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Autora: Profa. Maria Alice Carnevalli Colaboradores: Profa. Silmara Maria Machado Prof. Nonato Assis de Miranda Profa. Renata Viana de Barros Thomé História do Pensamento Filosófico Professora conteudista: Maria Alice Carnevalli Maria Alice Carnevalli é paulistana. Doutora e Mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, na área de concentração em Jornalismo, além de bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo e Rádio/TV pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, bacharel em Letras (inglês/português) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e também licenciada em Letras pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Atualmente, é professora titular da UNIP, já tendo completado dez anos de docência em nível de graduação e de pós-graduação em instituições de ensino como Universidade Lusófona, Uninove, Faculdades Integradas Rio Branco, ministrando várias disciplinas nas áreas de comunicação, ciências sociais e filosofia. Além de professora universitária, também é jornalista da Hífen Comunicação Empresarial, onde assumiu em 1998 o cargo de redatora-chefe da coluna semanal, da revista e do site Sala do empresário. Também foi sócia-diretora da produtora de vídeo TTI-Tecnologia Texto Imagem e roteirista da TV Cultura, da Fundação Padre Anchieta. Tem publicado vários artigos em diversas áreas das ciências humanas: LOPES, D. F.; SOBRINHO, J. C.; PROENÇA, J. L. (orgs.) Notícias Populares. In: Edição em jornalismo impresso. São Paulo: Edicon, 1998. LIBERAL, M. M. C. (coord. e org.) Telejornalismo: a construção da ética imaginária. In: A ética a serviço da comunicação. São Paulo: Altamira Editorial, 2009. MARQUES, S. Prefácio. In: Hispaninismo e erotismo no cinema de Luis Buñuel. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2010. Por toda essa vivência profissional e acadêmica e também pela ampla visão da sociedade atual, foi selecionada para redigir este livro-texto sobre a história da filosofia, tendo em vista que suas aulas, gravadas nos estúdios da UNIP Interativa, estão relacionadas a esse campo de estudo. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C289h Carnevalli, Maria Alice História do pensamento filosófico / Maria Alice Carnevalli. - São Paulo: Editora Sol, 2011. 112 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XVII, n. 2-047/11, ISSN 1517-9230. 1. Filosofia 2. História 3. Cultura grega I. Título CDU 1 (091) Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Cid Santos Gesteira (UFBA) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Andréia Andrade Sumário História do Pensamento Filosófico APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 TEOGONIA VERSUS LOGOS .............................................................................................................................9 1.1 O conhecimento mítico ..................................................................................................................... 10 1.1.1 A história nos mostra que a filosofia é um produto da cultura grega ..............................11 2 A DIFUSÃO DA CULTURA GREGA .............................................................................................................. 12 2.1 O surgimento da filosofia ................................................................................................................. 15 2.2 Heráclito de Éfeso (mobilismo) e Parmênides (imobilismo) ................................................ 16 3 A TRÍADE GREGA ............................................................................................................................................. 17 3.1 Sócrates .................................................................................................................................................... 17 3.2 Platão ........................................................................................................................................................ 22 3.3 Aristóteles ................................................................................................................................................ 25 4 A FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA .................................................................................................................. 28 4.1 A Patrística .............................................................................................................................................. 30 4.1.1 A filosofia de Agostinho ....................................................................................................................... 31 4.2 A Escolástica ........................................................................................................................................... 34 4.2.1 O pensamento de Tomás de Aquino ............................................................................................... 36 Unidade II 5 A FILOSOFIA MODERNA ................................................................................................................................ 51 6 RENÉ DESCARTES: O RACIONALISMO ..................................................................................................... 52 6.1 David Hume: o empirismo ................................................................................................................ 56 6.2 Immanuel Kant: o apriorismo e o conhecimento ................................................................... 60 6.3 Hegel: o idealismo alemão ............................................................................................................... 64 6.4 Marx: o materialismo histórico ...................................................................................................... 66 6.5 Augusto Comte: o positivismo ........................................................................................................71 7 A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA ................................................................................................................ 74 7.1 Conhecimento e ciência .................................................................................................................... 76 7.2 Nietzsche: revolução e conhecimento ......................................................................................... 77 7.3 Freud: os enigmas do inconsciente ...............................................................................................80 7.4 Sartre: o existencialista ...................................................................................................................... 84 7.5 Michel Foucault: conhecimento e biopolítica .......................................................................... 87 8 QUESTÕES ATUAIS EM FILOSOFIA ............................................................................................................. 89 7 APRESENTAÇÃO Esta disciplina tem como objetivo geral contribuir para a compreensão dos princípios da Sociologia como forma de conhecimento que se transformou em campo científico. Trata-se de apresentar sua origem, seu desenvolvimento e sua especificidade, visando possibilitar o desenvolvimento de habilidades que permitam compreender a vida cotidiana e os conceitos específicos dessa ciência. Objetivos – Levar os alunos a compreender a vida em sociedade como fonte inesgotável de mudanças que podem ser orientadas de acordo com objetivos pessoais e de grupos. – Entender o conhecimento filosófico compreendendo seus principais conceitos e possibilidades de aplicação à realidade. – Tomar consciência dos aspectos importantes da vida humana e da realidade a qual se manifesta. – Desenvolver uma visão filosófica do mundo. – Assumir um comprometimento para com a realidade em que vive. INTRODUÇÃO Este livro-texto tem por finalidade servir como suporte didático para que as aulas sejam amparadas por um conteúdo teórico-didádico e de fácil compreensão e acesso para os alunos. Foi dividido em duas unidades básicas, para melhor expor o longo percurso do pensamento filosófico ocidental, desde os primeiros pensadores da Grécia Antiga até os estudiosos da pós-modernidade. A Unidade I, dividida em quatro capítulos, mostra não só como surgiu, mas também a evolução da filosofia até a Era Moderna, marcada por acontecimentos históricos como a Revolução Francesa e a Revolução Industrial na Inglaterra, que trouxeram novas contribuições para a formação do homem como sujeito individual e coletivo. Já a Unidade II tem por objetivo mostrar a essência de filósofos que procuraram e ainda procuram compreender como a humanidade vem se transformando e se comportando no que diz respeito à origem da sua existência, uma vez que a relação entre passado, presente e futuro vem se configurando de forma inédita, cabendo aos filósofos contemporâneos dar conta dessa nova dinâmica entre espaço e tempo provocada pelos avanços tecnológicos, assim como a noção de identidade e de progresso, que se encontram em total indefinição de sentidos, pois não existem mais grandes projetos para o planeta como havia nos séculos anteriores, quando se atribuía ao conhecimento científico e ao racionalismo a solução para todos os problemas e conflitos. Dessa forma, esse apanhado geral do pensamento filosófico é capaz de introduzir o aluno no universo de indagações que sempre nortearam o rumo do pensamento humano sobre sua própria condição, fornecendo subsídios para uma compreensão linear dessa trajetória, bem como dos nomes 8 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 mais representativos de cada época. Nesse sentido, é preciso ressaltar que estudar filosofia não se trata simplesmente de entender os princípios básicos de mais uma disciplina; mas sim, por intermédio dessas diversas interpretações do homem em sua perspectiva, tomar consciência das infinitas possibilidades de reconhecer a si mesmo e os demais a partir de um mergulho no contexto pleno de um pensamento profundo sobre a complexidade da condição humana. 9 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Unidade I 1 TEOGONIA VERSUS LOGOS Qual o sentido da existência? De onde viemos e para onde vamos? Certamente, você já deve ter se debatido com essas questões existenciais em algum momento da vida. O mais interessante, porém, é saber que, desde que o ser humano tornou-se pensante e consciente da sua própria condição no mundo, muitos foram os estudiosos que buscaram não uma resposta derradeira para essas perguntas, mas sim explicar as perspectivas e os princípios éticos, morais e religiosos que regem a trajetória do homem na face da Terra. Para tentar entender seu papel, primeiramente surgiu a Teogonia, que vem do grego theos, deus, + genea, origem, considerada como um grupo de deuses que constituíram a mitologia desses povos. Nesse sentido, os primeiros pensadores foram os pré-socráticos da Escola Jônica, dividida em Escola Jônica Antiga (Tales, Anaximandro e Anaxímenes) e Escola Jônica Nova (Heráclito, Empédocles, Anaxágoras). No entanto, eles se preocupavam apenas com o elemento principal da constituição de tudo aquilo que havia sem dar muita importância às causas das transformações. Para Tales, por exemplo, o elemento primitivo era a água, que ele dizia ser divina; para Anaximandro era o indefinido, e para Anaxímenes, o ar. Já os pensadores da Escola Jônica Nova levantaram o problema das causas que surgem das transformações no elemento primitivo, cuja origem não seria teológica, ou seja, explicada pelos mitos. Nesse sentido, Heráclito firmou dois princípios contrários em ação, que ele chamava de guerra e paz. Ao supor que o elemento primordial fosse o fogo, essas duas forças antagônicas o transformavam tanto na direção da solidificação quanto na condição de retorno ao estado móvel do fogo. De forma diferente, Empédocles denominou quatro elementos (fogo, ar, água e terra), e as duas forças contrárias eram o amor e o ódio. Figura 1 10 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 Anaxágoras de Colófon foi o último dos grandes jônios e partiu para Atenas, onde foi o filósofo do século de Péricles. Ele não admitiu o dualismo dos contrários, estabelecendo uma multiplicidade de partículas semelhantes que seriam movimentadas e ordenadas por uma delas, considerada inteligente, e por isso chamada de Nous ou Logos. A partir dessa premissa, ele desenvolveu a ideia de um Deus exterior ao mundo humano. O Logos, portanto, é algo entre as outras coisas e não exatamente um Deus. Trata-se, ainda assim, de uma preocupação inteligente e atuante com a causa. A partir desse momento, encaminhava-se o assunto para a discussão da existência de um Deus concebido pela filosofia. Apesar de renegar a mitologia, Anaxágoras deu início à discussão metafísica sobre a divindade, inserida no contexto de causa. 1.1 O conhecimento mítico Nas eras primordiais da civilização humana, o homem era nômade, ou seja, deslocava-se de forma permanente, sempre acompanhando rios e águas e colhendo alimentos onde estes estavam disponíveis. Há cerca de dez mil anos, ele passou a fixar-se em determinados locais e aprendeu a desenvolver meios para a subsistência, como a agricultura, a pecuária e a cerâmica. Com isso, passou a se preocupar mais com questões que, antes, por causa da sua condição rudimentar, não o incomodavam muito. Esse período foi chamado de Revolução Verde, pois os primeiros questionamentos surgiram como resultado da vontade de conhecer os mistérios da condição humana, bem como encontrar um meio de explicar os fenômenos naturais. Mesmo sendo impossível responder às perguntas sobre o conhecimento de seus antepassados, o homem criou a mitologia para tentar compreender sua existência de forma racional, embora dentro da limitação, das questões primordiais. Nesse sentido, o mito apresenta características inerentes, como a religiosidade e a fantasia, sem jamais deixar de ser racional, pois se trata de uma grande atividade intelectual humana. Prometeu, por exemplo,é o caso de um semideus que levou o fogo do Olimpo para o domínio do homem, sendo condenado pelos deuses gregos a ter o fígado devorado diariamente por uma ave de rapina, preso a um penhasco. Para agravar seu sofrimento, o órgão se regenerava imediatamente, para que fosse devorado de forma perpétua. Assim, o homem justificava como havia conseguido descobrir o fogo e a utilizá-lo para evoluir, espantando o frio, os medos e as feras à noite, além de cozinhar alimentos e criar peças de cerâmica. Ainda nos dias atuais, vários mitos persistem na vida dos habitantes das regiões rurais, com o intuito de explicar os fenômenos da natureza. A importância do pensamento mítico e da mitologia na perspectiva histórica da filosofia passa então a ser o início de um pensamento mais exigente por respostas que viriam a ser reconhecidas como filosofia na fase seguinte da evolução do pensamento humano, a Fase Cosmológica, protagonizada pelos filósofos pré-socráticos. Se compreendermos o pensamento filosófico como forma de conceber a existência humana, seria possível atestar que ela sempre se fez presente, uma vez que busca satisfazer a curiosidade do homem, que procura sem cessar um motivo para explicar os mistérios da vida. Nesse sentido, todos os povos, incluindo os mais primitivos, tinham, e ainda têm, uma maneira diferenciada de encarar o mundo. No entanto, se a questão consiste em conferir à filosofia um significado próprio, atribuído a uma atividade humana que se depara com o real, é preciso admitir que ela não teve seu espaço garantido em todas as culturas antigas. 11 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO 1.1.1 A história nos mostra que a filosofia é um produto da cultura grega Apesar de a filosofia grega ter começado nas colônias, onde havia um intenso contato com outros povos, existe um questionamento se ela não seria produto de filosofias orientais, de outras civilizações. Por essa razão, existem duas correntes que se preocupam em demarcar essas influências. A primeira delas considera a filosofia oriunda da Grécia como o resultado da influência cultural dessas outras civilizações. Já a segunda, concebe a filosofia grega como um pensamento original e independente de qualquer cultura estrangeira. Atualmente, a resposta mais adequada seria a combinação de ambas as correntes, uma vez que a filosofia grega não pode ser compreendida apenas como o resultado das interferências de outros povos; mas também não ficou alheia ao contato com elas. Por isso mesmo, é possível afirmar que se instaurou na Grécia uma conduta humana de caráter mais racional, responsável pelo surgimento da filosofia típica do povo daquele país. Portanto, ao contrário de outras culturas, os gregos não restringiram sua visão de mundo a uma atividade prática ou mesmo a uma crença, pois conseguiram de fato estabelecer um rigor filosófico. Além disso, existe a questão da influência religiosa no desenvolvimento da filosofia grega, que teve sua origem nas colônias, onde não havia tanta presença da religiosidade como na Grécia Peninsular. Porém, não é apenas esse fator que justifica o surgimento da filosofia nessas regiões, uma vez que os habitantes tinham que viver mais por conta própria, o que acabou incentivando a coragem intelectual. Foi assim que se deu a passagem da racionalidade mítica para um modo de pensar o mundo mais racional, pois o desprendimento intelectual fez com que o homem desses locais meditasse sobre a razão que está contida no mito, criando assim a filosofia baseada nessas reflexões existenciais. De forma crescente, os pré-socráticos adquirem maior importância para os filósofos da atualidade, assim por meio das várias vertentes dos seus pensamentos, que tantos séculos depois ainda trazem novas luzes para a filosofia. Estes são os principais aspectos dos primeiros filósofos, denominados de físicos ou pré-socráticos: • resposta à pergunta: o que existe? Para a qual a resposta é: as coisas existem. • de que são feitas as coisas? Cada filósofo pré-socrático encontrou uma resposta diferente, na busca do elemento fundamental constitutivo de todas as coisas. Nesse cenário histórico e cultural, nasceu Tales, na cidade de Mileto. Ele ficou conhecido como o primeiro filósofo grego, pois deixou o legado do seu pensamento, que deu início à filosofia ocidental. Entretanto, muito pouco é conhecido sobre suas ideias, sendo provável que nunca as tenha registrado em livro. Aristóteles deu a Tales o mérito de ter sido o fundador da filosofia e lembrou sua doutrina de que “a água é o elemento primordial de todas as coisas e que a terra flutua sobre a água”. O que diferencia Tales dos demais pensadores da época é que ele soube transformar conhecimentos práticos em teóricos. Nesse sentido, é essa diferença entre conhecer o que é observado e procurar entender aquilo que se conhece que distingue o filósofo dos demais seres humanos, e foi por esse motivo que foi conferido a Tales o status de filósofo. Seu discípulo e sucessor, Anaximandro de Muleto, desenvolveu as doutrinas 12 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 de seu mestre. Para ele, o princípio de tudo é o ilimitado (apeiron), o que dá origem a uma unidade primordial, da qual nascem todas as coisas do universo e a qual elas retornam. Portanto, deve haver um princípio anterior que possibilita compreender tudo que é limitado por meio do ilimitado, de onde surgem vários mundos, o que estabelece a multiplicidade. Já Pitágoras nasceu no ano 570 a.C., na Ilha de Samos, próximo da cidade de Mileto. Por ser curioso e habilidoso, foi o primeiro filósofo grego a sugerir que a origem de todas as coisas, quer dizer, o ser em si, não é coisa alguma. Portanto, trata-se de algo inacessível aos sentidos humanos: os números. Para esse filósofo, a essência, em última instância, de tudo aquilo que percebemos pelos sentidos está no número, pois as coisas são números e escondem números em si, além de se distinguirem umas das outras por diferenças quantitativas e numéricas. Também foi ele quem descobriu a oitava, a quinta e a sétima notas musicais, por meio da observação numérica. Há, ainda, o famoso Teorema de Pitágoras: a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa. Figura 2 – Pitágoras 2 A DIFUSÃO DA CULTURA GREGA O termo Grécia Antiga é largamente usado para descrever, em seu período clássico antigo, o mundo grego e áreas próximas, como a Ilha de Chipre, a Anatólia, o sul da Itália, da França e a costa do Mar Egeu, além de assentamentos gregos no litoral de outros países, como o Egito. Não há uma data específica ou até mesmo um acordo com relação ao período em que teve início e terminou a Grécia Antiga. Costuma-se situá-la antes do Império Romano, mas os historiadores empregam o termo Grécia Antiga de modo mais preciso, abrangendo desde os primeiros Jogos Olímpicos, realizados em 776 a.C., até a morte de Alexandre, o Grande, em 323 a.C. O período seguinte é chamado de helenismo, com a difusão da cultura grega. Todas essas datas são convenções dos historiadores; no entanto, vários estudiosos consideram a Grécia Antiga como um período presente até o advento do 13 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO cristianismo, no terceiro século da era cristã. Do ponto de vista geográfico, o território ocupado pela antiga civilização grega não se identifica plenamente com a região da Grécia contemporânea, e também não existiu um estado politicamente unificado entre os gregos antigos. Localizado no sul da Península Balcânica,o território da Grécia Continental destaca-se pelo relevo montanhoso. A cordilheira dominante é a dos Montes Pindo, que separa a costa oriental, banhada pelo Mar Egeu, da costa ocidental, banhada pelo Mar Adriático. Na Grécia Central, entre o Golfo de Corinto e o Mar da Eubeia, situa-se a Beócia, cuja principal cidade na antiguidade era Tebas. Os Montes Citéron separavam a Beócia da Península da Ática, onde se encontram as cadeias do Himeto, do Pentélico e do Parnes. No Peloponeso, distinguiam-se também várias regiões. Ao centro, situa-se a Arcádia, uma planície rodeada por montanhas. A Lacônia situa-se na Região Sudeste, compreendendo o Vale do Rio Eurotas, delimitado a oeste pelo Monte Taígeto e a oriente pelo Monte Párnon. No sudoeste do Peloponeso, encontra-se a Messénia. História O povo grego originou-se de outros povos que migraram para a Península Balcânica em várias fases, começando no terceiro milênio a.C. Entre eles, merecem destaque os aqueus, os jônicos, os dóricos e os eólios, todos indo-arianos provenientes da Europa Oriental. As populações invasoras são, em geral, conhecidas como “helênicas”, pois sua organização de clãs fundamentava-se, no que concerne à mítica, na crença de que descendiam do herói Heleno, filho de Deucalião e de Pirra. A última das invasões foi a dos dóricos, no final do segundo milênio a.C. Divisão dos períodos • Pré-Homérico (1900-1100 a.C.) – anterior à formação do homem grego e da chegada cretense e fenícia. Nesse período, estavam se desenvolvendo as civilizações cretense ou minoica (Ilha de Creta) e micênica (continental). • Homérico (1100-700 a.C.) – tem início com a chegada de Homero, considerado um marco na história por suas obras, Odisseia e Ilíada. Essa fase deu início à ruralização e à formação de comunidades gentílicas (nas quais um ajuda o outro na produção e na colheita). Só plantavam o que seria consumido e, quando a terra não estava mais fértil, saíam em busca de novos locais. • Obscuro (1150-800 a.C.) – começa com chegada dos aqueus, dos dóricos, dos eólios e dos jônicos. Caracteriza-se pela formação dos génos e pela ausência da escrita. • Arcaico (800-500 a.C.) – destaque para a formação da pólis, para a colonização grega, para o aparecimento do alfabeto fonético, da arte e da literatura, incluindo o progresso econômico com a expansão da divisão do trabalho, do comércio, da indústria e do processo de urbanização, definindo a estrutura interna de cada cidade-estado. • Clássico (500-338 a.C.) – foi o período de maior esplendor da civilização grega. As duas cidades consideradas mais importantes foram Esparta e Atenas, além de Tebas, Corinto e Siracusa. Nessa fase, a história da Grécia é marcada por uma série de conflitos externos (Guerras Médicas) e interno (Guerra do Peloponeso). 14 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 • Helenístico (338-146 a.C.) – período de crise da pólis grega. Com a invasão macedônica, a expansão militar e cultural helenística, a civilização grega se difunde pelo Mediterrâneo e se mescla com outras culturas. O helenismo é um termo usado para demarcar o período histórico e cultural durante o qual a civilização grega se difundiu no mundo mediterrânico, no euro-asiático e no Oriente, misturando-se com a cultura local. Da união da cultura grega com as culturas da Ásia Menor, da Eurásia, da Ásia Central, da Síria, da África do Norte, da Fenícia, da Mesopotâmia, da Índia e do Irã, surgiu a civilização helenística, que obteve grande destaque do ponto de vista artístico, filosófico, religioso, econômico e científico. O helenismo se difundiu do Atlântico até o Rio Indo. Cronologicamente, desenvolveu-se da morte de Alexandre, o Grande, da Macedônia (323 a.C.) até 147 a.C., com a anexação da península grega e de ilhas por Roma. É interessante observar que boa parte do que os gregos criaram não era original, uma vez que herdaram muitos elementos das culturas dos cretenses e do Oriente Médio. Mesmo assim, conseguiram expressar na arte uma preocupação ímpar com a condição humana acima de todas as outras criações da natureza. Em comparação com as criações das civilizações do Oriente Médio, a arte grega era considerada relativamente simples, e foi essa característica a base da arte clássica. Devemos aos gregos a criação de quase todos os gêneros literários, de diferentes formas de expressão por meio da escrita. Além dos poemas homéricos, houve também o surgimento da poesia lírica. Já o teatro surgiu nas festas que se realizavam anualmente para homenagear Dionísio, o deus do vinho. Nessas festas, os gregos organizavam cortejos com pessoas fantasiadas com peles de cabra, chamadas de tragedis. Elas davam voltas ao redor do templo e dialogavam com o público. Assim nasceu a tragédia grega. No que se refere à comédia, podemos afirmar que ela colaborou para a educação popular, porque satirizava os defeitos dos representantes do poder público. Os gregos foram também os primeiros a se preocupar com a história, e Heródoto, o primeiro historiador, foi chamado de “pai da história”. Graças a ele, temos relatos de como era a vida grega durante o século V a.C. Os gregos se dedicaram ainda ao estudo das causas da saúde e das doenças, impulsionando o estudo da medicina. Hipócrates foi considerado o “pai da medicina”. Mas o grande legado dessa civilização foi ter dado origem à filosofia. Foi lá que surgiram os pensadores que se preocupavam em saber a origem e o destino da existência humana, como Sócrates, um ateniense que afirmava que a fonte da sabedoria está no próprio homem, Platão, discípulo de Sócrates, e Aristóteles, criador da lógica, um macedônio que foi professor de Alexandre Magno. Alexandre Magno foi um personagem histórico que deu origem a muitas lendas e mitos. Ele foi chamado de “o grande” pelas incríveis façanhas que realizou como rei e guerreiro e pela cultura que adquiriu ao longo de sua vida. Além de ser um excelente orador, tinha paixão pelos esportes. Depois de conquistar a Grécia e o Egito, Alexandre fundou a cidade de Alexandria, na desembocadura do Rio Nilo, em homenagem às suas vitórias. Em 331 a.C., toda a Mesopotâmia se rendeu ao seu exército. Depois da morte precoce de Alexandre, aos 33 anos, os generais que o haviam acompanhado em suas conquistas iniciaram uma batalha para repartir o império, que acabou sendo dividido em três grandes partes: Egito, Síria e Macedônia. Por sua vez, as cidades gregas atravessavam um período de lutas e de rivalidades, até serem tomadas pelos romanos. O grande feito de Alexandre Magno foi levar o helenismo 15 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO a todas as regiões por onde passou. Junto com suas tropas de soldados, chegavam também os sábios, os artistas e os pesquisadores gregos. Portanto, a civilização helenística foi a difusão da cultura grega no Oriente em conjunto com a assimilação de costumes orientais no Mediterrâneo. Ao se misturar com as culturas do Oriente, a arte grega passou a ser universal e se transformou no berço do Ocidente. 2.1 O surgimento da filosofia O nascimento do pensamento filosófico se deu na cidade de Mileto, com o primeiro filósofo, Tales de Mileto, concebido como uma cosmologia, ou seja, buscava o conhecimento racional da ordem do mundo entendido como natureza. É muito importante ressaltar que, em um período da história humana em que o saber filosófico e o saber científico eram quase a mesma coisa, é fundamental o conceito formulado pelos filósofos naturalistas como um marco central de evolução em relação ao conhecimento mítico. Para começar, o esforço de buscar elementos naturais para então formular teorias a respeito do universoestá contido na base da formulação sobre os conceitos iniciais da sofisticada descoberta do átomo. Por isso, as abstrações de Anaximandro geram surpresa pela genialidade de lidar com um princípio natural como fonte de todos os demais processos naturais, revelando um nível de maturidade bastante desenvolvido. Até mesmo sua teoria sobre a ordem do mundo, coordenada por opostos, encontra parâmetros com os princípios atuais da dialética. Também o equilíbrio pela relação entre os opostos possui uma equivalente no pensamento oriental nos princípios do Tao, que ainda hoje fundamenta a medicina tradicional oriental. Entre as principais características da cosmologia, está uma explicação racional e sistemática sobre a origem, a ordem e a transformação da natureza, da qual o homem faz parte, pois humanos e natureza, pela sua identidade, são explicados filosoficamente. Essa natureza é eterna e tudo se transforma em outra coisa sem jamais desaparecer. No entanto, não é possível afirmar que o mundo tenha vindo de algo, uma vez que se apresenta eternamente. Esse fundo de eternidade passa então a ser o elemento primordial da natureza e chama-se physis, sendo visível apenas ao pensamento e não aos nossos sentidos. Mesmo que physis seja imortal, é dele que vêm todos os seres mais variados e diferentes do mundo, que, ao contrário do seu princípio gerador, são mortais. Outro princípio comum aos filósofos desse período é que todos os seres vivos, além de serem gerados e mortais, encontram-se em transformação constante, mudando em todos os sentidos; mas sem por isso perder sua forma e sua estabilidade. Esse processo todo é percebido como movimento, sendo denominado de devir, ou seja, a passagem contínua de uma coisa ao seu estado contrário não é caótica; mas obedece a leis determinadas pela physis ou pelo princípio fundamental do mundo. Os filósofos escolheram diferentes physis em seus modelos, isto é, cada um encontrou justificativas para alegar qual era o princípio eterno e imutável que está na origem da natureza e de suas transformações. Tales, por exemplo, dizia que o princípio era a água ou o úmido; já Anaximandro tomava o ilimitado sem qualidades definidas. Para Anaxímenes, era o ar ou o frio e Heráclito considerou o fogo. Já Leucipo e Demócrito acreditaram que eram os átomos. Fazem parte da escola pitagórica muitos filósofos famosos, com destaque para Filolao, que dizem ser o primeiro a indicar o movimento da Terra ao redor do Sol, e Hicetas, que indicou o movimento da Terra em redor de seu eixo. Essa doutrina, reproduzida por Aristarco de Samios, no século III a.C., foi 16 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 desacreditada depois pela autoridade de Aristóteles, e retomada e desenvolvida cientificamente por Copérnico, que confirmou ter sido inspirado por Hicetas, que conheceu nos escritos de Cícero. Os primeiros filósofos gregos preocupavam-se apenas com o mundo exterior, em detrimento dos aspectos psicológicos e éticos dos problemas humanos. Até o surgimento de Sócrates, a filosofia grega não possuía um centro comum, sendo desenvolvida em diversas regiões, que dão origem ao termo “as quatro escolas”: Jônica em Mileto, Pitagórica ou Itálica, Eleática na Elea e Abderítica ou Atomística na Abdera. Ainda nesse contexto, vale destacar que o tema central dos pré-socráticos, herança dos antigos mitos cosmológicos, foi o problema do mundo que os assombrava, em especial o movimento, compreendido a partir de um sentido amplo equivalente à mudança ou à variação. Com relação a esse questionamento, podemos separar a filosofia pré-socrática em três estudos: o primeiro como sendo o cosmológico dos jônicos e pitagóricos, o segundo como a antinomia do ser e devir de Heráclito e dos eleatas e, em terceiro, vêm as novas cosmologias mecanicistas dos atomistas. Divisão da filosofia antiga • Primeiro período: estende-se desde o século VII até o ano de 450 a.C., de Tales até Sócrates. Período de formação ou juventude, já que é nele que se estuda principalmente a natureza, e passa a se chamar Cosmológico. • Segundo período: estende-se desde 450 a.C. até o século III d.C., desde Sócrates até o ecletismo. Destaca-se pela perfeição ou pela virilidade da antiga filosofia. Como seu objetivo predominante é o homem, esse período recebe o nome de Antropológico. • Terceiro período: estende-se desde o século I até o século VI d.C. e, durante três séculos, coincide com o período antropológico. Traz a decadência da filosofia grega, e seu objetivo principal é Deus ou a união teosófica com Deus. Por isso, denomina-se período Teosófico. 