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50 EDUCAÇÃO INCLUSIVA: UMA IDEIA EM CONSTRUÇÃO Heloisa Souza Ferreira Universidade Federal do Espírito Santo Resumo: Esse trabalho assume a perspectiva de que a educação inclusiva é um processo em construção, não existindo um conceito inacabado do que viria a ser a sociedade inclusiva. De fato, o que existe são pessoas comprometidas com a inclusão e que estão trabalhando para que ela aconteça. Nesse sentido, o presente estudo dirigiu seu olhar para os entraves que são enfrentados para a efetivação de uma sociedade inclusiva, sobretudo no que diz respeito ao âmbito escolar, como o preconceito, a falta de informação da sociedade e a falta de formação dos profissionais da área da educação. Palavras-chave: Exclusão; Inclusão; Preconceito; Estigmatização; Informação. Introdução A educação inclusiva é uma temática que vem sendo discutida mundialmente nos últimos anos, sobretudo após a Declaração de Salamanca,1 em 1994. Atualmente alguns países apresentam políticas mais definidas sobre a inclusão, embora outros ainda se encontrem em um processo de formulação de suas políticas públicas a respeito da ideia de uma sociedade inclusiva. Em nossa opinião, consideramos esta declaração um marco e um avanço nas discussões acerca da inclusão, sobretudo no âmbito escolar que é nossa área de análise. No âmbito da educação, a busca de uma escola que atendesse a todos foi documentada pela primeira vez em 1979, no México, embora tenha sido a Declaração de Salamanca que oficializara o termo inclusão. Apesar dos avanços na discussão, consideramos que ainda não existe um consenso, tampouco uma ideia acabada do que viria a ser uma sociedade inclusiva; diante dessa constatação, neste trabalho defendemos que a educação inclusiva é uma prática que ainda está sendo construída, e que o “longo caminho” a ser percorrido para chegarmos à inclusão ainda não foi encontrado. De antemão, a complexidade do tema nos deixa entrever que o caminho é difícil, dada as complexidades que o envolvem como preconceitos, desconhecimento e polêmicas sobre as deficiências. A inclusão escolar causa medo, repulsa, incertezas e inseguranças, sobretudo em recém-licenciados que não possuem experiência e nenhuma formação a respeito da escola inclusiva. Por esse motivo, por fazer parte dessa lista de recém-licenciados inexperientes no que tange a educação inclusiva, e movidos pela curiosidade e necessidade de se interar sobre a temática é que nasceu esse trabalho. Nosso objetivo é que ele sirva como uma interpretação e apenas mais um olhar sobre a inclusão. Nosso objetivo se voltou para discutir questões como preconceito, falta de informação, competitividade e exclusão, sendo 1 A Declaração de Salamanca trata dos Princípios, Política e Prática em Educação Especial. Trata-se de uma resolução das Nações Unidas adotada em Assembléia Geral, a qual apresenta os Procedimentos-Padrões das Nações Unidas para a Equalização de Oportunidades para Pessoas Portadoras de Deficiências. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001393/139394por.pdf>. Revista FACEVV | Vila Velha | Número 4 | Jan./Jun. 2010 | p. 50-58 51 importante salientar que essa discussão não procurou uma resposta sobre o ato de incluir; o que pretendemos foi pensar a inclusão e como ela é realizada no âmbito escolar. Utilizamos entrevistas com profissionais que exercem ou exerceram a docência e que têm ou tiveram alguma experiência em trabalhar com crianças com necessidades especiais. Essas entrevistas foram conduzidas com o objetivo de formar um corpo documental para um trabalho posterior, optamos pelo mínimo de interferência possível no depoimento dos entrevistados, ou seja, seguimos um conjunto de questões estruturadas previamente definidas, porém num contexto muito semelhante a uma conversa informal, a fim de garantir uma maior liberdade dos entrevistados, deixando aflorar questões espontâneas sobre suas