proporções mais ou menos iguais. Tal número equivalia a 20% da população da província. Jamais na história brasileira se repetiria carnificina tão vasta7• A revolta paraense aterrorizou até mesmo liberais do tipo de Evaristo da Veiga. Para ele, tratava-se de gentalha, crápula, massas brutas. O Pará, dizia, parecia mais um pedaço da América Espanhola do que do Brasil8• Seu desgosto poderia ter-se estendido também à Balaiada do Maranhão (1838-1841). Sem a violência da Cabanagem, ela apresentou traços semelhantes: conflito de elites que aos poucos se torna guerra popular. Um vaqueiro, cafuzo, Raimundo Gomes, um fazedor de balaios (o Balaio) e um negro líder de escravos fugidos (Dom Cosme) formaram a liderança do movimento. Os balaios chegaram a mobilizar 11 mil homens e tomaram a cidade de Caxias, a segunda em tamanho na província. Divisões internas entre rebeldes livres e ex-escravos facilitaram a derrota do movimento pelas tropas do governo. De caráter mais urbano, semelhante às revoltas da primeira onda, foi a Sabinada na Bahia. Salvador foi tomada em 1837 e a independência da província foi proclamada. Quatro meses de luta deixaram um saldo de 1.800 mortos9• Em algumas revoltas o conflito entre elites não transbordava para o povo. Tratava-se, em geral, de províncias em que era mais sólido o sistema ·da grande agricultura e da grande pecuária. Neste caso está a revolta Farroupilha, no Rio Grande do Sul, que durou de 1835 a 1845. Em 1836 fo i proclamada a Repúbli ca do Piratini. Briga de estancieiros e charqueadores com complicações internacionais, a Farroupilha não corria o risco de tornar-se guerra de pobres, de tornar-se perigo para a paz social. 234 TEATRO DE SOMBRAS Era briga de brancos. Mas constituía alto risco político pela posição estratégica da província como fornecedora de charque para a economia escravista e pela ameaça à unidade do país e ao sistema monárquico de governo10• Brigas de brancos for.(lm também as revoltas de 1842 em São Paulo e em Minas Gerais. Já reação às medidas centralizadoras do Segundo Reinado, envolveram os mais ricos proprietários das duas províncias e também da província do Rio de Janeiro, o pólo da economia cafeeira que começava a dominar a pauta de exportação. Alguns dos principais líderes liberais também se envolveram nas duas revoltas. Na província do Rio de Janeiro, o principal chefe rebelde foi Joaquim José de Souza Breves, o maior cafeicultor do país, proprietário de uns seis mil escravos, dono de umas 30 fazendas. Dele se dizia que produzia de 100 a 200 mil arrobas de café por ano, além de ser um renitente contrabandista de escravos11 • As revoltas de proprietários mostravam que o problema de consolidar um sistema de poder não passava apenas pelo controle da população urbana e do campesinato, sem falar dos escravos. A tarefa complicava-se pelo fato de não haver consenso entre as camadas dominantes sobre qual seria o arranjo institucional que melhor servisse a seus interesses. Em parte, a falta de acordo se devia ao fato de que tais interesses nem sempre coincidiam. Em parte, advinha do fato de que muitos dos membros destas camadas, sobretudo os proprietários rurais, não estavam preparados para conceber a dominação por via da mediação do Estado. Em 1843, J ustiniano José da Rocha, o mais brilhante jornalista do campo conservador, argumentava que o trono ainda não possuía raízes no Brasil. Segundo ele, a monarquia era uma convicção racional, adquirida com a experiência da Regência, não estava na prática, nas crenças, nos costumes: "O espírito público está em plena tendência para a monarquia, mas essa tendência, filha da razão, inspirada pelo amor da ordem não é coadjuvada nem por nossas leis, nem por nossos costumes, nem pelos nossos hábitos: o trono não tem pois alicerces". Mas sem o trono, continuava Justiniano, o Brasil se fragmentaria. A