2.2 Heráclito de Éfeso (mobilismo) e Parmênides (imobilismo) Não há registros sobre as datas do nascimento e da morte de Heráclito, mas existem informações de que ele atingiu o auge de sua existência durante a 69ª Olimpíada, que ocorreu entre 504 e 500 a.C. Essa informação é suficiente para contextualizá-lo em uma geração após Xenófanes, ao qual fez oposição, e uma anterior à de Parmênides, seu maior opositor. Pouco se sabe sobre a sua vida, além de ter nascido de uma família aristocrática de Éfeso, que fundou a cidade. Tudo leva a crer que Heráclito não quis exercer os direitos de participar do governo da sua terra natal. Ele expôs sua filosofia na obra Da Natureza, da qual restam apenas fragmentos que suscitaram muitos temas da filosofia contemporânea. Para Heráclito, tudo aquilo que vemos nunca mais será igual ao que era no momento anterior e que, no instante seguinte, já não será mais o que foi antes. Com isso, ele afirmou que as coisas se transformam permanentemente e que, quando se quer fixar algo e revelar sua essência, já não se trata mais da mesma coisa, pois tudo parte da realidade que flui. É de autoria dele a frase: “Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio”. 17 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Assim, não existe um ser estático, mas sim dinâmico, que pode ser capturado num determinado momento para que se diga como era naquele instante. Sendo assim, a essência dessa reflexão filosófica consiste em determinar que nada existe, já que tudo existe num instante e no momento seguinte deixa de existir, porque já sofreu um processo de transformação. Dessa maneira, a existência define-se como uma eterna mutação e como um estado de mudança perene em que estão incluídas todas as coisas de forma infinita. O pensamento de Parmênides pode ser melhor compreendido por meio da sua inquietação diante da solução proposta por Heráclito de que todas as coisas são e não são ao mesmo tempo, uma vez que permanecem em constante mutação. Ele acreditava ser isso impossível, porque uma coisa é ou não é. Por isso, raciocinava no sentido de afirmar que as coisas possuem um ser e este ser é. Com essa postura reflexiva, Parmênides chegou ao princípio lógico que os filósofos atuais denominam de “princípio da identidade”. Por meio dele, é possível afirmar que o ser é único, pois não pode haver mais de um para cada coisa. Pode-se afirmar ainda que o ser é eterno, pois se ele tivesse um princípio, antes dele, haveria o não ser, o que não é possível, porque o não ser inexiste. Caso existisse, ele também seria um ser, o que, por si só, seria um erro, já que apenas o ser pode existir. O filósofo observou também que o ser é imutável, uma vez que a mutabilidade resulta no não ser, o que é inadmissível para Parmênides. Assim sendo, o ser é infinito, porque a finitude pressupõe o não ser. Por último, ele declarou a imobilidade do ser, pois a mobilidade significaria a aceitação do não ser heraclitiano, o que é insustentável para Parmênides. 3 A TRÍADE GREGA 3.1 Sócrates Um divisor de águasna história da filosofia terrena Figura 3 – A morte de Sócrates 18 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 O fundador do pensamento filosófico A história da filosofia na Grécia Antiga divide-se entre os filósofos pré-socráticos e pós-socráticos, tamanha foi a importância de Sócrates para a instauração do pensamento filosófico ocidental. Considerado pelos homens do tempo como o mais sábio e inteligente, Sócrates demonstrava em sua forma de pensar a necessidade de levar o conhecimento para os cidadãos gregos da época pelo diálogo como forma de transmissão de sabedoria. Nascido em 470 ou 469 a.C., em Atenas, era filho de um escultor e de uma parteira. Aprendeu a arte paterna; mas dedicou-se inteiramente à meditação e ao ensino filosófico, apesar da pobreza. Ao desempenhar cargos políticos, sempre foi um modelo irrepreensível de bom cidadão. Adquiriu sabedoria principalmente por intermédio da reflexão pessoal, na moldura da alta cultura ateniense da época, em contato com o que havia de mais ilustre na época. Por meio da palavra, ele se ocupava da missão de fazer conhecer as coisas do mundo e do ser humano. Seus pensamentos e suas ideias atravessaram os séculos pelas obras de seus discípulos mais importantes: Platão, Xenofontes e Aristóteles, porque ele mesmo nada deixou por escrito. Por defender ideias contrárias à sociedade instaurada na Grécia, Sócrates não foi bem aceito por grande parte da aristocracia grega, uma vez que a tônica do seu discurso criticava diversos aspectos da cultura grega, ressaltando que muitas tradições, crenças religiosas e costumes não colaboravam para o desenvolvimento intelectual dos cidadãos. A inovação presente nas suas ideias para a sociedade logo começou a chamar a atenção de jovens atenienses, impressionados pelo seu dom de orador e pela sua inteligência, o que o tornou popular em pouco tempo. No entanto, por temer mudanças na sociedade, a elite conservadora de Atenas viu em Sócrates um inimigo público, além de um agitador da ordem pública. Por isso, ele foi preso, acusado de subversão, de corromper a juventude e também de provocar mudanças na religião grega. Sua condenação foi o suicídio por envenenamento, dentro da cela, em 399 a.C. Esse fim trágico, porém, não impediu que esse filósofo ateniense, e um dos fundadores da atual filosofia ocidental, entrasse para a história de forma definitiva; embora existam historiadores que afirmam que só é possível falar de Sócrates como um personagem de Platão. Nos diálogos escritos por Platão, Sócrates aparece como mestre que se recusava a ter discípulos, além de ser um homem piedoso que não valorizava os prazeres dos sentidos, mas colocava o belo entre as maiores virtudes, juntamente com a bondade e a justiça. Tanto o julgamento como a execução de Sócrates são episódios centrais da obra de Platão (Apologia e Críton). Sócrates admitiu que poderia ter evitado sua condenação se tivesse desistido da vida justa que levava e, mesmo depois de condenado, ele poderia ter evitado a morte por ingestão de cicuta, se tivesse escapado com a ajuda de amigos. Nesse sentido, a vontade de colaborar com a justiça da pólis e com seus próprios valores revela a grandiosidade do seu pensamento. Todos os detalhes a respeito da vida e da morte de Sócrates que são historicamente conhecidos vêm dos diálogos de Platão, das peças de Aristófanes e dos diálogos de Xenofonte. Não se sabe direito qual era a função de Sócrates, se ele se ocupava de algo além da filosofia. De acordo com os registros, aprendeu a profissão de oleiro com o pai e aparece na obra de Xenofonte declarando que se dedicava àquilo que ele considerava a arte ou a ocupação mais importante de todas: maiêutica, ou seja, o nascimento das ideias. 19 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Platão atesta que Sócrates não recebia pagamento algum por suas aulas, e sua pobreza consistia na prova maior de que não era um sofista. Diversas fontes citam que ele tinha servido ao exército em várias batalhas. Na Apologia, Sócrates compara seu período no serviço militar a seus problemas no tribunal, e alega que qualquer jurado que achasse que ele deveria se retirar da filosofia, deveria também acreditar que os soldados devessem se retirar do campo de batalha, quando era provável que pudessem morrer lutando. As crenças de Sócrates, em comparação às de Platão, são difíceis de diferenciar, uma vez que há poucas diferenças entre os dois tipos de pensamento filosófico. Por essa razão, diferenciar as crenças filosóficas de Sócrates, de Platão e de Xenofonte consiste em uma missão bastante difícil, devendo sempre ter em mente que aquilo que é atribuído a Sócrates pode muito bem refletir o pensamento dos outros autores. Certamente, se existe algo que pode ser atestado sobre as ideias de Sócrates, é que ele se destacou por ser moralmente, intelectualmente e filosoficamente diferente de seus contemporâneos. Quando estava sendo julgado por heresia e por corromper a juventude, usou seu método de elenchos para demonstrar as crenças errôneas de seus julgadores. Sócrates acreditava na imortalidade da alma e que teria recebido, em um dado momento da sua vida, uma missão especial do deus Apolo, que pode ser traduzida na defesa do logos apolíneo “conhece-te a ti mesmo”. Ele também tinha dúvidas sobre a possibilidade de a arete (virtude) ser ensinada, considerando que a moral é uma questão de inspiração e não de parentesco, uma vez que pais moralmente perfeitos não tinham filhos semelhantes a eles. Sócrates alegou com frequência que suas ideias não eram próprias, mas sim de seus mestres, entre eles Pródico e Anaxágoras de Clazômenas. Ele sempre dizia que sua sabedoria era limitada, assim como a sua própria ignorância, atribuindo os atos errados como consequência da ignorância, embora nunca tenha assumido ser um sábio. O fundador do pensamento ocidental também acreditava que a maneira mais apropriada para as pessoas viverem era se concentrando no próprio desenvolvimento intelectual, ao invés de buscar a riqueza material. Ele costumava convidar outras pessoas a se concentrar na amizade e em um sentido de comunidade, uma vez que acreditava ser esse o melhor modo de um povo evoluir. Suas ações são a maior prova dessa crença, pois aceitou sua sentença de morte quando todos acreditavam que fugiria de Atenas. Para Sócrates, os seres humanos possuíam virtudes tanto no campo filosófico quanto no intelectual, conferindo à virtude o papel mais importante para o desenvolvimento do ser humano. Segundo seus discípulos, ele acreditava que as ideias faziam parte de um mundo que somente os sábios conseguiam entender, fazendo com que o filósofo se tornasse o governante ideal para um Estado. Ao se opor declaradamente à democracia aristocrática praticada em Atenas durante a sua época, ele afirmava que a república perfeita deveria ser governada apenas por filósofos. Os ideais libertários contidos nos discursos proferidos por Sócrates, assim como o rigor do seu caráter e da sua postura crítica, acabaram gerando um mal-estar geral, além da rejeição popular, fazendo com que ele contraísse inimigos pessoais. Diante do povo e de lideranças reacionárias, era considerado como parte atuante da casta intelectual da época. Essa hostilidade toda manisfestou-se por meio jurídico 20 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 na acusação movida contra ele por Mileto, Anito e Licon, no sentido de subverter os jovens a renegar os deuses da própria pátria, introduzindo novas crenças. Para não entrar em confrontocom a justiça humana, Sócrates humilhou-se e pediu perdão, pois tinha dentro da alma algo que ia muito mais longe do que uma simples explicação para a vida na Terra, que era o juízo da razão destinado à eternidade. Por esse motivo, ele preferiu abrir mão da própria vida a enfrentar o poder judiciário. Quando foi declarado culpado, ficou em silêncio perante o tribunal, que o condenou à pena de morte pela maioria dos votos. Tendo que esperar mais de um mês para ser executado na prisão, Sócrates aproveitou o tempo para ministrar palestras espirituais aos amigos. Vem dessa fase o famoso diálogo a respeito da imortalidade da alma, que ele teria proferido pouco antes de morrer e que foi relatado por Platão no Fédon. De acordo com ele, as palavras derradeiras dirigidas pelo seu mestre aos discípulos, após ter ingerido o veneno, foram: “Devemos um galo a Esculápio”, referindo-se ao Deus da medicina, que o tinha liberado do mal da existência com o poder da morte. Apesar de gerar polêmica, Sócrates restabeleceu a possibilidade do saber ao determinar o objeto real da ciência, que não é o sensível e o particular, como pensavam os sofistas. De maneira contrária, ele acreditava no inteligível, um conceito que se expressa pela própria definição, sendo obtido por intermédio de um processo dialético chamado de indução, que pode ser descrito pela comparação de vários seres da mesma espécie, visando eliminar as diferenças individuais, bem como as qualidades mutáveis, para atingir aquilo que existe de comum, estável e permanente na natureza e na essência da coisa em si. Trata-se, portanto, de uma forma de generalização que parte do indivíduo à concepção universal da natureza humana. Durante a exposição didática dessas ideias, Sócrates sempre utilizava o diálogo, com a dupla função de confrontar um oponente às suas ideias ou de instruir um discípulo. No primeiro caso, assumia de forma humilde a postura de quem aprende e, com isso, conseguia aumentar o número de perguntas até conseguir apanhar o adversário em uma contradição evidente para constrangê-lo à declaração humilhante da ignorância. Essa estratégia era a ironia socrática. Já no segundo caso, por ser um discípulo, ele mesmo multiplicava as perguntas, com a habilidade e o objetivo de obter, pelo processo indutivo, um conceito e uma definição geral de um objeto. Esta era sua proposta pedagógica. A introspecção sempre foi uma característica marcante da filosofia de Sócrates, que se revela no famoso lema “conhece-te a ti mesmo”, ou seja, que nos leva a entrar em contato com a nossa prória ignorância. Alcançava em Sócrates uma importância tão grande que se personificava na voz interior divina, que poderia ser de um gênio ou de um demônio. Como ele não deixou nada registrado, as informações que temos de sua vida e de seu pensamento nos foram legadas pelos seus dois discípulos, Xenofonte e Platão, de formação intelectual muito diferente. Xenofonte, ao escrever Anábase, em seus Ditos Memoráveis, nos revelou mais os aspectos pragmáticos e morais do pensamento socrático. No entanto, seu estilo simples e sem profundidade, apesar da sua devoção para com o mestre, deixam claro que ele não compreendeu a complexidade do pensamento filosófico de Sócrates, por ser mais um homem de ação do que um pensador legítimo da sua época. É possível afirmar que Sócrates atua como protagonista de todas as obras platônicas, mesmo tendo este conhecido seu mestre já idoso e na última década de vida. O conhecimento perfeito do ser humano coloca-se como objetivo maior de todas as suas reflexões, assim como a moral está posicionada no centro 21 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO de tudo, para o qual convergem todas as vertentes filosóficas. No campo da psicologia, Sócrates deixou sua contribuição ao pensar sobre a espiritualidade e a imortalidade da alma, destacando a diferença entre as duas ordens de conhecimento, o sensitivo e o intelectual, sem definir a capacidade de escolha, mas relacionando a vontade com a inteligência. Na teodiceia, ele admitiu a existência de Deus com o seguinte argumento teológico: tudo aquilo que possui uma finalidade resulta de uma inteligência e, se o homem é inteligente, também deve ser inteligente a causa eficiente que o concebeu. Pela moral socrática, a lei natural pressupõe um ser superior ao homem, um legislador, que a sancionou. Portanto, Deus não só existe, como também é Providência, uma vez que governa o mundo com sabedoria, e o homem pode atingi-lo por meio de sacrifícios e com orações. Apesar da elevação dessas doutrinas, Sócrates aceita os preconceitos contra a mitologia da sua época, que ele pretendia reformular. Nesse aspecto, a moral constitui a parte crucial da filosofia socrática, pois ensina a pensar para viver bem, mostrando que a única forma de alcançar a felicidade ou a semelhança com Deus está na prática da virtude, que pode ser adquirida com a sabedoria ou com a identificação com ela. Essa doutrina consiste em um desdobramento natural da falha psicológica de não conceituar a vontade e a inteligência de maneira diferenciada. Sócrates reconhece ainda, acima de todas as leis criadas, a existência de uma lei natural que não depende do conhecimento humano, uma vez que é universal e se estabelece como fonte primordial de todo direito como expressão da vontade divina ditada pela voz interior da consciência. Mesmo sublime na forma de descrever os princípios gerais de sua ética, Sócrates, de fato, sempre atribui à utilidade a razão e o estímulo de toda e qualquer virtude. A filosofia socrática, portanto, está restrita à gnosiologia e à ética. A gnosiologia de Sócrates, que se concretizava na sua doutrina dialógica, resume-se em seis aspectos fundamentais: a ironia, a maiêutica, a introspecção, a ignorância, a indução e a definição. Porém, é necessário separar o espírito dos falsos conhecimentos, dos preconceitos e das opiniões. Sócrates, juntamente com os sofistas, mesmo com finalidade diversa, reclama pela libertação da autoridade e da tradição, tendo em vista a reflexão livre e a crença na razão para tornar possível conceber o verdadeiro conhecimento e a ciência. Isso significa que a instrução não deve consistir apenas na exposição de um assunto ao aluno, já que o mestre deve retirá-lo da própria mente do discípulo, pela constituição inerente do espírito humano como um dado estrutural e universal da sua existência. Para Sócrates, a forma lógica para chegar ao conhecimento científico de fato consiste na indução, quer dizer, no percurso do que é particular até o universal, do foco opinativo à ciência, do experimento ao conceito, leva à definição, para demonstrar o ideal e a reflexão final do processo gnosiológico socrático sobre a essência da realidade. Ele também é considerado o fundador da ciência, em especial da ciência moral, defendendo a doutrina de que ética é sinônimo de racionalidade. Além disso, a virtude é considerada como inteligência, razão e ciência, e não um sentimento, uma tradição, uma lei e o senso comum. Isso tudo precisa ser superado, fazendo com que a razão prevaleça. Diante do seu legado para a humanidade, torna-se visível que Sócrates não deixou um pensamento filosófico fechado. Porém, cabe a ele o mérito de ter descoberto o método e de ter fundado uma grande escola no campo da filosofia. Por esse motivo, dele depende, de forma direta ou indireta, a evolução do pensamento na Grécia Antiga, que se desenvolveu a partir da linha socrática, valorizando 22 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 a herança dos pré-socráticos e organizando-se em sistemas originais e múltiplos. Mesmo diferentes entre si, todasessas correntes possuem em comum a crença de que o bem maior do ser humano está na sabedoria. A escola socrática mais expressiva é a platônica e seguiu a evolução lógica do objeto central do pensamento socrático, que é o conceito, assim como com o aspecto fundamental do pensamento antecessor, tendo seu auge em Aristóteles, discípulo de Platão, como o grande desfecho da metafísica grega. Observação “Outros povos nos deram santos, os gregos nos deram sábios” (Nietzsche). 3.2 Platão Figura 4 – Platão (detalhe de A Escola de Atenas) O pensador das ideias Platão nasceu em Atenas em 427 a.C., durante da Guerra do Peloponeso, no tempo da revolução oligárquica e aristocrática que tirou os democratas do poder em Atenas, impondo o Conselho dos 400. Nesse período, a Liga do Peloponeso, liderada por Esparta, derrotou a Liga da Hélade, liderada por Atenas, dando início ao governo dos Trinta Tiranos. No entanto, sua vida transcorreu entre a fase áurea da democracia ateniense e o final do período helênico, o que confere ao seu legado filosófico a tônica da liberdade e da expressão política. Ele fundou a Academia e foi mestre de Aristóteles. Aos 20 anos de idade, conheceu Sócrates, de quem foi discípulo. 23 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO O interesse de Platão pelos assuntos políticos decorreu das condições em que vivia na Grécia Antiga, onde a vida cultural foi se desenvolvendo muito vinculada aos acontecimentos da cidade-estado, a pólis, e em torno da organização política, constituída por várias cidades-estados que mantinham suas tradições e sua religiosidade. A própria dimensão dessas comunidades exigia o fortalecimento dos vínculos solidários entre seus habitantes, ao mesmo tempo em que permitia a cada uma a construção da sua fisionomia social particular como um patrimônio comum a todos os cidadãos. Os fenômenos geográfico e político estavam tão associados que a palavra pólis servia para indicar tanto o lugar da cidade quanto a natureza da soberania. Sendo assim, qualquer indivíduo nesse contexto pensava em si mesmo como um ser político. Perto de completar 40 anos, Platão partiu para a Magna Grécia com o intuito de entrar em contato com as comunidades pitagóricas. Nessa jornada, foi convidado por Dionísio I para ir à Siracusa, na Sicília. Ele partiu para essa região com a esperança de implementar seus ideais políticos; mas acabou se desentendendo com o tirano local e retornou para Atenas, onde fundou a Academia de Física. A instituição ganhou prestígio em pouco tempo, sendo procurada por um grande número de jovens que buscavam instrução e até mesmo por homens já ilustres, com a finalidade de debater ideias. Ao regressar para Atenas, em 360 a.C., Platão comandou a Academia até em 347 a.C., quando faleceu. Grosso modo, Platão criou a noção de que o homem está em contato permanente com duas realidades: a inteligível e a sensível, sendo a primeira concreta e imutável. Já a segunda, refere-se a todas as coisas que afetam os sentidos do homem. São, portanto, realidades dependentes, mutáveis e imagens das realidades inteligíveis. Essa concepção platônica de mundo também é conhecida por Teoria das Ideias ou Teoria das Formas, tendo sido elaborada como hipótese no diálogo Fédon, constituindo assim uma forma de assegurar a possibilidade do conhecimento, além de oferecer uma inteligibilidade relativa aos fenômenos. Na visão platônica de mundo, aquilo que é captado pelos sentidos humanos significa apenas uma cópia simplificada do mundo das ideias. Assim, tudo o que existe de forma concreta faz parte, junto com todos os outros objetos semelhantes, de uma ideia perfeita. Por exemplo, uma faca terá características próprias, como cor, forma, tamanho, entre outras. Já outra terá outros atributos, sem deixar de ser faca, tanto quanto a outra. O que faz com que ambas sejam facas consiste na ideia perfeita que se tem desse objeto, sendo capaz de conter todas as possibilidades de ser aquilo que é. De acordo com Platão, algo é na medida em que participa da ideia desse objeto, e seu foco se detém em coisas como o ser humano, o bem ou a justiça. A teoria platônica explica a forma de conhecimento das coisas, alegando que, ao ver um objeto muitas vezes, nos lembramos da ideia dele, que já vimos no mundo das ideias. Para isso, Platão cria o mito de que, antes mesmo de nascer, a alma de cada um habitava em uma estrela, onde estão as ideias. Ao nascer, seríamos arremessados em direção à Terra. Com o impacto produzido, acabamos por esquecer o que vimos onde estávamos anteriormente. Porém, à medida que vemos um objeto aparecer de várias maneiras, a alma recorda-se da ideia primordial daquele objeto que foi visto na estrela de onde partiu. A essa recordação Platão dá o nome de anamnesis. Assim sendo, uma das bases para a investigação sobre as ideias consiste em saber que não estamos completamente ignorantes sobre elas. Isso se torna necessário para que tenhamos em nossa alma um tipo de conhecimento ou de recordação do contato original com o mundo ideal antes do nosso 24 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 nascimento, para que possamos nos lembrar delas sendo reproduzidas no mundo concreto. Isso faz com que toda a ciência platônica seja uma forma de reminiscência, pois a investigação das ideias supõe que as almas preexistiram em uma região divina onde as contemplavam. Platão acreditava que o filósofo deveria buscar a verdade plena, que poderia ser encontrada apenas em uma instância superior, uma vez que a verdade é invariável, e, se existe uma verdade essencial para a humanidade, ela deve valer para todos. Dessa maneira, a existência das coisas físicas deve ter outro pressuposto, que transcende a forma de buscar essas realidades e que está no conhecimento daquilo que está além das coisas. Em Platão, essa busca racional possui caráter contemplativo, o que significa buscar a verdade no interior do próprio homem como um participante das verdades essenciais do ser. Assim como seu mestre Sócrates, Platão dedicou-se à descoberta das verdades essenciais das coisas pelo conhecimento, sempre destacando o homem não na condição de corpo, mas sim enquanto alma. Na visão dele, a alma humana, por ser perfeita, faz parte do mundo perfeito das ideias, embora isso só possa ser concretizado por intermédio dos sentidos. Nesse aspecto, também o conhecimento tinha fins morais, com o intuito de levar o homem à bondade e à felicidade, o que faz do conhecimento uma forma de reconhecimento capaz de fazer com que haja um reencontro com as verdades que sempre soubemos existir, permitindo com isso diferenciar as aparências de verdades e as verdades. Sendo assim, a obtenção do autoconhecimento apresentava-se como um caminho árduo a ser seguido de maneira meticulosa. É interessante observar que Platão não defendia que todas as pessoas tivessem igualdade de acesso à razão, pois ele reconhecia que, apesar de todos terem a alma perfeita, nem todos conseguiriam chegar à contemplação absoluta do mundo das ideias, lembrando que o conhecimento para Platão tem fins morais. De acordo com ele, existiam três tipos de virtude na alma humana – a sabedoria, que deveria ser o governo, a coragem, que deveria equivaler à força dos soldados, e a temperança, que estaria relacionada ao baixo-ventre do Estado, ou seja, aos trabalhadores, uma vez que a alma desses indivíduos é guiada pelos sentidos. Na visão platônica, o homem divide-se entre corpo, matéria e alma – o imaterial e o divino. O corpo vive em processo contínuo de mudança de aparência, mas a alma não muda nunca. A partir do momento em que nascemos, apesar da alma perfeita, estamosaprisionados ao corpo e nos esquecemos das verdades essenciais escritas eternamente na alma. Para Platão, a alma está dividida em três partes: Racional: cabeça – tem que controlar as outras duas partes, e sua virtude está na sabedoria ou na prudência (phrónesis); Irrascível: tórax – parte da impetuosidade, dos sentimentos. A virtude está na coragem (andreía); e Concupiscente: relativa ao baixo-ventre, incluindo o apetite e o desejo carnal ligado à libido. Vale destacar que, para Platão, depois da morte, a alma reencarnava em outro corpo; mas se ocupava com a filosofia, graças ao desapego material, estando a ela concedido o prazer de passar a eternidade ao lado dos deuses. Assim, somente por meio da relação de sua alma com a Alma do Mundo o ser humano pode acessar o mundo das ideias. A ação do homem pode atingir somente o mundo material, pois, no mundo das ideias, ele não pode transformar nada, uma vez que já existe a perfeição. A ascensão ao conhecimento está representada por Platão na Alegoria da Caverna, que descreve um prisioneiro que contempla, no fundo de uma caverna, os reflexos de simulacros 25 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO que, sem que perceba, são transportados à frente de uma fogueira, no sentido figurado. Como sempre, as projeções do que existe acredita serem elas a realidade e permanece na ilusão. No entanto, essa situação muda com a libertação desse homem, que reconhece seu engano ao descobrir a encenação que o iludia. Depois de subir a rampa que leva à saída da caverna, ele pode contemplar do lado de fora a verdadeira realidade. Acostumado às sombras, primeiro ele enxerga através dos reflexos, até ter condições de olhar diretamente para a luz solar como fonte de toda a realidade. Essa alegoria de dimensão emocional, filosófica, religiosa e científica guarda também uma conotação política, ou seja, aquele que se liberta das ilusões e se eleva à visão da realidade é quem pode e deve governar para libertar os demais prisioneiros das sombras. Trata-se do filósofo político, capaz de fazer da sua sabedoria um instrumento de libertação de consciências e de justiça social. Sendo assim, o conhecimento no platonismo se constrói como uma articulação entre o intelecto e a emoção, entre razão e vontade, como resultado da inteligência e do sentimento de amor. Lembrete Desde que o ser humano tomou consciência da sua condição, muitos estudiosos buscaram não uma resposta derradeira para o sentido da existência, mas sim explicar os princípios éticos, morais e religiosos que regem a trajetória do homem na Terra. 3.3 Aristóteles Figura 5 – Aristóteles (detalhe de A Escola de Atenas) 26 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 O organizador do mundo O filósofo grego Aristóteles colaborou em larga escala para o desenvolvimento de muitas ciências; mas uma retrospectiva do legado do seu pensamento para a humanidade permite perceber que o valor dessa contribuição foi bastante desigual. A sua química e a sua física são bem menos significativas do que as investigações no domínio das ciências da vida. Isso ocorreu porque ele não possuía relógios precisos nem qualquer tipo de instrumento de medição. Aristóteles também não tinha consciência da importância da velocidade e da temperatura. Na mesma medida em que seus escritos zoológicos continuavam a ser considerados impressionantes pelo próprio Darwin, a sua física estava já ultrapassada no século VI d.C. Ao contrário do seu trabalho nas ciências empíricas, há aspectos da filosofia teórica de Aristóteles que ainda têm muito a nos ensinar, com destaque para suas afirmações sobre a natureza da linguagem, da realidade e da relação entre as duas. Nas duas categorias, Aristóteles apresenta uma lista dos diferentes tipos de coisas que podem afirmar-se a propósito de um indivíduo. Essa lista contém dez artigos: substância, quantidade, qualidade, relação, espaço, tempo, postura, vestuário, atividade e passividade. Considerado o pensador mais influente da filosofia ocidental, Aristóteles nasceu em Estagira, na Calcídica, em 384 a.C. Por ser filho de Nicômaco, amigo e médico pessoal do rei macedônio Amintas II, pai de Filipe II da Macedônia, é possível compreender seu interesse pela biologia e pela fisiologia, em decorrência da atuação profissional exercida pelo pai e pelo tio. Ainda na adolescência, Aristóteles foi morar em Atenas, maior reduto de intelectuais e artistas da Grécia, para dar prosseguimento aos estudos. Das duas grandes instituições da preferência dos jovens da época, a escola de Isócrates e a Academia de Platão, optou pela segunda e nela permaneceu por vinte anos, até 347 a.C., ano da morte do seu mestre. Com a escolha do sobrinho de Platão, Espeusipo, para assumir a Academia, Aristóteles partiu para Assos com alguns ex-alunos, talvez por que as ideias do novo diretor não lhe agradassem ou por ter se sentido rejeitado, uma vez que se julgava o mais preparado para assumir a direção da Academia. Lá, ele criou um círculo filosófico com a ajuda de Hérmias, tirano local. Depois da morte de Hérmias, Aristóteles foi para Mitilene, na Ilha de Lesbos, onde realizou grande parte das suas investigações no campo da biologia. Em 336 a.C., retornou a Atenas e fundou a Lykeion, que deu origem à palavra Liceu, uma escola onde os alunos ficaram conhecidos como peripatéticos, ou seja, aqueles que passeiam, por causa do hábito de Aristóteles de ensinar ao ar livre. Diferentemente da Academia de Platão, o Liceu dava preferência às ciências naturais, que estudavam exemplares da fauna e da flora das regiões conquistadas. Os estudos abrangiam as áreas do conhecimento clássico da época, como a filosofia, procurando estabelecer as bases dessas disciplinas e também a metodologia científica do estudo. Aristóteles foi diretor da escola até 324 a.C., depois da morte de Alexandre. Com temor da postura antimacedônia dos atenienses, que o ameaçaram, ele deixou a cidade, afirmando que os gregos estavam cometendo outro crime contra a filosofia, depois do julgamento e da morte de Sócrates. Como aluno de Platão, Aristóteles discordava de uma parte fundamental da filosofia do seu mestre. Enquanto Platão concebia dois mundos existentes, um apreendido pelos sentidos humanos, em constante 27 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO mutação, e o outro concebido como sendo das ideias, acessível somente pelo pensamento intelectual, imutável e atemporal, Aristóteles contemplava apenas a existência do mundo em que vivemos, alegando que aquilo que estava além da experiência humana não poderia significar nada para o homem. Na visão aristotélica, a lógica funciona como um elemento introdutório para o conhecimento, tendo como base uma estrutura de raciocínio formal que compreende pressupostos criados previamente, para que se possa chegar a uma conclusão. Como a dedução parte do universal para o particular e a indução, pelo contrário, do particular para o universal, se forem verdadeiras as premissas, a conclusão, logicamente, também deverá ser. No campo da psicologia, Aristóteles toma como base os conceitos de alma e de intelecto, sendo a primeira a essência de um corpo que possui vida em potencial. Já o intelecto, na visão dele, não fica restrito somente a uma relação exclusiva com o corpo, uma vez que a sua ação vai mais longe. Nesse contexto, o organismo desenvolvido assume a forma que vai lhe permitir a perfeição por intermédio da ação. Essa seria a alma, que faz com que a flora cresça e a fauna se reproduza.Para o homem, além de a alma apresentar atributos vegetativos e sensitivos, ela tem também a inteligência, que reúne condições de captar a essência de tudo, independentemente da condição orgânica. O filósofo também acreditava que a mulher era um ser incompleto e passivo, enquanto o homem seria o ser em ação. Aristóteles foi o verdadeiro fundador da zoologia, dentro do campo de estudo da biologia, ao estabelecer a primeira divisão do reino animal. Ele também é considerado o fundador da teoria da abiogênese, que persistiu durante muitos séculos, atestando que um ser nascia a partir de um germe da vida, sem que outro precisasse gerá-lo, exceção feita aos seres humanos. O que atualmente denominamos de metafísica Aristóteles chamava de filosofia primeira, aquela que estuda fenômenos que acontecem além do mundo físico, que podem ser compreendidos pelos sentidos. Nesse sentido, o conceito de metafísica em Aristóteles apresenta-se de forma extremamente complexa, com quatro definições possíveis, ou seja, a ciência que busca por causas e princípios, que busca o ser enquanto ser, a que apura a substância e aquilo que está além dos sentidos. É importante destacar que a teoria aristotélica sobre as causas abrange toda a natureza. Além disso, o filósofo distingue a essência do acidente em alguma coisa. A definição de essência seria algo responsável pela identificação de um ser, sem a qual se torna impossível reconhecê-lo como ele mesmo. Já o acidente é algo que pode ser parte estrutural ou não do ser, mas que não o descaracteriza por sua falta. Para Aristóteles, a ética pode ser considerada como a ciência das condutas, que estuda assuntos que podem sofrer alteração. Sendo assim, ela se debate com aquilo que é essencial e imutável no ser humano, com o que pode ser adquirido por atitudes repetidas ou por costumes que legitimam as virtudes e os vícios. O seu objetivo último, portanto, consiste na garantia ou na possibilidade de conquista da felicidade. Tomando como princípio as disposições naturais do homem, a função da moral consiste em demonstrar como elas necessitam ser mudadas para se adaptar à razão. Ainda na visão dele, as virtudes se realizam sempre na esfera do homem e perdem sentido quando as relações humanas deixam de existir. Já a virtude, seja ela especulativa ou intelectual, diferencia-se porque faz parte de um universo filosófico limitado que, excluindo a vida moral, busca o conhecimento pelo conhecimento. Dessa maneira, na filosofia aristotélica, a prática da contemplação volta o homem para Deus, sendo a política 28 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 uma consequência natural da ética. Para ele, ambas compõem a unidade denominada filosofia prática. Nesse sentido, se a ética está preocupada com a felicidade individual do homem, a política se ocupa em investigar as formas de governo e as instituições capazes de assegurar a felicidade coletiva na constituição do estado. De acordo com Aristóteles (1978, top. 104b1-3): um problema de dialética é um tema de investigação que contribui para a escolha ou a rejeição de alguma coisa, ou ainda para a verdade e o conhecimento, e isso quer por si mesmo, quer como ajuda para a solução de algum outro problema do mesmo tipo. Ele também considerava como primordial o conhecimento da retórica, que consiste em uma técnica relacionada à vida pública. Para ele, o discurso retórico opera no campo deliberativo, no campo judicial e no campo epidítico (demonstrativo). Saiba mais Não deixe de ler o livro O Mundo de Sofia, de Josten Gaarder, que conta de forma divertida e didática a história desses grandes filósofos gregos, além de outros também. GAARDER. J. O mundo de Sofia. