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Das elites para o mundo Historiadores discutem os caminhos tortuosos da quaresma e do chocolate Bernardo Camara 29/4/2009 Em pleno século 16, a Igreja bateu o martelo: “Liquidum non franzit jejunum” (“Líquido não quebra jejum”). Aparentemente boba, a decisão foi recebida com festa pelos fiéis. É que na época, o chocolate – consumido como bebida – já tinha arrebatado multidões pela Europa. Pelo jeito, nem o papa queria abrir mão da iguaria. O encontro “Chocolate: um doce pecado” ocorreu no dia 28 de abril, às 16h, no auditório da Biblioteca Nacional. A conversa enveredou por assuntos como páscoa, carnaval, chocolate e catolicismo. Parte da série “Biblioteca Fazendo História” de 2009, que acontece mensalmente no local, o evento contou com a participação de Enríque Rentería, professor de História e Gastronomia da PUC-Rio, e da historiadora da UFF, Georgina Santos. A Igreja passava por maus bocados nessa época. Com a contrarreforma ganhando terreno, o catolicismo precisava fazer concessões para garantir seus fiéis. A liberação do “doce pecado” em plena quaresma fazia parte dessa estratégia. Mas como lembra Georgina, os missionários ainda tinham muito trabalho pela frente, principalmente nos trópicos. “A quaresma é um período de privações, remete ao dia-a-dia de trabalho, desânimo”, sublinhou. E disso, os colonizados estavam cheios. A historiadora observa que, por aqui, sempre existiu um embate entre as tradições popular e eclesiástica: o carnaval, invariavelmente, sufocava as tentativas de recolhimento propostas para os 40 dias que antecedem a páscoa. A princípio, a Igreja tentou brecar a folia desenfreada. Durante os dias de entrudo – o ancestral do nosso carnaval – ela estipulou a adoração ao Santíssimo Sacramento. Em vão. “Na colônia, a predisposição para o carnaval falou mais alto”, brincou Georgina, que escreveu um artigo sobre o assunto para a Revista de História de abril. Em meio à dificuldade de se estabelecer uma rigidez eclesiástica nas ruas, as procissões religiosas conseguiram o feito de introduzir um calendário religioso no Brasil. Mesmo assim, elas não aconteciam exatamente como o clero previa, e acabavam dividindo espaço com uma bagunça aqui e ali. “A vivência do catolicismo colonial foi marcada entre o sagrado e o profano. Foi uma combinação dessas duas experiências”, definiu Georgina, acrescentando que a Igreja teve de aceitar essa ambigüidade: “A história do catolicismo foi toda marcada por negociações, concessões com as culturas com as quais se deparou”. Das elites para o mundo - Revista de História http://www.revistadehistoria.com.br/secao/report... 1 de 2 01-06-2014 21:18 Publicar no Facebook Publicar no Twitter Manjar dos deuses Após a abordagem histórico-religiosa da professora, Enrique Rentería retomou os passos do cacau, desde o consumo pelos astecas à paixão pelos europeus. Em cada lugar que passou, a fruta deixou um rastro de prestígio. Segundo o historiador, não demorou para que o chocolate ganhasse novos atributos, de afrodisíaco a fonte de energia. “A ideia de que o chocolate desperta a sexualidade correu séculos. Além disso, ele também era usado por soldados, em batalhas, para ficarem mais fortes. Na Segunda Guerra, foi muito consumido pelos americanos”, comentou. O fascínio pelo alimento era tamanho que, séculos atrás, já era usado em cerimônias religiosas, banquetes de elites e como moeda de troca. Enrique contou que os astecas tiveram de estipular algumas regras de punição, pois a falsificação de grãos do cacau começava a correr solta. “Desde cedo o cacau era muito precioso. Era considerado um alimento dos deuses”. Mas apesar do apelo divino, o manjar também gerou incidentes. O professor contou a história de um bispo inglês do século 16, que se irritou com algumas mulheres que freqüentavam sua missa. O motivo: elas não largavam a xícara de chocolate ao longo da cerimônia. Após reclamar algumas vezes sem sucesso, pregou uma placa na porta da igreja, proibindo a degustação no interior dela. As mulheres sumiram e, tempos depois, o bispo apareceu morto. Tomou chocolate envenenado. Enrique também falou das transformações do chocolate com o passar dos séculos. E notou que hoje, seu consumo é muito mais democrático. “Até o século 19, era bebida de elite. A industrialização deu abertura para o consumo pelo resto da população”, explicou. De lá para cá, os métodos de preparação mudaram. E cada país guardou seu jeito peculiar de servir a iguaria. Com a separação da União Ibérica, por exemplo, Portugal e Espanha também se afastaram na forma de confeitar o alimento. Quem sabe os dois países não se reencontram na confecção dos tradicionais ovos de páscoa? O próximo encontro do "Biblioteca Fazendo História" acontece no dia 26 de maio, terça-feira. A abordagem será em cima de João Cândido, que no início do século 20 liderou a Revolta da Chibata. Das elites para o mundo - Revista de História http://www.revistadehistoria.com.br/secao/report... 2 de 2 01-06-2014 21:18