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AULA 08 PORTUGUÊS INSTRUMENTAL 1 PORTUGUÊS INSTRUMENTAL – DIREITO AULA 8 A CLAREZA Uma comunicação truncada pode atrapalhar o profissional que necessita utilizar o texto como ferramenta de trabalho. Mensagens não compreendidas, informações equivocadas, interpretações dúbias, tudo isto pode ser reflexo de um mal planejamento e uma má estruturação textual. Nesta aula vamos conhecer estratégias para criar textos precisos, ordenados e compreensíveis. A clareza é a característica positiva de uma mensagem que não deixa dúvidas razoáveis sobre aquilo que quer dizer. Uma frase como “A avó encontrou o neto em seu quarto” nos lança um problema de interpretação, difícil de ser resolvido sem informações adicionais, pois como poderemos saber de quem é quarto, da avó ou do neto? Algo parecido acontece com a frase “O pai o filho adora” (o pai adora o filho ou é o contrário?). AULA 08 PORTUGUÊS INSTRUMENTAL 2 A falta de clareza entrava a Justiça, daí a importância de um estudante do curso de Direito saber se expressar claramente. Este tipo de problema também alonga reuniões, rouba tempo, compromete concursos, faz distorcer interesses de um contrato, beneficia as pessoas erradas, prejudica aqueles que não merecem. Uma frase, e por conseguinte um texto, perde a clareza por diversos fatores que vão desde a má organização das ideias até os erros ortográficos, de pontuação, etc. É importante que uma coisa fique bem evidente: ser claro demanda esforço, portanto aquele que não se preocupa em ser claro obviamente não se preocupa com o receptor da mensagem, e como já falamos nas aulas anteriores, isto é um problema muito grave, afinal, quando paro para escrever um texto a primeira coisa que tenho que me perguntar é “quem é o meu leitor?”. A partir daí é que construirei minha argumentação. A linguística textual mostrou que os sentidos se formam no conjunto da enunciação, na composição da coesão e da coerência, nos inúmeros significados configurados na nossa memória. A maneira com que organizamos AULA 08 PORTUGUÊS INSTRUMENTAL 3 aquilo que vamos dizer define o significado de nossa mensagem. É interessante perceber que sempre há uma intensão por trás desta organização, pois como afirma Bakhtin1: a língua não conserva mais formas e palavras neutras “que não pertencem a ninguém”, ela “torna-se como que esparsa, penetrada de intenções, totalmente acentuada”. Para a consciência que vive nela, a língua não é um sistema abstrato de formas normativas, porém uma opinião plurilíngue concreta sobre o mundo. Todas as palavras evocam uma profissão, um gênero, uma tendência, um partido, uma obra determinada, uma pessoa definida, uma geração, uma idade, um dia, uma hora. Cada palavra evoca um contexto ou contextos, nos quais ela viveu na sua vida socialmente tensa, todas as palavras e formas são povoadas de intenções. O problema é que nem sempre conseguimos corresponder às nossas próprias intenções, as quais provavelmente foram planejadas, este problema ocorre porque muitas vezes não somos claros o suficiente naquilo que queríamos comunicar, ou seja, não organizamos de forma adequada aquilo que estava em nossa memória. Sendo assim, podemos afirma que há clareza a ser cultivada até no primeiro rascunho da ideia inicial, que merece o mesmo cuidado que a escrita. 1 Questões de literatura e estética, p. 96. AULA 08 PORTUGUÊS INSTRUMENTAL 4 A clareza prévia é saber que o leitor também “lê” com a memória. Vejamos: ao terminarmos de ler um texto, é provável que não o tenhamos inteiro na mente, palavra por palavra. Tendemos a fazer pausas, para que nossa memória de curto prazo consiga fazer um resumo da que foi lido até ali. É com essa síntese mental que continuamos a leitura. Quando há frases muito longas, cheias de incisos (grupos de frases dentro de outras frases), de elementos intercalados, o nosso leitor sentirá muita dificuldade em saber qual é o momento certo de fazer uma pausa e tentar “resumir” tudo o que foi lido até ali. Sendo assim, quando maior for a frase mais dificuldade estamos impondo ao nosso receptor. Daí o grande problema das frases longas, muitos apostos e informações acumuladas, sobreposição de dados e números, enfim, é uma grande confusão de informações. Comunicar é compartilhar No momento de escrever um texto, temos que ter em mente que é preciso atenção a tudo o que atrapalhe a síntese mental do leitor. Alguns deste obstáculos são