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CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 1 Fundamentos de Filosofia Prof. Rui Valese Aula 3 CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 2 CONVERSA INICIAL Olá, caro aluno! Seja bem-vindo a esta aula, que será a terceira da disciplina de Fundamentos da Filosofia. Toda área de conhecimento humano possui alguns fundamentos que lhe dão especificidade tanto no processo investigativo quanto em seus objetos de investigação. Sendo assim, nosso objetivo desta aula será conhecer alguns dos principais fundamentos da reflexão filosófica: o que é o Ser, as modalidades de conhecimento (racionalismo e empirismo), a relação dogmática e cética com relação ao conhecimento, a relação entre razão e verdade e, por fim, aquilo que alguns filósofos críticos do século XX classificaram como o mito da cientificidade. Esses fundamentos, podemos dizer, constituem o núcleo duro da Filosofia. As demais áreas se desenvolvem a partir das respostas que dermos a essas questões. Então, vamos iniciar as reflexões? A videoaula correspondente a esta seção está no material on-line! CONTEXTUALIZANDO O problema que propomos para reflexão, nessa rota de aprendizagem, é sobre o mito da cientificidade. Algo passa a ser verdadeiro por que se apresenta como científico? Entre um banho quente, acompanhado de repouso na cama e chá caseiro de limão, gengibre, mel, alho e uma medicação para um simples resfriado comprado em qualquer farmácia, qual você escolheria? CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 3 Assista à contextualização dos assuntos que discutiremos nesta aula. A videoaula está no material on-line! PESQUISE Entender o que é o Ser O que é o Ser? O que faz com que um Ser seja um Ser e não outro Ser, ou um não-Ser? O que é o não-Ser? Quando observo as coisas e acontecimentos ao meu redor, observo que há mudanças e permanências. O que muda? O que permanece? As coisas realmente mudam ou é apenas uma ilusão de minhas percepções? O que faz com que haja mudança? Ou, o que faz com que haja permanência? O que define o Ser: o que muda ou o que permanece? Como e por que percebo que sou diferente das coisas que observo e me cercam? Ao mesmo tempo, por que percebo que alguns desses seres que observo, têm diferenças e semelhanças em relação a mim, sem, no entanto, serem coisas ou deixarem de ser coisa? Essas e outras questões constituem o campo da Filosofia que denominamos Metafísica (ou Ontologia), que é quem trata das questões do Ser. O objetivo deste tema é apresentar algumas reflexões sobre o conceito de Ser a partir de diferentes autores. Uma primeira questão a respeito do Ser está na sua própria origem grega da palavra que, ao ser traduzida pelos latinos, causou certa confusão e acabou determinando um sentido para a palavra metafísica, como Filosofia Primeira, que não corresponderia à sua real atividade investigativa. CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 4 Porém, os gregos não foram os únicos, nem os primeiros a elaborarem uma concepção de Ser em sentido abstrato. O pensamento filosófico indiano, por exemplo, já apresentava, muito antes dos primeiros filósofos gregos, três conceitos metafísicos relacionados ao ser humano enquanto Ser: atman, o eu, ou alma; karma, que seriam as ações humanas praticadas em vida e orientadas por uma eficácia moral com vistas a moksha, que seria a libertação: o mais alto ideal do existir humano. A palavra karma, aliás, tem sido usada no Ocidente, também pelo senso comum, com significado completamente pervertido, uma vez que por aqui o entendemos como castigo, punição e/ou peso a ser carregado em vida pela vontade de alguma divindade que resolveu castigar. No entanto, seu significado se aproxima à terceira lei de Newton: para toda ação corresponde uma reação de mesma força e em sentido contrário. Assim, atman, o eu, teria que viver o seu karma, isto é, realizar ações orientadas por uma eficácia moral com vistas a libertar-se dessa vida material, alcançando moksha – a liberdade. http://www.estudantedefilosofia.com.br/filosofias/filosofiaindiana.php Da mesma forma, tanto o pensamento teológico que dá sustentação às religiões de matriz africana quanto a Filosofia Espírita possuem o mesmo fundamento: a lei do retorno. Assim, nossas ações devem ser realizadas em sentido de libertar-se e não de aprisionar-se. Ou seja, colhemos os frutos das ações que realizamos. Somos o que fazemos. Dessa forma, nosso existir é um aprendizado. Quando aprendermos nossas lições, nos libertaremos; enquanto não as aprendermos, precisaremos de outras vidas para realizar o aprendizado necessário. Já na filosofia chinesa, por exemplo, a preocupação não é com o Ser, mas, com o processo. Assim, não existe uma categoria “tempo” que faz a CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 5 divisão entre presente, passado e futuro, mas, no sentido de um porvir, de um processo que é kairós – tempo propício. http://voluntas.tripod.com/Hp/fchinesa.htm Tanto Aristóteles quanto São Tomás de Aquino relacionam o tempo propício à prudência no agir. Segundo eles, não se trata de agir nem precipitadamente, nem com morosidade. Diferente da tradição ocidental, que toma o tempo e o divide em partes, pedaços, um intervalo entre dois momentos, por exemplo (o presente é o intervalo entre o passado e o futuro) para o pensamento chinês, o tempo é um processo. Do mesmo modo, o mundo não foi criado num determinado tempo, mas é um processo autorregulado, isto é, que se desenvolve de acordo com um momento propício e por si mesmo. Outro exemplo vem do continente africano e de sua filosofia ubuntu, gestada na África Subsaariana. O princípio dessa filosofia é