vivências. Algumas entrevistas foram realizadas em escolas, das quais já conhecíamos alguns profissionais, outras entrevistas ocorreram por indicação dos entrevistados, que conheciam pessoas que já haviam trabalhado com a temática em questão. Além disso, também aproveitamos como fonte secundária os relatos contidos no livro intitulado Ninguém mais vai ser bonzinho na sociedade inclusiva,2 este livro possui uma coletânea de depoimentos de pais de filhos ditos deficientes, e também de “deficientes” que mandaram seu depoimento para a autora relatando suas experiências, ademais buscamos o aporte de literaturas que discutem a temática proposta. Porque incluir? “O termo inclusão já traz implícito a ideia de exclusão, pois só é possível incluir alguém que já foi excluído. Desse modo, a inclusão está respaldada na dialética inclusão/exclusão”. (PEREIRA, disponível em: www.profala.com acesso em 10 fev. 2010). “A sociedade, em todas as culturas, atravessou diversas fases no que se refere às práticas sociais excludentes. Ela começou praticando a exclusão social de pessoas que, por causa de suas condições atípicas, não lhe pareciam pertencer à maioria da população” (SASSAKI, 2002, p. 16) Nesse sentindo, a busca por um padrão de normalidade justificou ao longo dos séculos a exclusão de determinadas parcelas da população que não se encaixavam nesse padrão. “Historicamente sabemos que as diferentes sociedades sempre tiveram grandes dificuldades para aceitar e lidar com as diferenças impostas pela deficiência. Além disso, as relações sociais estão marcadas por determinadas concepções de homem, de mundo, de sociedade, as quais se caracterizam, muitas vezes, pelo discurso hegemônico de uma sociedade num determinado momento histórico”. (PASOLINI, 2008, p. 31) “A deficiência é destacada da normalidade pelo recorte que é feito em função de algum critério”. (SKLIAR, 1999, p. 48). Os que fogem a esse padrão de normalidade estabelecido pela sociedade se tornam estigmatizados e excluídos devido sua diferença. “Apesar de todas as provas em contrário, a crença consoladora de que os seres humanos, não apenas como indivíduos, mas também como grupos, normalmente agem de maneira racional conserva ainda uma intensa força na percepção das relações intergrupais”. (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 36). A busca incessante por esse ideal de razão é bem exposto e satirizado por Machado de Assis em seu livro intitulado O alienista,3 publicado em 1882. O livro tem como centro temático o problema da loucura, cujo personagem principal da obra é um médico que realiza uma procura insistente de um padrão de norma e conduta com base nas verdades de sua ciência, e nessa busca incessante ele acaba por criar 2 WERNECK, Claudia. Ninguém mais vai ser bonzinho, na sociedade inclusiva. Rio de Janeiro: WVA, 2000. 3 ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: Ática, 1995. Revista FACEVV | Vila Velha | Número 4 | Jan./Jun. 2010 | p. 50-58 52 um hospício a fim de abrigar todos que não se enquadram nesse padrão de normalidade; ao final do livro o alienista percebe que 4/5 de toda a cidade se encontra enclausurado na casa verde (hospício). Simão Bacamarte (o alienista) perseguiu a “razão” até na hora de escolher a esposa, que como adverte o personagem principal não era nem bonita e nem simpática, mas que reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, e que, portanto seria capaz de lhe dar filhos robustos e sadios, e isso era o que importava. Para o médico, a razão era o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora disso tudo era insânia. Ao findar da obra, o alienista se encontra em uma situação conflitante: “[...] Mas deveras estariam eles doidos, e foram curados por mim, - ou o que pareceu cura não foi maisdo que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?” (ASSIS, 1995, p. 148) Com isso, o alienista conclui que não havia loucos em Itaguaí (cidade onde se desenrola o enredo), e