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. 4 A FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA Figura 6 – Capa da Bíblia Moralisée, 1275 (Deus criando o universo através de princípios geométricos) 29 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO A filosofia da Idade Média pode ser considerada como o pensamento filosófico ocidental que preencheu o espaço entre o fim do mundo antigo, determinado pela queda do Império Romano do Ocidente (476), e pelo começo dos tempos modernos, que têm seu início a partir da conquista de Constantinopla (1453) ou do princípio da Reforma Religiosa em 1517. A essa filosofia medieval costuma-se dar o nome de filosofia escolástica, que começou mesmo no século IX. Por isso, vamos dividir a filosofia da Idade Média em dois grandes períodos – a filosofia patrística e a filosofia escolástica. Se formos traçar um perfil da filosofia medieval pelo seu conteúdo, naquilo que corresponde à sua essência espiritual, podemos conceituá-la como o pensamento filosófico ocidental que vem desde Santo Agostinho e de Anselmo de Cantuária, obedecendo ao mote: “saber para crer, crer para poder saber”. Durante esse período, a filosofia, que tem por objetivo tratar dos grandes problemas do mundo, do homem e de Deus só com as forças da razão, alia-se com a fé religiosa no pressuposto de uma unidade ideológica. Nela, está representado o espírito de toda essa fase da história humana e nada é mais significativo do que essa unidade espiritual. Como nunca, todos vivem na certeza da existência de Deus, da sua sabedoria, do seu poder e da sua bondade. Nesse sentido, o homem podia dizer com segurança que sabia da origem do mundo e da sua própria natureza, cheia de sentido, bem como sua essência homem e sua posição no universo, tendo em vista a significação da sua vida e a imortalidade. Enquanto na era moderna indaga-se a respeito da possibilidade da ordem e da lei, na época medieval a ordem estabelece-se como algo evidente, sendo nossa a tarefa de reconhecê-la. No início da patrística, a Idade Média encontrou seu direcionamento, que foi preservado até o final. Surge, porém, a indagação se ainda se trata de pura filosofia, quando o conhecimento não é dominante, sendo guiado pela religião. Claro, pois como tudo já estava pronto e se repetia com frequência, a filosofia não teria que solucionar qualquer tipo de problema, pois eles já estariam resolvidos no campo da fé. Nesse sentido, é com base na fé que o filósofo deve pensar, e o pensamento filosófico deve servir ao patrimônio da crença, aplicando-lhe a análise e a síntese pela ciência. Em resumo, trata-se de uma filosofia comprometida com juízos de valor preconcebidos, o que deixa um rastro de dúvida quanto à existência de uma filosofia de fato na Idade Média. Atualmente, depois das investigações de DeniEle, Ehrle, Bauemker, M. De WUlf. Grabmann, MaNdoNNet, Gilson e outros, sabemos que as realizações filosóficas pertinentes à Idade Média eram bem mais abrangentes, interessantes e também individuais do que poderíamos imaginar. Além disso, também para o homem medieval era livre o pensamento e a investigação. Mesmo sem fazer grande uso da sua liberdade, o homem da Idade Média seguiu as pressuposições e também a opinião pública. Condenar a Idade Média, alegando o fato de ela não ser “isenta de preconceitos”, é um paradoxo. Na realidade, em época alguma houve ausência de preconceitos. Porém, existe o ideal ao qual devemos perseguir por amor à verdade, o que também ocorreu na filosofia medieval, que buscou alcançar a verdade objetiva. Por isso, não devemos subestimar a Idade Média; pois, quanto mais conhecemos melhor o homem moderno na sua forma de pensar e de sentir, ele parece muitas vezes mais medieval que a própria Idade Média. Possui ainda a Idade Média algum significado do ponto de vista filosófico? Com certeza, pois ela conservou os antigos pressupostos teóricos, incluindo não apenas a ciência e a arte da antiguidade, mas também garantiu nas suasescolas a continuidade do saber filosófico. Nesse aspecto, temas tão 30 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 fundamentais relativos à causalidade, à realidade, à finalidade, à universalidade, à individualidade, à sensibilidade e ao mundo fenomenal, à compreensão e à razão, à alma e ao espírito, ao mundo e a Deus foram transmitidos aos filósofos modernos pela Idade Média. 4.1 A Patrística Figura 7 – Santo Agostinho A filosofia cristã dos primeiros sete séculos foi denominada de patrística, por ter sido elaborada pelos padres da Igreja, considerados como os primeiros teóricos. Ela consiste no conjunto de doutrina das verdades da fé cristã e na sua defesa contra os “pagãos” e os hereges. Esse conjunto foi responsável pela defesa da fé e da criação dos costumes que decidiram os rumos da Igreja no decorrer dos sete primeiros séculos do cristianismo. A patrística também se ocupou da elucidação progressiva dos dogmas cristãos e daquilo que chamamos de Tradição Católica. Quando o ocidentalismo, para defender-se de ataques de outros povos, religiões e culturas, precisou esclarecer seus próprios dogmatismos, a pratística mostrou-se como a expressão acabada da verdade que a filosofia grega havia buscado, enquanto o próprio Deus não havia ainda encarnado. Se, por um lado, se procura interpretar o cristianismo por intermédio de conceitos tomados da filosofia grega; do outro, encontra-se o significado que esta última dá ao cristianismo. Os primeiros pensadores cristãos também se debateram com os filósofos, Platão, Aristóteles, sobretudo com os estoicos e os epicureus. Sem perder de vista os ideais da doutrina cristã, eles buscaram encontrar, frente à filosofia e aos filósofos, o local adequado da reflexão filosófica e do pensamento cristão. Vale lembrar que o cristianismo primitivo recebeu influências de vários segmentos da filosofia grega, já citados anteriormente, sem que se pudesse determinar com clareza a extensão provocada por esse 31 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO contato. Costuma-se dizer que os filósofos convertidos ao cristianismo buscaram conferir à doutrina cristã um status filosófico, mas sem o cuidado de salientar as fontes filosóficas. Entre os autores que se ocuparam dessa tarefa, estão Justino, Tertuliano, Clemente de Alexandria, Orígenes, Gregório de Nazianzo, Basílio de Cesareia e Gregório de Nissa. Como observa Johannes Hirschberger (1966): Tratando-se de filosofia patrística, não devemos, como outrora, pensar somente nas obras de filósofos que só foram filósofos. A filosofia da patrística está antes contida nos tratados dos pastores de alma, pregadores, exegetas, teólogos, apologetas que buscam antes de tudo a exposição da sua doutrina religiosa. Mas, ao mesmo tempo, levados pela natureza das cousas e dada a ocasião, se põem a resolver problemas propriamente pertencentes à filosofia; e então, pela força do assunto, versam a metodologia filosófica. Divisão didática Podemos dividir a Patrística em três fases: • até o ano 200, ocupou-se em defender o cristianismo contra seus adversários (padres apologistas, como São Justino Mártir). • até o ano 450, consolida-se o período em que surgem as primeiras grandes teorias da filosofia cristã, como a de Santo Agostinho e a de Clemente Alexandrino, entre outros. • até o século VIII, são refeitas as doutrinas já formuladas e de cunho original. Também é possível dividir a literatura patrística em três períodos, da seguinte forma: • Período ante-niceno – corresponde ao período anterior ao Concílio Ecumênico de Niceia. Inclui todos os escritos surgidos entre o século I e o início do século IV. • Período niceno – faz menção ao período entre os anos anteriores até aqueles posteriores ao Concílio Ecumênico de Niceia. Abrange os escritos que surgiram entre o início e o fim do século IV. • Período pós-niceno – trata-se do período compreendido entre os séculos V e VIII. 4.1.1 A filosofia de Agostinho Aurélio Agostinho foi um padre que merece destaque entre os representantes do clero, da mesma forma que Tomás de Aquino se diferenciou entre os escolásticos. Enquanto Agostinho buscou inspiração na filosofia platônica, Tomás de Aquino preferiu os pensamentos de Aristóteles para elaborar a filosofia metafísica cristã. Por ser muito sensível e compreensivo, Agostinho revelou ter em si a mesma essência da patrística grega, com o caráter pragmático da patrística latina, mesmo que os problemas que o preocupassem fossem sempre de natureza prática e moral, como o mal, a liberdade e o destino. 32 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 Nascido em Tagasta, na Numídia, em 354, Agostinho pertencia a uma família burguesa comandada pelo pai, que era pagão, tendo sido batizado somente antes de morrer. No entanto, a mãe era uma cristã fervorosa que influenciou muito o filho nesse aspecto. Ele foi para Cartago para aperfeiçoar seus estudos e, ao terminá-los, abriu uma escola lá mesmo. Em seguida, partiu para Roma e depois para Milão. Ele deixou de ensinar aos 32 anos, por motivo de saúde e de natureza espiritual. Após uma reflexão crítica e madura das suas ideias, acabou abandonando o maniqueísmo para adotar a filosofia neoplatônica, que lhe ensinou a espiritualidade divina, bem como a negatividade do mal. Agostinho retirou-se do mundo durante meses, visando ao isolamento, na companhia da mãe, do filho e de alguns discípulos, nos arredores de Milão. Foi durante essa fase da sua vida que redigiu seus diálogos filosóficos. Logo após a conversão aos 33 anos, Agostinho deixou Milão, doou tudo o que tinha para os pobres e fundou um mosteiro em uma de suas propriedades. Foi ordenado padre em 391 e consagrado bispo em 395, tendo governado a igreja de Hipona até a morte, aos 75 anos, durante o assédio da cidade pelos vândalos em 430. Ele também de dedicou, em tempo integral, a estudar a Bíblia e a redigir suas obras, especialmente as de caráter filosófico. Entre elas, estão Contra os acadêmicos, Os solilóquios, Sobre a imortalidade da alma, Sobre a quantidade da alma, Sobre o mestre, Sobre os costumes, Do livre arbítrio, Sobre as duas almas, Da natureza do bem. De acordo com Agostinho, a filosofia poderia resolver o problema da vida, a qual apenas o cristianismo poderia dar uma solução real. Nesse sentido, seu grande interesse estava relacionado aos problemas de Deus e da alma, por serem os mais importantes. No início, ele garantiu a certeza da própria existência espiritual, de onde tirou uma verdade superior e imutável como condição e origem de toda verdade individual. Mesmo ao desvalorizar o conhecimento sensível em relação ao conhecimento intelectual, alegava que os sentidos e o intelecto consistem nas fontes de conhecimento. Como para ver algo com os olhos humanos, é necessária a luz física, da mesma forma, para o conhecimento intelectual, seria preciso uma luz espiritual que vem de Deus, sendo esta a Verdade e o Verbo divino, para onde são levadas as ideias do pensamento platônico. Com relação à natureza de Deus, Agostinho demonstrou uma noção exata, ortodoxa e cristã, definindo- o como um poder racional infinito, eterno, imutável, simples, espírito, pessoa, consciência. Para ele, Deus é ainda ser, saber e amor, e, no tocante às relações mundanas, Deus é concebido como criador. Vale lembrar que o pensamento clássico grego concebia uma dualidade metafísica. Já no pensamento cristão agostiniano, esse dualismo persiste, mas agora incorporando a moral e os pecados dos espíritos que se erguem contra Deus, preferindoo mundo a Ele. Portanto, no cristianismo, o mal estaria, do ponto de vista metafísico, na negação e na privação. Basicamente, Agostinho tratou do problema das relações entre Deus e o tempo, uma vez que este último é considerado uma criatura de Deus, porque passa a existir a partir da criação das coisas. Ainda é possível afirmar que a psicologia de Agostinho encontrou ressonância no seu platonismo cristão. Nesse sentido, o corpo não é mau por natureza, uma vez que a matéria não pode ser essencialmente má, por ter sido criada por Deus. No entanto, a união do corpo com a alma é acidental, pois alma e corpo não formam a unidade metafísica, substancial, da doutrina da forma e da matéria. 33 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Entretanto, demonstrou indecisão entre o criacionismo e o traducionismo, ou seja, se a alma é criada diretamente por Deus ou provém da alma dos pais. A única certeza é que ela é imortal pela sua simplicidade. Agostinho a classificou platonicamente em vegetativa, sensitiva e intelectiva; mas destacou que estão todas forjadas na substância humana. Dessa forma, a inteligência é divina em intelecto intuitivo, a razão consiste em fruto da vontade. Enquanto no homem a vontade é amor, no animal funciona como instinto, e nos seres inferiores está representada pelo apetite. Sem sombra de dúvida, a moral agostiniana é cristã e transcendente. A característica mais importante da sua moral está no voluntarismo, na ação própria do pensamento latino, de forma oposta ao pensamento grego. Dessa forma, a vontade não é determinada pelo intelecto, pois vem antes dele. Para a filosofia agostiniana, como a vontade é livre, pode querer o mal; pois se trata de um ser limitado, capaz de ir ao encontro da vontade de Deus. O pecado, portanto, possui em si mesmo o dado estrutural da pena da sua desordem e, como o homem não pode prejudicar Deus, acaba prejudicando a si mesmo, dilacerado pela sua natureza. A teoria agostiniana sobre a liberdade em Adão, antes do pecado original, consiste justamente em poder não pecar. Depois do pecado original cometido, está em não poder não pecar e nos bem-aventurados será não poder pecar. Exposta dessa maneira, a vontade humana parece impotente e sem graça. Já a questão da graça, que perturbava Agostinho, apresenta um interesse filosófico, uma vez que trata de conciliar a causalidade absoluta de Deus com o livre arbítrio do homem. Com relação à família, Agostinho, assim como o apóstolo Paulo, considerou o celibato superior ao matrimônio. Se o mundo terminasse por causa do celibato, ele demonstraria alegria pela passagem do tempo para a eternidade. Quanto à política, ele possui uma concepção negativa da função estatal, pois se não houvesse pecado e os homens fossem todos corretos, o Estado de nada serviria. Na visão de Agostinho, a propriedade seria de direito positivo, e não natural. Também a escravidão não seria de direito natural, e sim uma consequência do pecado original, que sempre incomodou toda a humanidade. Por não poder ser vencida de forma racional, sua essência já é corrompida, podendo ser superada apenas por meio do conformismo cristão, de quem é escravo, e da caridade, de quem é senhor. Agostinho foi profundamente perturbado pelo problema do mal, do qual fornece uma rica fenomenologia, e também por muito tempo desviado dessa questão pela solução maniqueísta, que impediu seu acesso ao justo conceito de Deus e à possibilidade da vida moral. Ele descobriu a solução para esse problema na libertação e na sua concepção filosófico-teológica, considerada como um marco fundamental entre o pensamento grego e cristão. Inicialmente, ele refutou a realidade metafísica do mal, alegando ser ela a privação do ser, da mesma forma que a escuridão consiste na ausência de luz. Essa privação é necessária em qualquer criatura que não seja Deus. Já ao mal físico, que atinge a perfeição natural dos seres, buscou explicá-lo argumentando que o contraste dos seres contribuiria para a composição harmônica do todo. No que se refere ao “mal moral”, existe de fato a má vontade que provoca livremente o mal; porém, ela não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não ser, que pode vir do homem livre e limitado e não de Deus, que é puro ser e cria apenas o ser. Como o mal moral chegou ao mundo humano pelo pecado original e atual, a humanidade foi castigada com todo tipo de sofrimento, incluindo a perda dos dons divinos. 34 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 Dessa forma, o mal físico tem outra explicação mais profunda, uma vez que o mal moral foi remediado pela redenção de Cristo, Homem-Deus, que devolveu à humanidade os dons divinos, bem como a possibilidade do bem moral, mas deixou permanecer o sofrimento como consequência do pecado, como meio de purificação e expiação. Para explicar o mal moral e seus desdobramentos, Agostinho atestou o fato de ser muito mais glorioso para Deus retirar o bem do mal, em vez de simplesmente impedir o mal. De maneira resumida, a doutrina agostiniana sobre o mal consiste basicamente na privação do bem ou devido a uma natureza específica. Agostinho divide em três partes a história que antecedeu a de Cristo. A primeira encontra-se relacionada à história da Cidade de Deus e da Cidade Satânica após o pecado original, até se unirem em um único mundo caótico humano, indo até a chegada de Abraão, com o começo da separação. Já na segunda parte, ele se restringre à Cidade de Deus, instalada em Israel, de Abraão até Cristo. Na terceira fase, o filósofo volta ao ponto em que tem início a história da Cidade de Deus desde seus primórdios, para tratar da mesma forma a cidade do mundo que nos leva ao Império Romano. Apesar de fragmentada, essa narrativa, na qual Satanás parece ter seu reino, representa, ao mesmo tempo, uma unidade e uma perspectiva de progresso para Cristo, sempre mais aguardado e profetizado em Israel e pelos povos pagãos, que também, de alguma forma, já preparavam a sua vinda. Após a vinda de Cristo, acabou a divisão política entre as duas cidades, e elas acabam se entrelaçando como nos primórdios da humanidade, sem ser mais uma união caótica, mas sim reformulada pela Igreja, que está acima de todas as convenções humanas na unidade dos homens com Deus. Nesse sentido, a Igreja passa a ser acessível às almas de boa vontade que dela não podem participar, indo além do mundo terreno. Como todos os predestinados se encontram na prática unidos na Igreja, a divisão final vai acontecer somente no fim dos tempos, depois da morte e do julgamento universal. Por ser uma visão unitária e teológica da história, pertence ao terreno da teologia e não da filosofia. 4.2 A Escolástica Figura 8 – Santo Agostinho 35 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO A escolástica possui um significado mais limitado quando comparada às disciplinas ministradas nas escolas medievais, entre elas a gramática, a retórica e a dialética; a aritmética, a geometria, a astronomia e a música, embora contemple uma conotação mais ampla ao se reportar à linha filosófica adotada pela Igreja na Idade Média. Esse modo de pensar essencialmente cristão buscava respostas que justificassem a fé na doutrina ensinada pelo clero, considerado como o guardião das verdades espirituais. Essa escola filosófica prevaleceu do princípio do século IX até o final do século XVI, época que representou o declínio da era medieval, sendo a escolástica o resultado de estudos mais profundos da arte dialética, assim como a radicalização dessa prática.No início, ela foi disseminada nas catedrais e nos monastérios para depois chegar às universidades. Com isso, a filosofia da antiguidade clássica adquiriu características judaico-cristãs, já esboçadas a partir do século V, com a necessidade urgente de fazer um mergulho profundo em uma cultura espiritual que estava se desenvolvendo rapidamente, para assimilar a esses princípios religiosos uma essência filosófica capaz de introduzir o cristianismo no campo da filosofia. A partir dessas tentativas de racionalização do pensamento cristão, surgiram os dogmas católicos, que se infiltraram na mentalidade clássica dos conceitos gregos, como ‘providência’, ‘revelação divina’, ‘criação proveniente do nada’, entre tantos outros. A tarefa dos escolásticos consistia, portanto, em harmonizar ideais platônicos com fatores de natureza espiritual, inseridos do cristianismo vigente ocidental. Mesmo quando Aristóteles é contemplado no pensamento cristão por Tomás de Aquino, o neoplatonismo adotado pela Igreja ainda é preservado, fazendo com que a escolástica seja permanentemente atravessada por dois universos distintos, o da fé herdada da mentalidade platônica e a razão aristotélica. No caso de Agostinho, havia o clamor pelo predomínio da fé em detrimento da razão, ao passo que, em Tomás de Aquino, se acreditava na independência da esfera racional na busca de respostas mais apropriadas, embora não houvesse rejeição à primazia da fé sobre a razão. O método adotado pela Escolástica se deu por meio do ensino, fundamentado no mestre com o domínio da palavra e também no debate livre entre o professor e seu discípulo. Além disso, também houve as formas literárias e, entre elas, predominam os comentários, nascidos das discussões, dos quais se originam as summas, que permitem ao autor se ver um pouco mais livre dos textos. Uma das summas mais renomadas é a Summa Theologica de São Tomás. A Opuscula é igualmente usada pelos escolásticos, representando um caminho mais autônomo para se abordar uma questão. Vale ressaltar que a escolástica foi nitidamente influenciada pela Bíblia Sagrada, pelos filósofos da antiguidade e também pelos padres da Igreja, escritores do primeiro período do cristianismo oficial, que dominavam a fé e a santidade. Ela ainda pode ser considerada como o último período do pensamento cristão, que se estende desde o começo do século IX até o final do século XVI, abrangendo da constituição do Império Romano até o final da Idade Média. Portanto, a escolástica era a filosofia ensinada nas escolas dessa época pelos professores chamados de escolásticos. As disciplinas ensinadas nas escolas medievais dividiam-se entre gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria, astronomia e música. A escolástica veio a partir do desenvolvimento da dialética. Junto com essa instrução, ainda existe, na Idade Média, uma educação militar, ministrada por militares para militares. Também a Igreja preocupa-se no sentido de conferir ao seu sistema educacional um sentido ético, religioso e católico. Pode-se afirmar que a história da filosofia escolástica começou 36 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 com o nome de João Scoto Erígena, que nasceu na Irlanda, em 874. Ele foi chamado à corte culta de Carlos, o Calvo, para presidir e ministrar aulas na escola palatina. Sua obra principal consiste Da Divisão da Natureza, dividida em cinco livros. Por apresentar características neoplatônicas, o esquema especulativo da obra traz a descida da unidade à multiplicidade, bem como o retorno da multiplicidade à unidade. A valorização conceitual das ideias, problema que tanto despertou o interesse da escolástica, foi solucionado de maneira radical no pensamento escotista. As soluções oferecidas pela escolástica podem ser basicamente divididas em três: a solução chamada de realismo transcendente, a solução do realismo moderado e a solução nominalista. Segundo a solução proposta pelo realismo transcendente, a ideia de uma realidade existe além da esfera mental e do objeto, consistindo na solução platônica adotada pela escolástica iniciante. Já a solução do realismo moderado traz em si uma realidade objetiva e fora do campo mental. Nesse sentido, a solução conceptualista- nominalista destaca que o universal não possui existência objetiva, mas somente mental ou nominal. Após a decadência cultural que se seguiu à renascença, começou a se manifestar nos séculos XI e XII um renascimento especulativo, incluindo a luta dos teólogos e dos místicos, contra a ciência filosófica por eles considerada um resíduo pagão e uma distração mundana contra os filósofos e os dialéticos que a cultivavam. Também é importante destacar sua posição crítica com relação à pesquisa filosófica, pois a dúvida nos leva à investigação, e a investigação nos leva à ciência. Observação “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia” (Shakespeare). 4.2.1 O pensamento de Tomás de Aquino Figura 9 – São Tomás de Aquino 37 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Podemos afirmar que o tomismo ou a doutrina escolástica de Tomás de Aquino, adotada oficialmente pela Igreja Católica, caracteriza-se, principalmente, pela tentativa de conciliar a filosofia de Aristóteles com o cristianismo, desfazendo-se das doutrinas que não estavam enquadradas de acordo com os princípios aristotélicos. A obra de Tomás de Aquino pode ser dividida em partes, tratados, questões e artigos, objeções e respostas, em rigorosa ordem numérica, abordando em sua estrutura a composição do mundo feudal, separado em classes e em estamentos sociais. Como a expressão máxima do apogeu do mundo medieval, contemporânea dos castelos e das catedrais, o tomismo consiste em um manancial de ideias, em que a teologia do século XIII encontrou sua forma mais coerente e sólida de formulação. Contudo, o tomismo não foi totalmente aceito pelos escolásticos medievais, e apenas na segunda metade do século XVI foi adotado como arma de defesa e ataque da Contrarreforma da Igreja Católica. Coube a Tomás de Aquino a tarefa de mostrar a solução definitiva para o conflito existente nas relações entre a razão e a fé. Estamos falando de duas ciências, a filosofia e a teologia, sendo que a primeira baseia-se no exercício da razão humana, enquanto a segunda, na revelação divina. Apesar de serem independentes, apresentam, por vezes, os objetos de estudo comuns, como a existência de Deus, a essência da alma, entre outros. Por esse motivo, a distinção entre essas ciências tem origem mais do objeto formal, pois a teologia estuda o dogma pelo método da autoridade ou da revelação, e a filosofia o analisa pela demonstração científica ou pela razão. Portanto, teologia e filosofia não são ciências contraditórias, pois ambas procuram a verdade, e esta é uma só. Na hipótese de uma contradição entre a razão e a revelação, o erro não será jamais da teologia, mas sim da filosofia, pois nossas limitações do ponto de vista do conhecimento racional desviaram-se e não conseguiram atingir a verdade. Para Tomás de Aquino, nada está na inteligência que não tenha estado antes nos sentidos, motivo pelo qual não podemos ter de Deus, de pronto, uma noção imediata. Com o objetivo de provar sua existência, Tomás procede a posteriori, ou seja, não da ideia de Deus, mas sim dos efeitos por Ele proporcionados. Dessa forma, ele utiliza o mundo sensível, cuja existência é dada pelos sentidos como ponto de partida, bem como a metafísica de Aristóteles, para demonstrar a existência de Deus de cinco modos, mais conhecidos como as famosas cinco vias: 1) A do “Movimento” – trata-se do argumento aristotélico do primeiromotor, que afirma “não ser possível admitir uma série infinita de seres que se movem, movendo por sua vez outros seres; logo, é preciso chegar a um motor que mova sem ser movido”. Portanto, o movimento existe e é uma evidência para nossos sentidos. Tudo aquilo que se move é movido por outro motor; e se esse motor, por sua vez, é movido, vai necessitar de um motor que o mova, e assim por diante de forma infinita, o que é impossível, se não houver um primeiro motor imóvel, que move sem ser movido, que é Deus. 2) A da “Concatenação das Causas” – tudo está sujeito à lei de causa e efeito. Portanto, existe uma série de causas e efeitos ao mesmo tempo. Sendo assim, torna-se impossível remontar indefinidamente na série das causas. Logo, há uma causa primeira, não causada, que é Deus. 3) A da “Contingência” – todos os seres conhecidos são finitos, pois não possuem em si próprios a razão de sua existência. São e deixam de ser. Se são todos mortais, em um prazo de tempo 38 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 deixariam de ser e nada mais existiria, o que é absurdo. Portanto, os seres contingentes implicam o ser necessário, ou seja, Deus. 4) A dos “Graus de Perfeição” – todas as perfeições possuem graus, que se aproximam mais ou menos da perfeição absoluta. Deve, pois, haver um ser supremo perfeito, que é Deus. 5) A da “Ordem Universal” – todos os seres tendem para uma ordem, não de forma aleatória, mas por uma inteligência que os guia. Isso significa que há um ser inteligente que ordena a natureza e a impulsiona para seu fim. Esse ente é Deus. A partir desses conceitos, Tomás de Aquino concluiu o quanto podemos conhecer sobre a natureza e as virtudes de Deus. No entanto, observou que esse conhecimento é imperfeito, pois sabemos que “Deus é”, mas não “O que é”. Mesmo assim, podemos compreender que Deus é eterno, infinito e onipotente em suas relações com o mundo, além de ser Criador e Providência. Nesse sentido, a doutrina tomista acredita que a alma, como princípio espiritual, une-se ao corpo, como princípio material, para constituir uma substância. Dessa forma, possuem alma as plantas, sendo a “alma vegetativa” a responsável pelas funções de alimentação e reprodução. No caso dos animais, é a “alma sensitiva” que responde às funções anteriores, mais à sensação e à mobilidade. Para o homem, juntam-se todas as funções anteriores, acrescentando-se a racional. No que diz respeito às propriedades da alma humana, ele admite o livre-arbítrio, que é estudado sob todos seus aspectos, e os problemas dele derivados são resolvidos com seriedade e rigidez. Tomás de Aquino considera a inteligência como a faculdade mais perfeita da alma humana. Por intermédio dos seus princípios éticos, ele também adapta a doutrina de Aristóteles aos princípios cristãos. Dessa forma, a ética passa a ser o “movimento da criatura racional para Deus”, que busca a bem-aventurança e consiste na contemplação imediata de Deus. Para Tomás de Aquino, o conhecimento tem dois momentos: o sensitivo e o intelectual. O conhecimento sensitivo do objeto está fora de nós e acontece mediante a sensação, que consiste na impressão do objeto material em nossa consciência. Ela processa-se pela assimilação das sensações do sujeito com o objeto conhecido. Já o conhecimento intelectual depende do conhecimento sensitivo; mas ultrapassa-o por meio da abstração e da generalização na busca da formulação de conceitos. Considerado o maior representante da escolástica, Tomás de Aquino elaborou um sistema filosófico sintético, coerente e fundamentado em Aristóteles, reformulando, assim, todo o pensamento cristão e adquirindo plena consciência dos poderes racionais, o que permite ao cristianismo ser visto como uma filosofia. Assim, podemos atribuir a Tomás de Aquino o pensamento escolástico, bem como o pensamento patrístico, que teve seu ápice em Agostinho, repleto de elementos helenistas e neoplatônicos, incluindo a herança da revelação judaico-cristã. A ele, deve-se diretamente o pensamento helênico na sistematização do pensamento de Aristóteles, que chega a Tomás de Aquino acrescido pelas influências de outras culturas. Diferentemente do agostinianismo, e em sintonia com o pensamento aristotélico, Tomás de Aquino considerava a filosofia como uma disciplina para resolver o problema do mundo e totalmente 39 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO distinta da teologia, mas sem ser oposta a ela. Pelo contrário, diversamente de Agostinho, ela estaria em harmonia com a aristotélica, por ser empírica e racional, sem intervenções divinas. Nesse contexto, o conhecimento humano passa por dois momentos, o sensível e o intelectual, e o segundo pressupõe o primeiro. O conhecimento sensível do objeto, que está fora de nós, acontece por meio da impressão da imagem, ou seja, pela forma do objeto material na alma, o que representa o objeto desprovido da matéria. Já o conhecimento intelectual observa a natureza das coisas em nível mais profundido em comparação aos sentidos humanos, sobre os quais exerce a sua função. Na forma sensível, que significa o objeto material na sua individualidade, independentemente da matéria, o inteligível, o universal e a essência estão retidos nele como potencial. Para que venha à tona, é preciso descontextualizá-lo das condições materiais. Esse procedimento pode ser