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90 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II Unidade II 5 GÓRGIAS, MÊNON, PROTÁGORAS E CRÁTILO Agora que você já leu os trechos mais famosos da obra de Platão, vamos examinar outros diálogos e seus conceitos principais. A organização desses diálogos segue certa ordem cronológica. Como esta deve ser uma das suas primeiras leituras de Platão, escolhemos alguns diálogos para entendermos também a ordem das percepções originais com as quais ele organizou sua filosofia. 5.1 Górgias Figura 8 O Górgias é um diálogo que retrata um confronto hostil entre Sócrates e o famoso sofista Górgias. É uma disputa entre a filosofia e a retórica. Sócrates pede para Górgias definir o que é a retórica, de maneira que ajude a distinguir o discurso retórico do discurso filosófico. O discurso retórico produz cantos de louvor e de culpa. O discurso filosófico examina as questões da dialética e da discussão (Górg., 448d10) para alcançar uma definição sintética, para entender o objeto de pesquisa. O filósofo não se incomoda com a refutação, quando isso leva a uma melhor compreensão e à sabedoria. Por isso, o filósofo não se esforça para vencer uma discussão (Górg., 457e-458a). 91 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA ANTIGA Sócrates faz Górgias se afastar do seu ponto de vista, de que a retórica constrói discursos e sua eficácia está contida apenas na atividade discursiva, diferentemente, portanto, das artes manuais. Górgias afirma que a retórica é a fonte da liberdade para o próprio ser humano e, ao mesmo tempo, é para cada pessoa sua fonte de poder sobre os outros na própria cidade (Górg., 452d6-8). Esse tipo de liberdade permite o poder produzido pela capacidade de persuadir os outros a aceitar uma proposição. A retórica é um produtor de persuasão (Górg., 453a2-3). Contudo, persuasão sobre o quê? Górgias afirma que é sobre as questões relativas à justiça (454b7). Sócrates pondera que há dois tipos de persuasão: um que promove as crenças e outro que produz conhecimento. As crenças são produzidas pela retórica. Assim como a poesia, Sócrates acredita que o objetivo da retórica é satisfazer e agradar o ouvinte. É uma espécie de lisonja ao público. A diferença entre a retórica e a poesia (pense aqui na música contemporânea, a forma mais cotidiana de utilização da poesia) é seu ritmo e sua métrica. A poesia falada sem ritmo é pura retórica, é apenas outra espécie de discurso público (Górg., 502a6-c12). Para Sócrates, o orador retórico cria crenças na alma de seus ouvintes (Górg., 455a3-4). Entretanto, Górgias contrapõe dizendo que até mesmo a medicina precisa convencer os pacientes da cura (Górg., 456b). A retórica é uma arte abrangente. Mas Górgias levanta um argumento que será percebido como o ponto fraco de seu raciocínio. Ele diz que a retórica não deve ser usada contra qualquer um, assim como a habilidade de lutar e bater nas pessoas. Embora o retórico ensine aos outros como usar essa habilidade com justiça, nada garante que o aluno não vá usar seus conhecimentos para abusar dos outros. O retórico sabe o que é a justiça, a injustiça e os valores morais, e deve ensinar ao aluno que os desconhece (Górg., 460a). Então, pela própria concepção de Sócrates, o retórico é também um filósofo. Mas, como Górgias não é um filósofo, não conhece de verdade os valores morais. Sua arte é apenas uma exibição para os ignorantes, de maneira que eles acreditem naquilo que ele fala (Górg., 459d-e). Todavia, como Górgias não quer admitir isso, concorda com Sócrates que todo retórico sabe o que é a justiça, e deve ser um homem justo e ensinar a diferença entre justiça e injustiça (Górg., 460b-c). Finalmente Górgias é pego na contradição, pois tinha afirmado que um aluno que aprendeu a arte da retórica pode usá-la para promover a injustiça, mas depois