ele próprio se recolhe a casa verde para se entregar aos estudos e a cura de si mesmo. Nesta obra, Machado nos enumera vários problemas, dentre eles o fato de que o médico, ao perseguir uma pretensa verdade baseada na ciência e na utilização da razão acaba ele mesmo por se tornar um alienado, adjetivo que dá nome a obra. Além disso, podemos concluir que não existia uma normalidade, não existia um padrão, pois o alienista enxergava anormalidade em todos os habitantes de sua cidade e ao querer excluir todos os considerados anormais, acabou por se tornar um solitário na cidade, fato que demonstrou que não existia iguais naquela sociedade, todos possuíam as sua diferenças. “Assim, ao falar das diferenças em educação, seria interessante não fazermos nenhuma referência à distinção entre “nós” e “eles”, nem inferirmos relação ou condição da aceitabilidade acerca do outro e dos outros. A diferença sexual, de geração, de corpo, de raça, de gênero, de idade, de língua, de classe social, de etnia, de religiosidade, de comunidade, etc, envolve a todos e determina que tudo é diferença. E não há, deste modo, alguma coisa que não seja diferença, alguma coisa que possa deixar de ser diferença, alguma coisa que possa ser o contrário, o oposto das diferenças “(SKLIAR, 2006, p. 30) As instituições como asilos, manicômios e escolas de ensino especial existem até os dias atuais, promovendo a exclusão de pessoas que fogem da “normalidade” pretendida pela sociedade. E, embora atualmente haja uma discussão sobre a extinção dessas entidades segregacionistas e sobre os malefícios que segregar traz para a sociedade, ainda é muito forte em nossa sociedade a exclusão. Sobretudo, devido às exigências naturalmente impostas pelo sistema capitalista. E como lembra Freitas: “a situação que se configura em razão do processo de internacionalização da economia e de supremacia dos interesses humanos tem contribuído para a constituição de valores e sentimentos nada construtivos, como o individualismo, a intolerância e a exclusão”. (FREITAS, 2006, p. 169). “A designação da diferença, o estatuto que é conferido aos seus portadores, seja por mecanismos reconhecidos como científicos, seja no nível do senso comum, desencadeiam no processo de discriminação social do “outro”, o “diferente”, desviante dos processos normais de um determinado tipo de sociedade um indivíduo não normal, não normativo” (TOMASINI, 2009, p. 114). Dentro desse breve contexto exposto, percebemos que a exclusão de pessoas com alguma deficiência é milenar, e que a proposta de uma sociedade inclusiva vem na contramão de todo esse processo de exclusão que a humanidade praticou por muitos anos. Então, porque incluir? A inclusão é uma questão de direitos legais, e de respeito as diferenças.A proposta de uma sociedade inclusiva não é um consenso, a sociedade sempre se habituou a afastar o diferente com o respaldo da ciência; com isso, Revista FACEVV | Vila Velha | Número 4 | Jan./Jun. 2010 | p. 50-58 53 foi perpetuando-se o preconceito e a ideia de que o deficiente era incapaz ou que não poderia conviver com os “normais”. Atualmente percebemos que existe um novo entendimento em relação ao deficiente (embora não seja uma unanimidade): a ideia é conviver com as diferenças, e não excluí-las. Entretanto, mudar (pré) conceitos, nos quais a mentalidade coletiva sempre se habituou é um processo muito lento e árduo, e assim a inclusão ainda vivencia muitas barreiras pela resistência das pessoas em aceitar o “diferente”. No que diz respeito ao âmbito escolar, as afirmações de Pasolini são bastante elucidativas a esse respeito, quando ele afirma que ainda hoje se tem a ideia de que a pessoa com necessidades educacionais especiais é um indivíduo que não atinge um maior grau de desenvolvimento intelectual. “De modo geral, parte-se do pressuposto de que seu desenvolvimento se caracteriza pela limitação. Assim, a limitação era e continua sendo a base construída sobre