feito apenas por um agente intelectual capaz de abstrair e desmaterializar o inteligível da representação sensível. Porém, esse conhecimento não possui conteúdo ideal nem conceitos, como pretendia o inatismo agostiniano. Além disso, trata-se de uma faculdade da alma individual, que não vem de fora. É importante salientar que, na filosofia de Tomás de Aquino, a espécie inteligível é o meio pelo qual a mente entende as coisas extramentais, e isso corresponde perfeitamente aos dados do conhecimento, que nos assegura conhecermos coisas e não ideias. Contudo, as coisas podem ser conhecidas somente por meio das espécies e das imagens; mas sem entrar fisicamente no cérebro. Nesse aspecto, o conceito tomista de verdade encontra-se em harmonia com a concepção realista do mundo, justificando-se pela experiência prática e pela razão. Portanto, a verdade lógica encontra-se na adaptação entre a coisa e o intelecto. O indicativo pelo qual a verdade se manifesta à nossa mente está na evidência e, como muitos conhecimentos nossos não são evidentes, mas de natureza intuitiva, tornam-se verdadeiros quando levados à evidência por intermédio da prática demonstrativa. Embora a demonstração seja um processo dedutivo, os conceitos e as ideias não são inatos na mente humana, como defendia o agostinianismo, e nem sequer nas suas relações lógicas. Elas consistem no resultado fundamental da experiência humana mediante a indução, que chega à essência das coisas. A metafísica geral tem por finalidade o ser em geral, as atribuições e as leis relativas, enquanto a metafísica especial busca estudar o homem em suas grandes especificações, entre elas Deus, o espírito e o mundo. Nesse sentido, a base do tomismo está na especificação do ser em potência e ato, significando este a realidade e a perfeição, enquanto a potência representa o oposto. Nesse contexto, o princípio de potência e ato vale para qualquer realidade material, sendo o princípio da matéria aquele que interessa à cosmologia tomista. Dessa maneira, a concretização da forma em vários indivíduos, que realmente existem, depende da matéria, que representa o indivíduo no mundo concreto. Além da matéria e da forma como causas constitutivas, os seres materiais possuem duas outras causas – a eficiente e a final. A causaeficiente é responsável pelo surgimento de um ser na realidade, 40 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 sintetizando aquela matéria com a forma por ela determinada. Já a causa final determina a ordem observada no universo. Em outras palavras, todo ser material existe por causa do cruzamento de quatro causas – material, formal, eficiente e final, que constituem o ser na realidade e na ordem com os demais seres vivos pertencentes ao universo. Como o princípio da vida está dentro do ser, sendo denominado de alma, possuem uma alma também as plantas e os animais. Porém, para a psicologia racional, que se ocupa com o homem, interessa somente a alma racional. A alma racional desempenha as funções da alma vegetativa e sensitiva, compreendendo e desejando; pois, na visão de Tomás de Aquino, existe uma forma só e, consequentemente, apenas uma alma para cada indivíduo. No homem, existe uma alma espiritual, unida com o corpo, que o transcende. Portanto, além das atividades já mencionadas, manifestam-se ainda atividades espirituais, como o intelecto e a vontade. A atividade intelectual, por exemplo, está direcionada para entidades imateriais, como os conceitos. No caso da vontade humana, ela é livre e indeterminada, enquanto o mundo material segue regido por leis fundamentais. Assim sendo, a vontade apresenta-se como um princípio imaterial e espiritual da alma racional, que é imortal, por ser imaterial e espiritual. Diferentemente do dualismo platônico-agostiniano, Tomás de Aquino afirma que a alma, mesmo espiritual, está junto do corpo material, que é a sua forma. Desse modo, como o corpo não pode existir sem a alma, também a alma, mesmo imortal, não pode viver em sua plenitude sem o corpo, que lhe serve como uma ferramenta crucial. Ao contrário da doutrina agostiniana, que pretendia ser Deus conhecido imediatamente por intuição, Tomás de Aquino ressalta que Deus pode ser conhecido apenas pela demonstração sólida e racional, sem que seja necessário recorrer a argumentações a priori, mas unicamente a posteriori, partindo da experiência que, sem Ele, seria contraditória. Cinco são as provas tomistas a respeito da experiência de Deus, mas todas elas preservam em comum a evidência tanto sensível quanto racional para proceder à demonstração da lógica. A primeira é fundamental e serve de modelo para as demais, pois se fundamenta na doutrina da potência e do ato. Cada uma tem como base dois elementos sólidos que são incontestáveis. É preciso ententer que, se Deus for conhecido indiretamente só pelas provas, será muito mais limitado o nosso conhecimento da essência divina como sendo aquela que vai além do intelecto humano de forma divina. Antes de mais nada, sabemos o que Deus não é, mas conhecemos sua natureza positiva em função da doutrina da analogia, com base no fato de que o conhecimento certo de Deus deve ser realizado a partir das suas criaturas, fazendo com que o efeito tenha semelhança com a causa. A doutrina da analogia remete a Deus, às perfeições criadas positivamente, retirando as imperfeições ou toda forma de limitação. Para concluir, aquilo que conhecemos sobre Deus consiste em um conjunto complexo e incompleto de negações e de analogias. No que diz respeito à questão das relações entre Deus e o universo, o ponto de partida para solucioná-las está na ideia de criação, ou seja, na produção livre e total do mundo por parte de Deus e a partir do nada. 41 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Lembrete No período medieval, enquanto Agostinho buscou sua inspiração na filosofia platônica, Tomás de Aquino preferiu os pensamentos de Aristóteles para elaborar a filosofia metafísica cristã. Saiba mais Leia o livro ou assista ao filme O nome da rosa, do escritor e pensador italiano Umberto Eco. ECO, U. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Record, 2009. Resumo Quando se fixou na terra, o homem passou a viver de forma mais segura e confortável, o que permitiu que ele passasse a refletir a respeito de sua própria condição, indagando sobre suas origens e sobre os fenômenos naturais. Na busca de compreender seu lugar no mundo, ele concebeu primeiro a Teogonia, que vem do grego theos, deus, + genea, origem, representada por um conjunto de deuses que constituíram o saber mitológico desses povos. Os primeiros pensadores gregos foram os pré-socráticos da Escola Jônica, dividida em Escola Jônica Antiga (Tales, Anaximandro e Anaxímenes) e Escola Jônica Nova (Heráclito, Empédocles e Anaxágoras). Porém, eles se concentravam somente no primeiro elemento formador de tudo aquilo que observavam, sem se preocupar com as causas das mudanças. O pensamento filosófico teve início nas colônias gregas, nos séculos VI e V a.C., da região periférica (pré-socráticos) para o centro, em Atenas (sofistas e filósofos socráticos). Há também um questionamento se a filosofia na Grécia não seria produto de filosofias orientais, pertencentes a outras civilizações. Como resposta, há basicamente duas correntes que se ocupam em delimitar essas influências. Uma delas acredita que a filosofia grega seria mesmo resultado da contaminação cultural com pensamento de outros povos. Já a segunda, destaca que a filosofia grega revela-se como produto único dos gregos, livre de qualquer influência estrangeira. Atualmente, o mais correto seria considerar a combinação das duas possibilidades. 42 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 A filosofia antiga pode ser dividida em três períodos: • Primeiro período: do século VII até o ano de 450 a.C., de Tales até Sócrates. Caracteriza-se pela formação ou juventude, uma vez que é durante ele que se estuda a natureza, passando a ser conhecido e chamado de Período Cosmológico. • Segundo período: de 450 a.C. até o século III d.C., de Sócrates até o ecletismo. Seu foco central está no ser humano; por isso, essa fase recebeu o nome de Período Antropológico. • Terceiro período: do século I até o século VI d.C. Por três séculos coincide com o período antropológico; mas deixa evidente a decadência da filosofia grega, e seu foco passa a ser Deus ou a união teosófica com Ele. Por essa razão, denomina-se Período Teosófico. Sócrates foi um divisor de águas na história da filosofia na Grécia Antiga, que se divide entre os filósofos pré-socráticos e pós-socráticos, tal foi sua relevância para o pensamento filosófico ocidental. Consagrado na sua época como o mais sábio e inteligente dos homens, Sócrates revelava na sua postura filosófica o quanto era importante levar o conhecimento para os gregos por meio do diálogo como forma pedagógica de transmissão de saber. Ele também acreditava que a alma humana era imortal e que teria recebido a missão do deus Apolo de alertar o homem sobre a necessidade de conhecer a si mesmo. Além disso, duvidava da possibilidade de a virtude ser ensinada, uma vez que a moral pressupõe uma questão de inspiração e não de parentesco, já que pais moralmente perfeitos podem não gerar filhos iguais a eles. Sócrates destacou ainda que suas ideias não eram próprias, mas sim de seus mestres, entre eles Pródico e Anaxágoras de Clazômenas. Chamou a atenção para a limitação da sua sabedoria e da própria ignorância, atribuindo os erros cometidos à ignorância, pois jamais assumiu ser um homem sábio. No pensamento filosófico de Platão, essa busca racional possui uma natureza mais contemplativa, o que implica a busca da verdade no interior do próprio homem como um agente participante da essência do ser. Da mesma forma que Sócrates,ocupou-se em desvendar as verdades essenciais das coisas por meio do conhecimento, desconsiderando o homem na condição de corpo, mas ressaltando a sua alma pela perfeição e com direito a um lugar no mundo perfeito das ideias. No entanto, esse formalismo pode ser encontrado na experiência sensitiva. Para ele, também o conhecimento deve ser concebido para uma finalidade moral, com o objetivo de elevar o homem à instância da bondade e da felicidade. Assim sendo, a maneira de conhecer era, de fato, uma forma de reconhecimento, possibilitando o reencontro do ser humano com as verdades já conhecidas e capacitando-o a discernir sobre o que existe entre as aparências de verdades e as verdades propriamente ditas. 43 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Conhecido como o pensador que mais influenciou a filosofia ocidental, Aristóteles nasceu em Estagira, na Calcídica, em 384 a.C. Na condição de discípulo de Platão, ele discordava de uma parte fundamental da filosofia do seu mestre, que concebia dois mundos distintos, um dominado pelos sentidos humanos, em processo de mutação perene, e o outro como sendo das ideias, acessível apenas pelo pensamento intelectual, que é imutável e atemporal. Aristóteles aceitava somente a existência do mundo em que vivemos, alegando que aquilo que se encontra além da experiência humana não poderia fazer sentido algum para o homem. Na filosofia aristotélica, a lógica é considerada como uma introdução para o conhecimento, baseada em uma estrutura de raciocínio que inclui pressupostos criados para que se possa chegar à etapa conclusiva. Se traçarmos um perfil da filosofia medieval pelo seu conteúdo, naquilo que corresponde à sua essência espiritual, podemos conceituá-la como o pensamento filosófico ocidental que vem desde Santo Agostinho e de Anselmo de Cantuária, obedecendo ao mote: “saber para crer, crer para poder saber”. Durante esse período, a filosofia, que tem por objetivo tratar dos grandes problemas do mundo, do homem e de Deus só com as forças da razão, alia-se com a fé religiosa no pressuposto de uma unidade ideológica. Nela, está representado o espírito de toda essa fase da história humana, e nada é mais significativo do que essa unidade espiritual. Como nunca, todos vivem na certeza da existência de Deus, da sua sabedoria, do seu poder e da sua bondade. Nesse sentido, o homem podia dizer, com segurança, que sabia da origem do mundo e da sua própria natureza, cheia de sentido, bem como a sua essência homem e a sua posição no universo, tendo em vista a significação da sua vida e a imortalidade. Enquanto na era moderna indaga-se a respeito da possibilidade da ordem e da lei, na época medieval a ordem estabelece-se como algo evidente, sendo nossa a tarefa de reconhecê-la. No início da patrística, a Idade Média encontrou seu direcionamento, que foi preservado até o final. O padre Agostinho destacou-se entre o clero, assim como Tomás de Aquino entre os escolásticos. Pela sua imensa sensibilidade e pela sua postura compreensiva, Agostinho juntou a patrística grega com o caráter prático da patrística latina, mesmo que os problemas que o preocupassem fossem de ordem prática e moral, como o mal, a liberdade e o destino. Para ele, a filosofia era a solução para os problemas da vida, para os quais apenas o cristianismo podia dar uma solução definitiva. Portanto, seu maior interesse estava restrito aos problemas de Deus e da alma, por serem os mais relevantes. Mesmo minimizando o conhecimento dos sentidos em relação ao conhecimento intelectual, Agostinho afirmou que os sentidos, assim como o intelecto, também consistem em fontes de conhecimento. 44 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 A escolástica possui um significado mais limitado quando comparada às disciplinas ministradas nas escolas medievais, entre elas a gramática, a retórica e dialética; a aritmética, a geometria, a astronomia e a música, embora contemple uma conotação mais ampla ao se reportar à linha filosófica adotada pela Igreja na Idade Média. Esse modo de pensar essencialmente cristão buscava respostas que justificassem a fé na doutrina ensinada pelo clero, considerado como o guardião das verdades espirituais. Essa escola filosófica prevaleceu do princípio do século IX até o final do século XVI, época que representou o declínio da Era Medieval, sendo a escolástica o resultado de estudos mais profundos da arte dialética, assim como a radicalização dessa prática. No início, ela foi disseminada nas catedrais e nos monastérios, para depois chegar às universidades. A tarefa dos escolásticos consistia, portanto, em harmonizar ideais platônicos com fatores de natureza espiritual, inseridos no cristianismo vigente ocidental. Mesmo quando Aristóteles é contemplado no pensamento cristão por Tomás de Aquino, o neoplatonismo adotado pela Igreja ainda é preservado, fazendo com que a escolástica seja permanentemente atravessada por dois universos distintos – o da fé herdada da mentalidade platônica e a razão aristotélica. No caso de Agostinho, havia o clamor pelo predomínio da fé em detrimento da razão, ao passo que, em Tomás de Aquino, se acreditava na independência da esfera racional na busca de respostas mais apropriadas, embora não houvesse rejeição à primazia da fé sobre a razão. Podemos afirmar que o tomismo, ou a doutrina escolástica de Tomás de Aquino, adotada oficialmente pela Igreja Católica, caracteriza-se, principalmente, pela tentativa de conciliar a filosofia de Aristóteles com o cristianismo, desfazendo-se das doutrinas que não estavam enquadradas de acordo com os princípios aristotélicos. A obra de Tomás de Aquino pode ser dividida em partes – tratados, questões, artigos, objeções e respostas –, em rigorosa ordem numérica, abordando em sua estrutura a composição do mundo feudal, separado em classes e em estamentos sociais. Como expressão máxima do apogeu do mundo medieval, contemporânea dos castelos e das catedrais, o tomismo consiste em um manancial de ideias, em que a teologia do século XIII encontrou sua forma mais coerente e sólida de formulação. Contudo, o tomismo não foi totalmente aceito pelos escolásticos medievais, sendo adotado apenas na segunda metade do século XVI como arma de defesa e ataque da Contrarreforma da Igreja Católica. Coube a Tomás de Aquino a tarefa de mostrar a solução definitiva para o conflito existente nas relações entre a razão e a fé. Estamos falando de duas ciências – a filosofia e a teologia. A primeira baseia-se no exercício da razão humana, enquanto a segunda, na revelação divina. Apesar de serem 45 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO independentes, apresentam, por vezes, objetos de estudo comuns, como a existência de Deus, a essência da alma, entre outros. Por esse motivo, a distinção entre essas ciências tem origem mais do objeto formal, pois a teologia estuda o dogma pelo método da autoridade ou da revelação, e a filosofia o analisa pela demonstração científica ou pela razão. Portanto, teologia e filosofia não são ciências contraditórias, pois ambas procuram a verdade, e esta é uma só. Na hipótese de uma contradição entre a razão e a revelação, o erro não será jamais da teologia, mas sim da filosofia; pois nossas limitações do ponto de vista do conhecimento racional desviaram- se e não conseguiram atingir a verdade. Em resumo, todo ser material existe por causa do cruzamento de quatro causas – material, formal, eficiente e final, que constituem todo ser narealidade e na ordem com os demais seres vivos do universo. Exercícios A história em quadrinhos a seguir é uma homenagem de Mauricio de Sousa ao célebre texto de Platão, Alegoria da caverna, que funciona como interpretação e adaptação do texto clássico da filosofia para os dias atuais. Leia com atenção para responder às questões 1 e 2: 46 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 47 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO 48 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 49 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Disponível em: <www.monica.com.br/comics/piteco/welcome.htm>. Acesso em: 15 ago. 2011. Questão 1. Em relação à Alegoria da caverna de Platão, leia as interpretações a seguir: I – Os homens presos no interior da caverna são as pessoas presas às crenças e aos hábitos do senso comum. II – A saída da caverna é um processo lento e gradativo que poderá ser atingido por aqueles que passem a questionar e a refletir filosoficamente sobre as crenças e os hábitos. III – Aquele que sai da caverna é o filósofo ou sábio. Ao contemplar a verdade fora dela, ele se lembrará de seus antigos companheiros. Ele não deve voltar à caverna para tentar libertar seus companheiros, pois corre o risco de ser incompreendido e morto. Está(ão) correta(s): a) I. b) I e II. c) II. d) I e III. e) I, II e III. Resposta correta: alternativa B. 50 Unidade I Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 Análise das alternativas a) A afirmativa I é verdadeira, porque, na alegoria, o mundo das sombras quer dizer justamente o estado de engano daqueles que vivem acreditando em falsas verdades ou em ideologias. b) A afirmativa II é verdadeira, porque na alegoria, quando o indivíduo sai do mundo do interior da caverna e é ofuscado pela luz do mundo exterior, necessita de um tempo para se adaptar às verdades que ele não conhecia. Por esse motivo, o processo “de saída do mundo das sombras” deve ser lento e gradativo. c) A afirmativa III é falsa, pois qualquer indivíduo pode passar pelo processo de reflexão e procurar ajudar para que outros cheguem a ele, apesar da resistência inicial, que é natural, pois todos têm a tendência de se agarrar às antigas crenças e valores. Questão 2. Em relação ao pensamento filosófico na Idade Média: I – Pode-se dizer que a filosofia não tinha relação com a religião cristã. II – A filosofia tinha uma relação com a metafísica cristã. III – Os conhecimentos produzidos pelas ciências particulares (ex.: biologia, física, química etc.) tinham relação com a filosofia no que concernia a questões mais gerais. Está(ao) correta(s) as afirmativas: a) I. b) I e II. c) II. d) I e III. e) I, II e III. Resolução desta questão na Plataforma. 51 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Unidade II 5 A FILOSOFIA MODERNA O Renascimento, ocorrido nos séculos XIV e XV, é nitidamente demarcado pela redescoberta da arte e da literatura grega, abrangendo o humanismo, com ênfase na colocação do homem no centro da realidade, o repensar da política, o estilo de governo influenciado pelas obras de Maquiavel, o estudo científico e a filosofia moderna, com destaque para o poder racional do homem, sinalizando um retorno às raízes do pensamento racional e à renúncia do controle do conhecimento pelo misticismo e pela Igreja Católica. Nesse contexto, a sabedoria não é mais vista como algo sagrado e místico, uma vez que, por meio do pensamento e do raciocínio, o homem tem poder para traçar seu próprio destino e caminhar rumo ao conhecimento. Para começar, é importante lembrar que a filosofia da Idade Moderna nasceu por causa dos trabalhos dos grandes mestres do renascimento cultural e científico dos séculos XIV e XV, entre eles Nicolau Copérnico e Leonardo da Vinci, e dos esforços de cientistas e pensadores como Galileu Galilei, Francis Bacon, René Descartes e Emanuel Kant nos séculos seguintes. A filosofia moderna teve início, de fato, com a Teoria do Conhecimento de René Descartes. Na Idade Média, tanto na sociedade quanto na política, a palavra de Deus era considerada como fonte única do conhecimento absoluto, sendo interpretada pela Igreja, que dominava todos os aspectos da vida humana. Por isso, o Renascimento trouxe uma renovação da ciência e a necessidade de uma nova definição do ser humano e seu lugar no mundo. A chamada Idade da Razão surgiu para redefinir os padrões científicos e filosóficos já existentes. Descartes, na declaração “penso, logo existo”, descobre o homem como um ser racional por natureza, com a capacidade de alcançar o conhecimento e, mais que do isso, sua existência é definida pelo ato de pensar. As obras de Descartes formaram a base sobre a qual os racionalistas desenvolveram seus trabalhos e formularam suas hipóteses. Figura 10 – Voltaire na corte de Frederick II da Prússia 52 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 Danilo Marcondes, em Iniciação à história da filosofia, sintetiza o Iluminismo, ou o Século das Luzes, como sendo um movimento do pensamento europeu (mais fortemente na França) concentrado principalmente nas últimas cinco décadas do século XVIII. Segundo ele: o Iluminismo valorizou o conhecimento como instrumento de libertação e progresso da humanidade, levando o homem à sua autonomia e a sociedade à democracia, ou seja, ao fim da opressão (2007, p. 210). Portanto, o Iluminismo como movimento dentro da modernidade e mantendo a ênfase na racionalidade possui características próprias, como a liberdade e o fim da opressão. Esse esclarecimento não requer nada mais que a liberdade, incluindo a mais inofensiva de todas as liberdades, ou seja, a de fazer uso público de sua razão em todos os domínios. Esse aspecto é importante, pois só se via limitação da liberdade, e o uso público da nossa razão deve ser livre, uma vez que somente ele pode difundir o esclarecimento entre os homens. O Iluminismo influenciou os responsáveis pelos movimentos de libertação no século XVIII, e seu efeito foi sentido de forma muito especial na França, sendo um dos fatores que levaram à Revolução Francesa. A burguesia, geradora de riqueza, estava presa sobre o jugo da aristocracia, da monarquia absolutista e da Igreja, dominantes desde a Idade Média, sendo obrigada a pagar impostos para sustentar o luxo de poucos, e ansiosa por uma sociedade livre. Ao encontrar aliados prontos para lutar entre as massas de miseráveis parisienses, revoltou-se contra a opressão pelo direito de ter liberdade de escolha sobre o curso da própria vida e contra uma voz no governo do país que ajudou a enriquecer. De acordo com Danilo Marcondes, uma das características fundamentais da filosofia do Iluminismo em relação ao homem é “o individualismo que se baseia na existência do indivíduo livre e autônomo, consistente e capaz de se autodeterminar” (2007, p. 208). O homem que, de acordo com Rousseau, nasce bom, passa a ser visto como livre, autônomo e senhor do seu próprio destino. 6 RENÉ DESCARTES: O RACIONALISMO Figura 11 – René Descartes 53 Re vi são: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO O primeiro pensador moderno As transformações que ocorreram no século XVI mudaram a concepção de mundo do homem ocidental à medida que novas descobertas foram ampliando os horizontes espaciais e temporais da experiência humana. Os pensadores dessa época encontravam antigas doutrinas de cunho filosófico e científico formuladas pela civilização greco-romana, que renasceu a todo vapor, tornando possível a construção de novo saber racional em oposição aos valores e aos princípios que prevaleceram na Idade Média, com base em uma nova configuração geográfica do planeta. Nesse contexto, praticamente tudo foi contestado, desde a unidade política e religiosa da Europa, passando pela autoridade da Bíblia e chegando a abalar o prestígio do Estado e da Igreja. Afinal, com os navegadores cruzando os mares e descobrindo novos povos e culturas, era natural que o questionamento das verdades até então estabelecidas fosse abalado. Foi nessa fase de efervescência e de arrebatamento pela compreensão de um mundo ainda inédito que nasceu e viveu René Descartes. Ele acreditava ser um iluminado cuja missão consistia em unificar todos os conhecimentos humanos a partir de bases sólidas atestadas pela ciência para edificar um modo de pensar centrado na verdade e, por isso mesmo, permeado apenas pelas certezas racionais. Como matemático e filósofo francês, ele refutou todos os pressupostos e ideias que vinham da natureza subjetiva dos sentidos, o que o levou a escrever a máxima “penso, logo existo”. Para ele, todo o universo material poderia ser explicado em termos físicos e matemáticos, o que o levou a criar a geometria analítica como forma de definir e manipular as formas geométricas por meio de expressões algébricas. Deu origem ainda às coordenadas cartesianas, a forma por intermédio da qual os pontos são representados nesse sistema, que marcaram para sempre seu nome na história da humanidade. Além de desenvolver a ciência da ótica, Descartes ajudou a conceber e modelar as teorias contemporâneas de ciências, como a astronomia, e o estudo do comportamento animal. Como filósofo, identificou a coisa pensante ou mente como sendo a alma ou a consciência humana. Já o corpo, apesar de interagir de alguma forma com a alma, era uma máquina física, secundária, podendo ser separado da alma. Ele defendia que tudo tinha uma causa, destacando que, apesar de toda a matéria estar em movimento, ela não se move por si, pois o impulso inicial vem de Deus. O dualismo cartesiano explicava que existiam duas substâncias totalmente diferentes em sua composição, a substância espacial, ou seja, a matéria, e a substância pensante, da qual a mente faz parte. René Descartes nasceu em 1596 em La Haye, rebatizada com o nome de Descartes em sua homenagem, no sul de Tours, na França. Integrou o exército do príncipe Maurício de Orange e, em 1619, durante uma viagem pela Europa, decidiu aplicar os métodos da matemática à metafísica e à ciência. Para isso, foi morar nos Países Baixos em 1628, onde tinha mais possibilidades de se libertar das influências e das perseguições da Igreja Católica. Em 1649, visitou a corte da rainha Cristina, na Suécia. O trabalho de maior destaque de Descartes no campo da matemática foi La Géométrie (A Geometria), publicado em 1637. Mesmo sem ter sido o primeiro a usar a álgebra na geometria, foi o primeiro a usar a geometria na álgebra. Ele foi também pioneiro na classificação das curvas sistematicamente, separando as curvas geométricas, que podem ser expressas com exatidão por meio de uma equação, das curvas mecânicas, que não admitem esse enquadramento. Entre seus trabalhos mais conhecidos, estão O discurso do 54 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 método (1637), Meditações sobre a primeira filosofia (1641) e Princípios da filosofia (1644), além de várias publicações sobre fisiologia, ótica e geometria. Também conhecido como Renatus Cartesius (forma latinizada), Descartes ganhou fama por seu trabalho revolucionário na filosofia e na ciência; mas também obteve reconhecimento matemático por sugerir a fusão da álgebra com a geometria, o que deu origem à geometria analítica e ao sistema de coordenadas cartesianas. Além disso, foi um dos pensadores mais importantes na Revolução Científica. Muitas vezes chamado de “fundador da filosofia moderna” e “pai da matemática moderna”, ele passou para a história como um dos pensadores mais influentes do pensamento ocidental, que serviu de modelo e inspiração para várias gerações de filósofos que viriam depois. Boa parte da filosofia escrita a partir da época em que viveu foi uma reação às suas obras ou a autores supostamente influenciados por ele. Muitos especialistas afirmam que Descartes inaugurou o racionalismo da Idade Moderna, enquanto décadas mais tarde, na Grã-Bretanha, John Locke e David Hume deram início a um movimento filósofico que pode ser considerado oposto ao seu pensamento, que se convencionou chamar de empirismo. No Discurso do método, Descartes declarou sua decepção não com o ensino da escola em si, mas com a forma de pensamento baseada na cultura e na tradição que era fundamentalmente escolástica, cujo conhecimento científico achava-se confuso, obscuro e nem um pouco prático. Ele criticou ainda as escolas da Companhia de Jesus, fazendo com que os mestres jesuítas o considerassem um filósofo deficiente. Nessa mesma época, escreveu também Larvatus prodeo (Eu caminho mascarado). No ano de 1637, ficou mais conhecido com a publicação de três pequenos tratados científicos: A Dióptrica, Os Meteoros e A Geometria. No entanto, foi o prefácio dessas obras que o tornaram um pensador célebre, levando-o ao reconhecimento posterior, intitulado Discurso sobre o método. Em 1641, lançou sua obra filosófica e metafísica mais importante: Meditações sobre a filosofia primeira, juntamente com os primeiros seis conjuntos de Objeções e Respostas. Em 1643, o cartesianismo foi condenado pela Universidade de Utrecht, enquanto Descartes publicava Os princípios da filosofia, obra que faz uma síntese dos seus princípios filosóficos para a formação da ciência. Em 1649, a convite da Rainha Cristina da Suécia, escreveu e publicou o Tratado das paixões, dedicado à princesa Elizabete da Boêmia, com quem mantinha uma amizade afetuosa. Morreu de pneumonia em 1650 em Estocolmo, onde estava trabalhando como professor. Por ser católico em um país protestante, foi enterrado em um cemitério de crianças não batizadas, em Adolf Fredrikskyrkan. Durante a Revolução Francesa, seus restos foram desenterrados para serem deslocados para o Panthéon, ao lado de outras grandes figuras ilustres da França. Em 1667, a Igreja Católica Romana colocou suas obras no Índice dos Livros Proibidos. O pensamento de Descartes pode ser considerado revolucionário para uma sociedade feudalista, na qual a influência da Igreja ainda era muito forte e quando ainda não existia uma tradição da produção de conhecimento científico. Ele viajou muito e viu que sociedades diferentes possuíam crenças diferentes e até mesmo contraditórias. Aquilo que numa região era tido como verdadeiro, era considerado ridículo e desprovido de bom senso em outros lugares. Descartes constatou que os costumes, a história de um povo, bem como sua tradição cultural, determinavam a forma como as pessoas pensam naquilo em que acreditam, o que o levou a entender a cultura como inimiga da razão. 55 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Por isso, o método cartesiano consiste basicamenteno ceticismo metodológico, que duvida de tudo que pode ser duvidado. Esse pensamento vai de encontro ao dos gregos antigos e dos escolásticos, que acreditavam que as coisas existem simplesmente porque precisam existir, ou porque assim deve ser. Ainda nesse contexto, ele também concebeu o método na realização de quatro tarefas básicas: verificar se existem evidências reais e indubitáveis acerca do fenômeno ou da coisa estudada; analisar, ou seja, dividir ao máximo as coisas em suas unidades de composição, fundamentais, e estudar essas coisas mais simples que aparecem; sintetizar, agrupar novamente as unidades estudadas em um todo verdadeiro; e enumerar todas as conclusões e princípios utilizados para manter a ordem do pensamento. Quanto à ciência, desenvolveu uma filosofia que influenciou muitos cientistas até ser passada pela metodologia de Isaac Newton. Ele acreditava que a matéria não possuía qualidades inerentes, sendo apenas o material bruto que ocupava o espaço, dividindo a realidade em res cogitans (consciência, mente) e res extensa (matéria). Para Descartes, Deus criou o universo como um perfeito mecanismo de moção vertical, que funcionava de forma determinista e sem a intervenção divina. Ele instituiu a dúvida, alegando que seria possível dizer que existe apenas aquilo que pode ser provado. Não temerei dizer que penso ter tido muita felicidade de me haver encontrado, desde a juventude, em certos caminhos, que me conduziram a considerações e máximas, de que formei um método, pelo qual me parece que eu tenha meio de aumentar gradualmente meu conhecimento, e de alçá-lo, pouco a pouco, ao mais alto ponto, a que a mediocridade de meu espírito e a curta duração de minha vida lhe permitam atingir (DESCARTES, 1973 p. 42). A curiosidade de Descartes pela Matemática começou logo cedo, no College de La Flèche, escola dirigida pelo clero, por um motivo que já deixava entrever sua visão filosófica, ou seja, a garantia que as demonstrações ou as justificativas matemáticas proporcionam às descobertas humanas. Os matemáticos reconhecem a importância de Descartes pelo seu estudo pioneiro sobre a geometria analítica. Antes dele, a geometria e a álgebra apareciam ainda como segmentos distintos da Matemática e foi o filósofo quem mostrou uma forma de traduzir problemas de geometria para o campo da álgebra, abordando-os por meio da criação de um sistema de coordenadas. Essa teoria serviu de suporte para o cálculo de Newton e de Leibniz, colaborando em grande escala para a concepção da matemática estudada atualmente. Lembrete Na declaração “penso, logo existo”, Descartes descobre o homem como um ser racional por natureza, com a capacidade de alcançar o conhecimento e, mais que do isso, sua existência é definida pelo ato de pensar. 