expresso na seguinte frase: “uma pessoa é uma pessoa, junto com outras pessoas”. Ou, em termos metafísicos clássicos: um Ser é um Ser, junto com outros Seres. Isto é, não se funda na exclusão, mas na inclusão, na interdependência, na cooperação, na convivência. https://www.youtube.com/watch?v=J5bgB2hXhtQ O filósofo Martin Buber (1878-1965) em sua obra Eu-Tu afirma algo semelhante: o Eu somente tem sentido e existência na presença de um Tu; não o Tu dominando, não o Tu explorando, não o Tu violentando, mas existindo com ele, (co)existindo. Emanuel Levinas (1906-1995) e Enrique Dussel (1934-) refletem sobre o conceito de alteridade na mesma perspectiva. Voltemos ao pensamento helênico. Tò on, em grego, significa “o Ser”, aquele que é, em oposição àquele que parece ser, à aparência. Ocorre que, quando os pensadores e escritores latinos começaram a traduzir os escritos dos gregos, não encontraram na língua latina uma palavra correspondente à grega ousía, que significa o Ser das coisas. Assim, inventaram a palavra CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 6 essentia, derivando-a do verbo ser, que em latim se diz esse. Assim, o termo ousía, traduzido para o português, depois de sua latinização, significa essência. Portanto, o Ser de alguma coisa é a sua essência, a sua identidade, aquilo que o torna distinto dos demais Seres, único. O problema é que, algumas vezes, o Ser era tomado tanto como essência quanto como existência. Ao mesmo tempo em que, para alguns pensadores, o Ser era um atributo de todas as coisas que são num mesmo sentido, outras vezes o Ser era tomado em sentido tão geral que nenhuma substância poderia ser dita mais do que simplesmente que ela“é”. Outra questão relativa à palavra “Ser” é o sentido em que é tomada – se verbo ou se substantivo. No primeiro caso, o Ser é aquilo que faz com que o sentido substantivo do Ser – o ente, seu segundo sentido – seja. Por exemplo: sou alto ou sou baixo, sou homem ou sou mulher, sou brasileiro ou sou sul-africano e assim por diante. Já o sentido substantivo diz respeito a identificar que características possuo e que me diferenciam de qualquer outro Ser, isto é, que características cada Ser possui que o torna único, não o igualando, mas diferenciando-o dos demais Seres. O que o torna distinto e caracteristicamente próprio. O que lhe é inerente, isto é, que é próprio dele e de mais nenhum outro Ser. Que lhe é intrínseco. Em outras palavras, a identidade de um Ser é aquilo que é próprio dele e que não depende de nenhum outro ser ou circunstâncias para sê- lo tal qual é. Tomemos, para ilustrar a reflexão sobre o que é o Ser, o conceito de ser humano em alguns períodos históricos e distintos pensadores: O Ser platônico: CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 7 No pensamento platônico o ser humano é constituído de um corpo e uma alma. O primeiro é um entrave para que a segunda contemple as Ideias. O objetivo da existência humana é controlar o corpo e elevar a alma ao Mundo das Ideias. O Ser medieval: Já na Europa medieval, por exemplo, muito influenciada pela cultura judaico-cristã, o ser humano é entendido como filho de Deus, porém, possuindo um corpo, que é fonte de pecado e que, portanto, deve renegá-lo para salvar a alma, que é perecível. O Ser cartesiano: Já para Descartes (1596-1650), por exemplo, o ser humano é constituído de uma mente – substância pensante – e um corpo – constituído de matéria, que pode ser explicada por meio de leis científicas e fórmulas matemáticas. O Ser na sociedade capitalista: Já para o sistema capitalista iniciado com a Revolução Industrial no século XVIII, segundo Marx (1818-1883), o ser humano é uma máquina de produzir mercadorias com vistas à produção do lucro, por meio da extração de mais-valia. Assim, o conceito de ser humano, que pode ser pensado em termos metafísicos, assume significados objetivos e diferenciados quando o analisamos em determinado período histórico ou num determinado pensador. Vamos ver o que mais o professor Rui Valese tem a agregar ao nosso aprendizado? Assistia à videoaula que consta no material on-line! CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 8 Caracterizar o que é empirismo e racionalismo Se, por um lado, todo ser humano aspira ao conhecimento, como afirma Aristóteles, por outro lado, são diversas as formas pelas quais as correntes filosóficas explicam como produzimos o conhecimento. Basicamente, temos três teorias: o racionalismo inatista, o empirismo e a dialética. Nosso objetivo, neste tema, será compreender os fundamentos de cada uma das concepções e avaliar suas possibilidades e limites. Racionalismo inatista O racionalismo inatista nasce com Sócrates e Platão. Para ambos, nós já nascemos com a razão e as ideias verdadeiras. Isso porque, segundo Platão, nossa alma já viveu no Mundo das Ideias, onde estão os conceitos e ideias que são universais e necessárias. Por termos partilhado dessas ideias, já nascemos com elas. Porém, no ato de nosso nascimento, as esquecemos. O que precisamos é, em vida, relembrá-las. Para Platão, conhecer é relembrar. Platão afirma essa ideia em todos os seus diálogos. Porém, no Menon e n’A República, há uma explicação mais sistemática. Nessa última, aliás, a ideia está presente em duas passagens: na Alegoria da Caverna, que você já conhece e no Mito de Er, sobre o qual você saberá mais neste momento: http://rotasfilosoficas.blogs.sapo.pt/970.html Sócrates, em diversos momentos, aparece desenvolvendo sua concepção epistemológica, a partir de seu exercício filosófico, o qual chamamos de maiêutica, ao inquirir aqueles que afirmavam saber alguma coisa, sobre suas respectivas verdades. CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 