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1 O QUE É A LINGUAGEM? Professor Mestre Obertal Xavier Ribeiro Maio de 2014 A linguagem é um sistema de signos ou sinais usados para indicar coisas, para a comunicação entre pessoas e para a expressão de idéias, valores e sentimentos. Embora tão simples essa definição da linguagem revela questões profundas que ocupam a filosofia, por se tratar de um sistema, uma totalidade estruturada, que exerce uma função no conhecimento, na expressão do pensamento e do saber humano. Esconde problemas complicados com os quais os filósofos têm-se ocupado desde há muito tempo. Apresento quatro referências para explicar a definição e a sua função: 1. a linguagem é um sistema, isto é, uma totalidade estruturada, com princípios e leis próprios, sistema esse que pode ser conhecido; 2. a linguagem indica coisas, isto é, os signos lingüísticos (as palavras) possuem uma função indicativa ou denotativa, pois como que apontam para as coisas que significam; 3. a linguagem estabelece a comunicação entre os seres humanos, isto é, tem uma função comunicativa: por meio das palavras entramos em relação com os outros, dialogamos, argumentamos, persuadimos, relatamos, discutimos, amamos e odiamos, ensinamos e aprendemos, etc.; 4. a linguagem exprime pensamentos, sentimentos e valores, isto é, possui uma função de conhecimento e de expressão, ou função conotativa: uma mesma palavra pode exprimir sentidos ou significados diferentes, dependendo do sujeito que a emprega, do sujeito que a ouve e lê, das condições ou circunstâncias em que foi empregada ou do contexto em que é usada. Portanto, a linguagem é um sistema de sinais com função indicativa, comunicativa, expressiva e conotativa. Essa definição não nos diz várias coisas, deixa para nós questionamentos. Como a fala se forma em nós? Por que a linguagem pode indicar coisas externas e também exprimir idéias internas ao pensamento? O que a linguagem determina frente ao político, social e econômico; ao ideológico? Quais as implicações da linguagem nas culturas? Por que a linguagem pode ser diferente quando falada pelo cientista, pelo filósofo, pelo poeta, pelo religioso, pelo educador ou pelo político? O que diferencia na linguagem entre as classes sociais? Como a linguagem pode ser fonte de engano, de mal-entendido, de controvérsia ou de mentira? O que se passa exatamente quando dialogamos com alguém? O que é escrever e ler? Como podemos aprender uma outra língua? O que diferencia a linguagem entre os gêneros? O que a linguagem transmite ideologicamente na existência humana? Linguagem e fatores fundamentais: A linguagem, em sentido amplo, é constituída por quatro fatores fundamentais: 1. fatores físicos (anatômicos, fisiológicos, neurológicos, motrizes, sensoriais), que determinam para nós a possibilidade de falar, escutar, escrever e ler; 2. fatores socioculturais, que determinam a diferença entre as línguas e entre as linguagens dos indivíduos e da cultura de determinado povo. 3. fatores psicológicos (emocionais, afetivos, perceptivos, imaginativos, lembranças, inteligência), que criam em nós a necessidade e o desejo da informação e da comunicação, bem como criam 2 nossa capacidade para performance lingüística, seja ela cotidiana, artística, científica, seja filosófica; 4. fatores lingüísticos propriamente ditos, isto é, a estrutura e o funcionamento da linguagem que determinam nossa competência e nossa performance na qualidade de seres capazes de criar e compreender significações. Esses fatores nos dizem por que existe linguagem e como ela funciona, mas não nos dizem o que é a linguagem. Numa perspectiva fenomenológica, dizemos que: a linguagem não é um mecanismo psicomotor. Os fatores 1 e 3, portanto, apresentam as condições biológicas e psicológicas para haver linguagem, mas não qual é a natureza dela. a linguagem não é apenas a relação binária entre signo e coisa, signo e idéia, mas é uma relação ternária, na qual os signos são símbolos que denotam coisas e idéias porque conotam significações; a linguagem não traduz pensamentos, mas participa ativamente do trabalho do pensamento, na formação e formulação das idéias e dos valores. a linguagem cria, interpreta e decifra significações, podendo fazê-lo miticamente ou logicamente, magicamente ou racionalmente, simbolicamente ou conceitualmente. Concluindo, e o que mais nos interessa neste estudo é que a linguagem é uma forma de nossa experiência total de seres que vivem no mundo e com outros; é uma dimensão de nossa existência. II- A ORIGEM DA LINGUAGEM Capacidade de expressão do ser humano: Durante muito tempo a filosofia preocupou-se em definir a origem e as causas da linguagem. Uma primeira divergência sobre o assunto surgiu na Grécia: A linguagem é natural aos homens ou é uma convenção social? No primeiro caso: se a linguagem for natural, as palavras possuem um sentido próprio e necessário. No segundo caso: se for convencional, são decisões consensuais da sociedade e, nesse caso, são arbitrárias, isto é, a sociedade poderia ter escolhido outras palavras para designar as coisas. Essa discussão levou, séculos mais tarde, à seguinte conclusão: A linguagem como capacidade de expressão dos seres humanos é natural, isto é, os humanos nascem com