56 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 6.1 David Hume: o empirismo Figura 12 – David Hume Considerado um dos mais importantes filósofos da Grã-Bretanha do século XVIII, David Hume nasceu em Edimburgo, na Escócia, em maio de 1711. Voltou para a propriedade rural de sua família em 1737, depois de estudar na França, e lá permaneceu até a morte, em 1776. Assim que regressou, providenciou a publicação de sua obra mais famosa, o Tratado, composta por três livros, publicados no anonimato em duas etapas, antes de completar 30 anos. O Livro I tem como objetivo fornecer uma explicação do processo de aquisição de conhecimento pelo ser humano, desde o surgimento das ideias, passando pelas noções espaciais e temporais, até a causalidade e o ceticismo atribuído aos sentidos. Já o Livro II, sobre as “paixões” do homem, apresenta um elaborado mecanismo para explicar a ordem afetiva ou emocional no homem, e reserva um papel subordinado para a razão. Essas duas partes foram publicadas em 1739, anonimamente. O Livro III descreve o bem moral em termos de “sentimentos” de aprovação ou desaprovação que o homem sente quando considera o comportamento humano sob a luz do que é de consequência agradável ou desagradável para ele ou para os outros. Essa terceira parte foi publicada em 1740. Ele frequentou a universidade local. Inicialmente, pensou em seguir a carreira jurídica; mas, em suas palavras, chegou a uma “aversão intransponível a tudo, exceto ao caminho da filosofia e à aprendizagem em geral”. Apesar de muitos acadêmicos considerarem hoje o Tratado sua maior obra e um dos livros mais importantes da história da filosofia, o público inglês não se entusiasmou imediatamente. Em 1744, foram recusadas a Hume as cadeiras nas Universidades de Edimburgo e Glasgow, provavelmente devido a 57 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO acusações de ateísmo e à oposição de um dos seus principais críticos, Thomas Reid. Após esses insucessos, trabalhou como curador de um doente psiquiátrico e posteriormente como secretário de um general. No entanto, para além dos seus trabalhos no âmbito da filosofia, Hume ascendeu à fama literária como ensaísta e historiador com seu célebre História da Inglaterra. Viveu a última década da vida em Edimburgo, no novo aldeamento de New Town. O pensamento de Hume possui grande influência na filosofia atual. Para ele, percepção em estado puro dá origem às impressões que, posteriormente, conferem ao sujeito a possibilidade de compor a ideia como uma cópia deturpada da percepção bruta. Essa teoria de Hume ficou conhecida como empirismo psicológico, que deu origem ao empirismo lógico. De acordo com essa concepção, as palavras só encontram significação se possuírem um ser ou um objeto correspondente no mundo, ou seja, uma base empírica. Nesse sentido, Hume foi de encontro aos postulados filosóficos complexos e de conclusões metafísicas que não têm como fundamento a base no real, pois, para ele, a abstração não existe. Nesse caso, toda forma de conhecimento estaria associada às impressões e às relações entre as ideias inatas e originais, como as verdades dos princípios matemáticos, que são irrefutáveis, uma vez que as deduções lógicas podem ser demonstradas. Dessa forma, os objetos da razão podem ser divididos em relações de ideias e questões de fatos. Fazem parte do primeiro grupo as verdades matemáticas, quer dizer, a relação de ideias remonta à razão humana, que estabelece as relações entre elas. Essas assertivas possuem validade universal, uma vez que comparam ideias que não são efetivas, pois somente os objetos pensados admitem efetividade. Hume também critica o conceito de substâcia, seja ela de ordem material, seja de natureza espiritual, descartando o conceito de alma concebido por Descartes. Para ele, o ser humano consiste em um feixe de sensações da consciência que permanecem em um fluxo constante, sucedendo-se. Portanto, a consciência opera com essa somatória de momentos, e o eu passa a existir quando ocorre uma ação de presença; quando se morre, o eu se anula. Com o objetivo de garantir sua sobrevivência, o homem buscou colocar ordem à sua volta, dando prioridade àquilo que é útil. Como o fundamento das ciências naturais para Hume não é racional, a natureza sobrepõe-se à razão. Nesse sentido, filosofar seria uma forma de refutar o racionalismo. Como o princípio causal tem origem na experiência, nossa mente é formatada pelo costume e pela experiência. Aceitamos algo como natural; mas, se fosse de outra maneira, aceitaríamos da mesma forma. Hume admite a existência objetiva dos efeitos da natureza, uma vez que até mesmo um cético tem de aceitar a existência de um objeto concreto. No entanto, as leis da natureza são apenas as mais prováveis de acontecer e, como a causalidade não é objetiva, uma vez verificadas que nem sempre as mesmascausas surtem os mesmos efeitos, a certeza precisa ser trocada pela probabilidade dos acontecimentos, incluindo a expectativa que um evento ocorra, por ser inerente apenas ao homem. Na visão de Hume, a origem da religião encontra-se no sentimento, assim como a origem da moral. O filósofo ainda aborda a questão do que é o bem para o homem em sua teoria moral, que tem um tom altruísta que afirma a existência de um Ser supremo e senhor da natureza. Na sua obra Ensaios morais, políticos e literários, Hume explica que o ser humano busca a perfeição da natureza por meio da inspiração artística, criticando a felicidade artificial, em contraposição aos sentidos. Ele também refuta os sábios, pois acredita que o caminho deve vir de dentro e não de teorias, e é nessa caminhada que 58 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 atingimos o prazer e a virtude. Portanto, sua linguagem é jovial, enaltecendo sempre o arrebatamento epicurista pelas paixões como se fosse a doutrina de prazer. Já no ensaio seguinte, O estoico, Hume continua louvando a natureza, contrapondo a barbárie e afirmando que devemos apurar nosso gosto pelas artes. De acordo com ele, a natureza foi generosa com o homem, tornando-o superior aos outros animais; mas ele necessita ser civilizado por meio da educação. Devemos, então, aperfeiçoar o espírito e refletir. Ao encontrarmos as regras para nossa conduta, seremos filósofos; mas, somente quando as aplicarmos do ponto de vista pragmático, seremos sábios. No ensaio O platônico, Hume aborda ainda a diversidade dos gostos humanos, além da contemplação filosófica, que devem estar relacionados à perfeição e à beleza universal. Já no ensaio O cético, Hume observa que não é possível recorrer às teorias filosóficas tendo em vista o prazer, pois é infinita a gama de variações das possibilidades humanas. Para ele, o único princípio filosófico verdadeiro é que as coisas em si não possuem as qualidades que o homem lhe atribui. Hume insiste em afirmar que é a paixão a responsável pela proposição dos valores de tudo o que existe. Ao vivenciar uma sensação de prazer, quando observa os objetos que trazem um sentimento, o ser humano tende a classificá-los pela beleza, seja ela desejável ou abominável. Ao igualar os homens, presume que aquilo que os diferencia está na paixão ou na fruição. Ele critica a aspereza de espírito de muitos e acredita que a filosofia pode corrigir esse defeito, ainda que seja para poucos, pois ela induz ao prazer. Como todos os males vêm do universo que os engloba, para escapar deles e dos seus infortúnios, é preciso prevenir-se e conhecê-los. No ensaio Da origem do governo, Hume afirma que, na sociedade tradicional, uma pessoa nascida em família precisa conservar esse laço social, tendo em vista o cumprimento da justiça como o principal motivo da existência do poder governamental. Como a natureza humana possui sua face maligna, tornam-se necessárias a paz e a ordem para conservar a organização social. Por esse motivo, é preciso criar mecanismos para assegurar a obediência por meio dos hábitos, para que os homens aprendam a aceitar as regras sem questioná-las. A origem divina do governo como vontade de Deus é defendida por Hume no ensaio Do contrato original, justificando ser isso necessário para a humanidade como um todo. O filósofo também alega que o vigor dos membros e a coragem constituem a força natural de um homem e, depois de consolidada, a obediência passa por várias gerações até ser reconhecida como natural. Ele ainda afirma que foi em Atenas que ocorreu a maior prática da democracia, apesar de o voto ser limitado aos cidadãos de posse, o que o leva a pensar que o governo não surge a partir do consenso popular, pois esse consenso surge da força. Da mesma forma, a utopia da justiça é impossível pela natureza humana, já que o fluxo da vida implica uma transmissão de valores hereditários. Para Hume, existem duas espécies de deveres morais, sendo do primeiro grupo aqueles relacionados ao instinto natural. Já a segunda espécie decorre da obrigação, uma vez que se tornam necessárias leis para viver em sociedade, fazendo surgir o sentido da justiça e a lealdade. Após negar as origens filosóficas e religiosas do governo como consenso popular, parte para buscar o motivo da submissão no ensaio Da obediência passiva. Para ele, a justiça precisa ter utilidade pública, enquanto a lei deve garantir a segurança da coletividade. Mesmo considerando a monarquia arrogante, o filósofo também defende o direito de resistência à tirania. 59 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Com o ensaio Dos primeiros princípios do governo, Hume demonstra sua admiração pelo fato de muitos renunciarem aos seus sentimentos em benefício de uma minoria. A opinião pode ser de interesse ou de direito; a primeira origina-se do benefício do governo, enquanto o direito está relacionado ao poder, que predomina, e à propriedade. Essas opiniões são fundamentais para o governo, mas os interesses pessoais e as características inerentes ao ser humano podem restringi-las. No ensaio Da sucessão protestante, o filósofo elabora um estudo da sucessão hereditária, utilizando políticos ingleses da sua época como exemplos. Em ensaios anteriores, sua opinião sobre a monarquia não era tão benevolente. Para Hume, o governo hereditário dos príncipes, uma nobreza sem vassalos e um povo escolhendo seus próprios representantes, pode ser considerado o que existe de melhor na monarquia, na aristocracia e na democracia, respectivamente. No entanto, ele coloca em dúvida se as formulações gerais da política devem ser efetivas. No ensaio Que a política pode ser transformada em ciência, critica o pensamento de Maquiavel, alegando que parte de sua teoria baseia-se em falsos princípios. Uma constituição pode ser boa se consegue combater a má administração. Já no ensaio Da liberdade civil, ele elogia as pessoas livres de preconceitos, que se dedicam a causas partidárias e políticas, contribuindo assim para a sociedade. Mas, como todos são ainda muito jovens, não existe uma fórmula aceitável. Hume também verifica a mudança que se dá no Estado em razão do poder da instituição, ou seja, quando se passa de um governo de homens para um governo de leis. Ele apreciava o filósofo pré- socrático Xenofonte, e nele buscou várias informações históricas. No ensaio Ideia de uma república perfeita, expõe o quanto é difícil modificar uma forma de governo, mesmo que seja para melhor. Ao abordar os teóricos que traçaram planos imaginários de governo, como Thomas More e Platão, estrutura um sistema governamental que inclui o senado, o condado e representantes, ressaltando os poderes executivo e legislativo como necessários para o alcance do equilíbrio social. No ensaio Da superstição e do entusiasmo, coloca a superstição e o entusiasmo como exemplos falsos de religião, uma vez que a alma humana pode alcançar um estado de espírito negativo e imaginar objetos, atribuindo poderes a algo inexistente. Outro tipo de estado de espírito conduz ao entusiasmo e, nele, a imaginação flui, enquanto o mundo material perde a sua grandeza. Hume também acredita que sentimentos como a esperança e o orgulho, além da imaginação, são fontes do entusiasmo e parte para criticar os membros do clero, chamando-os de tiranos. No ensaio Da origem e progresso das artes e ciências, alerta para a distinção entre o que é do acaso e aquilo que provém da causa. O que depende de poucos vem do acaso e, o oposto, vem das causas. Na história da arte e da ciência, deve-se tomar cuidado para não confundir as causas ou achar causas inexistentes. Hume ainda acredita que o homem é superiorà mulher, embora a natureza tenha se encarregado de prover todas as espécies de amor entre os sexos, mesmo que seja por tempo limitado. No ensaio Da eloquência, destaca que sentimentos nascidos da vaidade dão origem às disputas. Em todos os seus ensaios, Hume defende que a natureza humana possui um lado maligno e que o preconceito acaba com a capacidade de raciocinar, fazendo da arrogância um defeito comum entre os homens. Como Deus é o ser supremo, deseja o bem, que deve ser experimentado por meio das sensações puras, que se encontram pervertidas no processo civilizatório pelos defeitos comuns que afastam de Deus, muito embora haja homens com gosto superior. 60 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 De forma resumida, o ceticismo de Hume está na negação não da crença, mas da evidência. É a conclusão filosófica de que o homem é mais uma criatura de percepção sensível e prática que de razão. O que ele diz é que somente existe nossa experiência de que uma coisa se segue à outra, que os padrões de uma experiência passada se repetem e passam a ilusão de causa e efeito. Ele não observa nenhuma relação causal entre os dados dos sentidos “externos” porque, quando o homem considera quaisquer eventos como causalmente relacionados, tudo que faz e pode observar é que eles frequentemente caminham juntos. Nesse tipo de associação, é um fato que a impressão ou ideia de um evento traz com ele a ideia do outro. O trabalho da associação do hábito fixa-se na mente e passa a ser sentido como compulsão. Com esse sentimento, Hume conclui ser a única fonte da ideia de causalidade. 6.2 Immanuel Kant: o apriorismo e o conhecimento Figura 13 – Immanuel Kant (1724-1804) O crítico da razão e da moral Nascido em 1724 no seio de uma família protestante em Königsberg, atual Kaliningrado, Emmanuel Kant teve educação rígida em uma escola de princípios pietistas, ou seja, reacionária contra o protestantismo dogmático. Na primeira fase da vida adulta, era apenas um metafísico menor numa universidade prussiana; mas foi então que uma crise existencial o atormentou, sendo possível afirmar que isso teve forte influência na suas convicções posteriores como filósofo e pensador. Em 1740, Kant tinha 16 anos e Frederico II tornou-se o rei da Prússia, trazendo sinais de tolerância para uma nação célebre pela disciplina militar. Trouxe também iluministas para sua corte e continuou a política de encorajamento à imigração que o pai tinha seguido. Com o falecimento do pai em 1746, foi obrigado a trabalhar como professor particular. Ao se tornar professor de 61 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO lógica e metafísica na universidade, após quatorze anos como docente, entrou em contato com a obra de David Hume, que o despertou do seu sono dogmático, uma vez que se perguntou como são possíveis juízos sintéticos a priori; para responder a essa pergunta, escreveu um livro com mais de 800 páginas. Em 1773, Frederico II, um protestante, concedeu refúgio à Ordem dos Jesuítas, banidos pelo Papa, enquanto Kant, aos 50 anos, vivia o auge do movimento romântico, chamado Sturm und Drang. Sete anos mais tarde, publicou a Crítica da razão pura. A reação aos seus escritos foi pouco encorajadora, pois Moses Mendelssohn e Johann Georg Hamann pronunciaram-se de forma reticente, o que levou Kant a escrever um artigo intitulado O que é o Iluminismo? Aos 71 anos, publicou o tratado Para a paz eterna, no qual surgia a perspectiva de um cidadão do mundo esclarecido. Morreu com 80 anos, após uma prolongada doença que apresentava sintomas semelhantes à doença de Alzheimer, uma vez que já não reconhecia sequer seus amigos mais íntimos. Foi considerado como o último grande filósofo da era moderna, e também um de seus pensadores mais marcantes. Há estudiosos que avaliam sua concepção filosófica de mundo como uma espécie de síntese entre o racionalismo de René Descartes e Gottfried Leibniz, no qual predomina o raciocínio dedutivo, e a tradição empírica inglesa, de David Hume e John Locke, que prioriza o raciocínio indutivo. Kant ainda recebeu reconhecimento pela sua teoria conhecida como Transcendentalismo, segundo a qual todos trazem conceitos a priori, ou seja, aqueles que não vêm da experiência para a vivência concreta do mundo. Seguindo essa linha de pensamento, a filosofia da natureza e da natureza humana concebida por Kant é, do ponto de vista histórico, uma das mais influentes do relativismo conceptual que tomou conta da postura intelectual do século XX. Porém, é possível que o próprio filósofo refutasse o relativismo nas suas formas atuais, como o pós-modernismo. Ele também ficou conhecido pela sua filosofia sobre a moral e pela proposta moderna de uma teoria a respeito da formação do sistema solar, denominada de hipótese Kant-Laplace. Aos 46 anos, entrou em contato com a obra de David Hume, considerado um empirista ou um cético que, para uns, desprezava qualquer tipo de explicação metafísica, para outros era tido como um naturalista. Em seu trabalho mais conhecido, alega que nada na experiência humana pode justificar a existência de poderes causais inerentes às coisas, o que deixou Kant bastante perturbado, por achar o argumento de Hume irrefutável, apesar de as conclusões serem inaceitáveis. Depois de dez anos, em 1781, publicou o célebre Crítica da razão pura, uma das obras mais significativas da filosofia moderna. Nesse livro, ele elabora sua ideia de uma teoria transcendental para demonstrar que, mesmo sem saber as verdades acerca do universo, somos obrigados a refletir sobre ele, já que podemos ter a certeza de um grande número de coisas sobre o mundo enquanto sua aparência, regido por leis da física e da matemática, por exemplo. Nos vinte anos que se seguiram, Kant produziu de forma incessante, completando sua contribuição à filosofia moderna com a Crítica da razão prática, que tratava da moralidade de maneira semelhante ao modo como a crítica inicial abordava o conhecimento. Em Crítica do julgamento, ele destaca os diversos usos dos poderes mentais, que não requerem conhecimento factual nem nos fazem, necessariamente, 62 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 partir para a ação. Da maneira como Kant os concebeu, os juízos de valor relacionados à estética e à teleologia estabelecem uma conexão entre os nossos julgamentos morais e empíricos, unindo todo o sistema. A fundamentação da metafísica dos costumes é considerada por muitos filósofos a mais importante obra já escrita sobre a moral. Nela, Kant definiu as funções da ação fundamentada pela moral, introduzindo conceitos como o “imperativo categórico” e a “boa vontade”. Ele ainda produziu ensaios mais populares sobre história, política e aplicação da filosofia à vida. Quando veio a falecer, estava escrevendo a Quarta crítica, por ter concluído que seu pensamento estava incompleto. Esse manuscrito foi publicado como obra póstuma. De acordo com Kant, para fazer uma crítica sobre aquilo que é belo, precisamos nos orientar pelo poder do julgamento, e a indagação fundamental que move essa investigação crítica consiste em saber se existe um valor universal capaz de conceituar o belo e reivindicar que outros indivíduos, a partir da apreciação de uma forma bela da natureza ou da arte, confirmem esse juízo. Se não for dessa forma, temos que aceitar o fato de que todo objeto que julgamos ser belo seria, portanto, um valor subjetivo. Logo, a capacidade de julgar, que pertence a todos, é universal, entrelaçando o julgamento estético e prático. Assim, ainvestigação crítica que Kant propõe refere-se ao universo especulativo das faculdades subjetivas do homem que atuam conforme princípios que fazem farte da essência do pensamento humano. Segundo estudiosos da obra filosófica de Kant, ele reconhece três faculdades do ânimo: a de conhecer, a de apetição e o sentimento de prazer e desprazer. A faculdade de conhecer refere-se ao objeto e à unidade de percepção, já a faculdade de apetição consiste nas representações consideradas como causa de efetividade desse objeto, enquanto o sentimento de prazer e de desprazer são as representações que se referem ao sujeito e que conservam sua existência nele. Ele acredita que o sentimento está localizado em um patamar entre o desejo e o conhecimento, conceituando prazer como um sentimento relacionado ao gosto, compreendido como a capacidade de apreciação do prazer. Na Crítica da razão prática, o filósofo discorre sobre o respeito, considerando-o diferente dos demais sentimentos por pertencer à razão pura e, por isso, não poder ser atribuído nem ao gozo nem ao sofrimento. Para ele, o respeito encontra-se vinculado à representação da lei moral em todo ser racional, sem que haja o condicionamento ao prazer ou ao desprazer. Dessa forma, a razão sugere um sentimento de satisfação no que diz respeito ao dever cumprido. Essa conclusão vai originar a crítica do gosto, uma vez que associa o ânimo com o sentimento moral. O juízo de gosto, então, seria a faculdade de julgar, que produz satisfação e descontentamento. Nas palavras do próprio Kant (1987), “gosto é a faculdade de julgar um objeto ou uma representação mediante uma satisfação ou descontentamento, sem interesse algum. O objeto de semelhante satisfação chama-se belo”. Portanto, é possível compreender o juízo de gosto como o “interesse desinteressado”, que vem da contemplação da beleza. Por isso, todo juízo referente às artes faz parte da satisfação estética, que é desprovida de interesse e encontra-se no prazer diante da contemplação do objeto. 63 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Para Kant (1987): só a crítica pode cortar pela raiz o materialismo, o fatalismo, o ateísmo, a incredulidade dos espíritos fortes, o fanatismo e a superstição, que podem se tornar nocivos a todos e, por último, também o idealismo e o cepticismo, que são, sobretudo, perigosos para as escolas e dificilmente se propagam no público. Mesmo tendo adaptado a ideia de uma filosofia crítica, cujo objetivo inicial era revelar os limites das capacidades intelectuais humanas, ele foi um dos grandes edificadores de sistemas, criticando a metafísica, a ética e a estética. Sua famosa citação – “o céu estrelado por sobre mim e a lei moral dentro de mim” – consiste em uma síntese dos seus estudos. Com isso, o filósofo busca explicar, por intermédio de uma teoria sistemática, que tempo e espaço são formas elementais de a mente humana perceber o mundo; mas só podem ser empregadas na prática, uma vez que a mente não pode produzir essa ideia. Além disso, nada pode ser percebido, exceto por meio dessas formas, sendo os limites da física as fronteitas finais da estrutura mental. Na visão kantiana, o conhecimento, a priori, possui a capacidade de compreender as experiências naturais, que são apresentadas à consciência humana. Em seguida, ela retira o mundo real (que ele chamou de numenal) da cena da percepção. Kant denominou seu pensamento filosófico crítico de idealismo transcendental, ou seja, descreveu a forma de procurar as condições da possibilidade do conhecimento do mundo pelo homem. Porém, esse idealismo difere de outros sistemas idealistas. Para ele, os fenômenos dependem das condições da sensibilidade, do espaço e do tempo, ao contrário da tese da dependência mental no sentido do idealismo de Berkeley. Em 1784, no ensaio Uma resposta à questão: o que é o Iluminismo?, Kant buscava atingir os grupos que tinham levado o racionalismo além dos limites, incluindo os metafísicos, que pretendiam compreender tudo sobre Deus e a imortalidade, os cientistas, que presumiam por meio de seus experimentos a descrição mais exata da natureza, e também os céticos, que alegavam que a crença em Deus, na liberdade e na imortalidade não tinha fundamentos racionais. Apesar de tantas divergências, Kant mantinha-se otimista por atribuir à Revolução Francesa uma forma de instaurar o domínio simultâneo da razão e da liberdade. As investigações filosóficas de Kant ocuparam-se de quatro questões principais: a mecânica do saber, a ética, a religião e a natureza do sentimento estético, bem como a direção da evolução biológica. A respeito de cada uma delas expressou ideias que marcaram de forma decisiva a história do pensamento humano. No que se refere à natureza do saber, a importância de Kant reside menos no resultado dos seus estudos do que no fato de haver proposto o assunto. Em outras palavras, ele foi o primeiro a pensar em estudar a natureza da compreensão humana antes de levar em conta seus resultados, concebendo a ideia de razão independente da experiência, e, com isso, provocou uma espécie de revolução comparada às transformações que mudaram os conceitos científicos e filosóficos do século XIX. 64 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 6.3 Hegel: o idealismo alemão Figura 14 – Drawing Hands, de Maurits Cornelis Escher O pensador das contradições George Wilhelm Friedrich Hegel, filósofo nascido em 1770, é considerado o expoente máximo do idealismo alemão do século XIX, que acabou provocando um impacto profundo no materialismo histórico de Karl Marx. Aos 18 anos, ingressou no seminário protestante de Tubingen, para estudar teologia, onde conheceu Schelling e Holderlin. O pietismo, uma das correntes gnósticas do protestantismo, influenciou profundamente seu pensamento. Hegel foi um ilustre professor universitário de filosofia que iniciou suas atividades em Berna, na Suíça, entre 1793 e 1796; depois lecionou em Frankfurt, de 1797 a 1800. Foi também mestre de conferências na Universidade de Iena, professor e reitor em um colégio de Nuremberg, professor em Heidelberg e, finalmente, em Berlim, onde permaneceu até a morte. Hegel formulou o modelo analítico da realidade que maior influência teve ao longo dos séculos XIX e XX, para pensadores como Schopenhauer, Nietzsche, Marx, Kierkegaard e Jean-Paul Sartre, em razão de uma proposta que recusa a concepção filosófica de Kant. Buscou se defrontar com temas diversos, como a lógica, o direito, a religião, a arte, a moral, a ciência e a história da filosofia. Em todos esses domínios, ele viu a manifestação do espírito absoluto, que se materializa e revela por intermédio da história da humanidade. A filosofia hegeliana parte do princípio de que a negatividade é inerente ao real e que o positivo realiza apenas por meio do negativo. A dialética, portanto, seria o método que permite compreender e esclarecer a racionalidade do real. A obra inicial e a mais significativa dos estudos de Hegel foi a Fenomenologia do espírito ou Fenomenologia da mente. Ele também publicou a Enciclopédia das ciências filosóficas, a Ciência da lógica e a Filosofia do Direito. Várias outras obras sobre filosofia, religião e história da filosofia foram concebidas com base nas anotações dos seus estudantes, tendo sido publicadas somente após sua morte. No entanto, as obras de Hegel ganharam fama de serem de difícil compreensão, tendo em vista os temas que pretendem abranger. Ele ainda critica a concepção do conceito como representação no sentido de preencher uma ausência. Ele introduziu também um sistema para compreender a história 65 Re vi sã o:A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO da filosofia e do mundo da dialética, que pode ser explicado como uma espécie de progressão na qual cada sucessão de movimento surge como solução para contradições inerentes do movimento anterior. De maneira geral, a dialética pode ser considerada como uma das diversas partes do sistema hegeliano, que nunca foi bem compreendido de fato. Um dos possíveis motivos para isso se deve ao abandono, por parte dele, da ideia de que a contradição gera um objeto desprovido de conteúdo. Hegel confere dignidade à contradição, bem como ao negativo; mas, por outro lado, ele não queria dizer que absurdos fossem possíveis. No estudo atual do hegelianismo para estudantes de nível superior, a dialética costuma ser explicada em três momentos distintos: tese, antítese e síntese. No entanto, Hegel não empregou pessoalmente essa classificação. Ele usou esse sistema para explicar a história da filosofia, da ciência, da arte, da política e da religião, mas muitos críticos modernos alegam que ele tende a analisar as realidades da história de forma superficial para poder enquadrá-las em seu paradigma dialético. O método hegeliano inspirou em grande escala as análises de filósofos contemporâneos sobre as relações do eu com o outro. Na luta de duas consciências, Hegel examinou simultaneamente a relação de dois “eu” e a relação de cada “eu” com sua própria vida. O “senhor”, aquele que é vitorioso no combate, aceitou arriscar a vida. Sendo assim, ele é mais do que ela e, por sua coragem, colocou-se acima dos objetos comuns da necessidade e da existência empírica. O vencido, aquele que se rendeu, tem medo de perder a vida. Como consequência, ele é escravo da vida e de seus objetos empíricos. Hegel quer dizer com isso que o senhor não é senhor “em-si”, mas por meio de uma mediação, isto é, de uma relação. O senhor se define por sua relação com o escravo e por sua relação com os objetos, que depende, ela própria, da relação com o escravo. No ponto de partida, o senhor domina os objetos da necessidade, já que no campo de batalha ele se mostrou corajoso e superior à sua vida e aos objetos das necessidades. Secundariamente, o senhor domina os objetos por mediação do escravo que trabalha, isto é, que transforma os objetos materiais em objetos de consumo e de fruição para o senhor. Em suas lições sobre a história da filosofia, Hegel assinala que essa noção envolvia uma contradição interna. De fato, a filosofia quer conhecer o imperecível, o eterno, sendo seu fim a verdade. No entanto, a história conta o que foi numa época e que desapareceu em outra, substituído por outra coisa. Se a verdade é eterna, “ela não penetra na esfera do que passa e não tem história”. Entretanto, a filosofia encontra-se toda nos sistemas dos filósofos. A ideia geral de filosofia permanece abstrata se não se confunde com os diversos sistemas dos filósofos no decurso da história, assim como a noção geral de fruto. Na realidade, Hegel defendia que cada filosofia correspondia a um momento da história e a uma etapa na evolução do espírito absoluto. Portanto, cada filosofia é “o espírito da época existente como espírito que se pensa”. Ela surge “no devido momento, nenhuma ultrapassou seu tempo”. Por isso, as filosofias sucessivas não se anulam, mas as novas filosofias mostram as anteriores como verdades parciais e passíveis de serem integradas numa síntese mais ampla que se elabora com o tempo. Dessa forma, a história da filosofia oferece momentos privilegiados ou, como diz Hegel, vem reconciliar dialeticamente os contraditórios. Nesse sentido, a razão passa a ser única como a racionalidade, formando um sistema. Por essa razão, a evolução das determinações do pensamento é igualmente racional e os princípios gerais surgem segundo a necessidade da noção fundamental. Portanto, o princípio de uma filosofia passa, na seguinte, 66 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 para a categoria de um momento. Não se refuta uma filosofia, apenas sua posição, pois as filosofias são as formas do Uno. Um estudo mais avançado nesse campo pode mostrar como progridem seus princípios, de maneira que o seguinte é uma nova determinação do precedente. Essa evolução permanente e contraditória ao mesmo tempo permite vislumbrar a importância de conhecer os princípios dos sistemas filosóficos para, na sequência, reconhecer cada um deles como necessário em sua época superior. Mais adiante, a determinação precedente torna-se apenas um ingrediente da nova, que é assumida sem ser rejeitada. Desse modo, todos os princípios são conservados. Assim, a unidade consiste no fundamento de tudo. Aquilo que se desenvolve na razão progride na unidade dessa razão e conhecer verdadeiramente um sistema significa tê-lo justificado em si. Limitar-se apenas a refutar uma filosofia é não compreendê-la, sendo necessário ver a verdade que ela contém. Não existe nada mais fácil do que criticar do ponto de vista negativo. No entanto, quem só vê a negação ignora o conteúdo, ele sim afirmativo, e o supera sem se encontrar no interior dele. A dificuldade então consiste em ver o que os sistemas filosóficos contêm de verdadeiro. Somente quando são justificados em si próprios é possível falar das suas limitações e de suas deficiências. O radicalismo dessas oposições levou ao individualismo egoísta de Stirner e à versão marxista do comunismo, da mesma forma que os teóricos pragmatistas se apropriaram dos aspectos comunitaristas da filosofia hegeliana. A filosofia de Hegel foi redescoberta no século XX, graças à volta da perspectiva histórica que ele projetou em tudo, e também ao reconhecimento cada vez maior do valor da sua metodologia dialética. Nesse sentido, o renascimento de Hegel também colocou em evidência a importância fundamental das suas obras iniciais, publicadas antes da Fenomenologia do espírito. Porém, não foram apenas os teóricos da escola de Frankfurt que viram reviver o vigor e a profundidade da filosofia hegeliana na contemporaneidade. 