9 No diálogo Menon, por exemplo, Sócrates e Platão demonstram que um escravo analfabeto podia explicar um teorema de geometria. Isso, segundo eles, comprovava que o escravo já possuía as verdades matemáticas. O que Sócrates fizera é, por meio da maiêutica (parto de ideias), fazer com que o escravo verbalizasse aquilo que já estava gravado em seu espírito. E isso, segundo Platão, só era possível, graças à teoria da reminiscência, que afirma que a nossa alma vive sucessivas vidas e já desfrutou, como já dissemos, do mundo das ideias. Outro filósofo importante dessa corrente epistemológica é Descartes. Sua teoria das ideias inatas está expressa em duas obras: Discurso do método e Meditações Metafísicas. Segundo Descartes, possuímos três tipos de ideias: Ideias adventícias São as ideias vindas de fora que temos em nosso espírito. São originárias dos nossos sentidos, nossas percepções e lembranças. São as ideias originárias das qualidades sensoriais das coisas, como cor, forma, textura etc. e dos objetos as quais se referem – fruta, flor, roupa, calçado etc. Ideias fictícias São as ideias que criamos a partir da nossa imaginação e fantasia. A partir delas, criamos seres inexistentes. Por exemplo: cavalo alado, sereia etc. Ideias inatas São as ideias impossíveis de experienciar, imaginar ou fantasiar, pois não têm como serem captadas por meio dos sentidos ou compô-las a partir de outros objetos ou seres existentes, tais como: infinito, alma, Deus etc. As ideias inatas já nascem conosco e, segundo Descartes, são “a assinatura do Criador” em nós. E, a razão, que também é inata em nós, é o que nos permite conhecer o que é a verdade. CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 10 Empirismo Já os empiristas farão uma reflexão completamente oposta aos racionalistas. Segundo eles, nossa mente é uma “folha de papel em branco”, uma tábula rasa. Tudo o que sabemos é porque antes experienciamos. Para os empiristas, não é somente o conteúdo da razão que é apreendido por meio da experiência, mas, a própria razão é adquirida por meio dela. Os sentidos são nossa primeira experiência. Por meio deles, captamos os objetos e seres exteriores a nós. Nossos órgãos dos sentidos são estimulados pelas cores, formas, volume, densidade, odor, som, enfim, por aquilo que caracteriza os seres e objetos que estamos captando. Essas informações reunidas formam a percepção, isto é, nominam o ser ou objeto a que se referem essas informações. Vemos um objeto esférico, alaranjado, percebemos uma superfície lisa e que exala um odor cítrico. A partir dessas sensações, reunidas numa percepção, nomino o referido objeto como sendo uma laranja. Das percepções chegamos às associações. Como determinadas sensações passam a se repetir, fazendo repetir também as percepções, formamos as ideias, as quais utilizamos para definir e antecipar certos eventos. Por exemplo: observando a natureza, percebo que os animais costumam ficar agitados quando um evento como uma tempestade se aproxima, e, na sequência, procuram abrigo para se proteger. Da mesma forma, percebo também mudança na qualidade do ar e na sensação térmica. De tanto observar esse comportamento e essas mudanças, fazemos a associação dos eventos prévios com a tempestade. Assim, formamos uma ideia sobre previsão do tempo. É claro que essa previsão ainda é muito imediata à sua ocorrência. Porém, se apurarmosas sensações e percepções, poderemos ampliar a observação em relação aos fenômenos naturais e ir caracterizando melhor o clima em que vivemos, não somente preparando-nos para eventos imediatos, mas também os de médio e longo prazo, como CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 11 escolher a época certa para plantar, colher ou cultivar determinado produto ou criar animais domésticos. Tais ideias, formuladas a partir das sensações que formam percepções que, reunidas, formam associações, chegam à razão que, por fim, formam o pensamento. Entendeu? Agora assista ao vídeo a seguir para esclarecer melhor: https://www.youtube.com/watch?v=PwzuU1_BUIA Immanuel Kant Kant, no século XVIII, procurará uma superação do pensamento inatista e empirista. Para ele, ambos se equivocam, ao partir do princípio de que o conhecimento da realidade, seja interior, seja exterior, é possível quando na realidade, o que deveriam se perguntar antes seria se o conhecimento é possível. Para Kant: “o ponto de partida da filosofia não pode ser a realidade (seja interna, seja externa), e sim o estudo da própria faculdade de conhecer ou o estudo da razão”. Isto é, antes de buscarmos responder o que é a realidade, precisamos investigar sobre o que é conhecer, o que é pensar, o que é a verdade. Ao invés de colocarmos a realidade e o objeto do conhecimento no centro, fazendo o conhecimento se regular pelos mesmos, devemos fazer os objetos se regularem pelo nosso conhecimento. Como afirma Kant, “demonstremos, também de maneira universal e necessária, que os objetos se adaptam ao conhecimento, e não o conhecimento aos objetos”. E como produzimos conhecimento, segundo Kant? Para Kant, primeiro tem a razão, que é uma estrutura vazia, uma forma sem conteúdo. A razão é universal, necessária, a priori e inata. Ela é anterior à experiência e independente dessa. Porém, a razão, sem a experiência, continuaria sendo uma estrutura vazia, inoperante. CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 12 Dessa forma, a função da realidade é fornecer os conteúdos do conhecimento necessários à razão. Já os conteúdos do conhecimento são a posteriori. Assim, não é a razão que se adapta à realidade, mas a realidade que se adapta à razão. O artigo que você deverá ler a seguir servirá para conectar todas essas