a vida dessas pessoas e, em termos educacionais, tais indivíduos nunca alcançavam maiores níveis de escolarização” (PASOLINI, 2008, p. 100). “A realidade sócio-cultural excludente, na qual os alunos se encontram em um contexto educacional em que as práticas são homogeneizantes e a referência ao “aluno-padrão” e “modelo” são muito presentes e orientadoras das organizações de ensino, tem se consistido em um grande entrave para a implementação da proposta da inclusão escolar. Outro aspecto a ser considerado é o papel do professor, pois é difícil repensar sobre o que estamos habituados a fazer; além do mais a escola está estruturada para trabalhar com a homogeneidade e nunca com a diversidade” (PASOLINI, 2008, p. 100-104). Mas, o que vem a ser inclusão? Consideramos a discussão em torno da inclusão como algo ainda muito recente. Por isso, defendemos a ideia de que a inclusão está num processo de construção, numa mescla de sonhos, realidades e expectativas. Para Romeu Sassaki ”inclusão social é o processo pelo qual a sociedade se adapta para poder incluir em seus sistemas gerais pessoas com necessidades especiais; simultaneamente estas se preparam para assumir seu papel na sociedade. Os praticantes da inclusão se baseiam no modelo social da deficiência. A sociedade é que precisa ser capaz de atender as necessidades de seus membros.” (SASSAKI, 2002, p. 41). Consoante Pasolini, “inclusão é um movimento, uma prática que tem como princípio a luta contra todos os tipos de discriminação, pautada em uma filosofia de valorização e respeito à diversidade. Assim, na implementação de uma educação inclusiva faz-se necessário buscar uma escola que ofereça educação de qualidade para todos os alunos, ou seja, acomodar estilos, ritmos de aprendizagem, independentemente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, linguísticas ou outras, levando em consideração o contexto sócio-cultural em que os sujeitos estão inseridos” (PASOLINI, 2008, p. 14). Na conclusão dos estudos empreendidos por Freitas “a inclusão significa a modificação da sociedade como pré-requisito para a pessoa com necessidades especiais buscar seu desenvolvimento e exercer sua cidadania. O princípio fundamental da escola ou ensino inclusivo é que todos os alunos, sempre que possível, devem aprender juntos – independentemente de suas dificuldades ou talentos” (FREITAS, 2006, p. 167). Os esforços de definição que foram supracitados são apenas exemplos das mais variadas opiniões existentes sobre a inclusão. Com isso, o objetivo dessa primeira parte do trabalho foi demonstrar que a sociedade tem um histórico milenar de exclusão fruto da mentalidade que perpassa cada época, Revista FACEVV | Vila Velha | Número 4 | Jan./Jun. 2010 | p. 50-58 54 inclusive respaldada pela ciência, fato que justifica esse preconceito enraizado até os dias atuais; e que recentemente surgiu um novo paradigma chamado inclusão, em oposição a essa mentalidade que perdurou por muito tempo, sendo que as bases para essa nova proposta de sociedade já estão sendo lançadas através do esforço de muitas pessoas que acreditam numa sociedade melhor. Desse modo, por ser uma discussão ainda muito recente, estamos apenas trilhando o caminho para alcançar a inclusão, mas ela já é uma realidade. Preconceito: a face cruel da exclusão4 “Na sociedade inclusiva ninguém é bonzinho. Ao contrário, somos apenas – e isto é o suficiente – cidadãos responsáveis pela qualidade de vida do nosso semelhante, por mais diferenteque ele seja ou nos pareça ser” (WERNECK, 2000, p. 21). Com esse trecho a autora critica a forma piedosa com a qual a sociedade costuma tratar os deficientes, a bondade que fere com a sutileza. O livro do qual retiramos o trecho acima denomina-se: Ninguém mais vai ser bonzinho na sociedade inclusiva . E nós contrapomos chamando atenção para o fato de que ninguém nunca foi “bonzinho” na sociedade exclusiva.5 É notório que a autora Cláudia Werneck utiliza o termo