semânticos2 (relacionados ao sentido das palavras): 21 LING estudo sincrônico ou diacrônico da significação como parte dos sistemas das línguas naturais 2 LING num sistema linguístico, o componente do sentido das palavras e da interpretação das sentenças e dos enunciados 3 FIL LÓG teoria abstrata da significação ou da relação entre os signos e seus referentes (em oposição à AULA 08 PORTUGUÊS INSTRUMENTAL 5 palavras raras, gírias, jargões e formulações desconhecidas ou acessíveis com dificuldade. É o caso, por exemplo, do “juridiquês”, já comentado nas aulas anteriores. Para maior esclarecimento, leia o texto abaixo que foi publicado no jornal Gazeta Mercantil: Advogados infringem leis da gramática 16 de Setembro de 2008 Escrever é a arte de cortar palavras, já dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade. Essa máxima, no entanto, não é respeitada pela maioria dos advogados e magistrados brasileiros. Textos rebuscados, com citação de termos em latim e inglês, prolixos e redundantes são facilmente encontrados numa busca rápida pelos sites dos tribunais. Os advogados garantem que o juridiquês, termo usado para a linguagem jurídica, está com os dias contados. Enquanto isso não ocorre, leigos e até advogados recorrem ao velho e bom dicionário para decifrar o que os colegas escreveram. O advogado Leonardo Morato, do Veirano Advogados, que o diga. Mesmo exercendo a profissão há mais de dez anos, ele afirma que tem dificuldade em entender alguns textos, principalmente os que têm expressões em latim. "Como não estudei a língua (latina) na faculdade, muitas vezes tenho que recorrer ao dicionário", diz. A advogada Gisele de Lourdes Friso, do G. Friso Consultoria Jurídica, formada há dez anos, não teve latim na faculdade. Hoje, ela diz que somente em algumas palavras precisa buscar o sintaxe e à pragmática), e constituindo com estas uma semiótica 4 FILOL ciência que estuda a evolução do significado das palavras e de outros símbolos que servem à comunicação humana (Dicionário Houaiss) AULA 08 PORTUGUÊS INSTRUMENTAL 6 dicionário, mas reconhece a dificuldade. "Há muito tempo não tem aula de latim nas faculdades." Morato diz acreditar que tanto as expressões em latim quanto a linguagem mais rebuscada estão caindo em desuso. Mas reconhece que ainda há resistência. "Um termo bastante usado é o 'exception noum adimpleti contractus', que significa contrato não cumprido. Às vezes até é bom usar essas expressões, mas tentamos evitar." Para juízes, a simplificação dos textos pode representar mais agilidade na análisedo caso e, conseqüentemente, uma decisão mais rápida. "Quanto mais claro e conciso forem os textos, o resultado de um julgamento, por exemplo, será mais ágil e fácil", constata o juiz Fernando Mattos, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). Ele afirma que os textos jurídicos estão evoluindo. "Principalmente em juizados especiais vemos linguagens mais concisas." O advogado Marco Antônio Bevilaqua, do Demarest & Almeida, concorda. "Imagina usar a expressão em latim 'nemo venire contra factum proprium' (ninguém pode pleitear em Juízo contra os próprios atos), acho muito difícil alguém saber o que significa, a tradução deixa mais simples." Simplificação "Há uma tendência em simplificar e tornar os textos jurídicos mais claros", diz Bevilaqua. Para ele, a narração feita em petições (material entregue a juízes) está mudando para agilizar o trabalho dos magistrados. AULA 08 PORTUGUÊS INSTRUMENTAL 7 "Tudo é uma questão de tempo. As decisões têm que ser tomadas de forma mais rápida. E se o texto for simples, facilita o julgamento, por exemplo." "O advogado precisa saber usar períodos (frases) mais curtos", comenta o advogado Leonardo Corrêa, do Machado, Meyer, Sendacz e Opice. "Normalmente, quando escrevemos algum texto mostramos para os nossos estagiários do primeiro ano para ver se eles entendem", explica Corrêa. "A utilização (de termos em latim) é mais uma questão de tradição, não sendo uma necessidade", diz. Já o advogado Rodrigo M. Carneiro de Oliveira, do Pinheiro Neto , diz que alguns termos são necessários porque são ricos em conteúdo. "Como o texto tem que ser mais curto e direto, há expressões propícias direcionadas somente a magistrados. O erro mais comum, na verdade, é não haver uma adequação conforme o público", diz. Treinamento Treinar, periodicamente, os seus profissionais foi a saída encontrada por muitos escritórios para evitar o