6.4 Marx: o materialismo histórico Figura 15 – Karl Marx, em 1882 67 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO O pai do materialismo dialético Karl Heinrich Marx nasceu no seio de uma família judia de classe média em Tréveris, na Alemanha. Era filho de mãe judia holandesa e de um pai advogado que teve de se converter ao cristianismo, quando Marx tinha 6 anos de idade, em virtude das restrições impostas à presença de membros judeus nas atividades públicas. Aos 17 anos, ingressou na Universidade de Bonn para estudar Direito; mas, logo depois, transferiu-se para a Universidade de Berlim, onde a influência de Hegel ainda era bastante sentida no início da sua obra. Com os interesses voltados para a filosofia, ele participou ativamente do movimento dos jovens hegelianos. Doutorou-se em Jena, em 1841, com a tese sobre as Diferenças da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro. Nesse mesmo ano, concebeu a ideia de um sistema que combinasse o materialismo de Ludwig Feuerbach com a dialética idealista de Hegel. Impedido de seguir uma carreira acadêmica, tornou-se, em 1842, redator-chefe da Gazeta Renana, mas por causa do fechamento do jornal pelos censores do governo prussiano, em 1843, Marx foi para a França. Com a Revolução de 1848 e o exílio que se seguiu a ela, foi obrigado a abandonar o jornalismo na Alemanha e tentar ganhar a vida na Inglaterra. Durante a maior parte da vida, conseguiu seu sustento escrevendo artigos, que publicava de forma esporádica em jornais alemães e norte-americanos, alémdo auxílio financeiro que recebia do amigo e principal colaborador de seu pensamento, Friedrich Engels, economista alemão. Juntos, eles sintetizaram a experiência de muitos séculos de lutas de classes oprimidas contra seus opressores, criando a doutrina do socialismo científico como uma transformação revolucionária que inaugurou uma nova época no desenvolvimento do pensamento social. Por essa razão, analisar a trajetória da sociedade humana sem se referir a Marx é uma tarefa praticamente impossível, dada sua importância à constituição histórica do século XX, que se deve, em maior ou menor escala, às influências da sua produção intelectual, apesar da grande polêmica gerada até hoje pelos seus pressupostos teóricos. Foi diretamente influenciado por Ludwig Feuerbach, que antevia uma visão invertida do materialismo de Hegel. Marx evoluiu dessa ramificação, que já superava o idealismo revolucionário dos jovens hegelianos de cujo movimento ele mesmo fez parte. Seu pensamento, nitidamente engajado com as lutas proletárias, teve como base uma síntese de três correntes distintas: a economia política inglesa, o socialismo francês e a filosofia alemã. Da união dessas ideias, ele construiu um raciocínio inédito que ficou conhecido como “materialismo dialético histórico”. Essa teoria consiste no desenvolvimento mais elevado sobre a interpretação materialista e dialética da evolução histórica do homem. Para Marx, a realidade material será sempre a grande responsável por todas as condições de vida capazes de expor ao ser humano sua condição existencial, sendo que dela devem partir todas suas formas de ideologia, ou seja, as visões de mundo. Diante dessa formulação, pode-se deduzir que não é a ideia que produz a realidade, mas sim a realidade que produz as ideias, que acabam se correlacionando de forma dialética para modelar as constituições sociais. Inserido no contexto do pensamento alemão que deu origem ao racionalismo (idealismo lógico) e ao romantismo (idealismo sensível), resultando no “materialismo contemplativo”, Marx defendia a prática de um materialismo ativo. 68 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 No entanto, seu materialismo não pode ser encarado de forma empírica, porque Marx acreditava que o racionalismo era ainda muito abstrato quando comparado ao materialismo dialético, uma vez que matéria e ideia são categorias opostas que se interrelacionam, mantendo uma espécie de unidade. Seu pensamento político criticou todas as correntes socialistas por não ter um caráter decididamente transformador, somente reformador. Ainda que para Marx a evolução e a revolução são dialéticas e cada partido operário, ao realizar suas metas curtas, se torna inútil. Enquanto posição, ele defendia o socialismo científico em oposição a um socialismo romântico, ou o comunismo (revolucionário, para se opor ao mero reformismo). Ele defendia também não apenas a melhoria das condições de vida do proletariado, mas, acima de tudo, a própria emancipação deste, com o fim da condição proletária. Não se tratava de amenizar a exploração, mas sim de exterminá-la. No entanto, as condições dessa emancipação, que só a prática poderia realizar, estava nas condições reais em que estava inserida. Por isso, em Marx, é o desenvolvimento do capitalismo que criou a proletarização, é o exército que vai destronar a burguesia, pois a própria hostilidade que o capitalismo produz sobre a condição proletária gera as condições subjetivas para a explosão revolucionária. Na lógica do materialismo dialético histórico, trata-se sempre de um “drama histórico”, termo que Marx utiliza em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, e não de um “determinismo histórico”, que resultaria em um materialismo mecânico e positivista, oposto ao materialismo dialético. Dessa maneira, Marx finalizou as teses de Feuerbach. Não se trata de interpretar o mundo de forma diferente, mas sim de transformá-lo, pois somente a ação revolucionária produz a transcendência da ordem em vigor. Na obra Ideologia alemã, Marx introduz os pressupostos de seu novo pensamento, enquanto no Manifesto comunista elabora sua tese política mais importante. Na Questão judaica, ele critica a religiosidade, alegando que não se pode tratar dos questionamentos humanos do ponto de vista teológico, mas sim considerar a teologia como uma questão humana. Para ele, o foco deve estar em encarar as religiões como projeções fantasiosas do homem, embora reproduzam a condição humana real a que estamos presos. Na Crítica do Programa de Gotha, Marx produz o mais longo e esquematizado esboço daquilo que seria uma sociedade socialista, apesar tentar evitar qualquer esforço de “futurologia”, para permanecer restrito ao campo da ciência. Já em Guerra civil na França, ele assume de forma definitiva que, apenas com a extinção do Estado, o proletariado pode oferecer a si mesmo as condições necessárias para manter o poder recém-conquistado, defendendo que o fim do Estado significa o fim do monopólio da violência que o Estado representa. A colaboração de Engels em todos os textos de Marx foi de suma importância, ainda que este sempre frisasse a superioridade de Marx. Uma das obras mais importantes de Engels para o comunismo é Do socialismo utópico ao socialismo científico, na qual apresenta de forma mais clara as diferenciações do socialismo de Estado com as do socialismo científico, e o Estado como sendo um “capitalista coletivo”. Marx considerava a sociedade extremamente capitalista e acreditava que o capitalismo traria divisões sociais. O conceito de mais-valia foi empregado por Marx para explicar a obtenção de lucros contínuos a partir da exploração da mão de obra. Os donos dos meios de produção obtêm parte de seus lucros pela exploração do trabalhador. 69 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Em 1864, Marx foi um dos fundadores da Associação Internacional dos Operários, depois chamada I Internacional, na qual encontrou a oposição dos anarquistas, liderados por Bakunin. Em 1872, no Congresso de Haia, a associação foi praticamente dissolvida. No entanto, Marx foi responsável pela fundação do Partido Social-Democrático alemão em 1875, que foi proibido pouco tempo depois. Entre seus trabalhos iniciais, o mais importante foi o artigo Sobre a crítica da filosofia do direito de Hegel, de 1844, primeira tentativa de interpretação materialista da dialética de Hegel. Apenas em 1932, foram descobertos e editados em Moscou os Manuscritos econômico-filosóficos, datados de 1844. Trata-se do esboço de um socialismo humanista, que se preocupa especialmente com a alienação do homem e com a compatibilidade desse humanismo com o marxismo que viria posteriormente. Em 1888, Engels publicou as Teses sobre Feuerbach, escritas por Marx em 1845, que refutam o materialismo teórico na busca de uma filosofia, além de interpretar o mundo. Esse documento já contém o germe do marxismo, que proclama a relação indissolúvel entre filosofia e atividade social. Foi em 1867 que Marx iniciou a publicação de O Capital, sua obra mais importante e direcionada especialmente para o estudo da economia, como resultado das pesquisas no British Museum, que abordam a teoria do valor, da mais-valia, além da acumulação do capital. Nele, Marx reuniu uma documentação imensa para dar continuidade a essa obra. Os volumes II e III de O Capital foram editados por Engels em 1885 e 1894. Outros textos foram publicados por Karl Kautsky, como o volume IV (1904-10). Em O Capital, Marx elabora uma análise das leis econômicas que regem a sociedade capitalista, estudando essa sociedade na sua origem, no seu desenvolvimento e na sua decadência. Essa coletâneatambém inclui duas obras destinadas por Marx às grandes massas operárias, Trabalho assalariado e Capital, e serviram de base para as conferências pronunciadas por ele em 1847, na Associação Operária Alemã de Bruxelas. Salário, preço e lucro foi a conferência realizada em 1865, em duas sessões do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores. Nesses trabalhos, Marx forneceu uma análise teórica profunda, exposta de forma popular, sobre as relações econômicas em que está baseada a dominação de classe da burguesia, explicando a origem e a essência da mais-valia e levando o leitor à conclusão revolucionária da necessidade de o operariado lutar pela supressão total da escravidão assalariada. De acordo com a dialética marxista, as leis do pensamento correspondem às leis da realidade. Portanto, a dialética consiste em pensamento e realidade ao mesmo tempo. A contradição dialética não é somente uma contradição externa, mas sim unidade das contradições e também identidade, como esclarece o próprio Lefebvre (1979 p. 192): A dialética é ciência que mostra como as contradições podem ser concretamente idênticas, como passam uma na outra, mostrando também por que a razão não deve tomar essas contradições como coisas mortas, petrificadas, mas sim como algo vivo e mutável, lutando uma contra a outra. Os momentos contraditórios são situados na história com sua parcela de verdade, mas também de erro; não se misturam, mas o conteúdo, considerado como unilateral, é recapturado e elevado a uma instância mais elevada. 70 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 Marx acusou Feuerbach, afirmando que seu humanismo e sua dialética eram estáticos, já que o homem não possui dimensões fora da sociedade e da história, sendo pura abstração. Para Marx, é fundamental compreender a realidade histórica em suas contradições na tentativa de superá- las. Os princípios da sua dialética podem ser resumidos em tudo aquilo que se relaciona e se transforma, incluindo as mudanças qualitativas como consequências de revoluções quantitativas. Embora a contradição seja interna, os contrários passam a ser unidos em um momento seguinte. Assim sendo, a luta dos opostos impulsiona o pensamento e a realidade. Na teoria marxista, o materialismo histórico pretende explicar a história das sociedades humanas de todas as épocas por meio dos fatos materiais essencialmente econômicos e técnicos. Nesse sentido, a sociedade pode ser comparada a um edifício no qual as fundações, ou seja, a infraestrutura, seriam representadas pelas forças econômicas, enquanto o edifício em si, a superestrutura, representaria as ideias, os costumes e as instituições. A propósito, Marx, na obra A Miséria da filosofia (1847), atestou que as relações sociais permanecem interligadas às forças produtivas. Ao produzir de maneira diferente, os homens podem modificar o modo de produção, a maneira de sobreviver e, com isso, mudar as relações sociais. O aspecto central da crítica marxista está na questão de como compreender o que é o homem, lembrando que ele defende que não se trata de ter consciência e, muito menos, de ser um animal político que dá ao homem o sentido da sua existência, mas sim o fato de ele ser capaz de produzir suas condições de existência, tanto do ponto de vista material quanto ideal, ou seja, aquilo que o diferencia. Se o homem é historicamente determinado pelas suas condições, é responsável por todos seus atos. Nesse caso, todas as teorias de Marx estão baseadas na existência humana. Com o objetivo de também mostrar uma visão econômica da história, além de propor uma visão histórica da economia, a teoria marxista busca explicar a evolução das relações econômicas nas sociedades humanas no decorrer do processo histórico. De acordo com a concepção marxista, haveria uma dialética contínua das forças entre fortes e fracos, repressores e oprimidos. Nesse sentido, a história humana teria avançado por uma luta permanente de classes, como enfatiza claramente o início do primeiro capítulo de O Manifesto comunista, de Marx e Engels: “A história de toda sociedade passado é a história da luta de classes”. Classes essas que, para Engels, são “os produtos das relações econômicas de sua época”. Mesmo com todas as diversidades aparentes, a escravidão e o capitalismo seriam etapas sucessivas de um só processo. Com isso, a base da sociedade estaria na produção econômica e sobre ela se ergue uma superestrutura, um estado e as ideias de toda natureza. Marx almejava a inversão da pirâmide social, com o poder sendo colocado a favor do proletariado, como a força capaz de deter o capitalismo e de construir uma sociedade socialista. Para Marx, a vitória do comunismo era inevitável. Ele afirmava que a história segue certas leis imutáveis conforme avança de um estágio a outro. O comunismo, na visão dele, seria o último e mais alto grau de desenvolvimento, e a grande solução para a compreensão dos estágios do desenvolvimento estaria na relação entre as diferentes classes de indivíduos na atividade produtiva. Para o marxismo, a luta de classes é o meio pelo qual a história humana avança historicamente. Por acreditar que a classe dominante nunca deixaria o poder por livre e espontânea vontade, a luta e a violência eram necessárias e inevitáveis. 71 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO O Manifesto comunista fez o homem caminhar, de fato, na busca da solução de problemas como a pobreza e a exploração do trabalho. Por isso, trata-se de um documento histórico. A Liga dos Comunistas pediu a Marx e a Engels a redação de um texto que tornasse precisos os objetivos dela e sua forma de ver o mundo. Nesse sentido, o Manifesto comunista pode ser considerado como um conjunto de ideais em que os revolucionários da época acreditavam, por conter os elementos necessários à compreensão das transformações sociais do ponto de vista econômico. No que diz respeito à estrutura, traz uma pequena introdução, três capítulos e uma conclusão sucinta. A introdução destaca a força do comunismo ao expor o modo comunista de ver o mundo e também suas finalidades. A parte I, denominada Burgueses e Proletários, resume a história da humanidade, quando duas classes sociais antagônicas dominam o cenário. A maior contribuição desse capítulo está na descrição das grandes transformações que a burguesia industrial provocava no mundo, representando um papel histórico essencialmente revolucionário. Marx e Engels relatam o fenômeno da globalização que a burguesia implementava no comércio pela navegação e pelos meios de comunicação da época. O Manifesto fala de ontem, mas ainda parece atual. Já a parte denominada Literatura socialista e comunista, critica as diversas correntes socialistas da época, classificando três tipos de socialismo: reacionário, conservador e burguês e socialismo e comunismo crítico-utópico. Nesse capítulo, a obra mostra seu caráter temporal, quase local, revelando a sua profunda imersão na efervescência das ideias e dos conflitos da época, quando a aristocracia, para condenar a burguesia, faz uma espécie de elogio ao socialismo. Marx pode ser considerado como o herdeiro da filosofia alemã, ao lado de Kant e Hegel. Na condição de um dos maiores pensadores de todos os tempos, possui uma produção teórica com a extensão e a densidade de um pensador como Aristóteles, de quem era admirador. 6.5 Augusto Comte: o positivismo Figura 16 – Auguste Comte Auguste Comte nasceu em Montpellier, na França, a 19 de janeiro de 1798, filho de um fiscal de impostos. Suas relações familiares foram sempre conflituosas e, por isso, explicam o desenvolvimento 72 Unidade IIRe vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 de sua vida e até mesmo do conteúdo de suas obras. Com frequência, culpava os pais por sua situação econômica instável. Tão complexos eram os laços familiares, rompidos por Comte, que lhe deixaram marcas pro fundas. Aos 16 anos, ingressou na Escola Poli técnica de Paris, o que teria significativa influência na orientação posterior do seu pensamento filosófico. Embora tenha permanecido apenas dois anos nessa escola, Comte recebeu a influência do trabalho intelectual de cientistas como o físico Sadi Carnot, o matemático Lagrange e o astrônomo Pierre Simon de Laplace. Na mecânica analítica de Lagrange, Comte teria encontrado inspiração para abordar os princípios de cada ciência segundo uma perspectiva histórica. Em 1816, Comte deixou a Politécnica e, apesar da insistência da família, resolveu continuar na França. Nesse período, sofreu influências dos chama dos “ideólogos”, como Destutt de Tracy, Cabanis e Volney. Também leu os teóricos da economia política, como Adam Smith e Jean-Baptiste Say, filósofos e historiadores como David Hume e William Robertson. No entanto, o fator mais decisivo para a formação de seu pensamento filosófico foi o estudo do esboço do Quadro histórico dos progressos do espírito humano, de Condor cet, ao qual se referiria, mais tarde, como “meu imediato predecessor”. A obra de Condorcet traça um retrato do desenvolvimento humano, no qual os descobrimentos e as invenções científicas e tecnológicas desempenham um papel preponderante, fazendo o homem caminhar rumo a uma era em que a organização social e política seria o produto final das luzes da razão, ideia que iria se transformar em um dos pontos cruciais da filosofia comtiana. Logo após o idealismo que predominou na primeira metade do século XIX, surge o positivismo, que ocupa a segunda metade do mesmo século, espalhado em todo o mundo civilizado. Trata-se de um pensamento que representa uma reação contrária ao apriorismo, ao formalismo, ao idealismo, priorizando o estudo da experiência prática e dos dados positivos. Podemos considerar como a diferença fundamental entre idealismo e positivismo o fato de que o primeiro procura uma interpretação, uma unificação da experiência mediante a razão, enquanto o segundo, pelo contrário, quer limitar-se à experiência imediata, pura, sensível, como já havia ocorrido com o empirismo. Vem desse aspecto sua superficialidade filosófica, mas também seu valor como descrição e análise da experiência por meio da história e da ciência, considerando o idealismo, que altera a experiência, a ciência e a história. O positivismo também ganha impulso graças ao grande progresso das ciências naturais, em especial das biológicas e fisiológicas do século XIX. Tenta-se aplicar os princípios e os métodos daquelas ciências à filosofia, como forma de solucionar os problemas do mundo e da vida, com o intuito de conseguir bons resultados. O positivismo ainda ganhou força devido ao desenvolvimento dos problemas econômico- sociais que predominaram no século XIX. Por ser altamente valorizada a atividade econômica, que produz bens materiais, é compreensível que se busque uma perspectiva filosófica positiva, naturalista e materialista para as ideologias no campo das atividades econômico-sociais. Grosso modo, o positivismo admite, como fonte única de conhecimento e de critério de verdade, a experiência, os fatos positivos, além dos dados sensíveis. Nenhuma metafísica, portanto, como interpretação, justificação transcendente ou imanente da experiência, possui espaço nesse campo de reflexão. Nesse sentido, a filosofia é reduzida à metodologia e à sistematização das ciências, e a lei, única e suprema, domina o mundo concebido positivisticamente, promovendo a evolução necessária à energia 73 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO naturalista. O nome de Auguste Comte está indissociavelmente ligado ao positivismo, corrente filosófica fundada por ele com a intenção de reorganizar o conhecimento humano, que teve grande influência no Brasil. Figura 17 – Detalhe da bandeira do Brasil Figura 18 Comte também é considerado o grande sistematizador da sociologia. Vale destacar que ele viveu em um período da história francesa em que se alternavam o despotismo e as revoluções, o que levou a sociedade a uma turbulência e a um desencanto geral com a política e a uma crise dos valores tradicionais. Ele buscou dar uma resposta a esse estado de ânimo pela união de elementos da obra de pensadores anteriores a ele e também de alguns contemporâneos, o que resultou em uma teoria denominada por 74 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 ele de positivismo. “Ele reviu as ciências para definir o que, nelas, decorria da realidade dos fatos e permitia a formulação de leis naturais, que orientariam os homens a agir para modificar a natureza”, diz Arthur Virmond de Lacerda, professor da Faculdade Internacional de Curitiba. Um dos fundamentos do positivismo está na ideia de que tudo o que diz respeito ao homem pode ser sistematizado de acordo com a adoção de princípios como o critério de verdade para as ciências exatas e biológicas. Isso deveria ser aplicado também aos fenômenos sociais, que seriam reduzidos a leis gerais como as da física ou da matemática. Para Comte, a análise científica aplicada à organização social é o centro da questão sociológica, cujo objetivo seria o planejamento da organização social e política. De acordo com os positivistas, só é possível afirmar que uma teoria é correta se ela puder ser comprovada por intermédio de métodos científicos válidos, em detrimento dos conhecimentos relacionados às crenças, à superstição ou a qualquer outro que não reúna condições de ser comprovado cientificamente. Para eles, o progresso da humanidade depende unicamente dos avanços da ciência. Observação “O grande instrumento do Iluminismo é a consciência individual, autônoma em sua capacidade de conhecer o real” (Danilo Marcondes). Saiba mais Assista Danton, filme que narra a história da Revolução Francesa, que marca o início do pensamento filosófico moderno. Danton. Dir. Andrzej Wajda, França/Polônia, 131 minutos, 1982. 7 A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA Pode ser considerada como contemporânea a filosofia que compreende a segunda metade do século XIX até o início do século XXI, e o positivismo permanece como presença constante na história do pensamento dessa fase. Apesar das suas notáveis diferenças na maneira de lidar com os problemas, é possível reconhecer essa conduta empirista do século XVIII no positivismo do século XIX e no positivismo lógico ou empirismo lógico do século XX. O empirismo lógico ou positivismo lógico do século XX consiste num dos movimentos integrantes da corrente analítica dos nossos dias, cuja originalidade está em ter conseguido transformar o próprio conceito de filosofia. Para a corrente analítica, a filosofia não tem por objeto a realidade, mas sim a análise da linguagem que envolve a realidade, seja a linguagem ordinária, comum ou científica. 75 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Outras correntes da filosofia contemporânea tomaram como objeto principal de consideração o fenômeno da história, da vida e da irredutibilidade da existência pessoal: as filosofias historicistas, existencialistas e personalistas. O existencialismo constitui, originalmente, uma reação a favor da individualidade, colocandoem primeiro plano a categoria de singularidade, preferida pelo sistema dialético de Hegel. Quanto ao vitalismo de Nietzsche, representa uma reação não apenas contra Hegel, mas contra toda a tradição intelectualista-religiosa que se opôs à vida e aos valores vitais, desde que se verificou a aliança do platonismo com o cristianismo. Podemos afirmar que a característica externa mais notável da filosofia contemporânea consiste na diversidade dos enfoques, dos sistemas e das escolas frente ao desenvolvimento. Os responsáveis por essa disseminação de opiniões e de escolas divergentes foram os fatores socioculturais, como a crise dos sistemas políticos e o avanço das ciências naturais e lógico-formais, além do desenvolvimento das ciências humanas. O mundo atual, rodeado pelas telecomunicações, dominado pela internet e formulador dos programas espaciais, da física quântica e da medicina biomolecular, parece não ter mais espaço para o pensamento filosófico. Qual seria então, hoje, a função da filosofia? O filósofo inglês Bertrand Russel, em Os problemas da filosofia, refletiu sobre essa questão: A filosofia, como todos os outros estudos, visa em primeiro lugar ao conhecimento. O conhecimento a que ela aspira é o tipo de conhecimento que dá unidade e sistematiza o corpo das ciências, e que resulta de um exame crítico dos fundamentos de nossas convicções, preconceitos e crenças (RUSSEL, 2008). Com certeza, essa é uma das definições de filosofia. Trata-se de uma disciplina que estuda os fundamentos das convicções humanas. Porém, enquanto as ciências estabelecem um corpo sólido de conhecimentos e verdades a partir do qual passam a se desenvolver, a filosofia não alcança os mesmos resultados, pois não dá respostas definitivas a nenhuma questão. O próprio Bertrand Russell, também em Os problemas da filosofia, explicou por que ocorre esse descompasso: Isto se deve em parte ao fato de que, assim que o conhecimento definitivo a respeito de qualquer assunto torna-se possível, esse assunto deixa de ser chamado de filosofia, e torna-se uma ciência independente. O estudo total dos céus, que agora pertence à astronomia, foi um dia incluído na filosofia; a grande obra de Newton chamava-se Princípios matemáticos de filosofia natural. Do mesmo modo, o estudo da mente humana, que fazia parte da filosofia, agora foi separado da filosofia e tornou-se a ciência da psicologia. Assim, em grande medida, a incerteza da filosofia é mais aparente que real: as questões que são capazes de ter respostas definitivas são abrigadas nas ciências, enquanto aquelas para as quais, até o presente, não podem ser dadas respostas definitivas, continuam a formar o resíduo que é chamado de filosofia (RUSSEL, 2008). 76 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 7.1 Conhecimento e ciência Vivemos em um mundo que não para de introduzir novas questões no campo da filosofia e, por essa razão, torna-se difícil reconhecer o que é a filosofia contemporânea. Certamente, é possível compreender a filosofia da antiguidade de forma mais clara e coerente do que a filosofia contemporânea, que tem como base uma série de pressupostos que foram elaborados no final do século XIX. Um deles seria em relação à história, atribuído a Hegel, que se identifica com os ideais de totalidade e de processo. Nesse sentido, passamos a compreender o homem como um ser histórico, semelhante à sociedade da qual faz parte. Um dos conceitos mais conhecidos dessa maneira de conceber o mundo foi a ideia de progresso, que teve no filósofo Auguste Comte seu grande teórico. Na visão dele, tanto a razão quanto a ciência caminham sempre juntas rumo ao desenvolvimento do futuro do homem. Isso faz com que as utopias do século XIX, como o anarquismo, o socialismo e o comunismo, também contenham essa noção de progresso como prerrogativa básica na condução de uma sociedade justa e harmoniosa. Apesar da repercussão desse conceito, a ideia de que a história fosse uma trajetória progressiva em termos de avanço para a humanidade recebeu severas restrições no decorrer do século XX. Com isso, surgiu a noção de que o progresso é algo descontínuo, ou seja, não se dá por meio de etapas que vão se sucedendo. Assim, a história da humanidade não pode ser considerada como um conjunto de várias civilizações em etapas diferentes de desenvolvimento, pois cada sociedade possui sua própria história, sua cultura e valores próprios. Foi essa visão de mundo que viabilizou o desenvolvimento de ciências como a etnologia, a antropologia e as ciências sociais, uma vez que a confiança no saber científico foi uma das posturas filosóficas que se desenvolveram no século XIX, acreditando ser possível que a natureza pudesse ser controlada pela ciência e pela técnica. Além disso, com o desenvolvimento da ciência e da técnica, o progresso foi levado a vários setores da vida humana. Com o objetivo de estudar essa nova realidade, um grupo de intelectuais alemães elaborou a teoria crítica, segundo a qual as transformações sociais, políticas e culturais poderiam acontecer apenas se tivessem como finalidade maior a libertação total do homem em detrimento do tecnicismo e do domínio da ciência sobre a vida humana. Trata-se, portanto, de um pensamento que diferencia a razão instrumental da razão crítica, sendo a razão instrumental aquela que transforma as ciências e as técnicas num meio de intimidação do homem, e não de libertação, enquanto a razão crítica estuda as fronteiras e os riscos da aplicação da razão instrumental. Jean-Paul Sartre também elaborou as questões humanas em relação à liberdade e ao seu compromisso com a história. Associando as contribuições do marxismo e da psicanálise, ele criou um pensamento sistemático que prioriza o conceito de existência no lugar da essência: Assim que começamos a filosofar, achamos que mesmo as coisas mais cotidianas levam a problemas para os quais só podem ser dadas respostas muito incompletas. A filosofia, embora incapaz de nos dizer com certeza quais são as respostas verdadeiras às dúvidas que ela suscita, está apta 77 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO a sugerir muitas possibilidades que ampliam nossos pensamentos e os libertam da tirania do hábito. Assim, embora diminuindo nosso sentimento de certeza a respeito do que as coisas são, ela aumenta enormemente nosso conhecimento em direção ao que as coisas podem ser (RUSSEL, 2008). 