afirma que um mestre da arte retórica não pode cometer injustiças. Tudo isso é muito ofensivo aos ouvidos de Polo, aluno de Górgias, que assiste à discussão (Górg., 461b3). Sócrates lança uma nova dúvida, que sugere que o retórico não detém nenhum saber, nem transmite conhecimento. A retórica assim não seria uma arte (techne), mas um mero talento (empeiria). Sócrates afirma ainda que o objetivo da retórica é produzir o efeito de satisfação nos ouvintes. Para tentar explicar seu ponto de vista, ele elabora um modelo que distingue entre o cuidado do corpo e o cuidado da alma. A medicina e a ginástica se preocupam com o corpo; a culinária e os cosméticos pretendem se preocupar, mas de fato não o fazem. A política é a arte que cuida da alma. Tanto a justiça como a legislação são derivados da justiça. Contudo, a imitação de justiça é a retórica, e a imitação das leis é o sofisma. O remédio está para a culinária como a justiça está para a retórica, da mesma forma que a ginástica está para os cosméticos e a legislação para os sofismas. As formas verdadeiras do cuidar são as artes (technai) que visam ao bem. As formas falsas do cuidar visam ao prazer (Górg., 464b-465d). Sócrates diz que o sofismo e a retórica são coisas diferentes, mas, como são relacionados, as pessoas confundem uma coisa com a outra (Górg., 465c). 92 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II Sócrates passa a explicar para Polo a relação entre poder e justiça. Para Polo, a pessoa que tem poder e o exerce com sucesso é feliz. Para Sócrates, uma pessoa é feliz apenas se ela é moralmente boa. Uma pessoa injusta ou má se sente miserável, mesmo quando escapa da punição de seus atos. Polo entende que essa posição é absurda (Górg., 473a1) e desafia Sócrates a fazer uma pesquisa entre todos os presentes para confirmar sua opinião. Todavia Sócrates insiste que “aquele que é injusto é sempre mais miserável do que aquele que sofre, e aquele que evita pagar o que é devido é sempre mais miserável do que aquele que paga” (Górg., 479e4-6). Se isso for verdade, para que serve a retórica? E, se os seus argumentos são válidos, por que existe a retórica? Sócrates conclui que, para alguém que evita fazer o mal a si mesmo e aos outros, a retórica é inútil. Polo finalmente desiste de discutir com Sócrates. Quem entra na discussão é Cálicles, que se apresenta como pessoa pragmática. Ele faz uma distinção entre a natureza e a convenção, e diz que acredita que a própria natureza revela o que é justo para o homem melhor e mais capaz, que é poder ter uma propriedade maior do que o homem menos capaz. A natureza demonstra isso de muitas formas, tanto entre os animais como quando comparamos as cidades e as raças dos homens. A lei da natureza é que o superior governa o inferior (Górg., 483c8-d6). Todo debate sobre a justiça nada mais é do que uma maneira pela qual os fracos tentam escravizar o forte. Por isso que a arte da retórica consiste em capacitar os que são fortes por natureza para dominar os fracos por natureza. Para Cálicles, a filosofia é uma ocupação infantil que, se for exercida na vida adulta, interfere com a posição masculina do poder e promove a ignorância de como funciona o mundo político real. Todo filósofo é afeminado e indefeso. Dá como exemplo o próprio Sócrates. E ainda afirma que a filosofia vai acabar condenando Sócrates no dia em que sofrer um processo de acusação (Górg., 486a-c). Para Cálicles, ter poder é ser capaz de realizar todos os seus desejos. O poder proporciona a liberdade, e a liberdade permite a licença de fazer o que se quer (Górg., 492a-c). Essa capacidade de fazer o que se quer é a realização do prazer, e a retórica é um meio para esse fim. A disputa entre retórica e filosofia demonstra que a primeira é utilizada para construir uma visão de mundo. Ela disputa com a filosofia a compreensão da natureza, da