solução era, então, dotar o trono de apoio social. Este apoio não podia vir do proletariado do campo, foco das revoltas que marcaram a Regência. Também não podia vir da desiludida e inquieta população urbana. A única saída era buscar apoio no grande comér~io e n: gra~de agricultura: "Dê o governo a essas duas classes tod/ a cons1deraçao, vmcule-as por todos os modos à ordem estabelecida, identifique-as com as instituições do país, e o futuro estará em máxima parte consolidado" 12• I Introdução 235 Em 1843, em pleno Segundo Reinado, portanto, o jornalista que privara do pensamento dos ministros conservadores que tinham promovido o regresso, que tinha seu jornal financiado por eles, ainda não via estabelecido o pacto entre a Coroa e os barões, não via os proprietários olharem para a Coroa como instrumento de ordem e de defesa de seus interesses. As revoltas de 1842 tinham deixado claro este ponto. O lento convencimento dos proprietários de que a monarquia lhes convinha foi resultado do regresso conservador, levado a efeito por burocratas e por políticos ligados à grande cafeicultura fluminense. Ajudou no convencimento a atuação da Coroa ao mostrar, logo em 1844, que os revoltosos da véspera podiam chegar ao governo ·e que havia, portanto, lugar para a divergência oligárquica dentro do sistema. Estes foram os dois pontos cruciais: a demonstração de que a monarquia era capaz de manter a ordem no campo e na cidade e de que poderia ser árbitro confiável para as divergências entre os grupos dominantes. A Regência falhara nos dois testes: a ordem fora constantemente quebrada, pondo em perigo a própria sobrevivênciado País, e o regente eleito tinha-se revelado incapaz de arbitrar as divergências dos grupos dominantes. Na realidade a incapacidade de arbitragem é que freqüentemente causava a perturbação da ordem ao permitir que os conflitos intra-elite filtrassem para baixo do sistema de estratificação social. A obra política do regresso consistiu em devolver ao governo central os poderes que perdera com a legislação descentralizadora da Regência, sobretudo com o Ato Adicional de 1834 e com o Código de Processo Criminal de 1832. Em 1840 foi interpretado o Ato Adicional, em 1841 foi reformado o Código. Com isto, as assembléias estaduais deixaram de ter jurisdição sobre funcionários do governo central; todo o funcionalismo da Justiça e da polícia passou a ser controlado pelo ministro da Justiça; o único juiz eleito, o juiz de paz, perdeu boa parte de suas atribuições em benefício dos delegados e subdelegados de polícia. O ministro da Justiça ganhou o poder de nomear e demitir, por meios diretos ou indiretos, desde o desembargador até o guarda de prisão. Com a maioridade em 1840, voltou também a funcionar o Poder Moderador, e foi restabelecido o Conselho de Estado, extinto pelo Ato Adicional. Os liberais revoltaram-se em 1842 contra estas leis. Mas, ao voltarem ao poder em 1844, mantiveram oposição puramente retórica a elas, pois tinham percebido sua utilidade para o exercício do poder. Em quatro anos de poder em nada alteraram o esquema do regresso. Sua volta ao poder tirara também deles o temor de uma ditadura conservadora e 236 T EATRO DE SOMBRAS revelara o papel importante da Coroa em evitar o monopólio do poder por facções. A única facção não convencida era a dos liberais de Pernambuco que se revoltou em 184813. Sua derrota significou o fim do processo de aceitação da monarquia parlamentar pelas elites rurais. Uma aceitação que foi problem,ática mas que forneceu a legitimidade básica do sistema. O ano de 1850 foi marco decisivo. Estava no governo, desde 1848, um ministério solidamente conservador. Além do ex-regente Araújo Lima (marquês de Olinda), aparecia pela segunda vez a trindade saquarema da província do Rio, Euzébio de Q ueiroz, Paulino José Soares de Sousa (visconde de