correntes de pensamento, de modo que você possa vislumbrar as nuances que diferem cada uma. Então, vamos à leitura? http://www.ftc.br/revistafsa/upload/art02_Conhecimento.pdf Hegel No século XIX, Hegel criticará os empiristas, os inatistas e Kant. Isso porque, no seu entendimento, eles se esqueceram de um detalhe fundamental: a razão é histórica. O que não significa dizer que ela seja relativa e subjetiva, valendo de acordo com as conveniências, muito menos que ela seja uma vítima do tempo. Para pensarmos a razão corretamente, temos que considerá-la na sua historicidade, no movimento histórico. Da mesma forma que a razão é sujeito e objeto, é, também, criadora da realidade. Como Hegel afirma, “o real é racional e o racional é real”. Dialética marxista Também no século XIX, mas posterior a Hegel, Marx reafirmará o caráter histórico da razão. Porém, divergirá de Hegel quanto ao ponto de partida: para Marx, a relação entre razão e realidade é dialética. Isto é, é na interação entre ambas que acontece a história. Como afirma na obra Ideologia Alemã: “Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência”. CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 13 E agora, vamos à videoaula na qual explicaremos melhor essa progressão de tempo e de ideias! Acesse o material on-line! Explicar o que é dogmatismo e ceticismo No senso comum, costumamos partir do princípio de que o conhecimento é possível. Porém, quando nos pomos a refletir sobre as possibilidades do conhecimento humano, nossas certezas ficam em dúvida. Esse é o objetivo de estudo dessa unidade: compreendermos as possiblidades e limites do conhecimento humano e as distintas respostas dadas a esse problema. Antes, porém, faz-se necessário explicitar o que vem a ser a verdade. Tomemos por verdade a correspondência entre aquilo que se pensa e o Ser ou realidade sobre a qual se pensa, se quer conhecer ou expressar. Assim, quando vemos uma laranja e nos referimos a ela como sendo uma laranja, diz-se que esse é um conhecimento verdadeiro, pois há correspondência entre aquilo que afirmo e o objeto sobre o qual afirmo algo. Porém, aqui surge um primeiro problema: é possível conhecer o que é o ser da laranja, sua essência? Tomemos uma peça de roupa qualquer: uma camiseta masculina. Essa peça de roupa, dependendo de quem a olha e das motivações intrínsecas, pode ser: salmão claro, pêssego ou rosa claro. Assim, fica difícil estabelecer CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 14 qual a verdadeira cor da camiseta, como uma verdade absoluta e necessária, que está nela e não no indivíduo que a observa. A verdade pode ser tomada em três sentidos: Grego Deriva do prefixo a (negação) e de léthe (esquecimento), que compõem a palavra alétheia. A mesma significa “o não esquecido”, “o não escondido”, “o não dissimulado”. É o oposto de ideologia (em sentido negativo) e de alienação, por exemplo, que fazem uma espécie de mascaramento da realidade. O oposto de alétheia é pseudos, que significa falso. Latim Verdade deriva de veritas e diz respeito à veracidade e rigorosidade de uma narrativa, pois trata dos pormenores e é fiel ao que aconteceu. Assim, a verdade não está relacionada às próprias coisas, mas ao relato fidedigno dos acontecimentos. Dessa definição de verdade, por exemplo, deriva a concepção que afirma que a versão do fato passa a ser mais importante que o próprio fato. O oposto à veritas é a mentira, a falsificação. Hebraico A palavra hebraica para verdade é emunah, que significa “confiança”. Assim, a verdade se relaciona à espera de que aquilo que foi prometido seja cumprido. A verdade, portanto, está fundamentada na esperança, na confiança de uma promessa. Para os hebreus, a verdade é Deus. Basicamente, existem três possibilidades de investigação: o dogmatismo, o ceticismo e o criticismo. Aprofundemos um pouco mais cada uma das concepções a seguir. CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 15 Dogmatismo Antes de nos adentrarmos no dogmatismo, faz-se necessário diferenciarmos o que é dogmatismo filosófico de outras formas de dogmatismo ligadas às ideologias religiosas e políticas. Neste último sentido, é uma crença sobre a qual não se admite nenhuma forma de questionamento e qualquer tentativa nesse sentido é chamada de heresia. Era assim que a Igreja Católica tratava todo aquele que quisesse interpretar as verdades bíblicas de forma diferente daquela autorizada pelos padres doutores, desde o seu surgimento até final da Idade Média. O dogmatismo, nesse sentido, é conservador e preconceituoso, pois, teme por em risco o que já se sabe, o já dito e feito. É contrário ao tó thaumázein porque acredita que suas crenças têm origem divina e, portanto, são incontestáveis. Para perceber como o dogmatismo relacionado a religião ainda se mantém presente em nossa sociedade, basta conferir as quantas vezes o então frei brasileiro Leonardo Boff teve que comparecer perante o cardeal Ratzinger (depois papa Bento XVI) para explicar suas ideias relacionadas à Teologia da Libertação. Em sentidofilosófico, existem dois tipos de dogmatismo: Dogmatismo ingênuo É a corrente filosófica que confia plenamente na possibilidade de que podemos conhecer as coisas como realmente são. Acredita que o mundo é tal e qual o percebemos. Dogmatismo crítico Acredita que podemos conhecer a verdade, desde que conjuguemos nosso esforço com os nossos sentidos e nossa inteligência. Isso é possível mediante o uso de um método adequado, que seja racional e científico. CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 16 Ceticismo Já o ceticismo vai em sentido contrário ao dogmatismo: parte do princípio de que o conhecimento da verdade é impossível, dividindo-se em