existência dos valores morais, da conexão entre a felicidade e a virtude. Também disputaa natureza dos sentidos e os limites da razão, o valor da busca racional de um propósito objetivo para a vida humana, assim como se há de fato qualquer diferença entre prazeres verdadeiros e falsos. Para Sócrates, a questão da filosofia diz respeito à forma como se deve viver a vida (Górg., 500c). A busca do poder e da glória é superior à vida com a filosofia? Observação Sócrates está tentando afirmar que, quem se utiliza da retórica ou da poesia, não fala por si, não exprime seus pensamentos, nem transmite conhecimento para o público, apenas incita suas emoções (Górg., 502a6-c12). 93 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA ANTIGA 5.1.1 Convencionalismo (Górg., 484) Em Górgias, mas também na República, Platão relata que os sofistas defendiam que a convenção das leis servia ao propósito de impedir que os mais fortes se aproveitassem do direito natural que a força lhes confere. Para eles, está de acordo com a natureza que o mais forte domine o mais fraco. Isso aconteceria mesmo quando um homem de natureza idônea rompesse os limites da convenção e deixasse de ser servo, tornando-se senhor (Górg., 484a; ABBAGNANO, 2007, p. 207). 5.1.2 Retórica (Górg., 452) Os sofistas inventaram a retórica. Górgias foi um sofista famoso e um de seus inventores. Esse diálogo de Platão descreve como operava a retórica sofista. Em princípio, é falar bem e de forma convincente, sem oferecer provas de que o que está sendo dito tem compromisso com a verdade. Essa é a forma da retórica. Platão e Sócrates combatiam essa forma de falar, pois sabiam que servia apenas para fazer as pessoas decidirem com as emoções, não com a razão. O objetivo da retórica é “persuadir por meio de discursos os juízes nos tribunais, os conselheiros no conselho, os membros da assembleia na assembleia e em qualquer outra reunião pública” (Górg., 452e). O orador retórico consegue “falar contra todos e sobre qualquer assunto, de tal modo que, para a maioria das pessoas, consegue ser mais persuasivo que qualquer outro com respeito ao que quiser” (Górg., 457a). Platão sugeriu o desenvolvimento de uma retórica pedagógica e educativa, que seria “a arte de guiar a alma por meio de raciocínios, não somente nos tribunais e nas assembleias populares, mas também nas conversações particulares” (Fedro, 261a). Para Aristóteles, a retórica era o inverso da dialética (Ret., I, 1, 1354a1). Segundo ele, a retórica é “a faculdade de considerar, em qualquer caso, os meios de persuasão disponíveis” (Ret., I, 2, 1355b26). A retórica considera todos os meios de persuasão que se referem a todos os objetos possíveis (Ret., I, 2, 1355b26; ABBAGNANO, 2007, p. 856). 5.1.3 Vontade (Górg., 466) A distinção entre a vontade como princípio racional da ação ou simplesmente como princípio da ação em geral é feita por Platão, para quem os tiranos não fazem o que querem, embora façam o que lhes agrada ou parece, visto que fazer o que se quer significa fazer o que se mostra bom ou útil, e isso é agir racionalmente (Górg., 466). Aristóteles definiu a vontade como “apetição que se move de acordo com o que é racional” (De An., III, 10, 433a23); para ele, a vontade equivale à escolha, “a apetição voluntária das coisas que dependem de nós” (Ét. Nic., III, 3, 1113a10; ABBAGNANO, 2007, p. 1007). 94 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II 5.1.4 Expiação (Górg., 478) Platão acreditava que a expiação seria a maneira de curar as doenças da alma. Assim como a economia liberta da pobreza e a medicina liberta da doença, a justiça liberta da intemperança e da injustiça (Górg., 478a; ABBAGNANO, 2007, p. 415). 