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ISSN 1981-1225 Dossiê Foucault N. 3 – dezembro 2006/março 2007 Organização: Margareth Rago & Adilton L. Martins 1 A Psicologia como disciplina da norma nos escritos de M. Foucault* Psychology as discipline of the norm in the writings of M. Foucault Kleber Prado Filho Doutor em Sociologia – FFLCH/USP Pós-doutorado em História – UNICAMP Professor Associado do Departamento de Psicologia – UFSC Correio eletrônico: kprado@brturbo.com.br Sabrina Trisotto Psicóloga, Mestre em Educação – UFSC Correio eletrônico: satrisotto@bol.com.br Resumo: Este texto busca traçar uma cartografia das relações de Michel Foucault com o campo das psicologias, tanto em termos biográficos, acadêmicos e de formação, como bibliográficos, de interesses temáticos. Pretende ainda aplicar a sua crítica em torno dos problemas da verdade e do sujeito aos domínios do conhecimento psicológico, quebrando alguns mitos construídos pelos manuais de história da psicologia. Esta cartografia mostra um campo de saber diverso onde concorrem várias psicologias em conflito, que se constitui nas fronteiras com outros domínios, caracterizando-se mais por seu caráter disciplinar do que por sua cientificidade, tornando visíveis suas práticas normalizadoras, a ponto de ser definida criticamente como “Psicologia: disciplina da norma”. Palavras-chave: Foucault – psicologia – normalização. * Este texto resulta da transcrição da conferência de abertura proferida pelo autor no “Iº Encontro de Psicologia da Região Centro-Sul do Paraná, em Irati, em 06/06/06. Kleber Prado Filho & Sabrina Trisotto A Psicologia como disciplina da norma nos escritos de M. Foucault 2 Abstract: This essay aims to trace a cartography of Michel Foucault’s relations with the field of psychologies, in biographic, academic and formative terms as well as bibliographic, of thematic interest. It also intends to apply his critics concerning the problems of the truth and the subject to the domains of psychological knowledge, breaking some myths built by manuals on the history of psychology. This cartography shows a diverse field of knowledge where many conflicting psychologies compete, that constitutes itself at the frontiers with other domains, being more characterized by its disciplinary aspects than its scientificity, making visible its normalizing practices to the point of being critically defined as “Psychology: discipline of the norm”. Key-words: Foucault – psychology – normalization. O tema que pretendo apresentar trata das relações de Michel Foucault com a psicologia e é parte de um trabalho que venho desenvolvendo junto ao Departamento de Psicologia da UFSC, ligado a um projeto de pesquisa que busca traçar uma arqueologia das Ciências Humanas conforme projeto formulado em As palavras e as coisas, partindo deste texto, porém não se restringindo a ele. Deste estudo um primeiro volume mapeando as relações de Foucault com as Ciências Humanas já está concluído, no ponto de ir para o prelo e neste momento estou trabalhando em outro volume, tratando das relações de Foucault com a psicologia, cujos resultados preliminares trago aqui em primeira mão. Esta é na verdade uma questão com a qual já havia me deparado a mais tempo, quando fazia meu doutorado na USP sobre a temática da subjetividade nos escritos de Foucault, e percebi que ele tem muito mais a ver com a Psicologia do que os próprios psicólogos conseguem perceber. Foi daí que surgiu a idéia de fazer uma leitura – uma ISSN 1981-1225 Dossiê Foucault N. 3 – dezembro 2006/março 2007 Organização: Margareth Rago & Adilton L. Martins 3 cartografia – das relações de Foucault com o campo das psicologias, mostrando uma proximidade marcante, notável desde muito cedo em sua vida, tanto em termos biográficos, quanto acadêmicos, de formação, ou bibliográficos, de interesses temáticos. Vejamos A primeira parte da biografia de Foucault mais conhecida no Brasil, publicada originalmente em 1989 por Didier Eribon e sugestivamente intitulada A psicologia nos infernos, mostra claramente estas ligações: concomitantemente a um período de intensas crises pessoais, já na passagem dos anos 1940 aos 1950 o jovem Foucault, ainda como estudante e depois de 1948 como filósofo formado, voltava sua atenção para estudos na área das ciências “psi” – psicologia, psiquiatria e psicanálise – aprofundando sua leitura de Freud, antes mesmo da sua aproximação com o pensamento nietzschiano, tão fundamental em suas reflexões, que irá se efetivar somente a partir de 1953. Mas é na época do seu exame de “agrégation” que este movimento fica mais claro: após a sua aprovação ele decide licenciar-se também em