posições que variam entre mais radicais ou ponderadas. Existem dois tipos de ceticismo: o absoluto e o relativo, que se subdividem em outras perspectivas. Atribui-se a criação do ceticismo a dois filósofos: Górgias e Pirro. O primeiro afirmava que o Ser não existe. Se existisse, não poderíamos conhecê-lo. E, se chegássemos a conhecê-lo, não teríamos como comunicá- lo a ninguém. Já Pirro afirma que a impossibilidade de conhecermos as coisas está nas nossas duas fontes de conhecimento e de erro: Os sentidos: Nossos órgãos dos sentidos são falhos, indignos de confiança e nos induzem ao erro; A razão: Como nossas opiniões são diferentes e contraditórias, isso mostra que nossa razão é limitada, pois, não teríamos como saber qual delas está correta. A crítica mais contundente direcionada ao ceticismo absoluto é sua contradição de termos. Isso porque, ao afirmar que o conhecimento verdadeiro é impossível, teríamos que admitir que isso é uma verdade. Sendo assim, teríamos uma primeira verdade. Portanto, o conhecimento verdadeiro é possível. Já o ceticismo relativo nega, parcialmente, o conhecimento da verdade. Essa concepção se divide em quatro conceitos: Subjetivismo: O conhecimento é uma relação subjetiva entre o sujeito que conhece e o objeto ou a realidade que é conhecida. Dessa forma, não é possível chegar CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 17 à certeza absoluta sobre as coisas, pois, como afirma Protágoras, “o homem é a medida de todas as coisas”. Ou seja, a verdade não está nas coisas, mas no ser humano. E, dessa forma, a mesma depende de cada indivíduo que a produz; Relativismo: Não existem verdades absolutas, mas, apenas relativas. E essa relatividade está condicionada ao tempo, ao espaço (geográfico e social) e ao contexto histórico; Probabilismo: Nunca poderemos chegar a uma certeza completa, mas, apenas provável (de probabilidade), que pode ser mais ou menos digna de credibilidade; Pragmatismo: Partindo do princípio de que somos seres práticos, ativos e não somente pensantes, nossa verdade se direciona àquilo que é útil, prático. Dessa forma, verdadeiro é aquilo que me é útil, prático. Richard Rorty, no século XX, é um representante desse tipo de pensamento, que pode ser encontrado também em John Stuart Mill e John Dewey. Agora, revise o conceito de ceticiscmo com o vídeo a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=_3lo8QX3m5g E agora contraponha o conceito de ceticismo com o conceito de dogmatismo a partir deste outro vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=ozcLWLbw-KM Criticismo kantiano Como tentativa de superação do dogmatismo e do ceticismo temos o criticismo kantiano. Kant acredita na possibilidade de se conhecer. No entanto, quer saber quais são as reais condições para que o conhecimento CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 18 seja possível. Assim, sua postura não é nem de pessimismo, nem de otimismo em relação às possibilidades do conhecimento: é uma postura crítica. Segundo ele, o que podemos conhecer é como as coisas se nos apresentam. Nosso conhecimento é limitado. Trata-se de um exercício da razão que, sob condições específicas e a partir das experiências sensíveis, chega ao que é a verdade. Finalizemos o estudo deste tema assistindo à videoaula, que está disponível no material on-line! Compreender a relação entre razão e verdade A Filosofia tem como um de seus objetivos a busca pela verdade. A verdade é, então, um valor para a Filosofia. E é por esse valor que a Filosofia se moveu e deve continuar a se mover. Ao afirmar que a verdade é um valor, afirma-se também que as coisas adquirem sentido porque são tidas como verdadeiras. Pois, do contrário, seriam consideradas como falsidade. Assim, neste tema, nosso objetivo é refletir sobre os sentidos da verdade, bem como sua relação com a Filosofia. Em oposição à verdade, podemos estar em três estados distintos (clique para conhecê-los melhor): Ignorância Ignorar alguma coisa é não saber nada dela. Pode ser tal que nem percebemos que ignoramos tal fato. A ignorância é alimentada pelas crenças e opiniões que nos colocam num estado de conformismo e comodismo. Simplesmente não vemos motivos para duvidar daquilo que acreditamos por conta própria ou daquilo que nos fazem crer. Incerteza CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 19 Diferente da ignorância, nesse caso descobrimos nosso estado de ignorância; descobrimos que nossas certezas são falhas, levando-nos a pensar e agir equivocadamente (não por intencionalidade, mas por falhas nas nossas certezas). Nesse estado, quando conscientes, não sabemos o que pensar, dizer ou fazer. Insegurança Por fim, o terceiro estado é quando nossas certezas se vão e ficamos apenas com o espanto e a admiração de não termos mais certeza de nada do que criamos como verdades certas e definitivas. Nesse estado, ficamos sem saber o que pensar ou o que fazer. Porém, esses estados podem nos levar, também, a permanecer com as crenças que tínhamos. Como afirma Kant: “A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem, no entanto, de bom grado menores durante toda a vida”. O estado de menoridade é o estado de não uso do entendimento, de preferir permanecer na ignorância, na incerteza e na insegurança. Outra possibilidade é querer sair dessa condição e, dessa forma, buscar a verdade. O desejo de buscar a verdade é a necessidade que temos de poder confiar tanto nas pessoas quanto nas coisas. Desde criança, ao brincarmos, sabemos distinguir entre o que é de verdade e o que é de mentira. Nesse jogo de brincadeira e de imaginação, sabemos distinguir o que é imaginação do que é percepção. Porém, facilmente nos decepcionamos quando um adulto