Uruguai) e Joaquim José Rodrigues Torres (visconde de ltaboraí). O Ministério era completado por um general respeitado, Manuel Felizardo de Souza e Melo. A Câmara era quase unânime: apenas um liberal entre 11 O conservadores. O governo sentiu- se forte para enfrentar dois problemas quase intratáveis, embora cruciais para a soberania nacional, para a sobrevivência da classe proprietária, e para o próprio Estado: o problema do tráfico e o problema da estrutura agrária e da imigração. Eram questões que vinham freqüentando há tempos a agenda de políticas públicas, sem que houvesse condições políticas para seu enfrentamento, isto é, sem que o governo se sentisse com poder e legitimidade suficientes para enfrentá-las. No mesmo ano, foi publicado o código comercial que sistematizava a confusa legislação anterior, em boa parte de origem ainda colonial. Desde 1834 vinha o projeto se arrastando na Câmara e no Senado. Dele dependia, entre outras coisas, a regulamentação das sociedades anônimas, principais agentes do desenvolvimento econômico no capitalismo emergente. Na esfera mais estritamente política, o ano de 1850 foi ainda marcado por uma lei de reforma da Guarda Nacional que coroou o esforço de centralização política e administrativa iniciado em 1840. O preenchi- mento de todos os postos de oficiais da Guarda fo i colocado sob a respon- sabilidade de agentes do governo central. O processo eletivo para cais posros foi eliminado, dando ao governo maior capacidade de controle e maior poder de cooptação sobre os proprietários rurais. A abolição do tráfico, a lei de terras e a reforma da Guarda N acional eram medidas vinculadas entre si: a lei de terras, que era também de colonização, fora apresentada pela primeira vez em 1843 e tinha como propósito claro preparar o país para o fim eventual do tra~alho escravo. A centralização da Guarda buscava fortalecer a posição do governo perante os proprietários cuja reação ao fim do tráfico e à regulamentação da propriedade rural fora negativa. Embora em sua origem não vinculado Introdução 237 a t:ssas medidas, o Código Comercial veio enquadrar-se perfeitamente na conjuntura, de vez que o fim do tráfico provocou pela primeira vez uma rcbre de negócios no país causada pela disponibilidade de capitais anrcriormente empregados no comércio negreiro. O ano de 1850 pode ser considerado marco entre duas fases de implantação do Estado Nacional. Talvez por ironia, foi também o ano da primeira grande t:pidemia de febre amarela que assolou a capital do Império matando milhares de pessoas. Nos capítulos que seguem vamos acompanhar as vicissitudes do relacionamento entre a Coroa, a elite política e os proprietários rurais desde 1850 até o final do Império. A elite mediava a relação entre os proprietários e o rei, dividida ela própria entre os interesses dos dois pólos muitas vezes conflitantes. Dom Pedro 11 nacionalizou muito mais a monarquia do que D. Pedro I sobretudo no que se refere a seu relacionamento com os proprietários. Simples mas fidedigno indicador desta tentativa de cooptação dos fazendeiros pode ser encontrado na distribuição de títulos nobiliárquicos (quadro 2). QUADRO 2 Títulos Nobiliárquicos, 1808-1889 (%) Imperadores Títulos D. João Pedro I Pedro II Total Duques 1,68 1,49 0,09 0,38 Marqueses 10,92 20,15 1,88 4,35 Condes 41,18 5,97 3,94 7,51 Viscondes 25,21 26,57 17, 18 19,96 Barões 21,01 35,82 76,81 67,60 100,00 100,00 100,00 100,00 (N = 119) (N = 134) (N = 1.065) (N = 1.318) Fonte: Lisra preparada pelo Grupo de Pesquisa Histórica do Arquivo Nacional, ao qual agradeço a permissão para uso e divulgaç.