uso do juridiquês. Além de facilitar o julgamento, os próprios clientes (cada vez mais exigentes e com mais alternativa de bons profissionais no mercado) fizeram os advogados mudarem a postura e escrever de forma clara e objetiva. O Demarest & Almeida, por exemplo, treina periodicamente seus advogados com palestras sobre o uso do português jurídico (termos técnicos) e informações repassadas, por meio de memorando, sobre técnicas de narrativas. No Machado, Meyer a linguagem didática é treinada já com os AULA 08 PORTUGUÊS INSTRUMENTAL 8 estagiários. Para garantir uma linguagem mais simples e objetiva, o TozziniFreire tem uma diretoria técnica e contrata especialistas em linguagem para instruir seus advogados. Mas o sócio da banca, Fernando Serec, reconhece que ainda usa termos em latim. "O uso de expressões em latim podem simplificar petições, por exemplo." O presidente da Ajufe discorda. Para ele, não há necessidade de expressões em latim ou inglês (outro modismo adotado pelos advogados). "Não é verdade que o uso simplifica o texto ou a fala. É importante saber desde a faculdade, mas a tradução para o português é suficiente", finaliza Mattos. (Gazeta Mercantil/Caderno A - Pág. 10)(Fernanda Bompan) Além dos problemas de ordem semântica, temos também dificuldades relacionadas à sintaxe3, tais como: • Apostos que desarticulam a informação; • Uma frágil progressão de tópicos; • Acúmulo de elementos, ideias e conclusões na mesma frase; • Anacolutos (começar falando de uma coisa e terminar com outra diferente): “O advogado que não escreve o que diz, não é difícil prever situações de conflito no tribunal” 3 1 GRAM parte da gramática que estuda as palavras enquanto elementos de uma frase, as suas relações de concordância, de subordinação e de ordem 2 LING componente do sistema linguístico que determina as relações formais que interligam os constituintes da sentença, atribuindo-lhe uma estrutura 3 GRAM.GENER componente da gramática de uma língua que constitui a realização da gramática universal e que contém os princípios e regras que produzem as sentenças gramaticais dessa mesma língua, pela combinação de palavras e de elementos funcionais (tempo, concordância, afixos etc.) 4 qualquer conjunto de regras sintáticas 5 disposição harmoniosa de partes ou elementos 'organização, composição; tratado; construção gramatical' AULA 08 PORTUGUÊS INSTRUMENTAL 9 • Hipérbatos (interrupção de dois termos pela intromissão de um terceiro: “Aguenta a escola pública da privada uma concorrência desleal”, em vez de “A escola pública aguenta da privada uma concorrência desleal”. Outra preocupação importante que devemos ter é a busca pela informação compartilhada pelo leitor. O nosso receptor não tem obrigação (e muitas vezes, mesmo que quisesse, não conseguiria) de intuir aquilo que nós sabemos ou estamos pensando no momento em que nos comunicamos. Vale lembrar que aquilo que é óbvio para nós nem sempre é óbvio para o outro. É preciso, portanto, ordenar as ideias e os termos que compõem as orações (sujeito, predicado, complementos), ter cuidado na escolha das palavras (que elas sejam de domínio do leitor) e usá-las em construções sintáticas que sejam simples. O cantor e compositor Noel Rosa fez um brincadeira interessante com este jogo de palavras: HABEAS CORPUS (Noel Rosa / Orestes Barbosa) No tribunal da minha consciência O teu crime não tem apelação Debalde tu alegas inocência Mas não terás minha absolvição Os autos do processo da agonia Que me causaste em troca ao bem que fiz Correram lá naquela pretoria Na qual o coração foi o juiz AULA 08 PORTUGUÊS INSTRUMENTAL 10 Tu tens as agravantes da surpresa E também as da premeditação Mas na minh’alma tu não ficas presa Porque o teu caso é caso de expulsão Tu vais ser deportada do meu peito Porque teu crime encheu-me de pavor Talvez o habeas corpus da saudade Consinta o teu regresso ao meu amor Perceba que as palavras em negrito dão o tom “jurídico” da canção, que ao promover intertextualidade entre poesia e Direito, acaba criando uma obra de arte muito interessante. Enfim, o texto que é bem escrito, por princípio, não provoca dúvidas de preenchimento. Quando é necessário reler as frases para conseguir entender aquilo que se quer dizer, isto é um sinal de que o texto pode estar mal escrito. Clareza coerente A comunicação cotidiana nem sempre garante a interpretação direta, sem exigir outros sentidos que não o expresso no enunciado. Perceba que a frase “Renan Calheiros depôs sobre a corrupção no Senado”, apresenta mais de uma interpretação: “Ele depôs sobre quem? O Senado? Ou estava no Senado e depôs a si mesmo?”