7.2 Nietzsche: revolução e conhecimento O pensador entre os séculos Figura 19 – Friedrich Wilhelm Nietzsche Nascido em uma época de paz na Alemanha de 1844, Friedrich Nietzsche profetizou as grandes guerras que iriam acontecer no século XX, afirmando que chegaria o dia em que os homens lutariam no confronto pelo poder. No entanto, ele conhecia os campos de batalha do espírito e, no fundo, queria conhecer apenas esses. Porém, sua obra contém o caos, assim como o impulso que deveria desencadeá- lo no decorrer da história da humanidade, podendo ser considerado como o primeiro precursor do conceito de pós-modernidade amplamente utilizado hoje. Na vanguarda da sociedade que preconizava, ele colocava o espírito de altivez, afirmando que a consciência de si próprio precede qualquer criação. Por ser de família luterana, já tinha seu destino traçado como pastor, assim como o pai e o avô. Nietzsche, que perdeu a fé durante a adolescência, queria ser aquele que deveria superar seu tempo e, em razão da sua consciência, assumiu o papel de “pensador entre os séculos”. Pode-se afirmar que teve a audácia que não se repete de rever tudo aquilo que a cultura ocidental conservava moralmente e mantinha-se unido desde o desaparecimentodo mundo pagão. Além da subversão, a que atribuía uma importância tão grande, sua maior contribuição filosófica está no fundamento da ética que dominou. Ele sabia perfeitamente que não bastava quebrar as tábuas da lei. Estas deveriam ser desmanteladas com frequência e durante muito tempo, até serem substituídas por outras. Nietzsche tomou para si essa tarefa, sem indagar sobre essa necessidade. Para ele, não era 78 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 a necessidade dos homens que decidia, mas sim a ordem do legislador que deveria dominar. Como consequência, o filósofo deveria considerar-se esse legislador. Em 1879, problemas de saúde o afastaram da docência e dos alunos. Parte então para uma vida dedicada ao pensamento errante em locais de clima mais ameno. Começou Assim falou Zaratustra quando estava em Nice, na França, e não parou de produzir sua obra intelectual. Essa fase, porém, termina de forma abrupta em 3 de janeiro de 1889, quando entra em estado de loucura, levando-o à morte. Assim falou Zaratustra Ao lado de Marx e de Freud, Nietzsche pode ser considerado um dos autores mais controversos da história da filosofia moderna. Foi o único que exigiu uma imortalidade exclusivamente terrena. “O pensador entre os séculos” tinha a convicção de não preparar uma época destinada a desaparecer, mas sim de dispor de todo o futuro reservado ao planeta. Esse foi o motivo pelo qual se chama de “o último homem”. No entanto, o “super-homem” que pregou só o frequentou sob o aspecto de sombra, por carregar o peso do destino humano em sua essência filosófica. Nietzsche achou possível que um dia a ciência reinasse no mundo, o que o coloca ao lado, na posição de herói, de Deus e distante dos homens. Seria de fato divino fazer da ciência, concebida como objeto de paixão, a soberana do mundo. Porém, o mundo nunca esteve tão afastado dessa soberania como hoje. No que diz respeito à religião, Nietzsche concebia o cristianismo e o budismo da mesma forma, como “as duas religiões da decadência”, apesar de enfatizar que havia uma grande diferença entre essas duas crenças, pois, na visão dele, o budismo era mais realista. Por essa razão, dizia ser ateu por instinto. A crítica de Nietzsche contra o idealismo metafísico focava-se nas categorias e nos valores morais que o constituem, e sugeria outra abordagem, que seria a genealogia dos valores. Na verdade, ele sempre quis ser o maior destruidor de toda forma de preconceito e ilusão da humanidade, ou seja, aquele que se atreveu a olhar, sem temor, aquilo que está oculto nos valores aceitos por todos, incluindo todas as verdades, assim como os ideais que fundamentaram a civilização e que direcionaram o rumo da história do homem. Nesse sentido, ele acreditava que a moral tradicional, as religiões e os sistemas políticos eram apenas disfarces de uma realidade mutante e cruel, cuja simples visão seria insuportável para qualquer indivíduo. Nietzsche questionou de maneira radical a moral que impede a revolta dos indivíduos considerados inferiores e das classes subalternas contra a aristocracia. Ele considerava essa moral como algo que limita à ilusão a realidade humana e ainda pretende impor uma racionalidade pura que não passa de uma ficção. Nesse processo, Nietzsche buscou tirar todas as máscaras que o fluir da própria existência humana se encarrega de colocar. Nesse sentido, ele concebia que a vida poderia ser mantida apenas por meio de eternos embates entre os seres vivos, pela luta entre vencidos que almejam ser vencedores e vencedores que podem, de um momento para o outro, ser vencidos. Portanto, a vida humana para Nietzsche consiste na vontade de poder ou de domínio, mas os disfarces possuem a capacidade de torná-la mais suportável, mesmo a deformando e ameaçando-a de ser destruída. Não existe nuance, segundo Nietzsche, entre a aceitação da vida e a sua renúncia. Para salvá- la, torna-se necessário arrancar-lhe as máscaras e reconhecê-la tal como é, não para aceitá-la com 79 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO resignação, mas para restituir-lhe a exaltação e sua alegria. Por ser filho do “húmus”, o ser humano possui a capacidade inerente de sobreviver e de vencer. Nietzsche mostrou-se contrário a qualquer tipo de igualitarismo que atente o bom senso por meio de uma lei rígida e universal, ou seja, o imperativo categórico. Para ele, o homem é uma individualidade irredutível, a qual os limites e as imposições de uma razão que tolhem a vida permanecem alheios a ela, parecida com as máscaras das quais ele precisa se libertar. Ao contrário de Kant, para o qual o mundo não é desordenado em termos de estrutura e de inteligência. Nele, todas as coisas “dançam nos pés do acaso”, e apenas a arte tem o poder de transformar esse caos em beleza e tornar suportável o que há de mais tenebroso na condição humana. Apesar de todas as oposições, é preciso reconhecer que existe uma matriz comum e ativa entre Kant e Nietzsche. Essa matriz comum seria o espírito do romantismo do século XIX, com sua ansiedade de infinito e com sua revolta contra os limites e os condicionamentos impostos pela sociedade. Da mesma forma que Platão, Nietzsche defendia que a humanidade fosse governada por filósofos. Na obra nietzscheana, a ideia de uma nova moral contrapõe-se de forma radical à utopia de uma nova humanidade. Para Nietzsche, a liberdade reside na aceitação consciente de um destino que se faz necessário, uma vez que o homem libertado e senhor de si mesmo será capaz de refutar qualquer verdade estabelecida, estando preparado para expressar a vida em todas as suas ações. Este era o cenário ideal vislumbrado por Nietzsche, como também a realidade que ele próprio buscava personificar. É interessante perceber que, sem se dar conta, ele contrói seu próprio imperativo categórico, fundamentado na liberdade total do ser humano e na ausência completa de leis, pois se trata de uma libertação subjugada pela razão, que também impõe limitações à vida do homem à sua maneira. Além disso, Nietzsche também criticava a vida e a cultura moderna, assim como o neonacionalismo alemão. Na visão dele, os ideais da modernidade não passavam de sintomas e exemplos da decadência do homem. Sua figura foi promovida e valorizada pela Alemanha nazista, e sua irmã era simpatizante do regime totalitário de Hitler, incrementado por essa associação. Em A minha luta, o líder nazista descreve-se como a encarnação do super-homem. Segundo relato dos estudiosos, o livro Assim falou Zaratustra era fornecido como leitura para os soldados no campo de batalha com o intuito de incentivar o exército. Apesar disso, Nietzsche era declaradamente contra o movimento antissemita promovido por Adolf Hitler e seus partidários. Sua obra foi muito mais longe e sobreviveu além da apropriação feita pelo regime nazista. Ainda hoje, ele é considerado um dos filósofos mais estudados da história. Muitas de suas frases ganharam fama e repercutiram nos mais diversos campos de estudo, criando várias distorções em termos de entendimento. Ele é considerado pelos seus seguidores um grande estilista da língua alemã, e muitos aspectos relacionados a ela puderam ser compreendidos por meio da obra de Nietzsche como forma de pesquisa filológica, uma vez que em seus textos existem associações de palavras que não poderiam estar próximas por causa da sua essência contraditória. Todo o legado da obra de Nietzsche foi e permanece, ainda hoje, de difícil e contraditória compreensão. Existem aqueles que associam suas ideias ao niilismo, defendendo que, para ele, a moral não tem importância e os valores morais não possuem qualquer validade,que Deus está morto 80 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 e que a história não é finalista, pois não há progresso nem objetivo. Outros, porém, não pensam nele como o autor do niilismo; ao contrário, um crítico do niilismo, uma vez que o homem pode ser, além de destruidor, um criador de valores a serem destruídos. Essa constatação baseia-se na obra Assim falou Zaratustra, na qual ele destaca a necessidade da vinda do super-homem para ser e criar. Em que pese todo tipo de dicotomia, pode-se dizer que Nietzsche buscou desvendar as formas de renúncia da existência e da vontade. Nesse contexto, o próprio mito do eterno retorno representa o trágico-dionisíaco dizendo sim à vida, no auge da sua plenitude, como uma afirmação incondicional da existência humana. Pode-se atribuir a falta de consenso na apreciação da obra de Nietzsche aos paradoxos contidos na essência do seu próprio pensamento. Essa constatação está disponível em Fragmentos finais, obra baseada na reestruturação desses manuscritos. O mais importante é que Nietzsche nem sempre tinha o sentimento de ser o verdadeiro herói da eternidade, considerando-se, por vezes, apenas aquele que representava a figura histórica do herói. Nesse sentido, acabou falando do “clown das eternidades”, que visava ao Nietzsche trágico. Não estava louco ao confessar o papel que representava quando se aproximou do fim e quando chegou o momento de arrancar os disfarces e voltar para dentro de si. Isso não só nos impede de levantar suspeitas sobre ele, como demonstra a sua completa honestidade, mais elevada e profunda do que qualquer verdade pensada com sua contradição em busca de um destino. 7.3 Freud: os enigmas do inconsciente Figura 20 – Sigmund Freud (1856-1939) Médico especializado em doenças mentais, Sigmund Freud desenvolveu a psicanálise, uma teoria do funcionamento da mente humana e um método exploratório de sua estrutura, destinado a tratar os comportamentos compulsivos e muitas doenças de natureza psicológica supostamente sem motivação orgânica. Ele recolheu de várias fontes os elementos por meio dos quais compôs a sua teoria, a partir 81 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO das descobertas do médico austríaco Josef Breuer, da doutrina platônica e do pensamento filosófico de Schopenhauer, consolidando, pela longa prática clínica, os postulados da teoria que denominou Psicanálise. Sigmund Freud nasceu em 6 de maio de 1856 em Freiberg, Morávia, no império austro-húngaro (hoje Pribor, Checoslováquia). Filho de Jacob Freud, um comerciante judeu, e de sua jovem segunda esposa, Amalia Nathanson. Para se decidir sobre a futura carreira, estudou primeiro filosofia; mas acabou optando depois pela medicina, especializando-se em fisiologia nervosa, uma área em que a prática diária permitiria-lhe dar vazão à sua curiosidade em conhecer a natureza humana. Impressionado com a propriedade terapêutica da conversa no estado de hipnose, em 1885 Freud utilizou uma bolsa de estudos obtida do governo para passar um tempo na Salpetriere, em Paris, onde aprendeu técnicas com o psiquiatra Jean-Martin Charcot, que fazia experiências com doentes mentais por meio de sessões hipnóticas. Ele chegou até a relatar ao médico francês o sucesso obtido na conversa com o paciente, como substituição à hipnose, mas Charcot não demonstrou interesse. Ainda em 1885, Freud escreveu o Projeto para uma psicologia científica e, no ano seguinte, iniciou a especialidade em “doenças nervosas”. No começo dos anos 1890, ele passou a anotar seus próprios sonhos, convencido de que isso poderia fornecer pistas para a atuação do inconsciente, uma ideia que já existia no romantismo da literatura e em parte do conhecimento psicológico do século XIX, como no livro A filosofia do inconsciente, de Karl von Hartmann, publicado em 1893. Sua intenção com a autoanálise era utilizar tanto o material colhido em suas análises clínicas quanto o que obtinha por sua própria introspecção. Joseph Breuer compartilhou com Freud seu método terapêutico, que designou catarsis. Consistia basicamente em fazer o paciente recordar, pela hipnose ou por diálogo, o trauma psicológico sofrido, até provocar uma descarga emocional que conduzia à cura. Entre os anos de 1892 e 1895, desistiu aos poucos da hipnose, que acabou sendo substituída pelo divã, para que o paciente, colocado numa posição confortável, fizesse esforço para lembrar os traumas que originaram seus conflitos internos. Com esse relaxamento, Freud conduzia uma livre associação de ideias, por meio da qual acabava encontrando lembranças “escondidas” pelo paciente e causadoras dos distúrbios. Ele então formulou o princípio de que os sintomas histéricos possuem origem no fluxo dos processos mentais, que, impedidos de chegar à consciência, são direcionados para o corpo e transformados em sintomas. Em função da natureza das experiências traumáticas recordadas pelos pacientes, Freud convenceu-se de que o sexo era parte essencial da origem das neuroses. Portanto, passou a considerar o desejo sexual, direta ou indiretamente, como motivação única do comportamento humano. Entre os anos de 1895 e 1899, Freud esteve envolvido na preparação do seu estudo Die Traumdeutung (A interpretação dos sonhos), publicado em 1900 e considerado como sua obra principal, por causa das análises dos sonhos, da autobiografia, da teoria da mente e de outras visões da vida vienense contemporânea. Ele também descreve o processo de “condensação”, de “deslocamento” e de “elaboração secundária”, debatendo ainda o conteúdo estrutural dos sonhos, além de explicar como estes representam a concretização do imaginário dos desejos humanos. Ao explicar o Complexo de Édipo, Freud destacou a importância da infância para o engajamento na vida adulta. O sétimo capítulo tem a exposição da teoria da mente. O princípio ativo de seu modelo da mente é a “inércia neurônica” ou princípio de constância, 82 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 de acordo com o qual a mente trabalha no sentido da redução de qualquer tensão proveniente do acúmulo de “energia”, que podia ser de natureza sexual ou psíquica. Em 1902, Freud passou a se reunir em casa com médicos neurologistas e psiquiatras para discutir e opinar a respeito da sua teoria psicanalítica. Entre eles, estavam Alfred Adler e Carl Gustav Jung. O grupo evoluiu para a constituição, em 1908, da Sociedade Psicanalítica de Viena, que, em 1910, se tornaria a Associação Internacional de Psicanálise. Em 1904, publicou Zur Psychopathologie des Alltagslebens (Psicopatologia da vida cotidiana), em que demonstra evidências simples da atividade do inconsciente e do subconsciente nas pessoas saudáveis. Seriam os chamados “atos sintomáticos”, como, por exemplo, o inexplicável esquecimento súbito de um nome conhecido ou a troca involuntária de palavras no meio de uma frase. Esses acontecimentos revelam a luta do consciente com o subconsciente e com o inconsciente. Por meio deles, ele conseguiu a revelação da “repressão” inconsciente pelo método da livre associação, inspirado nos atos falhados ou sintomáticos, bem como a identificação de símbolos e a interpretação dos sonhos como forma de substituir as técnicas de hipnotismo. No ano de 1910, Freud publicou Über Psychoanalyse (Sobre a psicanálise). Porém, suas ideias escandalizavam cada vez mais o meio médico vienense, fazendo com que vários de seus colegas se retirassem da Associação Internacional de Psicanálise. A principal razão do escândalo estava na forma como ele divulgava seuconhecimento, ainda em estágio de acabamento, sobre a questão sexual das crianças, que ele afirmava estarem sujeitas ao desejo sexual e que o objeto desse desejo estava associado aos próprios pais. Além do Complexo de Édipo, em que o filho deseja sexualmente a mãe, Freud admitia também o Complexo de Eletra, como a inveja que a menina tem do pênis do menino, e chamou a criança de um “perverso polimorfo”. Ele ainda classificou a sexualidade humana em três fases: oral, anal e genital, que costumam se suceder nessa ordem, mas com casos de regressão e fixação. No término da Primeira Guerra Mundial, em 1918, Freud perdeu todas suas economias, que havia aplicado em bônus do governo austríaco. Retirando sua ênfase do instinto sexual como força propulsora do comportamento, ele se dedicou à formulação do conceito de “Princípio do prazer e desprazer”, estudando o equilíbrio entre o impulso pelo prazer e a dura realidade do mundo externo. Pouco depois, elaborou outras ideias metafísicas que aparecem em Jenseits des Lustprinzips (Além do princípio do prazer), de 1920. Em 1922, trabalhou na redação de Uma neurose demoníaca do século XVIII e, em 1923, publicou Das Ich and das Es (O Ego e o Id), no qual expõe sua teoria tripartite da mente, constituída por Id, Ego e Superego. O conceito do Id, o reservatório dos impulsos instintivos, é uma cópia da parte da alma na doutrina de Platão. Já o Ego trata da realidade do mundo exterior, enquanto o Superego funciona como o inibidor dos instintos, sendo a parte sábia e a parte vigilante da alma da mesma doutrina platônica. Porém, como ateu e materialista convicto, Freud acreditava que o homem era apenas um produto da evolução natural, sujeito às leis da física e da química. Portanto, nada do que uma pessoa diz ou faz é casual ou acidental, pois o homem não é livre nem racional, uma vez que obedece a causas do inconsciente. Para ele, a força que orienta o comportamento inconsciente era o instinto sexual, que não se apresentava de forma consciente por causa da “repressão” social tornada também inconsciente. Freud 83 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO argumentou de maneira enfática que o comportamento humano é comandado pelo instinto sexual e pelo instinto de sobrevivência e que os motivos sexuais, se não são evidenciados, estão sublimados em um motivo aparente. Como criador da Psicanálise, por meio da qual é possível o estudo do consciente e do inconsciente humano, Freud é considerado um dos pensadores mais revolucionários de sua época, cujos reflexos repercutem até os dias atuais. Sua visão de que repressões de ordem sexual estão na origem de todos os conflitos humanos foi denominada de pansexismo, sendo a causa do rompimento com alguns de seus adeptos, entre eles Carl Jung, que utilizou a ideia freudiana do inconsciente; mas lhe acrescentou a condição de “coletivo” para explicar a origem dos distúrbios psíquicos. Jung substituiu o sexo como motor pelos arquétipos universais, que são situações comuns a todos os homens, independente de suas etnias, geografias e épocas. São mitos, lendas, tradições que compõem a estrutura mental básica de todos os indivíduos, restando a cada qual o espaço onde acrescentam suas biografias pessoais, que, no final, são delimitadas pelas grandes linhas do inconsciente coletivo. Voltando a Freud e à sua principal teoria, observa-se o quanto seu pensamento provocou impacto na filosofia vigente da época. Além da questão relacionada à moralidade, sua tese sobre a existência do inconsciente como um “depósito” de desejos e recalques sexuais, bem como a origem dos sonhos e a fonte do imaginário, causou um verdadeiro abalo nas convicções racionalistas que dominavam o panorama filosófico. A certeza de que o homem se diferenciava dos demais animais pela capacidade de raciocinar caiu por terra quando argumenta que o raciocínio não poderia ser considerado absoluto, pois estava a serviço das intenções nascidas no inconsciente do sujeito. Freud desenvolveu estudo detalhado sobre um aspecto da personalidade humana, que, de modo quase geral, não recebeu a devida atenção por parte da filosofia. Graças a ele, o estudo do homem adquiriu complexidade, forçando uma grande revisão nos conceitos filosóficos, tanto em termos da consciência, da vontade, quanto do próprio pensamento humano. Convém lembrar, no entanto, que nessa tese é possível encontrar semelhanças com outras escolas filosóficas, como, por exemplo, o Determinismo. Nesse, o tirano inexorável é o destino, enquanto no pensamento de Freud é o inconsciente. O freudomarxismo é a corrente filosófica que teve origem na aproximação feita por alguns filósofos contemporâneos, como Herbert Marcuse e Wilhelm Reich, entre as teses de Marx e Freud sobre cultura e civilização. Eles estudaram especialmente a análise marxista da ideologia e usaram as teses de Freud para invalidar e desmistificar o pensamento burguês. No aspecto freudiano, o inconsciente consiste em uma das qualidades psíquicas que, juntamente com o pré-consciente e o consciente, formam a configuração espacial do aparelho psíquico. Sendo assim, a “região” do cérebro que armazena memórias, sentimentos, emoções e outros resquícios intelectuais buscados para o emprego no cotidiano quando o indivíduo está em estado de alerta ou acordado. Pode também se manifestar sem a permissão consciente e racional do indivíduo, causando-lhe aborrecimentos e doenças mentais. Em geral, poderia ser comparado a uma espécie de arquivo cujo acesso é limitado, servindo para preservar os elementos mais íntimos dos indivíduos, em especial aqueles que lhe causariam maiores constrangimentos no meio social em que vivem. Trata-se, portanto, da essência intelectual, emocional e espiritual do homem, que comanda, mesmo 84 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 que indiretamente, as ações exteriores praticadas pelos indivíduos, repassando “suas ordens” para o consciente, que, por sua vez, desencadeia o processo fundamental para o cumprimento daquilo que foi desencadeado. 7.4 Sartre: o existencialista Figura 21 – Jean Paul Sartre O filósofo e escritor Jean-Paul Sartre nasceu em Paris, em 1905, dois anos antes do falecimento do pai. Ao ficar viúva, a mãe, Anne-Marie Schweitzer, mudou-se para a casa de seus pais em Meudon, nos arredores da capital francesa. Outro elemento marcante na formação intelectual de Sartre foi a imaginação criativa, estimulada pela leitura precoce e intensiva de grandes obras literárias. Em 1924, aos 19 anos, ele ingressou no curso de filosofia da Escola Normal Superior, onde se mostrou um aluno muito interessado, principalmente pelas aulas de Alain (1868/1951), que dedicava atenção especial à questão da liberdade. No ambiente acadêmico, Sartre conheceu Simone de Beauvoir (1908/1986), que lhe disse: “A partir de agora, eu tomo conta de você”. Desde então, nunca mais se separaram. Foi na Alemanha que Sartre começou a redigir Melancolia, romance que posteriormente foi concluído e recebeu o título de A náusea. Ao voltar para a França, ele publicou, em 1936, A imaginação e A transcendência do ego, trabalhos fortemente influenciados pela fenomenologia. Em 1938, foi editada A náusea e, um ano depois, uma coletânea de contos, O Muro, e o ensaio Esboço de uma teoria das emoções; em 1940, mais um ensaio, O imaginário, que, como o anterior, utilizava o método fenomenológico. Com o advento da Segunda Guerra Mundial, Sartre foi chamado para servir como meteorologista em Lorena. No entanto, em junho de 1940, foi preso no campo de concentração de Trier, na Alemanha. Um ano mais tarde, conseguiu escapar do cativeiro e se encontrou em Pariscom Simone de Beauvoir. Também na capital francesa foi responsável pela fundação do grupo Socialismo e Liberdade, com o intuito de auxiliar a Resistência, produzindo panfletos clandestinos contra a ocupação alemã e contra os colaboracionistas franceses. Em março de 1943, encenou sua primeira peça teatral, As moscas, na qual todos os elementos funcionavam de forma simbólica. No término da Segunda Guerra, Sartre desarticulou o movimento Socialismo e Liberdade e lançou a publicação Os tempos modernos, juntamente com Merleau-Ponty, Raymond Aron e outros intelectuais. 85 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Um ano depois, como resposta às críticas à sua filosofia existencialista, expostas em O ser e o nada, publicou O existencialismo é um humanismo, no qual procura explicar o significado do existencialismo do ponto de vista ético. No mesmo ano, publicou duas peças, Mortos sem sepultura e A prostituta respeitosa, além do ensaio Reflexões sobre a questão judaica, em que defende a tese de que a emancipação judaica seria viável apenas em uma sociedade sem classes. Em 1948, encenou As mãos sujas e, três anos depois, O Diabo e o bom Deus. No campo da política, essa fase também foi marcante pelo envolvimento de Sartre com o Partido Comunista, ao qual se filiou em 1952. Nos anos que se seguiram, continuou sendo, simultaneamente, um intelectual ativista. Em 1960, publicou a Crítica da razão dialética, precedido pelo ensaio Questão de método. Ambas as obras trazem reflexões no sentido de associar o existencialismo ao marxismo. A verve literária também não parou e, no mesmo ano, estreiou a peça Sequestrados de Altona, cujo tema central consiste nos problemas causados pelo colonialismo francês na Argélia, mesmo com a ação se passando na Alemanha de Hitler. Em 1964, surpreendeu as rodas de intelectuais com a publicação de As palavras, uma análise do significado psicológico e existencial de sua própria infância. Nesse ano, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, mas o recusou, pois aceitá-lo implicaria o reconhecimento da autoridade de um comitê julgador, o que considerava inadmissível. No entanto, em 1971, lançou a primeira parte de um longo estudo sobre Flaubert, intitulado L’Idiot de Famille. Em termos filosóficos, a trajetória do pensamento de Sartre teve início com A transcendência do ego, A imaginação, Esboço de uma teoria das emoções e O Imaginário, todos publicados entre 1936 e 1940. De acordo com o pensamento de Sartre, o tempo pode ser considerado como a expressão da síntese entre o em-si e o para-si e esta constitui a existência humana. A partir dessa perspectiva, o passado deixa de existir, a não ser que esteja associado ao presente de alguma forma. Enquanto o homem tem consciência de si mesmo, no presente, ele vive segundo o modo do para-si. No entanto, o seu passado possui todas as peculiaridades do em-si. Nesse sentido, a existência humana é formada, principalmente, pela espontaneidade da consciência, mas encontra atrás de si um ser que possui toda a característica de fiação de qualquer outro elemento do mundo. Ele ainda observou ser impossível ver na consciência algo distinto do corpo, uma vez que este não se liga exteriormente a ela. Pelo contrário, faz parte inerente da constituição da própria consciência, que é estruturada de maneira intencional; por isso, o corpo expressa a imersão no mundo como a característica da existência do homem. O corpo seria, então, um centro em relação ao qual são organizadas todas as coisas e, por isso, consiste em uma estrutura perene que viabiliza a consciência. Sartre estendeu sua interpretação afirmando que o corpo é a própria condição da liberdade humana. Como não existe liberdade sem escolha e o corpo é a necessidade de que ocorra a escolha de que o homem não seja a total idade do ser no ato. Por consequência, temos a condição da consciência humana como consciência do mundo e fundamento enquanto liberdade. Nesse sentido, o homem como ser-em-situação, assim como a necessidade de engajamento, a responsabilidade pessoal pelas ações e pelos projetos de vida e, em especial, a liberdade como fundamento individual, desenha as linhas gerais do pensamento existencialista de Sartre. As obras puramente teóricas expõem seus fundamentos filosóficos, e o teatro, o romance e o conto revelam de forma concreta essas ideias. As posições filosóficas iniciais de Sartre sofreram transformações, na medida em que o filósofo 86 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 buscou inserir o existencialismo numa concepção mais abrangente de mundo. Essas transformações derivaram, por um lado, do próprio existencialismo sartreano, que constitui uma filosofia “aberta”, e, por outro, do engajamento social e político do filósofo. Do ponto de vista da fundamentação teórica, essa nova concepção de Sartre encontra-se em Questão de método e em Crítica da razão dialética, ambas publicadas em 1960. Nessas obras, a questão crucial levantada pelo autor está em saber se é possível constituir uma antropologia ao mesmo tempo estrutural e histórica. Ou seja, o objetivo visado por Sartre é saber se há possibilidade de reencontrar uma compreensão unitária do homem para além das várias teorias, das várias técnicas, das várias ciências que o investigam. Sartre, contudo, não pretende inventar esse novo saber do homem. Não se trata de opor à tradição uma nova filosofia, capaz de fornecer soluções para os problemas que as antigas doutrinas sobre o homem não conseguiram resolver. Esse novo saber já existe segundo Sartre e circula anonimamente entre os homens: o marxismo. O marxismo, para ele, é a filosofia insuperável do século XX, “é o clima de nossas ideias, o meio no qual estas se nutrem... a totalização do saber contemporâneo”, porque reflete a práxis que a engendrou. Na mesma linha de ideias, Sartre afirma que, depois da morte do pensamento burguês, o marxismo é, por si só, “a cultura, pois é o único que permite compreender as obras, os homens e os acontecimentos”. Sartre, porém, fez referência ao marxismo oficial, e nem sequer pretendia transcender a obra de Marx, pois, para ele, o marxismo era capaz de superar a si mesmo, por ser uma filosofia que acaba se adequando às transformações econômicas e sociais. Tomando como base a concepção sartreana de que o marxismo consiste na “filosofia de nosso tempo”, é possível afirmar que o existencialismo foi pensado como “um território encravado no próprio marxismo”, que, ao mesmo tempo, o abrange e o exclui. Outro aspecto da doutrina de Sartre está na maneira pela qual ele tentava solucionar a questão das relações materiais de produção pelo projeto existencial. Ao afirmar que o marxismo era insuperável, ele não quis dizer que se tratava de uma filosofia eterna, mas sim que deveria ser suplantada quando houvesse para todos a garantia da liberdade e das condições de produção da vida. Diante dessa perspectiva, pode-se imaginar um mundo de fartura guiado por uma corrente filosófica que prioriza a liberdade. Infelizmente, a experiência atual não permite nem ao menos que esse cenário seja idealizado. Lembrete Hoje, com a inexistência de grandes projetos para a humanidade, torna- se necessário descobrir caminhos de ação que tragam um sentido legítimo à essência do processo civilizatório na construção do social. 87 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO 7.5 Michel Foucault: conhecimento e biopolítica Figura 22 – Michel Foucault (1926-1984) Considerado como um dos filósofos e professores maisimportantes da cátedra de História dos sistemas de pensamento no Collège de France, de 1970 a 1984, Michel Foucault Poitiers nasceu em 15 de outubro de 1926 em Paris. Seu trabalho foi desenvolvido como uma espécie de arqueologia do saber filosófico, partindo da experiência com a literatura e da análise do discurso com base nas teorias da linguagem, focando-se na relação entre poder e governo, incluindo todas as formas de subjetivação. Em 1954, ele publicou seu primeiro livro, Doença mental e personalidade. Em 1969, lançou A arqueologia do saber, como uma resposta às críticas que recebera. Ficou bastante conhecido pelas suas reflexões sobre as instituições sociais, especialmente no campo da psiquiatria, e também por suas ideias a respeito da evolução da história da sexualidade, além das suas teorias gerais relativas à energia e à complexa relação entre poder e conhecimento. Por isso, mais do que em análises da “identidade”, definidas como estáticas e objetivadas, Foucault se preocupou em estudar a vida e os variados processos de subjetivação. Suas teorias sobre o saber, o poder e o sujeito abalaram profundamente o significado moderno desses termos, razão pela qual é considerado um pós-moderno. Os primeiros trabalhos (História da loucura, O nascimento da clínica, As palavras e as coisas e A arqueologia do saber) seguem uma linha pós-estruturalista, mas não impedem que ele seja classificado como um estruturalista, em virtude de obras posteriores, como Vigiar e punir e A história da sexualidade. Foucault ficou famoso também por ressaltar a semelhança na maneira de tratar ou de cuidar dos grandes grupos de indivíduos que estão situados nos limites do grupo social, como os loucos, os prisioneiros, certos grupos de estrangeiros, soldados e crianças. Ele acreditava que esses agrupamentos específicos apresentavam em comum a característica de serem excluídos pelo confinamento em instalações especializadas e organizadas em modelos estruturados, como asilos, presídios, quartéis e escolas, todos inspirados no que ele denominou de “instituição disciplinar”. 88 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 Ele procurou, ainda, refletir sobre problemas concretos como a insanidade em um contexto bastante restrito do ponto de vista geográfico e histórico. No entanto, suas observações contribuíram para a identificação dos conceitos superiores a esses limites temporais e espaciais, mantendo, dessa forma, uma vasta abrangência em muitos campos do saber. No segundo semestre de 1970, ele demonstrou interesse no que parecia uma nova forma de exercer o poder, denomidada de “biopoder”, mostrando como a sexualidade afeta a saúde e o lazer como produtividade econômica, além dos mecanismos de poder, transformando-se em uma questão crucial para a política. Foucault pensou filosoficamente investigando a história, mas não escreveu uma “história da filosofia”. Porém, não excluiu a abordagem dos filósofos, permeando os escritos sobre diferentes “objetos”, inscrevendo-se, como que “em meio a eles”, a leitura das filosofias. Na verdade, aquilo que Foucault problematiza nos seus escritos sobre biopolítico é justamente a funcionalização do desconhecido, que torna própria a forma de ser do homem. Com essa funcionalização, o homem não está mais exposto ao conhecimento de si, que permanece, ainda, inalcançável na sua completude, mas totalmente descrito como dado estrutural de uma sociedade voltada para objetivos determinados. Mesmo que a vida humana não seja integrada em técnicas que a dominem e a gerem, o biopoder surge como uma intervenção na forma de viver dos sujeitos de direito. O biológico reflete-se diretamente no político, e o limiar de modernidade biológica de uma sociedade surge no momento em que a própria espécie entra em jogo nas estratégicas políticas. Nesse aspecto, qualquer forma de política se torna uma luta pelo espaço que o sujeito tem no controle da própria vida, ou seja, de um lado, o biopoder enquanto instância de controle do como viver e da estrutura biológica do homem, e do outro, a exigência, por parte dos sujeitos, por um direito a ter direito sobre o próprio corpo, e a forma de fruir deste; um direito de “encontrar o que se é e tudo o que se pode ser”. Nesse sentido, o controle do sexo surge com uma função simbólica na formação da identidade de uma população a partir do século XVIII, normativamente. Essa normalização do sexo, como um controle de uma população, faz a sexualidade surgir como dispositivo do poder soberano. O controle do sexo é, portanto, a forma mais eficaz de conter uma população, mantendo, com isso, o caráter homogêneo de um país/nação. Podemos identificar, então, três características fundamentais da biopolítica para Foucault: em primeiro lugar, existe um controle sobre o corpo, uma espécie de domesticação dos corpos por parte do controle médico-jurídico, que permite que o homem seja tomado enquanto ente para um conhecimento científico – e nisto a estrutura duplo empírico- transcendental fica mais clara: ao mesmo tempo, o homem é tomado enquanto objeto empírico, que só é possível a partir de um conhecimento que é afirmado de um ponto de partida transcendental, o qual o mesmo homem, enquanto sujeito, participa. Em segundo lugar, a partir desta domesticação, os corpos dóceis dos homens são objetos de uma regulamentação política, que vai implicar em um poder disciplinar do qual o homem é objeto. Assim, temos como terceira característica da biopolítica uma relação permanente de poder-saber que permeia todas as estruturas anteriores – o controle da estrutura biológica do homem, feito a partir de um controle médico da população (primeira característica aqui identificada) implica em uma delimitação do campo de saber empírico ao qual este mesmo homem terá acesso; assim como a regulamentação e o controle disciplinar de uma 89 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO população a partir da estrutura jurídica vai implicar diretamente nos saberes possíveis- disponíveis para uma determinada população. Fica, portanto, claro como a relação poder- saber está implicada em toda biopolítica – a partir da neutralização do saber científico, quem tem o controle de um determinado saber científico pode legitimar seu uso a partir da suposta “neutralidade” de sua prática (FOUCAULT apud KELLY, 1994, p. 44-45). A ideia de dispositivo, portanto, está ligada a esta relação entre saber-poder, onde o dispositivo de poder controla uma articulação entre um saber e sua aplicação – e, na biopolítica, a aplicação de um determinado saber no próprio corpo de uma população, ou na determinação de uma população homogênea (PONTIN, 2007, p. 62). 