bonzinho com uma conotação diferente, mas o que desejamos é chamar a atenção para as barreiras que o preconceito coloca para a construção de uma sociedade/educação inclusiva e ainda a crueldade enfrentada pelos deficientes e as pessoas próximas a eles. Para tal empreitada utilizaremos algumas entrevistas e, sobretudo, os depoimentos contidos no livro já citado. O que percebemos na maioria dos relatos é que para os pais é muito difícil optar por uma escola regular, quando pensam na possibilidade de aversão que os seus filhos podem enfrentar. Esse foi o caso da jornalista Liana John, mãe de quatro filhos e um com síndrome de down. Nem eu nem meu marido suportaríamos ver o Daniel ser chamado de retardado, ou fazer o papel do bobo, quem sabe até sem ter condições de responder. Este é um risco real em qualquer escola regular, por melhores que sejam as intenções dos educadores em controlar o preconceito e patrocinar a inclusão. Tal preocupação nos fez balançar entre a educação especial e a educação inclusiva. Numa escola especial o Daniel estaria entre iguais. Os apelidos e brigas ainda apareceriam, mas poderiam ser revidados em pé de igualdade [...]. (JOHN In WERNECK, 2000, p. 87) O receio da mãe de Daniel é vivido por muitas outras mães de filhos especiais, que temem o preconceito que seus filhos possam enfrentar. No entanto, quando entrevistamos uma fonoaudióloga 4 Nesta parte do trabalho discutiremos o preconceito com a “deficiência”. Utilizaremos como fonte as entrevistas realizadas para essa pesquisa com profissionais que já tiveram alguma experiência com a educação inclusiva, ou que já sofreram algum tipo de preconceito. As entrevistas foram pautadas por perguntas pré – selecionadas, porém optamos por um mínimo de interferência possível na fala dos entrevistados, deixando que eles fossem contando sobre as suas trajetórias e vivências. Além disso, utilizamos os depoimentos publicados por Claudia Werneck Sodré, em seu livro intitulado: Ninguém mais vai ser bonzinho na sociedade inclusiva. Os depoimentos que forem retirados do livro da supracitada autora virão separados do corpo do texto, os demais são depoimentos das entrevistas que realizamos. Em relação aos nossos entrevistados optamos por uma preservação de seus nomes, e utilizamos letras distintas para distinguir os depoimentos. Sendo importante salientar que as entrevistas nos oferece dados subjetivos, pois se relacionam com valores, atitudes e opiniões dos sujeitos entrevistados. Nesse sentido, pautamos nossa pesquisa na análise desses conteúdos fornecidos pelos participantes. 5 O termo sociedade exclusiva foi utilizado aqui, apenas para dar sentido a ideia que queremos passar, desconhecemos a utilização desse termo como um conceito. Utilizamos a palavra exclusivo, no sentido de estarmos lidando com uma sociedade exclusiva para normais. Revista FACEVV | Vila Velha | Número 4 | Jan./Jun. 2010 | p. 50-58 55 que trabalha há dois anos numa APAE, ela foi categórica ao dizer que “a criança não tem preconceito”. A professora “A” também compartilha dessa opinião. Segundo ela, principalmente na fase inicial da educação básica, as crianças não apresentam preconceito, elas aceitam melhor o diferente do que o adulto, fato também relatado pela professora “B”, que no ano passado teve uma experiência com uma aluna com problemas de nervo e mentais. Quando foi perguntando a ela sobre o tratamento das crianças ditas “normais” em relação a essa criança com necessidades especiais, ela nos respondeu que: “eles tratavam ela normal, brigavam com ela, riam dela, mas nunca rejeitaram fazer trabalho com ela e quando ela estava ‘atacada’ todos entendiam a necessidade dela, inclusive eles me advertiam sobre o horário dos remédios dela”. Talvez o que tenha feito toda a diferença na escola de “B” é que quando os alunos entraram houve uma conversa explicando a eles as necessidades de “I”, e todo aluno que chegava também era advertido sobre a “diferença” da