. O fato de o leitor conhecer o contexto (saber que Renan Calheiros foi processado) torna ainda mais evidente o caráter truncado da frase. AULA 08 PORTUGUÊS INSTRUMENTAL 11 O leitor atento consegue perceber se faltam alguns elementos e se aquela abordagem é adequada àquela situação comunicativa. Segundo Diana Guardiola, para um texto virar uma “unidade inegável de sentido”, um tecido em que as partes remetem umas às outras, deve haver relação entre o tema e as “sequências restantantes que predicam sobre ele”. Sendo assim,todos os blocos linguísticos devem manter referências ao tema que está sendo abordado, sem contradições ou saltos sem sentido, respeitando uma progressão lógica de ideias. O grande desafio é se colocar no lugar do receptor e imaginar como o seu texto será lido, para isso, é necessário que a linguagem seja adaptada, pois claro é o texto entendido da maneira mais imediata, sem perda de tempo. Como vimos anteriormente o interlocutor é também o autor da mensagem, então se o sujeito pretende ser compreendido é necessário que ele releia o próprio discurso e imagine como ele será recebido. É importante que você finja ser seu próprio leitor, para identificar as questões que ficaram de fora junto com o rascunho. O leitor ou ouvinte não deve passar pelas mesmas dificuldades que você passou ao ler o próprio texto original. AULA 08 PORTUGUÊS INSTRUMENTAL 12 Problemas de ambiguidades As questão relacionadas à clareza dependem do gênero textual que será utilizado. O duplo sentido num texto que não é literário, um texto oficial por exemplo, é considerado um erro gravíssimo. Já na poesia é considerado um aspecto positivo (como vimos na música citada acima). Mas às vezes um texto é pouco claro não por defeito de escrita, mas por interesse do emissor, ou seja, há casos que o texto é truncado propositalmente. Vejamos alguns exemplos: − Um chefe pode, de caso pensado, não ser claro sobre pontos que o incomodam no desempenho de um funcionário, só para evitar o confronto direito. − Uma exposição que possibilita mais de uma interpretação sobre certas metas de uma empresa pode traduzir, no fundo, o empenho de um chefe em engajar sua equipe − Um advogado que não é claro ao explicar seus procedimentos ao seu cliente, com objetivo de ocultar uma possível margem de erro em sua conduta. A falta de clareza vira falácia argumentativa quando uma definição é tão complicada quanto o próprio termo definido. Ocorre quando a explicação é mais complicada do que a dúvida em si. Numa frase como “Catalisar é provocar um processo enzimático”, a definição de “catalisar” não é explicada por “processo enzimático”. Sentenças assim, utilizadas em contratos, apólices e decisões judiciais, minam vários direitos. AULA 08 PORTUGUÊS INSTRUMENTAL 13 Quando não há interesse em ser claro, ou simplesmente não intenção de ser facilmente compreendido, descartando a clareza como valor textual, o leitor é quem mais sofre. Um interlocutor que seja interessado pode suportar um texto difícil, pois seu objetivo é compreender, adquirir nova informação. Mas nada justifica que se escrevam textos difíceis por mero “defeitos de escrita”, pois a maioria destes textos pomposos, considerados bonitos e que não são compreendidos, na verdade são apenas mal escritos. Quando emissor e receptor dominam as mesmas referências, pode-se ser econômico na comunicação, não há problemas que algumas informações fiquem implícitas já que sabemos que o outro irá compreendê-las de todo. Contudo, quando não há este domínio comum, deve-se traduzir, explicar, etc. Segundo Luiz Costa Pereira Junior, “um texto truncado pode ser, no fundo, sinal de falta de sinceridade. Escrever e falar com clareza é expor-se à avaliação alheia. Há quem escreva truncado como se usasse um escudo que, protetor, também o camufla. Nesses casos, o problema é antes de divã, ou de caráter, do que de redação”. Contudo, os maiores problemas relacionados à comunicação truncada ocorre por falta de prática e familiaridade com os gêneros textuais da nossa língua. Para este problema não há fórmula mágica, é necessário se debruçar sobre o texto e colocar-se no lugar do receptor até que a informação fique clara o suficiente. É um trabalho e tanto.
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