uma aparelhagem física, anatômica e fisiológica que lhes permite expressarem-se pela palavra; mas as línguas são convencionais, isto é, surgem de condições históricas, geográficas, econômicas e políticas determinadas, ou, em outros termos, são fatos culturais. Uma vez constituída uma língua, ela se torna uma estrutura ou um sistema dotado de necessidade interna, passando a funcionar como se fosse algo natural, isto é, como algo que possui suas leis e princípios próprios, independentes dos sujeitos falantes que a empregam. Porém a linguagem como capacidade de expressão dos seres humanos nos deixa questionamento frente a existência concreta e suas manipulações, interesses e direcionamentos. Perguntar pela origem da linguagem levou a quatro tipos de respostas: 1. a linguagem nasce por imitação, isto é, os humanos imitam, pela voz, os sons da natureza (dos animais, dos rios, das cascatas e dos mares, do trovão e do vulcão, dos ventos, etc). A origem da linguagem seria, portanto, a onomatopéia 1 ou imitação dos sons animais e naturais; 2. a linguagem nasce por imitação dos gestos, isto é, nasce como uma espécie de pantomima2 ou encenação, na qual o gesto indica um sentido. Pouco a pouco, o gesto passou a ser acompanhado de sons e estes se tornaram gradualmente palavras, substituindo os gestos; 1 Palavra cuja pronuncia imita o som natural da coisa significada. 3 3. a linguagem nasce da necessidade: a fome, a sede, a necessidade de abrigar-se e proteger-se, a necessidade de reunir-se em grupo para defender-se das intempéries, dos animais e de outros homens mais fortes levaram à criação de palavras, formando um vocabulário elementar e, rudimentar, que, gradativamente, tornou-se mais complexo e transformou-se numa língua; 4. a linguagem nasce das emoções, particularmente do grito (medo, surpresa ou alegria), do choro (dor, medos, compaixão) e do riso (prazer, bem-estar, felicidade). 3 Assim, para Rousseau, a linguagem, por nascer das paixões, foi primeiro linguagem figurada e por isso surgiu como poesia e canto, tornando-se prosa muito depois; e vogais nasceram antes das consoantes. Assim como a pintura nasceu antes da escrita, também os homens primeiro cantaram seus sentimentos e só muito depois exprimiram seus pensamentos. Essasteorias não são excludentes. É muito possível que a linguagem tenha nascido de todas essas fontes ou modos de expressão, e os estudos de psicologia genética (isto é, da gênese da percepção, imaginação, memória, linguagem e inteligência nas crianças) mostram que uma criança se vale de todos esses meios para começar a exprimir-se. Podemos dizer que uma linguagem se constitui para a criança (e para todos os seres humanos), quando ela passa (ou todos passamos) dos meios de expressão aos meios de significação. Um gesto ou um grito exprimem, por exemplo, medo; exprimem um sentimento; palavras, frases e enunciados significam o que é medo, dizem qual é o sentido do sentimento de medo. III- A LINGUAGEM E SUA APLICABILIDADE NA EXPERIÊNCIA HUMANA A linguagem ajuda o indivíduo a processar seus pensamentos e a comunicá-los aos outros, facilitando a vida em grupo e a realização de empreendimentos sociais. O homem é por natureza um animal social e se expressa por sua linguagem. A linguagem serve para demonstrar o útil e o danoso, e por isso também o justo e o injusto, o que é próprio dos homens. O homem possui razão e é dotado de linguagem, o que lhe permite comunicar-se com seus semelhantes, compartilhar pensamentos e idéias, reconhecer e expressar valores que viabilizam a vida social e política. O homem é, caracteristicamente, animal pensante e falante; sua linguagem e seu pensamento estão estreitamente relacionados: pela linguagem, somos capazes de elaborar pensamentos e imaginar cenas que não estão diante dos nossos sentidos; além disso, pela palavra ou qualquer outro meio organizado de linguagem, podemos externar esses pensamentos para outras pessoas. Porém, não é só na extensão ou na qualidade dos sinais utilizados que se baseia a diferença entre as linguagens humana e animal. É na forma de utilização desse repertório de sinais que reside o principal marco distintivo da evolução da raça humana: o homem é capaz de evocar; mentalmente, coisas que não se apresentam aos seus sentidos e essa capacidade implica que as palavras, os sons, os gestos, as imagens, enfim, os sinais utilizados para reapresentar aquelas coisas ao seu pensamento estão investidos de um caráter simbólico. A função das palavras no pensamento humano é representar coisas que não se apresentam aos sentidos, para que o espírito as formule — coisas, conceitos, idéias, tudo o que não tem realidade física para nós no momento. É próprio do homem: A capacidade imaginativa de representar na mente coisas ausentes por meio de outras que as substituem sob algum aspecto. Isso confere aos seres humanos uma liberdade de atuação no meio 2 Arte ou ato de expressão por meio de gestos. 3 Rousseau em seu Ensaio sobre a origem das línguas escreve: "Não é a fome ou a sede, mas o amor ou o ódio, a piedade, a cólera, que aos primeiros homens lhes arrancaram as primeiras vozes... Eis por que as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas". 