5.1.5 Pena (Górg., 480) O conceito de pena como correção do réu tem sua defesa por Platão em Górgias. Para ele, é melhor sofrer a injustiça que cometê-la. Para quem cometeu injustiça, o melhor a fazer é se submeter à pena: “Se uma culpa é cometida, é preciso ir o mais depressa possível aonde a pena possa ser cumprida, ou seja, ao juiz, que é como um médico, para que a doença da injustiça não se torne crônica e não torne a alma corrompida e incurável” (Górg., 480a). Segundo esse diálogo, “quem cumpre a pena sofre um bem”, no sentido de que, “se for punido com justiça, ficará melhor” e “se libertará do mal” (Górg., 480a). A pena é uma purificação que o próprio culpado deve querer. Essa purificação é assim percebida por quem vê na pena o restabelecimento da justiça. Para Aristóteles, a pena é a função de restabelecer a ordem da justiça em sua devida proporção. Ele percebeu que a maioria dos seres humanos teve a sorte de receber da natureza uma índole liberal, mas evita os atos vergonhosos por medo das penas: “A maioria obedece mais à necessidade que à razão, mais às penas que à honra” (Ét. Nic., X, 9, 1180a4; cf. 1179b11; ABBAGNANO, 2007, p. 749). 5.1.6 Dicotomia (Górg., 500) Em Górgias, Platão estabelece que a dicotomia é a divisão em duas partes de acordo com o método dialético platônico (Górg., 500d; ABBAGNANO, 2007, p. 275). 5.1.7 Arracional (Górg., 501a; Banq., 202a; Teet., 205e; Sof., 238c) Hoje em dia não fazemos distinção entre irracional e arracional. Platão usa esse vocábulo para significar o que é desprovido de razão ou aquilo que não se pode explicar racionalmente (Górg., 501). Aristóteles usava esse termo com o mesmo significado (ABBAGNANO, 2007, p. 78). 5.1.8 Mundo (Górg., 508) Para Platão, o mundo era o cosmo, a ordem total (Górg., 508a). Aristóteles fez distinção entre o todo, cujas partes podem ser dispostas de maneiras diferentes, e a totalidade, cujas partes têm posições fixas (Met., V, 26, 1024a1; ABBAGNANO, 2007, p. 687). 5.1.9 Cosmo (Górg., 508a) O cosmo é o mundo enquanto ordem (Górg., 508a; Met., I, 3, 984b16). Os pitagóricos foram os primeiros a chamar o mundo de cosmo, usando o termo em lugar de “mundo”, e sua concepção constitui uma das interpretações fundamentais da noção de mundo (ABBAGNANO, 2007, p. 215). 95 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA ANTIGA 5.1.10 Mito (Górg., 523a) Platão e Aristóteles consideravam mito uma expressão deformada da atividade intelectual. Pode-se atribuir ao mito apenas a verossimilhança, porque a verdade é a expressão genuína do intelecto (Górg., 523a). Contudo, Platão entendia que a verossimilhança em certos assuntos é a única validade a que o discurso humano pode aspirar (Tim., 29d) e, em outros, expressa o que de melhor e mais verdadeiro se pode encontrar (Górg., 527a). Platão também percebeu que o mito é a forma mais rápida da persuasão. A narrativa do mito não consegue ser demonstrada e às vezes nem mesmo compreendida, mas o seu significado moral ou religioso sempre é claro. Assim, o mito ensina sobre a conduta do homem em relação aos outros homens ou em relação à divindade. Platão escreve: Talvez estas coisas pareçam com mulheres velhas e as considerareis com desprezo. E não seria descabido desprezá-las se, com a investigação, pudéssemos encontrar outras coisas melhores e mais verdadeiras. Mas vós também, Polo e Górgias, que sois os gregos mais sábios de nossos dias, não conseguis demonstrar que convém viver outra vida que não esta (Górg., 527a-b; ABBAGNANO, 2007, p. 673). 5.2 Mênon Figura 9 Nesse diálogo Platão tenta esclarecer qual é a definição de virtude (arete). Arete significa virtude em geral, e não uma virtude particular, como a justiça ou a temperança. O diálogo de Sócrates com Mênon deixa este confuso. Como se diz em filosofia, usando novamente um termo grego, Mênon entra em aporia. Sócrates tenta esclarecer Mênon introduzindo ideias como a imortalidade da alma e a teoria do conhecimento como lembrança, a anamnese. Sócrates demonstra como o aprendizado funciona mantendo um diálogo com um dos escravos de Mênon, pedindo a ele que solucione um problema de geometria. Platãoestabelece uma distinção entre conhecimento e crença. 