mente para nós. Quebra-se, nessa hora, a relação de confiança e segurança que tínhamos em relação ao adulto em questão. Outra decepção diz respeito ao fato de descobrirmos que os seres e as coisas do mundo não existem de verdade. CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 20 No primeiro caso, a decepção pode ser por marcante demais. No segundo, temos a possibilidade de crescimento, quando decidimos descobrir como as coisas de fato são. Também na juventude costumamos nos decepcionar quando descobrimos que o que nos foi ensinado não só não corresponde à realidade das coisas, como – o que é pior – cumpria o papel apenas de ocultar a realidade, de oprimir sua liberdade e diminuir sua capacidade de compreensão e ação. Já nos adultos, a decepção ocorre quando os saberes enraizados não dão conta de explicar o que se passa, para que se possa agir ou reagir. Assim, a buscada verdade está ligada a três motivações: à decepção, ao espanto ou à admiração – tó thaumázein, como diziam Platão e Aristóteles. Porém, a busca pela verdade não é um caminho fácil. Pois, como afirma Kant, “É tão cômodo ser menor”, é tão cômodo viver na ignorância! Da mesma forma, muitas outras instituições querem nos manter em tal estado. Seja a ciência que nos quer acreditando em suas verdades, sejam os aparelhos ideológicos de estado – imprensa digital e impressa, escolas, igrejas etc. – como denunciou Louis Althusser. Diariamente somos bombardeados com informações que nem sempre temos tempo de processar. Ao mesmo tempo, essas informações chegam a nós fragmentadas. Se atentarmos para o fato de que poucos grupos controlam as informações que circulam pelos meios de comunicação, a tendência é que esses grupos só divulguem a nós as informações que sejam convenientes a eles. https://jarbas.wordpress.com/052-conhecimento-e-verdade/ Mesmo que hoje em dia tenhamos acesso a mais fontes de informação, devido à Internet e às redes sociais, ainda assim carecemos daquele espanto CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 21 original ou do princípio da dúvida, que tão bem Platão e Descartes defenderam como ponto de partida para a busca da verdade. Quantas são as situações, principalmente nas redes sociais, de informações que são reproduzidas sem ao menos os sujeitos verificarem se têm algum fundamento? Quase sempre, as pessoas se posicionam assim: se a notícia diz respeito a alguém que sou contra, reproduzo-a sem verificar sua procedência ou veracidade; da mesma forma, quando se trata de alguém com quem concordo, se veicula alguma coisa de positivo. Não nos apercebemos que, ao invés de estarmos nos informando, estamos nos desinformando. Nesse cenário de ilusões e fantasias, a propaganda também cumpre o papel de alienador de massas. O consumidor é tratado como um sujeito incrédulo e ingênuo. A fantasia vendida, junto com o produto anunciado, cria uma espécie de “ilha da fantasia” na qual as coisas são perfeitas e as pessoas são felizes. Foram os teóricos da Escola de Frankfurt que denunciaram esse estratagema da indústria cultural nas propagandas, no cinema e na cultura de massa em geral. Nas propagandas de automóveis, por exemplo, o homem que dirige uma determinada marca aparece como um sujeito “confiante, inteligente, sedutor, bem-sucedido nos negócios, cheio de namoradas lindas”. Isso quando não o colocam em duas situações distintas, reforçando o machismo e o patriarcalismo: num primeiro momento, o mesmo aparece com um carro velho e sua mulher, já com uma certa idade, vestindo um robe e com bobs no cabelo. Em seguida, o mesmo aparece com um carro novo e uma linda mulher, mais jovem que ele, com um vestido esvoaçante e provocante. Quando vemos uma propaganda, precisamos analisá-la sempre em dois planos: o explícito e o implícito. No entanto, por vezes, essas situações conduzem as pessoas a um outro tipo de reação. É o que aconteceu, por exemplo, com Sócrates e CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 22 Descartes. Esses, ao invés do conformismo optam por indagar, as pessoas e o próprio mundo. Sócrates inquiria as pessoas sobre suas certezas. Por meio de seu método, a maiêutica, levava as pessoas a perceberem suas ignorâncias para, num segundo momento, se estivessem dispostas, a descobrir a verdade que antes ignoravam. Já Descartes coloca como objetivo reconstruir todo o conhecimento sobre bases mais sólidas do que a tradição lhe tinha ensinado. Assim, começa por colocar tudo em dúvida. Era o exercício da dúvida metódica, por meio da qual afirmava que não aceitaria nada como uma verdade clara e distinta, sem antes proceder a um processo de verificação, submetendo a mesma ao princípio da dúvida. Porém, nesse processo de duvidar de tudo, de uma coisa não podia duvidar: que, para duvidar, devia admitir que estava pensando. Uma vez que não é possível duvidar de algo sem exercitar o pensamento. Assim, se estou duvidando, estou pensando. Se estou pensando, devo admitir uma segunda verdade: eu existo. Pois, não é possível pensar sem, necessariamente, existir. É por esse raciocínio que chega à sua primeira certeza: “Cogito, ergo sum” (Penso, logo, existo). Esse pensamento funda uma nova relação com a verdade. Enquanto na Idade Média, as verdades eram “reveladas” a padres doutores, a partir desse momento as verdades precisam ser investigadas e defendidas por meio de argumentos, produzidos pelo uso da razão. Essa ideia será melhor explorada no vídeo a seguir. Vamos assistir? https://www.youtube.com/watch?v=bmWhgV6RAVU Vamos à videoaula? Acesse o material on-line! CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 23 Explicar o mito da cientificidade Para compreendermos o mito da cientificidade, faz-se necessário, antes, retomarmos