~o. O s dados referem-se ao número de rftulos e não de titulares. O s ti tulares eram em número menor pois alguns foram portadores de mais um título. Vê-se que a distribuição dos títulos da hierarquia nobiliárquica variou amplamente entre D. João e D. Pedro 11, ocupando Pedro I posição intermediária. A diferença que mais nos interessa aqui é o nümero de títulos de barão. Estes eram os títulos tradicionalmente reservados para 238 TEATRO DE SOMB RA S os grandes proprietários rurais, sobretudo para aqueles que se distinguiam por seu poder e riqueza mas não por sua projeção na vida política, isto é, por seu pertencimento à elite política. Para os proprietários que ingressavam na elite, assim como para os altos burocratas, eram reservados títulos mais elevados, até o ~áximo de duque, concedido apenas a Caxias. Assim é que, apesar de os barões constituírem 77% dos titulares de Pedro li, eles representavam apenas 14% dos ministros do 2° Reinado que possuíam títulos. O baronato era a marca registrada dos grandes cafeicultores do Rio de Janeiro, Minas e São Paulo. Segundo cálculos de Lamego, cerca de 300 deles eram titulares, a grande maioria barões. Os Leite Ribeiro de Vassouras, por exemplo, tinham oito barões e dois viscondes na família. No mesmo município, os Werneck tinham cinco barões e os Avelar seis barões e três viscondes. Quase todos os Breves, os reis do café no Rio de Janeiro, eram barões. Mas de todos estes apenas um foi ministro 14• A distribuição de títulos era congruente com a sugestão de Justiniano José da Rocha de aproximar os proprietários da monarquia. Ela sem dúvida teve esta intenção. Mas, freqüentemente, em vez de cooptação era tentativa de compensação. Examinando-se ano a ano a distribuição de títulos de barão, pode-se perceber aumento significativo por ocasião das leis abolicionistas de 1871, 1885 e 1888. Enquanto 51 títulos foram distribuídos no qüinqüênio 1860/64, entre 1870/74 o número subiu para 120.No último qüinqüênio do Império foram concedidos 238 títulos de barão, 173 dos quais em 1888 e 1889. A Coroa tentava pagar em símbolo de status o que tirara em interesse material. Será a análise do interesse nacional que constituirá o centro de nossa preocupação neste trabalho. Vai ocupar-nos a análise de alguns aspectos da política pública que tinham a ver mais de perto com os interesses dos proprietários. Analisaremos a política fiscal e distributiva do Estado, a política da abolição, a política de terras. D evido a sua importância como núcleo da elite política e como cérebro da monarquia, na expressão de Joaquim Nabuco, dedicaremos um capítulo ao Conselho de Estado. Por meio dele se pode ter idéia aproximada dos princípios que norteavam a ação da Coroa. Finalmente, será feito um esforço de entender o sistema político como um todo pela análise da representação política, incluindo aí o sistema eleitoral e part idário. A conclusão buscará in,terpretar a política imperial, o conflito entre o rei e os barões, entre o formal e o real, entre a ficção constitucional e o jogo de forças políticas, com o auxílio da metáfora teatral. Introdução 239 Ao final, talvez tenhamos apenas demonstrado com maiores evidências o que Sérgio Buarque de Hollanda colocou com simplicidade mas que é a chave para entender a política imperial: "O império dos fazendeiros ( ... ) só começa no Brasil com a queda do lmpério"15• Notas L Ver A Construção da Ordem; a Elite PoiJtica Imperial. 2 · Para uma descrição mais desenvolvida das revoltas, bem como de todo o período entre a Independência e 1850, ver Leslie Bethell e José Murilo de Carvalho, Brazil from Jndependence to the Middle of the Nineteenth Century, em Leslie Bethell (ed.), The Cambridge History of Latin America, vo!. III, p. 677-746. 3 · Sobre os conflitos da Regência em geral, ver o tomo 11, 2° vol. da História Geral da Civilização Brasileira, organizado por Sérgio Buarque de Hollanda. ~ . Sobre a revolca dos malês em Salvador, ver o excelente trabalho de João José Reis, Rebelião Escrava no Brasil. A História do Levante dos Malês (1835). 