96 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II 5.2.1 Essência (Mên., 79b) A maneira de entender essência em filosofia é fazendo a pergunta quem ou o que é essa coisa. Por exemplo, quando perguntamos “Quem é João?”, podemos responder que João é um homem, que João é inteligente e muitas qualidades que percebemos em João. Se perguntamos “O que é a água?”, também conseguimos encontrar muitos adjetivos e/ou substantivos para explicar o que é a água. A essência de alguém ou de alguma coisa é qualquer resposta que se possa dar às perguntas “Quem?” ou “O quê?”. Isso equivale a explicar a substância de alguma coisa. Entretanto, quando queremos uma explicação mais precisa, temos de dizer que João é o filho mais velho da Maria e do Antônio da Silva, mora na rua tal, tem 20 anos de idade, sabe jogar futebol e estuda. A mesma coisa para a água, cuja melhor explicação é dizer que se trata de uma substância composta de dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. Nenhuma elucidação é mais verdadeira nem mais sintética do que essa. Por isso, em filosofia existe a ideia de essência necessária, que é a melhor explicação para quem é alguém ou o que é alguma coisa. Platão foi o primeiro a escrever sobre a essência no Mênon: Enquanto eu te pedia que me definisses a virtude inteira, tu evitas dizer-me o que ela é e afirmas que toda ação é virtude, se realizada com uma parte de virtude, como se tu já houvesses dito o que é a virtude na sua inteireza e eu devesse reconhecê-la mesmo depois de a reduzires a cacos (Mên., 79b). Esse trecho difícil demonstra que Sócrates, ao perguntar a Mênon o que é a virtude em sua inteireza, estava pedindo que ele dissesse qual é a essência necessária ou o que a virtude não pode não ser em qualquer circunstância. Quando pensamos a filosofia apenas com o uso comum das palavras, muitas vezes tendemos a discordar de seu significado. Essa confusão já existia entre os gregos, e por isso Aristóteles tentou qualificar melhor o termo substância. Para ele: Quem indica a essência ora indica a substância, ora uma qualidade, ora uma de outras categorias. Quando, referindo-se a um homem, se diz que ele é um homem ou um animal, entende-se sua essência como substância. Mas quando, referindo-se à cor branca, diz-se que é branca ou é uma cor, entende-se a essência como qualidade. Igualmente, quando se faz referência à grandeza de um côvado, afirmando que ela é a grandeza de um côvado, entende-se que sua essência é quantidade. O mesmo se diga nos outros casos (Tóp., I, 9, 103b27). 97 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA ANTIGA Aristóteles faz diferença entre a essência substancial e a simples essência: “O enunciado sempre se refere a alguma coisa, assim como a afirmação, e é sempre verdadeiro ou falso; mas o intelecto não é assim, sendo verdadeiro quando enuncia a essência segundo a essência substancial, e não verdadeiro quando a enuncia relativamente a alguma coisa” (De An., III, 6, 430b26). Com isso, ele não põe no mesmo plano todas as respostas que podem ser dadas à pergunta “O quê?”. Ao responder à pergunta “O que és?”, se João responde “jogador de futebol”, sua resposta não exprime realmente o que ele é por si mesmo, sempre e necessariamente, ou seja, na sua substância (ABBAGNANO, 2007, p. 362). 