4 ambiente. O ser humano conta com a comunicação e o diálogo para resolver problemas e atuar sobre o meio. Desenvolveu, por meio da capacidade lingüística, instrumentos de ação cooperada e interativa. A linguagem possibilita aos seres exercer três tipos distintos de interação: transmitir informações, expressar ou suscitar sentimentos, emoções e atitudes e transmitir ordens e pedidos. 1. Na transmissão de informações a linguagem é usada para afirmar ou negar proposições; apresentar argumentos; descrever o mundo e raciocinar sobre ele. Se os fatos informados são importantes ou não, gerais ou particulares, falsos ou verdadeiros, não importa. Em todos esses casos, o discurso informativo prevalece sobre as demais intenções comunicativas. 2. Na expressão de sentimentos a linguagem é usada para expressar certos sentimentos, atitudes ou emoções cuja comunicação apresenta o poder de despertar em outrem sentimentos e emoções semelhantes ou contrárias. 3. Na transmissão de ordens a linguagem assume uma função diretiva e é utilizada com o propósito de obter resultados; causar ou impedir uma ação indicada. Normalmente, a comunicação estabelecida cotidianamente apresenta essas três funções básicas, não em forma pura, mas combinadas entre si, seja para informar, predispor ou acionar respostas no outro. O homem e a linguagem estão indissociavelmente unidos. A linguagem e seus valores: A linguagem — a fala — é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. 1. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. 2. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. 3. É o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta com a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador. A linguagem existe desde os primeiros até os últimos momentos da vida. Antes mesmo do primeiro despertar de nossa consciência, as palavras já ressoavam à nossa volta, prontas para envolver os primeiros germes frágeis de nosso pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente através da vida, desde as mais humildes ocupações da vida cotidiana até os momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graças às lembranças encarnadas pela linguagem, força e calor. A linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento; para o indivíduo, é o tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de pai para filho, de geração a geração. Para o bem e para o mal, a fala é a marca da personalidade, da terra natal e da nação, o título de nobreza da humanidade. O desenvolvimento da linguagem está tão inextricavelmente ligado ao da personalidade de cada indivíduo, da terra natal, da nação, da humanidade, da própria vida, que é possível indagar-se se ela não passa de um simples reflexo ou se ela não é tudo isso: a própria fonte do desenvolvimento dessas coisas. Linguagem e ciências: meio de conhecimento. É por isso que a linguagem cativou o homem enquanto objeto de deslumbramento e de descrição na poesia e na ciência. A ciência foi levada a ver na linguagem seqüências de sons e de movimentos expressivos, suscetíveis de uma descrição exata, física e fisiológica, e cuja disposição forma signos que traduzem os fatos da consciência. Procurou-se, através de interpretações psicológicas 5 e lógicas, reconhecer nesses signos as flutuações da psique e a constância do pensamento: as primeiras na evolução e na vida caprichosa da língua; a segunda, em seus próprios signos, dentre os quais distinguiu-se a palavra e a frase, imagens concretas do conceito e do juízo. A linguagem, como sistema de signos, devia fornecer a chave do sistema conceitual e a da natureza psíquica do homem. A linguagem, como instituição social superindividual, devia contribuir para a caracterização da nação; a linguagem, com suas flutuações e sua evolução, devia abrir caminho ao conhecimento do estilo da personalidade e ao conhecimento das longínquas vicissitudes das gerações desaparecidas. A linguagem ganhava assim uma posição-chave que iria abrir perspectivas em muitas direções. Assim considerada, e mesmo quando é objeto da ciência, a linguagem deixa de ser um fim em si mesma e torna-se um meio:meio de um conhecimento cujo objeto principal reside fora da própria linguagem, ainda que seja o único caminho para chegar até esse conhecimento, e que se inspira em fatos estranhos a este. Ela se torna, então, o meio de um conhecimento transcendental e não o fim de um conhecimento imanente. Há uma expressão clara na linguagem que é a arte. A arte é uma linguagem que concretiza e comunica os sentimentos humanos. Os poemas apontam para esse elemento que traduz a própria natureza. Relê a própria existência. Como ilustração desse texto, reproduzo aqui o poema de Ferreira Gullar 4 transcrito abaixo. Traduzir-se: Uma parte de mim é todo mundo; outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão; outra parte estranheza e solidão. Uma parte de mim pesa, pondera; outra parte delira. Uma parte de mim almoça e janta; outra parte se espanta. Uma parte de mim é permanente; outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem; outra parte, linguagem. Traduzir uma parte na outra parte — que é uma questão de vida ou morte — será arte? 4 GULLAR, Ferreira. Na vertigem do dia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. p.27.
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