8 QUESTÕES ATUAIS EM FILOSOFIA No atual estágio em que se encontram as relações humanas, mediadas ou não pelas tecnologias da informação, é preciso contextualizá-las e compreendê-las a partir do cenário pós-moderno, que configura um novo estado de ser e de estar no mundo. Hoje, com a inexistência de grandes projetos para a humanidade e dos ideais positivistas que faziam crer na ciência como a grande trajetória a ser percorrida para alcançar o progresso como a solução de todos os conflitos gerados pela tensão provocada pelo homem na sua luta de engajamento político, econômico e social, torna-se necessário descobrir caminhos inusitados de ação que tragam um sentido legítimo à essência do processo civilizatório na construção original de outra ordem social. Com a derrocada do socialismo, da Guerra Fria e o esfacelamento da polarização dos ideais político- partidários, a abstração entre esquerda e direita fez com que os indivíduos realmente dispostos a contribuir com ações conjuntaspara as mudanças de ordem social e econômica repensassem sobre novas formas de representatividade e de indagações capazes de garantir tanto a permanência quanto a eficácia de atuações cívicas pertinentes às esferas do poder. Nessa conjuntura de fatores nunca antes vivenciados na trajetória humana, a concepção de espaço público, de pertencimento a uma realidade ao mesmo tempo globalizada pela economia e fragmentada pelo multiculturalismo, que prescinde do ideal de um futuro comum a todos, é necessário avaliar de que maneira os indivíduos estão se organizando tanto em nível local quanto em mundial para a troca de informações e de reflexões críticas, tendo em vista a concepção de movimentos estratégicos para o fortalecimento dos elos sociais, imprescindíveis a qualquer noção de mudança efetiva na esfera pública. A pluralidade de estudos que contemplam as influências das tecnologias de informação e de comunicação, especialmente a internet, as comunidades virtuais e os blogs políticos com relação ao capital social, entendido como a capacidade de os indivíduos assumirem uma posição cívica de mobilização em torno dos problemas em termos de discussão e de ações direcionadas para solucioná-los, revela ainda a existência de muitos aspectos a serem aprofundados que devem transcender os limites da avaliação quantitativa, uma vez que esse tipo de abordagem pouco acrescenta sobre o potencial representativo da rede em suas múltiplas possibilidades de interação. Antes de tecer os comentários iniciais sobre as articulações filosóficas permeadas pelas novas tecnologias de comunicação, faz-se necessário lembrar que esses meios ratificam ainda mais as desigualdades sociais, permitindo que apenas uma minoria da população do planeta possa usufruir desses 90 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 benefícios, em detrimento de uma maioria que se encontrará por tempo ainda indefinido totalmente alijada dessa forma de poder. Embora a repercussão dos efeitos das interações proporcionadas pela rede possa até mesmo vir a beneficiar esse número imenso de indivíduos de alguma forma, esse modelo continua refletindo a realidade já estabelecida off-line, na qual uma minoria articulada às atividades sociais determina as condições de vida de uma imensa maioria, carente de necessidades básicas, que se encontra totalmente à margem das decisões relativas à esfera pública. Certamente, a rede tem proporcionado grandes possibilidades para aqueles que antes se achavam isolados em nível local ou regional, permitindo maior abrangência em termos de fonte de pesquisa e de interatividade pessoal e coletiva. No entanto, a relação dessas ferramentas com a ascensão ou com o declínio do capital social como instrumento de transformação deve ser analisada com cautela, uma vez que a tendência ao individualismo e a falta de comprometimento e de interesse pelas decisões da esfera pública evidenciam fortemente a constituição do sujeito em pleno século XXI. No cenário atual, nem mesmo a total liberdade de acesso e de divulgação de informações e opiniões por meio da rede via comunidades virtuais como Orkut e YouTube podem fazer com que esses espaços sejam considerados um avanço em termos de contribuição para o engajamento às causas públicas. Para efeito qualitativo, no que se refere ao conteúdo online, esses novos canais de comunicação ainda permanecem sob o domínio da estrutura fora da rede e, como novidade que são, ainda se encontram presos intrinsecamente à inevitável tentação da exposição de formas de expressão reprimidas que ganham vazão, como uma criança solta em um gigantesco parque de diversões. Portanto, qualquer tentativa de colocar parâmetros para medir ou avaliar a relação dos agentes dessas mensagens com a atual capacidade de mobilização social deve levar em consideração todos esses elementos comprometedores das informações veiculadas no mundo virtual. Apesar da crescente evolução das tecnologias de informação e de comunicação em todo o mundo, que não podem ser ignoradas sob hipótese alguma, em função das inusitadas formas de interatividade que irão fazer parte estrutural do universo coletivo das próximas gerações, é cedo para identificar a dinâmica efetiva da influência da rede com relação ao capital social. Mesmo por que a maioria dos internautas de hoje que demonstram preocupação de utilizar essa ferramenta como instrumento efetivo de mobilização nasceu e cresceu em uma realidade desprovida desses aparatos. Portanto, o que se pode concluir até o presente momento é que esses sujeitos mobilizadores encontram-se em fase de adaptação e de experimentação no que se refere ao potencial dessa nova forma de construção da sociedade pelo consumo midiático virtual. A própria necessidade de acrescentar o prefixo pós ao termo modernidade pelos críticos e teóricos contemporâneos já indica uma alteração de sentido que merece atenção enquanto objeto de estudo. Aliás, o termo aldeia global, do canadense Marshall McLuhan, adquiriu um significado peculiar agora que as distâncias se encurtam cada vez mais, provocando uma “onda” de unificação, sobretudo no campo da economia e das comunicações. A informática, que revolucionou a operacionalidade de numerosas atividades humanas, e, mais recentemente, a invasão das televisões a cabo e das redes virtuais pela internet podem ser consideradas agentes potencializadores dessa mudança estrutural. 91 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO Em meio a tantas novidades, do CD-ROM às teleconferências, virou uma espécie de modismo estar conectado a tudo e a todos. A introdução do controle remoto, que transformou a televisão numa “colagem de imagens” de autoria individual, bem como o advento do videocassete e do DVD, foram responsáveis pela ruptura da noção de instantaneidade, possibilitando a concepção isolada e fragmentada da realidade. Atualmente, já é possível conhecer os principais museus do planeta, como o Louvre, em Paris, o Prado, em Madri, e o Museu Britânico, em Londres, sem sair de casa, emitir e receber mensagens para todas as partes de forma imediata, criar e recriar um universo virtual inteiro na tela de um computador, além de ter à disposição uma quantidade tão grande de informações que seria necessário mais de um milênio para que alguém pudesse acessá-las e assimilá-las. Nesse vasto cenário, onde tudo, em tese, parece estar ao alcance do homem, a relação entre novo e antigo, entre homogêneo e heterogêneo, tornou-se um desafio talvez mais intrincado e complexo do que povoar a Lua. O avanço desigual da tecnologia tem levado o ser humano a experimentar a estranha e angustiante sensação de estar vivendo uma realidade virtual, constituída por visões fragmentadas da sua própria condição. Tamanha é a ausência de referências simbólicas diante de tanta inovação que se torna cada vez mais complicada a tarefa de elaborar previsões de qualquer espécie, seja a curto ou longo prazo. Como observa o estudioso da pós-modernidade Stuart Hall (1997, p. 68) citando Harvey (1989): À medida que o espaço se encolhe para se tornar uma aldeia global de telecomunicações e uma espaçonave planetária de interdependências econômicas e ecológicas – para usar apenas duas imagens familiares e cotidianas e, à medida que os horizontes temporais se encurtam até o ponto em que o presente é tudo que existe, temos que aprender a lidar com um sentimento avassalador de compressão de nossos mundos espaciais e temporais. Essas alterações encontram-se intimamente vinculadas à noção de identidade no final do milênio, partindo do princípio de que as identidades modernas estão sendo descentradas, quer dizer, deslocadas.Stuart Hall (1997, p. 9) argumenta que: Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um sentido de si estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma crise de identidade para o indivíduo. 92 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 Também para mascarar a complexa realidade da situação dos “pobres do mundo”, a mídia utiliza- se de contextos inter-relacionados, pautando e editando as notícias, de modo a reduzir o problema da miséria e da privação apenas à questão da fome. Com isso, a verdadeira escala da pobreza (800 milhões de pessoas são permanentemente subnutridas, mas cerca de 4 bilhões – dois terços da população mundial – vivem na pobreza) é omitida, e a tarefa a ser enfrentada restringe-se somente à obtenção de comida para os famintos, como destaca o filósofo alemão Zigmunt Bauman (1998 p. 82): Acrescentemos que toda associação das horrendas imagens da fome apresentadas na mídia com a destruição do trabalho e dos postos de trabalho (isto é, com as causas globais da pobreza local) é cuidadosamente evitada. As pessoas são mostradas com sua fome, mas, por mais que os espectadores agucem a visão, não verão um único instrumento de trabalho, uma única faixa de terra arável ou uma só cabeça de gado nas imagens, nem ouvirão qualquer referência a nada disso. Como se não houvesse ligação entre o vazio das exortações rotineiras para que se ‘levantem e façam alguma coisa’, dirigidas aos pobres num mundo que não precisa mais da força de trabalho, pelo menos não nas terras onde as pessoas mostradas pela televisão morrem de fome, e o sofrimento de pessoas oferecidas como escoadouro carnavalesco, em ‘feira de caridade’, para um impulso moral contido. De certa forma, o mundo nunca esteve tão acessível ao homem, proporcionando-lhe a ilusão sobre- humana de estar em vários lugares ao mesmo tempo. Em grandes cidades como Nova Iorque, Tóquio, Londres, Paris e São Paulo, cadeias imensas de restaurantes fast-food, sempre moldados de forma padronizada, exibem ininterruptamente telões onde se alternam imagens de desenhos animados novos e antigas competições esportivas, videoclips e comerciais ao som de músicas estridentes do universo pop. O que importa aqui não é o conteúdo da mensagem, mas sim proporcionar ao cliente a sensação de estar conectado de alguma maneira à sociedade global. Como verdadeiros artefatos decorativos, esses programas são veiculados com o objetivo de criar um ambiente familiar de reconhecimento e identificação para o sujeito descentrado da era pós-industrial. Ao mesmo tempo em que a tecnologia coloca o planeta ao alcance do apertar de teclas, produz também a angústia dilacerante da overdose de informações, que reflete a falta de significado de uma realidade virtual nem um pouco tangível. Essa situação chega a provocar um efeito quase paralisante da capacidade crítica e reflexiva do indivíduo, para o qual a novidade, quando existe, permanece desprovida de referenciais em um contexto fictício e artificioso. Observação “O homem deve ser inventado a cada dia” (Sartre). Por outro lado, um reconfortante ideal de união e igualdade, sempre presente no imaginário da coletividade humana como o mito da civilização perfeita, ressoa como uma cantiga de ninar, embotando a sensibilidade para a percepção nada agradável da existência conflitante e paralela dos graves problemas 93 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO sociais que assolam o mundo. Afinal, um cenário marcado pela miséria, pela fome, pela intolerância e pela violência contrasta de maneira constrangedora com a sofisticada tecnologia das imagens plurais responsáveis pela interconexão de todas as partes do globo terrestre. Para o homem, significa, em última instância, a assinatura do atestado de fracasso e de incompetência em sua tentativa de melhorar o mundo na entrada do terceiro milênio, época projetada ao logo de toda a história do pensamento moderno como um tempo de realização pleno e satisfatório diante das adversidades naturais e daquelas impostas por sistemas de governo inadequados ao bem-estar social supostamente atingível. Nesse jogo sutil de identidades, não existem vítimas indefesas, e muito menos vilões maquiavélicos que programam computadores para manter corações e mentes sob permanente controle. A ênfase na primazia do avanço tecnológico da nossa era pode ser considerada mais como um instrumento de defesa individual contra o sentimento de abandono e ausência de perspectivas favoráveis, despertado pela falência das ideologias e pela ausência de grandes projetos para a humanidade. Figura 23 Nesse acordo silencioso selado pelas estruturas de poder, torna-se necessário avaliar até que ponto a mídia, enquanto forma e conteúdo, está comprometendo seu papel atuante na construção do intrincado fenômeno da opinião pública, que se apresenta como coletivo, embora tenha como base a realidade individual vivenciada em sociedade. Portanto, a complexidade reside no fato de o comportamento dos indivíduos nos grupos ser diferente do seu comportamento pessoal e isolado, esclarecendo que a opinião pública vem determinada por um mundo onde se multiplicam de forma incessante os agentes determinantes da vida política, social e filosófica. Não se pode negar que, seja nas sociedades centrais, seja nas periféricas, os descolamentos de identificações estão provocando mudanças de costumes e de comportamentos. Entretanto, a contribuição maior atualmente consiste em desvendar a origem dessas tendências, bem como das suas influências de fato nas esferas sociais pertencentes aos mais diferentes níveis de evolução e de desenvolvimento de uma nação. O filósofo francês Pierre Bourdieu alerta para a existência de uma estrutura invisível que permeia a interface entre a produção intelectual na área acadêmica, fornecendo outro recorte na esfera da 94 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 comunicação, tendo em vista as pressões de mercado nas empresas que trabalham com a difusão de informações, seja em nível informativo, interpretativo e, principalmente, de caráter opinativo. Para ele, nem mesmo os próprios pensadores da atualidade, com raras exceções, percebem que estão sujeitos de forma permanente à ilusão de que estão divulgando e legitimando o conhecimento da forma mais adequada, selecionando as melhores fontes dos mais variados campos do saber para a exposição e para a formação da “opinião pública”. Ainda na visão dele, os jornais impressos, que dominaram a era da imprensa escrita com propostas sérias de provocar reflexões críticas na sociedade por meio de depoimentos de fontes consagradas por seus pares, perderam seu poder e tiveram que se adaptar aos noticiários falados, que mantêm o foco no fait-divers1, nos esportes e na agenda oficial dos representantes do poder público, para atingir um número cada vez maior de indivíduos, aumentando com isso seu capital simbólico com aquilo de Bourdieu chama de assuntos-ônibus, que não levantam problemas.Essa forma de expressão midiática, apesar do extraordinário alcance proporcionado por ela, faz com que a configuração dos temas hoje debatidos pela sociedade ceda à tendência de homogeneização da informação e do pensamento filosófico e à desarticulação das possibilidades de engajamento no campo político. No entanto, ele enfatiza também que essa opção pela banalização não foi algo planejado por alguém ou por um grupo reacionário comprometido com alguma forma de poder específica. Vale lembrar que essa fórmula fácil de falar em nome da moral burguesa e da lógica da concorrência convém a todos os espectros sociais, confirmando realidades reconhecidas sem ter que recorrer às mudanças de mentalidade que poderiam subverter a ordem já estabelecida. Saiba mais Assista ao filme Ponto de mutação, para conhecer as visões de mundo contemporâneas por meio do diálogo entre um político, uma cientista e um poeta. Ponto de mutação. Dir. Bernt Capra, EUA,112 minutos, 1990. Resumo É possível afirmar que a filosofia moderna liberta a razão das exigências da fé na Idade Média e a coloca na dependência do homem, o que permite 1 O fait-divers é uma informação total, ou mais exatamente, imanente; ele contém em si todo o seu saber: não é preciso conhecer nada do mundo para consumir um fait-divers; ele não remete formalmente a nada além dele próprio; evidentemente, seu conteúdo não é estranho ao mundo: desastres, assassinatos, raptos, agressões, acidentes, roubos, esquisitices, tudo isso remete ao homem, à sua história, à sua alienação, a seus fantasmas, a seus sonhos, a seus medos... no nível da leitura, tudo é dado num fait-divers: suas circunstâncias, suas causas, seu passado, seu desenlace; sem duração e sem contexto, ele constitui um ser imediato que não remete a nada de implícito (BARTHES. Crítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 59). 95 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO seu esclarecimento e coloca o conhecimento ao alcance de todos. Na Europa Ocidental, ocorre uma retomada do pensamento da antiguidade, assim como a libertação do conhecimento do controle da Igreja Medieval. Mesmo sendo considerada um retorno do pensamento racional à supremacia e, em especial, uma releitura do pensamento platônico, a filosofia moderna mostra seu valor ao promover a acessibilidade do saber, sem distinção entre o mundo sensível das coisas e o mundo intangível das ideias. René Descartes acreditava ter sido escolhido para unificar todos os conhecimentos humanos, partindo de bases sólidas certificadas pelo conhecimento científico para construir um modo de pensar focado na verdade e permeado somente pelas certezas racionais. Na condição de matemático e filósofo francês, ele se mostrou contrário a qualquer ideia de subjetividade, o que o levou a escrever a célebre frase: penso, logo existo. Na visão cartesiana, o universo material poderia ser explicado pelas leis da física e da matemática, que resultaram na concepção da geometria analítica como forma de definir e de manipular as formas geométricas por meio de expressões algébricas. Essa postura filosófica originou as coordenadas cartesianas, por intermédio das quais os pontos são representados nesse sistema, marcando para sempre o nome de Descartes na história da humanidade. George Wilhelm Friedrich Hegel concebeu o modelo de análise da realidade que mais influenciou pensadores como Nietzsche, Marx e Jean- Paul Sartre, por se tratar de um pensamento que refuta a filosofia de Kant. Para tanto, Hegel procurou discutir vários, como a lógica, o direito, a religião, a arte, a moral, a ciência e a própria história da filosofia. Em todos esses campos do saber, ele vislumbrou a manifestação do espírito absoluto, capaz de materializar e de se revelar por intermédio da história. A filosofia hegeliana, portanto, parte do fundamento de que a negatividade é um dado estrutural do real e que o positivo realiza-se apenas por meio do negativo. Essa postura dialética, então, seria o procedimento metodológico que torna possível compreender a racionalidade do real. No pensamento filosófico elaborado por Karl Marx, a realidade material será sempre a maior responsável por todas as condições da vida humana, expondo o homem à sua condição existencial. Também dela devem ser pensadas todas formas de ideologia, ou seja, as visões de mundo. Diante dessa formulação, é possível afirmar que não é a ideia que produz a realidade, mas sim o contrário, o que estabelece um correlacionando dialético que modela as sociedades. Como parte do contexto do pensamento alemão que originou o racionalismo e o romantismo, resultando no “materialismo contemplativo”, Marx era defensor da prática de um materialismo ativo. 96 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 Porém, seu materialismo não pôde ser colocado em prática, porque ele acreditava que o racionalismo era muito abstrato em comparação ao materialismo dialético, já que matéria e ideia constituem categorias opostas que se inter-relacionam, mantendo uma unidade. O pensamento positivista admite, como fonte única de saber e de critério de verdade, a experiência e os fatos positivos, incluindo os dados sensíveis. Sendo assim, nenhum conhecimento metafísico como a interpretação ou a justificação transcendente da experiência possui validade nesse terreno filosófico. Portanto, a filosofia passa a ser reduzida à metodologia, à sistematização das ciências e à lei, única e suprema, que comanda o mundo concebido pelo positivismo, fomentando a força necessária à energia naturalista. Auguste Comte é o grande formulador do positivismo, corrente filosófica fundada por ele com o intuito de reorganizar o conhecimento humano e que teve forte influência no Brasil. Comte ainda é considerado o grande sistematizador da sociologia. Com relação à sua concepção de mundo, vale destacar que ele viveu em um período da história francesa em que se alternavam o despotismo e as revoluções, o que levou a sociedade à crise dos valores tradicionais. Pode ser considerada como contemporânea a filosofia que compreende a segunda metade do século XIX até o início do século XXI, e o positivismo permanece como presença constante na história do pensamento dessa fase. Apesar das suas notáveis diferenças na maneira de lidar com os problemas, é possível reconhecer essa conduta empirista do século XVIII no positivismo do século XIX e no positivismo lógico ou empirismo lógico do século XX. O empirismo lógico ou positivismo lógico do século XX consiste num dos movimentos integrantes da corrente analítica dos nossos dias, cuja originalidade está em ter conseguido transformar o próprio conceito de filosofia. Para a corrente analítica, a filosofia não tem por objeto a realidade, mas sim a análise da linguagem que envolve a realidade, seja a linguagem ordinária, comum ou científica. Outras correntes da filosofia contemporânea tomaram como objeto principal de consideração o fenômeno da história, da vida e da irredutibilidade da existência pessoal – as filosofias historicistas, existencialistas e personalistas. Podemos conceituar a filosofia como uma disciplina que estuda os fundamentos das convicções e dos valores humanos. No entanto, enquanto as ciências fixam um saber sólido a partir do qual passam a desenvolver suas teorias, a filosofia não produz os mesmos resultados, uma vez que não existem respostas definitivas às questões humanas. Freud revolucionou a psicologia ao introduzir a noção de inconsciente como sendo o poder que foge do controle da consciência. Para complementar, a ideia de progresso como percurso racional foi abalada definitivamente97 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO com a ascensão dos regimes totalitários, como o nazismo, o fascismo e o stalinismo. Friedrich Nietzsche profetizou as grandes guerras do século XX, afirmando que chegaria o dia em que os homens lutariam no confronto pelo poder. No entanto, ele conhecia os campos de batalha do espírito e, no fundo, queria conhecer apenas esses. Porém, sua obra contém o caos, assim como o impulso que deveria desencadeá-lo no decorrer da história da humanidade, podendo ser considerado como o primeiro precursor do conceito de pós-modernidade amplamente utilizado hoje. Na vanguarda da sociedade que preconizava, ele colocava o espírito de altivez, afirmando que a consciência de si próprio precede qualquer criação. Em Nietzsche, o mundo é uma espécie de caos e apenas a manifestação artística pode transformar a desordem em beleza e tornar aceitável aquilo que há de mais aterrador na condição humana. Médico especializado em doenças mentais, Sigmund Freud desenvolveu a psicanálise, uma teoria do funcionamento da mente humana e um método exploratório de sua estrutura, destinado a tratar os comportamentos compulsivos e muitas doenças de natureza psicológica supostamente sem motivação orgânica. Ele recolheu de várias fontes os elementos por meio dos quais compôs a sua teoria, a partir das descobertas do médico austríaco Josef Breuer, da doutrina platônica e do pensamento filosófico de Schopenhauer, consolidando, pela longa prática clínica, os postulados da teoria que denominou Psicanálise. Freud acreditava que o homem era apenas um produto da evolução natural, sujeito a leis da física e da química. Portanto, nada do que uma pessoa diz ou faz é casual ou acidental, pois o homem não é livre nem racional, uma vez que obedece a causas do inconsciente. Para ele, a força que orienta o comportamento inconsciente era o instinto sexual, que não se apresentava de forma consciente por causa da “repressão” social tornada também inconsciente. Freud argumentou, de maneira enfática, que o comportamento humano é comandado pelo instinto sexual e pelo instinto de sobrevivência e que os motivos sexuais, se não são evidenciados, estão sublimados em um motivo aparente. Como criador da psicanálise, por meio da qual é possível o estudo do consciente e do inconsciente humano, Freud é considerado um dos pensadores mais revolucionários de sua época, cujos reflexos repercutem até os dias atuais. Para Jean-Paul Sartre, a liberdade vem do nada, o que obriga o ser humano a fazer-se em vez de apenas ser. De acordo com a doutrina de Sartre, o homem é totalmente responsável por aquilo que é, uma vez que não é válido para as pessoas atribuir seus erros a circunstâncias externas. Essa concepção 98 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 autônoma da liberdade, como determinação radical do ser, faz da doutrina existencialista uma filosofia que refuta a ideia de Deus. Portanto, Sartre retira desse ateísmo qualquer fundamento sobrenatural para a construção dos valores universais, pois é o homem quem os cria. Sendo assim, a vida não possui sentido, independentemente do fato de o homem existir, e seu valor consiste no sentido que cada um estabelece para si próprio. Foucault também ficou conhecido por ter evidenciado as formas de algumas práticas das instituições em relação aos indivíduos, chamando a atenção para a grande semelhança que existe na maneira de tratar grandes grupos de indivíduos que estão nos limites do grupo social, mais especificamente os loucos, os prisioneiros, alguns estrangeiros, os soldados e as crianças. Ele acreditava que todos possuem em comum o fato de serem vistos com desconfiança e, por isso, excluídos por confinamento em instalações especializadas e organizadas em modelos parecidos, como asilos, presídios, quartéis e escolas, que ele chamou de “instituição disciplinar”. Foucault também buscou, por meio da sua obra, discutir temas concretos como a loucura humana em um contexto muito específico do ponto de vista geográfico e histórico. No cenário atual, a rede tem proporcionado grandes possibilidades para aqueles que antes se achavam isolados em nível local ou regional, permitindo maior abrangência em termos de fonte de pesquisa e de interatividade pessoal e coletiva. No entanto, a relação dessas ferramentas com a ascensão ou com o declínio do capital social como instrumento de transformação deve ser analisada com cautela, uma vez que a tendência ao individualismo e a falta de comprometimento e de interesse pelas decisões da esfera pública evidenciam fortemente a constituição do sujeito em pleno século XXI. No cenário atual, nem mesmo a total liberdade de acesso e de divulgação de informações e opiniões por meio da rede via comunidades virtuais como Orkut e YouTube podem fazer com que esses espaços sejam considerados um avanço em termos de contribuição para o engajamento nas causas públicas. Mas, apesar do alcance extraordinário proporcionado pela expansão midiática, as novas formas de tecnologia da comunicação fazem com que a configuração dos temas hoje debatidos pela sociedade ceda à tendência da homogeneização da informação, à fragmentação do pensamento filosófico e à desarticulação das possibilidades de engajamento no campo político. Exercícios Questão 1 (prova de Pedagogia, Enade, 2008) A racionalidade científica, forma dominante de pensar e de agir na Modernidade, transformou o homem e sua ação em objetos de investigação. Passaram a ser tratados da mesma forma que as “coisas” e os fenômenos da natureza, como “objetos” fixos, imutáveis. O historicismo veio a 99 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO se opor a essa perspectiva positivista, chamando a atenção para a dimensão histórica da existência, do mundo e da sociedade. As vertentes da pesquisa em educação que acompanharam essa discussão incorporaram ideias do historicismo e trouxeram para a prática da investigação o pressuposto de que: A) a pesquisa educacional supõe a existência de métodos previamente definidos. B) a objetividade e a universalidade do conhecimento são garantidas pelos métodos de pesquisa. C) a metodologia da pesquisa determina a produção dos conhecimentos histórico-educacionais. D) o conhecimento da realidade só é possível por meio do controle do fenômeno educacional. E) o conhecimento educacional depende da compreensão dos processos sócio-históricos. Resposta correta: alternativa E. Análise das alternativas A) Alternativa incorreta. Justificativa. A alternativa não é correta, pois a atual concepção de pesquisa educacional se pauta numa pluralidade de métodos, numa postura aberta, consciente da riqueza e da complexidade do seu campo de pesquisa numa busca da variedade e da articulação de instrumentos mais adequados ao trabalho de desvendamento das práticas educacionais. B) Alternativa incorreta. Justificativa. A alternativa não é correta, pois a concepção historicista na qual se baseia a pesquisa em educação na atualidade não mais vê (como na concepção cientificista-positivista) a compreensão da realidade como algo estanque e linear que possa ser aprendido com objetividade e universalidade absolutas. C) Alternativa incorreta. Justificativa. A alternativa não é correta, pois na concepção historicista os contextos histórico- educacionais é que determinam a metodologia da pesquisa. Vale lembrar que a determinação nessa visão é múltipla, complexa, pois tenta apreender toda a riqueza e complexidade das ideiase das práticas educacionais e sociais de um determinado período. D) Alternativa incorreta. Justificativa. A alternativa não é correta, pois a ideia de controle dos fenômenos faz parte do universo do cientificismo, da razão cartesiana, que acreditava no poder da ciência de explicar para prever e controlar. Mas a concepção historicista de pesquisa em educação dá conta de que o universo das ações humanas é muito mais complexo e imponderável, pautado numa multideterminação de fatores e agentes. 100 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 E) Alternativa correta. Justificativa. A alternativa é correta porque ressalta a importância da tentativa de compreensão dos processos sócio-históricos na busca do conhecimento educacional. A ideia de processo é fundamental na concepção historicista, pois ela dá a dimensão da complexidade e da riqueza dos fenômenos humanos e sociais (nos quais estão inseridas as práticas educacionais), que são resultado das contradições, dos impasses, das rupturas e das intersecções entre diferentes tempos e espaços. Questão 2 (adaptada de prova de Pedagogia, Enade, 2005): Mas a “verdade”, da qual nossos professores tanto falam, parece ser seguramente uma coisa bem mais modesta, da qual não se pode recear nada de desordenado ou excêntrico: ela é uma criatura de humor fácil e benevolente, que não se cansa de assegurar a todos os poderes estabelecidos que ela não quer criar aborrecimentos a ninguém; pois, afinal de contas, não se trata aqui apenas de “ciência pura”?. (NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003, p.151). Nietzsche, filósofo alemão do século XIX, faz uma crítica irônica a uma concepção naturalizada e abstrata da ciência e da verdade. Pensando na relação de um professor com o conhecimento, qual das seguintes afirmações acerca da atuação do professor dá sentido à crítica do autor? A) Convencer os seus alunos a consolidar o saber científico. B) Preservar os fundamentos das pesquisas já feitas na escola. C) Ser um bom transmissor dos saberes instituídos cientificamente. D) Colocar em questão os saberes instituídos cientificamente. E) Transmitir verdades que ampliem os conhecimentos estabelecidos. Resolução desta questão na Plataforma. 101 Re vi sã o: A nd ré ia A nd ra de - D ia gr am aç ão : L éo - 1 9/ 09 /2 01 1 HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO FIGURAS E ILUSTRAÇÕES Figura 1 Os quatro elementos. Arquivo UNIP Interativa. Figura 2 MUSEI CAPITOLINI. Herm depicting “Pythagoras”. Multimedia: hall of the philosophers. 1 fotografia. 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Figura 8 BOTTICELLI, S. Sant’Agostino nello studio. 1480. Afresco. Disponível em: <http://www. museumsinflorence.com/foto/cenacoloognissanti/image/Sant’Agostino-.jpg>. Acesso em: 3. set. 2011. Figura 9 BROOKLYN MUSEUM. San Thomas Aquino. Século XVIII. 1 original de arte, óleo sobre tela. Disponível em: <http:// cdn.brooklynmuseum.org/opencollection/images/objects/size3/41.1275.188.jpg>. Acesso em: 3 set. 2011. 102 Figura 10 MENZEL, A. Voltaire in the court of Frederick II of Prussia. 1750. 1 original de arte. Disponível em: <http://static.newworldencyclopedia.org/e/e6/Adolph-von-Menzel-Tafelrunde.jpg>. Acesso em: 15 set. 2011. Figura 11 EDELINCK, G. René Descartes chevalier seigneur du Perron. 1691. 1 gravura. Disponível em: <http:// www.britishmuseum.org/collectionimages/AN00496/AN00496978_001_l.jpg>. Acesso em: 28 ago. 2011. Figura 12 CARROGIS, L. David Hume (1711 – 1776), historian and philosopher. 1 original de arte: lápis, giz vermelho e aquarela sobre papel. 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