colega. A professora contou que “I” fazia muitas coisas para chamar atenção, e que às vezes jogava tintas na cabeça e nos braços, e que a sala ficava eufórica, as crianças riam e ela fazia ainda mais, para perpetuar o riso deles. O que notamos é que as crianças não riam por ser “I” uma criança “deficiente”, mas porque “I” motiva- lhes a rir com suas travessuras, assim como eles ririam de qualquer outra criança que fizesse o mesmo. Quanto aos apelidos, eles surgem com qualquer criança, com o magro, com o gordo, com o que usa óculos, com o negro, com o albino, etc. Mas é óbvio que a mãe de Daniel não estava errada em imaginar que o filho poderia sofrer represálias e apelidos mais cruéis do que os demais até porque convivemos numa sociedade preconceituosa e algumas crianças aprendem o preconceito em casa. O interessante na escola de “B” é que houve uma preparação para que os alunos recebessem “I”. De certa forma, a escola estava atendendo ao princípio da inclusão de que a sociedade é que deve se preparar para receber o (d)eficiente e não o contrário. Nesse sentido, pensamos que um bom início de caminho para uma escola inclusiva seria preparar as crianças para receber o “coleguinha diferente”, e mais: preparar os próprios pais dessas crianças, já que muitas vezes o preconceito não é da criança, mas sim das informações que ela recebe em casa. Como afirma Werneck, “quem desde cedo aprende a lidar com a informação pratica a verdadeira prevenção da deficiência; e prevenção da deficiência não necessariamente pressupõe evitar a deficiência, mas sim lidar com ela.” (WERNECK, 2000, p. 226). Os estudos de Claudia Werneck São esclarecedores para o desenrolar deste trabalho; para a autora, “a única forma eficaz de combater o preconceito é impedindo que ele se instale ainda na infância. A atitude dos adultos é o estopim do preconceito, pois é impossível acabar com o preconceito na idade adulta. O preconceito não vem apenas da falta de informação, ele surge basicamente do que ela chama de falta de formação. A falta de formação origina o preconceito” (WERNECK, 2000, 134-139). “A criança não discrimina a diferença; quer apenas olhar, experimentar a brincadeira daquele amigo, ver de que jeito ele leva a vida. Aos poucos, pela impossibilidade de que o adulto lhe coloca de ter as vivências desejadas ele começa a evitar, a rejeitar o novo. O novo em vez de gerar curiosidade, desencadeia o medo, a ameaça, o risco. Assim, acabamos de fabricar mais um cidadão pela metade. O cidadão pela metade será um profissional despreparado, violará pequenos e grandes direitos das pessoas com deficiência e talvez morra sem perceber isso. Quem anda ao seu lado na rua é tão pela metade quanto ele. O cidadão pela metade invariavelmente é casado com um cidadão pela metade”. (WERNECK, 2000, p. 140) Nesse sentido, acreditamos que a entrada de crianças como Daniel em escolas regulares contribuiria para a formação de nossos futuros cidadãos, na medida em que as Revista FACEVV | Vila Velha | Número 4 | Jan./Jun. 2010 | p. 50-58 56 crianças iam recebendo desde cedo a (in)fomação necessária para se tornarem adultos por inteiro. 6 “F” é deficiente visual e casada com um deficiente visual; é professora aposentada, cursou magistério e possui curso de graduação em Educação Especialfeito no Estado do Rio de Janeiro, que era o local mais próximo que ela encontrou que oferecia essa formação. Trabalhou 20 anos com Educação Especial na instituição União de Cegos Dom Pedro II, também atuou na secretaria de educação do Estado do Espírito Santo, no Subnúcleo Regional de Educação e também como professora de escola regular dando aulas para turmas da 1º série até a 8° série. De acordo com sua experiência, “F” definiu a criança como transparente: segundo ela a criança não faz rodeios e pergunta o que quer perguntar, diferente do adulto. Ela diz que quando sai com seu marido as crianças olham, perguntam, pegam na bengala e uma vez uma