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Análise de Madame Bovary

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“Madame Bovary” e “A sociologia e o mundo moderno”
	Madame Bovary, romance de Flaubert, foi escrito em 1857, meados do século XIX, época que, não por acaso, abriga também o nascimento da sociologia enquanto ciência. Emma Bovary é, portanto, retrato da mulher – burguesa – de uma época em que as mudanças na configuração social da França, principalmente, fizeram necessário um estudo mais aprofundado dessa nova sociedade que emergia, dando à luz a sociologia como a conhecemos hoje. 
	Em primeira análise, podemos encarar Emma Bovary como burguesa: a burguesia tomava forma e se delineava enquanto classe, inspirando-se, ao mesmo tempo, na aristocracia que depôs a menos de um século, na Revolução do final do século anterior. Assim, a personagem seria a personificação dessa burguesia que se delineava, fortalecia e deslumbrava com a vida capitalista: é evidente a mudança no comportamento de Emma a partir do baile ao qual é convidada. 
Em contato com a vida da mais alta sociedade, em meio à alta cultura, Emma não se sente apenas encantada: ela se vê, também, diminuída em sua vida pequeno-burguesa, fora da cidade, casada com um homem que não amava e que não era capaz de a corresponder intelectualmente. É a sociedade sobre a qual a sociologia se debruça, de acordo com Ianni, as “relações sociais entre personalidades-statu, organização contratual na maioria dos círculos sociais”. O mundo torna-se, subitamente, vasto, interessante e agitado, tudo aquilo que a vida de Emma, naquele momento, não era. É aí que ela decide que necessita de uma mudança, mergulha em um universo artificialemente luxuoso, contraindo dívidas para que fosse aquilo que, enquanto mulher, lhe era permitido; se enquanto mulher ainda não poderia, no século XIX, se empoderar, poderia, ao menos, ser alguma coisa, mesmo que um potiche. A beleza era, então, a única qualidade permitida e acessível.
	Partimos, então, para uma segunda – e mais interessante - análise de Emma Bovary: não apenas como burguesa, mas como mulher. Entramos, com isso, em outro aspecto do texto de Ianni: o da mudança de valores. O rápido progresso da ciência e a consolidação do pensamento racional, elogiado pelos iluministas e intelectuais, deu início não apenas a um processo não apenas de “desencantamento do mundo”, ou seja, ao uso da razão sobre o mito, mas, também, a um processo de libertação do mundo espiritual. A religião e seus tabus passam a ser menos relevantes na medida em que o homem se vê senhor de si mesmo, capaz de confrontar o mundo com suas próprias armas. Assim, não é difícil compreender não apenas por quê Flaubert se sentiu minimamente confortável para escrever uma história que trata abertamente de adultério feminino como por quê Emma se sentiu minimamente confortável para cometê-lo. Apesar de ainda em uma sociedade extremamente conservadora – nota-se que o romance rendeu a Flaubert um processo por imoralidade -, o maior entrave para a libertação feminina estava em vias de ser dissolvido: a moralidade religiosa e as imposições da Igreja às mulheres.
	Em outros tempos, madame Bovary poderia se submeter às regras sociais e eclesiásticas impostas sobre seu corpo a partir da convenção do casamento. Uma mulher infeliz em seu matrimônio deveria se manter fiel a ele – mesmo que o contrário não se aplicasse e se aplique aos homens -, se resignando a uma vida de subserviência, submissão e tédio nas tarefas domésticas. Mas Emma não seguiu este caminho. Seja porque sua personalidade não comportava uma vida sem estímulo intelectual – nota-se que ela se envolveu apenas com homens que, ao contrário de seu marido, possuíam grande cultura – em sua vida conjugal, seja porque o medo da punição divina não fosse mais suficiente para sufocar seu desejo, ela cometeu adultério seguidas vezes. Ela desejava e foi atrás de sua própria libertação.
	Contudo, como aponta Ianni, a liberdade e a libertação – sobretudo quando tratamos de mulheres – eram noções falsas. “Sob a aparência de autonomia da liberdade, escondia-se a solidão niilista”. A busca hedonista de Emma evidencia sua insatisfação interior. Ao longo do filme, ela nunca é plenamente sanada, seja por desamor ou por desconfiança, após ser traída pelo homem que amava. Interiormente, Emma estava sozinha, apesar de acompanhada em um casamento e sexualmente realizada em um adultério de sucesso, e é por essa falta de perspectiva de felicidade, evidente na sua incapacidade de ter a vida luxuosa que queria, que ela decide se matar. A dependência de Emma de seus homens, seja afetivamente, seja financeiramente, determinou sua incapacidade de auto-realização. Apesar de acompanhada, madame Bovary era apenas uma mulher em um mundo de homens.
Maria Raphaela

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