psicologia, o que acontece em 1949, contemporaneamente ao seu ingresso em um curso no Institut de Psychologie de Paris. É quando ele, segundo Eribon, aproxima-se de Daniel Lagache, psicólogo que irá exercer forte influência sobre ele nesta época, em termos dos seus interesses relativos à psicologia. O curso no Institut de Psychologie concedeu-lhe uma habilitação em psicologia patológica, instrumentalizando seu interesse em torno da aplicação de métodos e técnicas psicológicas. Kleber Prado Filho & Sabrina Trisotto A Psicologia como disciplina da norma nos escritos de M. Foucault 4 Neste momento ele está também se aproximando intelectualmente da “fenomenologia da percepção” de Merleau-Ponty e da “análise existencial” ou “psiquiatria fenomenológica” de Binswanger, além das idéias de Henry Ey, renomado psiquiatra à época, influências das quais virá a se afastar posteriormente. Acentua-se ainda neste período seu interesse prático por instituições fechadas, vindo ele a trabalhar como psicólogo no hospital Sainte-Anne, na condição de “estagiário”. A “Cronologia” publicada na abertura do I° volume da edição brasileira dos Ditos e escritos destaca as relações acadêmicas de Foucault com a Psicologia: sua licenciatura nesta disciplina em 1949, o diploma em psicopatologia em 1952 e o diploma em psicologia experimental em 1953, ambos obtidos no Institut da Psychologie de Paris, além de seus vínculos como professor auxiliar de psicologia na École Normale a partir de 1951 e como assistente de psicologia na Faculdade de Letras de Lille a partir de 1952, atividades que ele desenvolve até 1955, quando se retira da França. Também os interesses temáticos expressos na sua produção intelectual confirmam esta proximidade com a Psicologia e seus objetos. Não é acidental que seu primeiro livro, de 1954, tenha sido intitulado “Doença mental e Psicologia” e que três anos depois, em 1957, ele tenha publicado dois textos relativos à área: “A Psicologia de 1850 a 1950” – disponível no volume I da edição brasileira dos “Ditos e escritos” – e “La recherche scientifique et la psychologie”, sem versão em português, disponível no original francês do Dit et écrits, volume I. E o debate com a Psicologia continua ao longo dos anos 1960, 1970 e 1980: o ensaio de uma arqueologia da Psicologia em As palavras e as coisas, de 1966, a genealogia desta disciplina levada a efeito em Vigiar ISSN 1981-1225 Dossiê Foucault N. 3 – dezembro 2006/março 2007 Organização: Margareth Rago & Adilton L. Martins 5 e punir, de 1975, a proposta de traçar uma arqueologia da psicanálise, apresentada em A vontade de saber, de 1976; sem contar certa preferência por temas tradicionais das ciências psi: normalidade e loucura – História da loucura, sua tese de doutorado, de1961 – a questão da sexualidade – História da sexualidade I (1976), II e III (1984) – e a temática da subjetividade, que é o próprio objeto das diversas psicologias. Quanto à problematização da subjetividade deve-se destacar que, apesar de não haver um texto exclusivamente dedicado ao tema, constitui um eixo central em suas análises, correlativamente a uma análise das relações saber/poder. No entanto, mesmo constituindo tema central em suas análises a questão da subjetividade não se apresenta de forma afirmativa, apontando para uma “teoria psicológica” ou para uma “teoria do sujeito” nos escritos de Foucault, longe disso, na tradição da desconstrução nietzschiana, trata-se de uma crítica radical às habituais problematizações do sujeito – sujeito da razão, da consciência, da cognição, dos jogos de significação e sentido, mas também, sujeito do desejo e do inconsciente – e às próprias teorias ou “escolas psicológicas”, apontando não tanto para mais uma psicologia – uma proposta, um projeto de psicologia – quanto para uma contra-psicologia. Então, esta aproximação de Foucault com as psicologias deve ser tomada em termos de um instrumento de crítica e não como proposta de mais uma corrente da psicologia, ou mais uma escola psicológica. Este é o valor e o vetor de uma incursão nos domínios das psicologias a partir da perspectiva de M. Foucault, cujos vestígios de ligações passaremos a percorrer em alguns dos textos anteriormente referidos, Kleber Prado Filho & Sabrina Trisotto A Psicologia como disciplina da norma nos escritos de M. Foucault 6 nos quais ele trata diretamente do nascimento e da formação de um conhecimento de caráter psicológico na modernidade. Vestígios bibliográficos e temáticos dos anos 1950 Inicialmente, em seu primeiro livro Doença mental e psicologia, de 1954, ele defende a especificidade de abordagem de uma “medicina da mente” em relação a uma “medicina do