criança, filha de sua amiga, ao visitar sua casa, percorreu toda a casa observando tudo e que no fim disse: “tia, a sua casa é igual a de todo mundo né?” A criança achou que por ela ter a visão quase toda comprometida e o marido ser cego que sua casa deveria ser diferente. “F” nos contou que adora essa postura da criança, e que quando a criança pergunta e tem a resposta ela fica satisfeita, e que os adultos geralmente repreendem seus filhos quando estes estão curiosos pelas causas da deficiência, o que não deveriam, pois a criança pergunta não por preconceito, mas porque tem desejo da informação. “F” disse que não se incomoda com nenhuma pessoa que lhe faça perguntas sobre sua deficiência, muito pelo contrário; ela só não permite que as pessoas uma vez já informadas persistam nas perguntas ou nos preconceitos. Por isso, acredita que no âmbito escolar os deficientes só sofreriam preconceitos, caso fosse negado as crianças ditas “normais” as informações de que elas necessitam sobre a deficiência e sobre o colega diferente. Ela acredita que as reações que as crianças têm ao colega “diferente” no sentido dos apelidos e do tratamento é o mesmo com os colegas ditos “normais”. “F” diz que o adulto prefere não expressar suas curiosidades com as palavras, mas sempre o faz com o olhar ou com a fala, porém sem a objetividade da criança, e que muitas vezes, por já ter conceitos pré- formados ou que não foram esclarecidos na infância, agem preconceituosamente. Ela conta que quando seu primeiro filho nasceu, as visitas eram intensas e que ela percebia que as pessoas durante as visitas tentavam verificar se o neném tinha nascido normal e que a maioria a perguntava; ela disse que não se sentiu ofendida e que foi uma oportunidade interessante de explicar para as pessoas que sua deficiência visual não era hereditária e nem tampouco a do seu marido. A filha de “F” é disléxica, e quando começou o seu processo de alfabetização, foi uma dificuldade tremenda, não compreendia o porque ela tinha dificuldades e após consultas foi constatada a dislexia. Ao relatar o caso para a professora, esta recomendou que a tirasse da escola, e que futuramente ensinasse a ela uma atividade como corte costura, fazer salgados ou manicure, afirmando que não era porque ela não aprendia que futuramente ela não poderia ter uma profissão. A resposta de “F”, a professora foi que quando a filha dela crescesse ela decidiria se gostaria de executar alguma dessas funções por ela sugerida, mas que não é porque a pessoa opta por exercer atividades manuais que ela não pode ser estudada, que muito pelo contrário. E que ela não levaria a mal a fala da professora, porque ela entendia essa sugestão dela como uma ignorância (no sentido de desconhecimento), mas que ela não tiraria a filha da escola, e que ela teria que “engolir” a menina, caso ela não aceitasse. A atitude de “F” foi correta, pois atualmente sua filha cursa o terceiro ano do ensino médio, e consegue acompanhar o ensino regular, mas o que percebemos é que talvez se essa sugestão fosse dada a uma mãe sem muitos esclarecimentos ela não teria a mesma atitude que “F”, até porque uma pessoa com 6 Fazendo uma alusão ao termo adulto pela metade utilizado pela autora Cláudia Werneck. Revista FACEVV | Vila Velha | Número 4 | Jan./Jun. 2010 | p. 50-58 57 pouca instrução, ouvindo esse conselho de um profissional que teoricamente é bem informado, acaba por acreditar, além de desconhecer a dislexia a professora ainda se mostrou preconceituosa em relação as atividades manuais. A questão do preconceito é tão profunda e tão séria na nossa sociedade que encontramos os próprios familiares de deficientes mal informados e com atitudes totalmente preconceituosas. Por isso, gostaríamos de chamar atenção para a necessidade de uma formação urgente para as crianças em idade escolar, e sobretudo para pessoas que lidam com deficientes, pois quanto mais bem informadas essas pessoas estiverem, maior