5• Sobre o papel da Guarda Nacional como instrumento de mediação entre a burocracia e os proprietários rurais, ver Fernando Uricoechea, O Minotauro Imperial. 6 · Sobre a guerra dos Cabanos, o melhor estudo é o de Manuel Correia de Andrade, A Guerra dos Cabanas. Ver, ainda, Dirceu Lindoso, A Utopia Armada. Rebelião de Pobres nas Matas do Tombo Real (1832-1850). 7 · Sobre a Cabanagem, o melhor texto, embora mal organizado, é ainda o de Domingos Antônio Rayol, Motins Politicos ou História dos Principais Acon- tecimentos Políticos da Província do Pard desde o Ano de 1821 até 1835. 8 · Ver Aurora Fluminense, de 1° de janeiro e 11 de novembro de 1835. 9. Sobre a Balaiada, ver Astolfo Serra, A Balaiada. Sobre a Sabinada, ver Luiz Vianna Filho, A Sabinada (A República Baiana de 1831). 10 · Sobre a Farroupilha, ver Alfredo Varela, História da Grande Revolução, e o estudo mais recente de Spencer L. Leitman, Raizes Sócio-Econômicas da Guerra dos Farrapos. 11. Sobre as revoltas liberais de 1842, ver Victor M. Filler, Liberalism in Imperial Brazil: the Regional Rebellions of 1842, tese de doutorado, Universidade de Stanford, 1976. 12 · Ver a série de artigos intitulada Tractemos do Futuro, certamente de autoria de Justiniano José da Rocha, publicada em O Brasi4 especialmente números de 21 a 23 de setembro de 1843. 13· Os aspectOs políticos e econômicos da Praieira foram recentemente analisados por Nancy Priscilla Naco em The 1848 Praieira Revolt in Brazi4 tese de dou- torado, Universidade de Chicago, 1981. 14 · Ver Alberto Ribeiro Lamego, A Aristocracia Rural do Café na Provinda Flumi- nense, Anuário do Museu Imperial, VII (1946), p. 51-123. Sobre a titulação de 240 TEATRO DE SOM BRAS proprierários rurais, ver rarnbérn Afonso de E. Taunay, História do Café no Brasi4 vol. VIII, ramo IV, p. 193-334. 15 Ver Sérgio Buarque de Hollanda, História Geral da Civilização Brasileira, ramo li, vol. 5°, p. 283. Para urna esclarecedora análise do ponto de visra dos barões, sobretudo os da região cafe~ira do Rio de Janeiro, sobre os grandes problemas nacionais, ver Eduardo Silva, Barões e Escravidão. Três Gerações de Fazendeiros e a Crise da Estrutura Escravista. O orçamento imperial: os limites do governo E X C E L E N T E I N D I C A D O R da distribuição de poder em um sistema político são as contas do governo. O poder de lançar impostos e as condições de legitimidade em que ele se exerce estiveram no centro das lutas que fundaram o Estado moderno. A reivindicação de representação feita pelos barões ingleses esteve umbilicalmente ligada às pretensões reais de arrecadação de impostos e de recrutamento militar. Não por acaso, o controle destas duas atividades do governo constituiu atribuição central dos parlamentos. Tratava-se, com efeito, da bolsa e da vida dos súditos. Não foi diferente no Império brasileiro. Neste ponto, aliás, o novo país podia exibir ação exemplar em seu passado colonial. O excesso de taxação, sem consentimento, dos mineradores da capitania de Minas Gerais, gerara vasta conspiração em que a idéia de independência pela primeira vez circulou abertamente. O modelo parlamentar adotado pelo país incluiu a prática de submeter obrigatoriamente ao parlamento a aprovação da lei de meios, como era chamado o orçamento. O governo .não podia funcionar legalmente sem que tal lei fosse aprovada. Em caso de impossibilidade de aprovação, havendo dissolução, por exemplo, da Câmara, votava-se a prorrogação do orçamento do ano anterior para o ano seguinte. O ritual de discussão do orçamento era seguido com rigor e constituía arma poderosa na mão do Legislativo que podia negar ao Executivo os meios de governar. O orçamento indicava, no entanto, muito mais do que a disputa entre Legislativo e Executivo. Refletia o conflito entre a burocracia, a máquina do Estado, sempre em busca de maiores recursos, e os grupos dominantes
Compartilhar