o significado de mito e ressignificá-lo. Em seguida, devemos refletir sobre o nascimento da ciência e de seu discurso de justificação e legitimação. Esses são os objetivos deste tema! Mito é uma narrativa criada para explicar alguma coisa que ainda não compreendemos. Assim, os mitos, na antiguidade, cumpriam a função de atender às necessidades humanas de explicação das coisas. Na antiguidade, o mito era uma mistura de elementos da realidade, combinados de maneira fantasiosa. A passagem do dia para noite era explicada, por exemplo, pelo mito de Cronos, que, todo dia, levava o Sol numa carruagem, puxada por cavalos até o outro extremo do céu. Assim, cavalo, Sol e carruagem, são elementos da realidade. Porém, quando combinados, temos o elemento de fantasia. O mito também dependia da autoridade moral de quem o conta. Sua veracidade estava ligada, portanto, ao argumento de autoridade. Dessa forma, não era qualquer pessoa que podia contar um mito, mas, somente determinadas pessoas: os poetas rapsodos. No entanto, não podemos tirar o mérito dos mitos, pois, até certo ponto, os mesmos foram fundamentais para a compreensão dos acontecimentos. Da mesma forma, hoje em dia, os mitos são estudados, pois, por meio deles, é possível compreender muito da existência humana. Apenas para citar alguns: o complexo de Édipo, alegoria da caverna, mito de Er, anel de Giges, caixa de Pandora, Sísifo, dentre outros. Por outro lado, quando olhamos para o nascimento da ciência enquanto explicação dos acontecimentos físico-químicos e biológicos, percebemos que ela rompe com uma tradição metafísica, que perdurou até a Idade Média e CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 24 que buscava explicar as coisas a partir da religião (ou, no máximo, da Filosofia, mas submetida à religião). O Renascimento, movimento cultural e artístico dos séculos XV e XVI, marca o nascimento de uma nova mentalidade com relação ao conhecimento. Se durante toda a Idade Média acreditava-se que o conhecimento era revelado somente a alguns iluminados, a partir do renascimento, retomado o antropocentrismo, passou-se a acreditar que o ser humano, dotado de um método e que, por meio do uso da razão, é capaz de explicar o que é o mundo. Isso porque, também, o mundo deixa de ser visto como mágico e encantado. E, como tal, está acessível à compreensão e à explicação humana. Se os fenômenos naturais não acontecem por acaso, nem por obra de um ser supremo, eles têm, então, regularidade. Se têm regularidade, é porque obedecem a leis. Compete, então, ao ser humano, descobrir quais são essas leis. Como a fé deixa de ter o poderque tinha na vida das pessoas a partir do fim da Idade Média (principalmente por causa do renascimento comercial, urbano e cultural, a Reforma Protestante e a Contrarreforma), tanto a Filosofia, enquanto pensamento independente e autônomo quanto a Ciência, passam a ocupar um espaço de destaque na sociedade europeia. É assim que nomes como os de Descartes, Bacon, Espinosa, Leibniz, Locke, Hume, Berkeley, Rousseau, Hobbes, Copérnico, Pascal, Galileu, Kepler e Newton revolucionam os conhecimentos filosóficos e científicos sem a possibilidade de serem perseguidos pelo Tribunal da Inquisição (como foi o caso de Giordano Bruno, que foi queimado vivo pela Inquisição). Ao mesmo tempo a burguesia, classe social que começa a emergir a partir o renascimento comercial, não só se consolida como uma classe social economicamente forte, mas também aspira assumir o poder político, destituindo os reis e implantando a república. Percebendo os potenciais do CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 25 conhecimento científico, a burguesia se apropria dele, incentivando os cientistas a produzirem ou a aprimorarem equipamentos industriais que agilizem o processo produtivo. A partir desse momento, passa-se a se produzir um discurso de justificação e legitimação de uma racionalidade científica, que ganha ares de autoridade na explicação dos fenômenos e dos acontecimentos, sejam eles físico-químicos ou sociais. O Positivismo, por exemplo, chegou a acreditar que era possível aplicar os mesmos métodos de interpretação das ciências da natureza às sociedades humanas. Da mesma forma, esse novo conhecimento passou a servir aos detentores dos meios de produção e passou a atender aos jogos de interesses dos estados nacionais e das potências econômicas e militares em suas disputas geopolíticas. A ciência passou a ser utilizada, inclusive, na invenção e aperfeiçoamento dos armamentos de guerra! Talvez o auge desse envolvimento da ciência com os interesses do capital e das potências econômicas e militares tenha sido a invenção das armas de destruição e morte em grande escala. A partir desse desenvolvimento, um campo específico da Filosofia desenvolve uma crítica radical à ciência. Trata-se da Filosofia da Ciência. Uma primeira crítica endereçada à Ciência é o fato dela ter se transformado em um novo mito, e, como tal, ter-se posicionado como um conhecimento superior, perfeito e infalível. Consequentemente, pressupondo-se neutra. Bernard Shaw, dramaturgo irlandês afirma: “A ciência nunca resolve um problema sem criar pelo menos dez outros”. Entretanto, não é a sociedade uma invenção das ciências, mas, ao contrário, as ciências uma invenção da sociedade. E, como tal, a Ciência CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 26 atende aos interesses e jogos da classe hegemônica da sociedade. A ciência transformou-se em mito e ideologia, atendendo e representando os interesses da classe dominante. Como afirma Rubem Alves: “O cientista virou um mito. E todo mito é perigoso, porque ele induz o comportamento e inibe o pensamento”. Provavelmente, a