5.2.2 Anamnese (Mên., 80e-81) O mito da anamnese é usado por Platão em Mênon para tentar explicar o problema do aprendizado, também chamado de paradoxo do conhecimento. Esse problema é o seguinte: é possível perguntar para alguém aquilo que a pessoa desconhece? Platão acredita que sim, pois é isso que acontece quando ensinamos: mostramos para quem aprende quais as perguntas corretas que devemos fazer sobre alguma coisa, de forma que o aprendiz consiga elaborar as respostas corretas. Dessa forma, o aprendiz passa a entender aquilo que desconhecia anteriormente. Interessante é que Platão fundamenta a resposta de Sócrates através do mito da anamnese. Ele sugere que a alma é imortal e reencarna repetidamente. O conhecimento está inscrito na alma desde a eternidade. Contudo, cada vez que a alma reencarna, seu conhecimento é esquecido no trauma do nascimento. O que se aprende seria, portanto, a recuperação da lembrança do que se esqueceu. Primeiro se percebem as lembranças como crença, e a partir da compreensão isso se torna finalmente conhecimento: Sendo toda a natureza congênita e tendo a alma apreendido tudo, nada impede que quem se recorde de uma só coisa — que é o que se chama aprender — encontre em si todo o resto, se tiver coragem e não se cansar na busca, já que buscar e aprender não são mais que reminiscência (Mên., 80e-81e). Por esse motivo é que Sócrates (e Platão) não se entendia como professor, mas como parteira (maiêutica), ajudando o nascimento do conhecimento, que já estava no aluno. Hoje em dia usamos a palavra anamnese para descrever o método de fazer as perguntas certas, tanto em medicina como em pedagogia. (ABBAGNANO, 2007, p. 59). 5.2.3 Aprendizado (Mên., 81d) A teoria de Platão do aprendizado é a anamnese. O aprendizado, segundo Platão, acontece por associação entre as coisas e suas explicações. A alma pode, após haver captado uma coisa, captar também uma outra coisa que está vinculada à primeira (ABBAGNANO, 2007, p. 75). 98 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II 5.2.4 Ciência (Mên., 98a) Nos textos de Platão, ciência significa o oposto de opinião. A garantia da ciência precisa ser feita por demonstração, mas também pode ser apresentada pela sua possibilidade ou porque valida o conhecimento. É preciso organizar um sistema no qual todas as afirmações sejam necessárias, nenhuma delas pode ser omitida ou mudada no momento da comprovação do conhecimento. Platão escreveu que as opiniões “desertam da alma humana, de modo que não terão grande valor enquanto alguém não conseguir atá-las com um raciocínio causal. [...] uma vez atadas, tornam-se ciência e permanecem fixas. Eis porque a ciência é mais válida do que a opinião legítima e difere desta pela seus nexos” (Mên., 98a; ABBAGNANO, 2007, p. 136). 5.2.5 Conceito (Mên., 86a-b; Féd., 76) A noção de conceito remete à sua natureza e função. O problema da natureza do conceito pode ter como solução a concepção do conceito como essência. O conceito é aquilo que se subtrai à diversidade e às opiniões, porque se refere às características que são constitutivas do próprio objeto, que não são alteradas pela mudança de perspectiva. Platão considerava ideias como o belo, o bem, o justo e a virtude como coisas reais, que continham substância. No Mênon ele se refere a elas como realidades “em si mesmas” e como são “em nós”, isto é, como conceito ou “a verdade dos entes” (Mên., 86a-b).Para ele o conceito era a essência necessária das coisas, motivo pelo qual elas não podem ser diferentes daquilo que são. Aristóteles atribui a Sócrates ter descoberto “o raciocínio indutivo e a definição do universal, duas coisas que se referem ao princípio da ciência” (Met., XIII, 4,1078b). Sócrates foi o primeiro a demonstrar como o raciocínio indutivo leva à definição do conceito, exprimindo a essência ou a natureza de uma coisa, o que a coisa verdadeiramente é, em todo lugar e todo tempo, portanto universal. Aristóteles articula a ideia de conceito de uma maneira mais complexa que Platão. O conceito para ele é o logos, que define a substância ou a essência necessária de uma coisa (De An., II, 1, 412b16). Por isso, ele é independente da coisa em si e persiste mesmo que a coisa que ele conceitua surja ou desapareça (Met., VII, 15,1039b23). Portanto, para Aristóteles, o conceito é idêntico à substância, que é a estrutura necessária do ser. Sendo o conceito essência, a qualidadede universal aparece como derivada: “o que é inerente ao sujeito em qualquer caso e por si, na medida em que um sujeito é o que é” (An. Post., I, 4, 73b25 ss.). Para Aristóteles, a universalidade é a substancialidade ou necessidade do conceito (ABBAGNANO, 2007, p. 164). 