será a chance de obterem o tratamento adequado de que precisam. A fonoaudióloga “D”, que sempre trabalhou com crianças com necessidades especiais nos contou que desde a época de sua formação na faculdade ela foi alvo de preconceitos por parte de pais que rejeitavam a sua cor. Com o seu primeiro paciente, era realizado um tipo de atendimento feito por duas estudantes, ela e uma colega de turma que era branca; ao longo das sessões ela foi percebendo que a mãe do paciente só se dirigia a sua colega e ignorava a sua presença e que o paciente não estava até então respondendo as sessões, já que este não estava fazendo uso do medicamento por questões financeiras. Em uma das sessões quando “D” saiu do consultório a mãe do paciente se dirigiu a sua companheira e disse que o menino não estava respondendo ao tratamento porque ele não gostava de “pretos” e que, portanto a presença de “D” dificultava o tratamento do menino. Diante do acontecido, a direção da faculdade deixou que “D” optasse se continuaria ou não no caso, inclusive dando a opção de “D” escolher se esse paciente continuaria sendo atendido pelo programa da faculdade, que inclusive é endereçado a pessoas carentes. A opção dela foi que ele seria o seu primeiro desafio e que ele seria entregue por ela nas mãos da mãe e falando, já que o menino quando adentrou no programa não pronunciava sequer uma só palavra. No fim do tratamento o menino respondeu da forma esperada, além da medicação ter sido comprada através de uma ajuda de “D” e os seus colegas de turma. Esse exemplo é uma amostra da ignorância de muitos adultos; o menino nem sequer falava e a mãe já atribuía o preconceito a ele, um preconceito que claramente vinha dela. E ficamos pensando: e se caso “D” opinasse pela exclusão dessa criança do programa? O preconceito é tão arraigado que se torna por vez inconsciente; imagine o caso dessa mãe que tantos olhares piedosos e preconceituosos já deve ter recebido em virtude do filho, e mesmo assim retribui com práticas que perpetuam o preconceito na sociedade. Esses exemplos confirmam a nossa percepção de que muitas vezes o preconceito da criança tem origem na família e nas pessoas com que elas convivem. Conclusão Embora, muitos tabus tenham sido quebrados em relação ao deficiente, existem instituições que ainda perpetuam o preconceito e a “bondade”, práticas rejeitadas numa concepção inclusiva. Por não entendermos a deficiência, tratamos o deficiente como um estranho, ou como alguém que tem todas as habilidades supridas. O preconceito é o pior entrave para o desenvolvimento de uma pessoa deficiente; a forma como a sociedade enxerga e trata o portador de necessidades especiais podem influenciar profundamente na sua conduta e na sua forma de encarar a vida. É como se ter uma necessidade especial facultasse Revista FACEVV | Vila Velha | Número 4 | Jan./Jun. 2010 | p. 50-58 58 todas as outras capacidades do indivíduo. A sociedade contemporânea ignora o deficiente, trata o como um ser invisível, às vezes por não saber que tipo de reação deve demonstrar para não parecer preconceituosoe ora por já está no inconsciente mesmo a imagem que o deficiente é um humano “nulo”. Acreditamos que seria muito útil se a mídia assumisse um papel social no que diz respeito a sociedade inclusiva; o nível de influência da mídia é muito alto e ela pode desmistificar ideias e ajudar a formar uma imagem positiva do deficiente. Percebemos o quanto a transmissão das paraolimpíadas é produtiva para a quebra de preconceitos e acreditamos que essa atitude já é um início de um pensar diferente; a ideia de superação advinda com o esporte demonstra o quanto os deficientes lidam com uma superação diária e chama atenção da sociedade para essas pessoas portadoras de deficiência. Referências: ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: Ática, 1995. ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L. 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