crítica mais contundente endereçada à ciência tenha partido dos frankfurtianos e de Hannah Arendt. Segundo eles, a ciência se transformou em razão instrumental, transformando-se em novo mito, produzindo e/ou colaborando com irracionalidades e barbáries como os regimes nazifascistas. Tanto Arendt quando Adorno e Horkheimer questionam como a ciência foi capaz de se prestar ao serviço de construir linhas férreas e câmaras de gás para exterminar milhões de seres humanos. A racionalidade perversa é a expressão mais cabal da banalização do mal. A “Solução Final”, como ficou conhecida a morte de milhões de judeus, era meticulosamente planejada e organizada. Os trens partiam dos guetos espalhados pela Europa e seguiam em linhas férreas (muitas delas construídas especificamente para esse fim) até os campos de concentração em que foram montadas as câmaras de gás. Desses, o mais famoso é Auschwitz, onde morreram mais de três milhões de pessoas. Assim como a Filosofia um dia rompeu com a consciência mítica, nós também precisamos romper com o mito da ciência, contextualizando-a sem, no entanto, negar as suas possíveis contribuições às melhorias nas condições de vida do ser humano. Agora, faça a leitura do texto sobre o “Estatuto do Conhecimento Científico”: http://afilosofia.no.sapo.pt/11.estatconhecientifico.htm CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 27 Agora, você deverá assistir à videoaula do professor Rui Valese! Acesse o material on-line! TROCANDO IDEIAS No texto Conceito de Esclarecimento, Horkheimer e Adorno afirmam: “Desde sempre o iluminismo [esclarecimento], no sentido mais abrangente de um pensar que faz progressos, perseguiu o objetivo de livrar os homens do medo e de fazer deles senhores. Mas, completamente iluminada, a terra resplandece sob o signo do infortúnio triunfal. O programa do iluminismo [esclarecimento] era o de livrar o mundo do feitiço. Sua pretensão, a de dissolver os mitos e anular a imaginação, por meio do saber [...] Entretanto, a credulidade, a aversão à dúvida, a precipitação nas respostas, o pedantismo cultural, o receio de contradizer, a parcialidade, a negligência na pesquisa pessoal, o fetichismo verbal, a tendência a dar-se por satisfeito com conhecimentos parciais, essas e outras causas semelhantes impediram que o entendimento humano fizesse um casamento feliz com a natureza das coisas, e foram, em vez disso, as alcoviteiras de sua ligação a conceitos fúteis e experimentos não planejados: é fácil imaginar os frutos e a prole de uma união tão gloriosa”. A partir desse fragmento de texto filosófico, reflita sobre o fracasso do projeto iluminista de emancipação humana e a transformação da ciência em novo mito e instrumento de poder a serviço dos interesses do capital e das potências econômicas e militares. NA PRÁTICA Agora você deverá confrontar os conhecimentos populares relacionados aos chás caseiros e os remédios alopáticos desenvolvidos pelos laboratórios farmacêuticos para atender as mesmas necessidades. CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 28 Pesquise, também, sobre o poder das benzedeiras e benzedores no atendimento de problemas físicos e emocionais e os estudos da ciência mostrando a influência de tais práticas do ponto de vista neurológico. SÍNTESE Nesta terceira aula, começamos nossas discussões pelas questões relacionadas ao que é o Ser. Vimos que, além dos gregos, outros povos também fizeram reflexões filosóficas metafísicas, que se assemelham àquilo que os helenos produziram, principalmente Platão e Aristóteles. Conhecemos a Filosofia Ubuntu, que fala da necessidade do outro na existência individual – uma metafísica que não se propõe excludente, mas, convivente. Num segundo momento, procuramos caracterizar o que é o empirismo e o racionalismo. Esses dois princípios têm sido rivais na busca por explicar como conhecemos. No entanto, se ambos têm razão em alguns aspectos, em outros deixam a desejar por não atenderem plenamente a explicação de como conhecemos. Outras questões relacionadas à produção do conhecimento são o dogmatismo e o ceticismo. Enquanto o primeiro parte do princípio de que o conhecimento é possível, desde que guiado pela razão e por um método eficaz, o segundo se divide entre aqueles que adotam uma postura de dúvida em relação às capacidades humanas de se conhecer até aqueles que negam qualquerpossibilidade de se conhecer as coisas. Nessa problemática, também vimos as relações entre razão e verdade. Aspiramos conhecer a verdade das coisas. A verdade, no entanto, é resultado de interesses de hegemonia na sociedade, atendendo aos interesses da classe dominante num determinado período histórico, conforme Marx denuncia. CCDD - Centro de Criação e Desenvolvimento Dialógico 29 É o caso, por exemplo, do mito da cientificidade, que, desenvolvido a partir do século XIX, transformou a ciência em novo mito, colocando-a como capaz de explicar todas as coisas e escondendo os compromissos que a ciência mantém com o capital e com as potências econômicas e militares, que a utilizam na melhoria do processo de produção das mercadorias e serviços – sofisticando o processo de extração de mais valia – e no aperfeiçoamento da fabricação de armas de destruição em massa cada vez mais eficazes. Vamos recapitular esse conteúdo? Acompanhe a videoaula, que está, como você já sabe, no material on-line. Referências CHAUÍ, M. Iniciação à Filosofia. São Paulo: Ática, 2011. COTRIM, G. Fundamentos de Filosofia. São Paulo: Saraiva, 2013. ARANHA, M. L. A. Filosofando. São Paulo: Moderna, 2009. OS PENSADORES. Benjamin, Horkheimer, Adorno e Habermas. São Paulo: Editora Victor Civita, 1975.
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