corpo”, entendendo que estas disciplinas devem aplicar métodos distintos, assim como, submeter-se a diferentes critérios de cientificidade. Isto implica trabalhar com diferentes concepções – para além da problemática da saúde x doença e da conseqüente dicotomia normal x anormal – além de exigir o desenvolvimento de técnicas específicas para uma medicina da mente. Bem ao seu estilo, desmonta a noção naturalizante de “doença mental”, que centra suas causas no sujeito doente, na sua constituição, na sua história individual – doença mental como desvio da saúde, desvio da norma – remetendo este fenômeno às suas condições sociais de produção: à patologização (problematização histórica) das condutas desviantes. Posteriormente ele irá desenvolver estas idéias em seu doutorado – que resultará no livro História da Loucura – tratando da medicalização da loucura, entendendo que esta existe como problema social, muito antes da sua apropriação e aprisionamento pelo discurso psiquiátrico, quando passa a ser nomeada como “doença mental”. Em seu outro texto dos anos 1950 – “A psicologia de 1850 a 1950” (1957) – ele aborda a consolidação de algumas áreas: da medicina mental, da psicologia da educação, das organizações, dos grupos, ao longo da primeira metade do século passado, ressaltando que na sua ISSN 1981-1225 Dossiê Foucault N. 3 – dezembro 2006/março 2007 Organização: Margareth Rago & Adilton L. Martins 7 segunda metade as preocupações da psicologia estariam voltadas para os seus fundamentos, ou, para aquilo que funda e dá suporte aos seus conceitos e suas práticas. Considera que em seu nascimento o conhecimento psicológico encontra-se preso aos imperativos objetivistas da ciência clássica positivista, vindo a se firmar ao longo do século XX como “psicologia do normal e do adaptativo”, construindo toda uma tradição de familiaridade com práticas de normalização social. Neste momento ele já desnaturaliza a subjetividade, deslocando a sua constituição, de bases neurofisiológicas, para remetê-la às práticas discursivas, sociais e políticas, argumentando ainda que a psicologia precisa se afastar deste “preconceito da natureza” que contamina o pensamento moderno. No entanto, suas análises históricas quanto a estes discursos não mostram ainda a aplicação do olhar arqueológico que irá definir o tom metodológico de seus estudos ao longo dos anos 1960. Mas é particularmente a partir de dois textos, de diferentes momentos – As palavras e as coisas, de 1966, e Vigiar e punir, de 1975 – que emerge esta figura de saber caracterizada aqui como “Psicologia: disciplina da norma”. Em As palavras e as coisas, ele busca traçar uma história do nascimento da psicologia como disciplina do saber, centrando foco na disciplinarização da psicologia como ciência, sua transformação em saber disciplinado, sua disciplinarização e sujeição à forma ciência, apontando para o projeto de uma arqueologia da psicologia. Esta questão das “disciplinas” tal como se apresenta nos estudos de Foucault merece atenção: ela ganha destaque em Vigiar e punir, onde tem tratamento genealógico como técnica minuciosa de poder, mas já está Kleber Prado Filho & Sabrina Trisotto A Psicologia como disciplina da norma nos escritos de M. Foucault 8 presente em As palavras e as coisas, onde recebe tratamento arqueológico, como prática discursiva de demarcação de domínios de saber. Se na genealogia as disciplinas tomam como objetos e produzem os corpos dos indivíduos, na arqueologia elas produzem corpos de conhecimento. Desta perspectiva – arqueológica – a psicologia surge presa aos imperativos epistemológicos positivistas, como saber de fronteira, sem território próprio, formando-se nos interstícios da biologia com as ciências humanas e sociais, tomando métodos emprestados de outras ciências. É também caracterizada como saber que gira em torno do par “função x norma”, reafirmando sua vocação como “psicologia do normal”, que lida com “problemas de ajustamento”. Este conceito de “ajustamento” também merece atenção: ausente, hoje, do vocabulário psi, deve-se lembrar que durante muitos anos ao longo da primeira metade do século passado ele reinou soberano nos discursos psicológicos – basta ler um texto de psicologia clínica, do desenvolvimento ou da personalidade dos anos 1940, 1950, para notar que esta questão encontra-se não apenas presente, como constitui problema central nas relações do sujeito com os outros e dele consigo mesmo. Por tudo isso é saber duvidoso, com dificuldades para afirmar suas verdades, e saber perigoso, visto que pode contaminar de “psicologismo” um conhecimento ou um conceito, como resultado de uma exacerbação de perspectiva em termos de individualismo, isolamento do social e introspectivismo. É ainda perigoso, tendo em conta suas articulações com práticas sutis de poder. Em Vigiar e punir, entre outros projetos, ele busca traçar uma genealogia da psicologia, remetendo o nascimento das práticas ISSN 1981-1225 Dossiê Foucault N. 3 – dezembro 2006/março 2007 Organização: Margareth Rago & Adilton L. Martins 9 psicológicas não aos assépticos laboratórios de Wundt e James, mas às concretas relações de poder que têm lugar nos manicômios e prisões, organizações totais, de visibilidade e vigilância totais sobre as condutas dos sujeitos ali confinados, excluídos da sociabilidade “normal”. A figura do panóptico ocupa lugar de destaque nesta genealogia: conforme Foucault, este dispositivo arquitetônico, que materializa o ideal de vigilância do final do século XVIII, vale como laboratório de psicologia à medida que expõe o sujeito, o interno,a uma visibilidade exaustiva, induzindo nele a certeza de estar sendo vigiado – automatização e autonomização da vigilância no sujeito – produzindo efeitos de subjetividade e tornando possível a produção de um saber sobre os sujeitos, fundado na observação e no registro sistemáticos das suas condutas e comportamentos cotidianos. É quase desnecessário apontar a ligação de tais práticas com as reconhecidas técnicas psicológicas de observação e registro. Esta genealogia da psicologia trata centralmente da produção dos corpos e da subjetividade dos indivíduos pelas disciplinas e pela norma. A questão das disciplinas liga-se ao problema da “norma”, que merece atenção por suas implicações políticas. Etimologicamente o termo sugere a figura do “esquadro” – aquilo que não se inclina nem para a direita, nem para a esquerda, que se conserva no centro, a meio termo – derivando daí dois sentidos: designando o que é conforme aquilo que deve ser, e representando a moda e a média de uma amostragem. Modernamente o conceito ganha importância no campo da biologia e por conseqüência, nas ciências e práticas médicas, sendo importado para os domínios das Ciências Humanas no século XIX. Esta passagem da noção de norma do campo das ciências naturais para o território das Kleber Prado Filho & Sabrina Trisotto A Psicologia como disciplina da norma nos escritos de M. Foucault 10 ciências humanas, no entanto é problemática, uma vez que naturaliza e ancora no biológico uma questão que é na verdade uma construção histórica, da ordem dos juízos, dos enunciados e dos dispositivos. Nos domínios das ciências humanas o problema da norma sugere uma idéia reguladora, mais moral que científica, poder sutil de comparação entre indivíduos, legitimado em procedimentos supostamente científicos, que não apenas inclui ou exclui numa faixa de normalidade construída, marcando os desvios, como ainda reconduz ao centro os desviantes. Também esta figura do “indivíduo” merece atenção pelo problema histórico que contempla, tendo em conta que não somos “naturalmente” indivíduos, mas somos constituídos como tais – indivíduos do discurso liberal – e que a individualidade é uma forma histórica de existência, um modo de ser que não existia antes do moderno estatuto do indivíduo. O indivíduo é exatamente aquilo que está sendo produzido nos discursos modernos, em correlação com práticas de separação e normalização social. Também a racionalidade e a humanidade do sujeito moderno, mais que “atributos inerentes à natureza humana”, são construções históricas, figuras correlativas dos discursos racionalistas, humanistas, e das modernas cartas de direito. Aplica-se a mesma lógica às figuras do “cidadão” e da “cidadania”, correlativas da política do Estado de direito, e também à figura do “sujeito psicológico” ou, da própria “instância psicológica” – objeto da psicologia e campo de experiências do sujeito – que devem ser objeto de estranhamento, deixando como produções dos discursos e práticas de um tempo. Nossas modernas sociedades desenvolveram uma poderosa tecnologia política de produção de indivíduos, que aplica procedimentos ISSN 1981-1225 Dossiê Foucault N. 3 – dezembro 2006/março 2007 Organização: Margareth Rago & Adilton L. Martins 11 disciplinares, separando, individualizando, marcando e identificando os sujeitos, comparando-os e classificando-os entre si, remetendo-os a uma média construída para o seu grupo, demarcando limites e fronteiras, incluindo, excluindo, marcando e corrigindo os desvios, reconduzindo, ainda, à norma, procedendo assim uma “ortopedia da subjetividade”. Tal tecnologia encontra-se no cruzamento ou na articulação de dispositivos de identificação, sexualização e normalização social, que produzem indivíduos identificados como normais ou anormais tendo em conta preferências e elementos ligados às suas práticas sexuais. E o que as psicologias têm a ver com tudo isto? Têm tudo a ver, porque este é exatamente o universo das problematizações “psi”, em termos teóricos e práticos. A genealogia da psicologia proposta por Foucault denuncia imediatas decorrências das técnicas psi como práticas sutis de poder, com forte suporte científico, apoiadas num argumento de cientificidade. Basta um passeio pelos domínios da psicometria, com seus recursos à estatística, disciplina comparativa, com suas amostragens e “curvas normais” (seria coincidência?) – esta “matemática política”, conforme Foucault – para que a psicologia mostre-se como saber ao mesmo tempo normatizante e normalizador. Como ciência, ou como conjunto de saberes e práticas sobre o sujeito, ela tem o poder socialmente reconhecido de enunciar a subjetividade, dizer quem são os indivíduos, quem somos nós; no entanto, ela sempre nos enuncia como sujeitos da norma, remetidos a Kleber Prado Filho & Sabrina Trisotto A Psicologia como disciplina da norma nos escritos de M. Foucault 12 ela, comparativamente a outros sujeitos como nós, marcando e nomeando os desvios em termos de médias, curvas, condutas adequadas ou não, sancionadas ou não, quando não, patologizadas. Esta é a visibilidade social da psicologia, por exemplo, quanto emite laudos e pareceres atestando características, capacidades, responsabilidades e a própria normalidade dos sujeitos, técnica e documentação que serve de suporte a decisões familiares, médicas, escolares, de escolha e exercício profissional, servindo até mesmo de base para decisões jurídicas envolvendo a vida dos sujeitos. É neste sentido politicamente forte: psicologia, disciplina (de aplicação) da norma, o que sugere bem mais que as habituais críticas quanto ao lugar político da psicologia como instrumento auxiliar “do poder”, comprometido com a manutenção do status-quo. O que ganha visibilidade nesta crítica são suas práticas disciplinares e disciplinarizantes, suas ligações com o problema político da normalização (para além de qualquer laudo ou parecer “técnico”), e suas relações com os jogos dos dispositivos, para os quais oferece suporte de saber a práticas de separação, marcação, comparação, classificação e identificação dos indivíduos. E tais dispositivos de poder operam não apenas objetivações, como também produzem subjetivações, apontando para uma psicologização das relações de poder, à medida que desloca seu ponto de aplicação do corpo para a subjetividade, quando estas relações se tornam mais finas, mais subjetivantes e mais subjetivadas, o que coloca os saberes psi no centro da problemática política contemporânea. A respeito disto, esta passagem do texto de Foucault – “O sujeito e o poder” – originalmente publicado nos Estados Unidos por Dreyfus & ISSN 1981-1225 Dossiê Foucault N. 3 – dezembro 2006/março 2007 Organização: Margareth Rago & Adilton L. Martins 13 Rabinow, aponta para um certo jogo de resistência contra as atuais estratégias de governo – ao mesmo tempo totalizantes e individualizantes – que literalmente mantêm o indivíduo preso à sua identidade: Talvez o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos. Temos que imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos deste “duplo constrangimento” político, que é a simultânea individualização e totalização própria às estruturas do poder moderno. A conclusão seria que o problema político, ético, social e filosófico de nossos dias não consiste em tentar liberar o indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, porém nos liberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualização que a ela se liga. Temos quepromover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto há vários séculos (Foucault, 1995, p.239). Com esta citação – que fala por si mesma – encerro esta reflexão! Bibliografia FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. 1987(1). São Paulo, Martins Fontes. __________. Doença mental e psicologia. 1984. Rio de Janeiro, Tempo brasileiro. __________. “A psicologia de 1850 a 1950”. In: Coleção Ditos e escritos. Vol. I 1999. Manoel de Barros Motta (org.). Rio de Janeiro, Forense Universitária. __________. Vigiar e punir. 1987 (2). Petrópolis, Vozes. Kleber Prado Filho & Sabrina Trisotto A Psicologia como disciplina da norma nos escritos de M. Foucault 14 __________. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H. & RABINOW, P. M. Foucault: uma trajetória filosófica. 1995. Rio de Janeiro, Forense Universitária. Recebido em dezembro/2006. Aprovado em fevereiro/2007.
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