99 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA ANTIGA 5.2.6 Ciência (Mên., 98a) Platão descreveu a ciência como um sistema que comprova a validade, demonstrando suas afirmações. Esse sistema tem de ser construído de maneira que cada afirmação seja necessária e nada nela possa ser retirado, anexado ou mudado. Para Platão, as opiniões “desertam da alma humana, de modo que não terão grande valor enquanto alguém não conseguir atá-las com um raciocínio causal”. Entretanto, “uma vez atadas, elas se tornam uma ciência e permanecem fixas. Eis por que a ciência é mais válida do que a opinião legítima e difere desta pela seus nexos” (Mên., 98a). Apesar de mais sofisticada, a ideia de ciência de Aristóteles obedece ao mesmo conceito. Para ele, a ciência é um conhecimento demonstrativo, e com isso ele entende o conhecimento “da causa de um objeto, isto é, conhece-se por que o objeto não pode ser diferente do que é” (An. Pr., I, 2, 71b9 ss.). Portanto, a ciência se distingue da opinião e não coincide com ela; se coincidisse, “estaríamos convencidos de que um mesmo objeto pode comportar-se diferentemente de como se comporta e estaríamos, ao mesmo tempo, convencidos de que não pode comportar-se diferentemente” (An. Post., I, 33, 89a38; ABBAGNANO, 2007, p. 136). Lembrete Nos textos de Platão, ciência significa o oposto de opinião. 5.3 Protágoras Figura 10 Sócrates é informado de que Protágoras, o homem vivo mais sábio, está na cidade. Ele vai com amigos à casa de Cálias para encontrá-lo. Sócrates avisa seus amigos que os sofistas são perigosos. As palavras dos sofistas vão direto para a alma e podem corromper uma pessoa imediatamente. 100 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II Sócrates chega à casa de Cálias com Hipócrates e avisa que quer visitar Protágoras. Protágoras não nega ser um sofista, e afirma que pratica uma arte antiga utilizada também por Homero e Hesíodo. Ele diz que tem idade suficiente agora para ser pai de alguns dos presentes, e gostaria de falar para todas as pessoas na casa. Sócrates pergunta a Protágoras em que Hipócrates vai melhorar aprendendo com ele. Protágoras começa seu discurso com a afirmação de que um bom sofista pode transformar seus estudantes em bons cidadãos. Sócrates comenta que isso é bom, mas que ele pessoalmente não acredita que se possa ensinar a virtude. Diz ainda que o pensamento técnico (techne) pode ser transmitido aos alunos pelos professores, mas não a sabedoria. Para ilustrar seu ponto de vista, fornece muitos exemplos da vida real. Protágoras responde que a virtude pode ser ensinada, entretanto é melhor fazê-lo contando uma história do que com argumentos. Narra um mito sobre as origens dos seres vivos. Diz que Epimeteu criou os animais e deu-lhes os atributos. Na vez do homem, não havia mais nenhuma qualidade. Pediu ajuda a seu irmão Prometeu, que roubou o fogo dos deuses e ensinou aos homens como utilizá-lo. Prometeu roubou também a sabedoria da deusa Atena para os homens. Todavia o homem não conhecia a sociedade nem a política. Quando a raça humana entrou em extinção, Zeus enviou o mensageiro dos deuses Hermes para dotá-los de vergonha e justiça. Para Protágoras, isso bastava para responder a Sócrates, porque as pessoas pensam que a sabedoria sobre arquitetura ou medicina é para poucos, enquanto a sabedoria sobre justiça e política é mais compreensível. Protágoras apresenta então duas provas de que as pessoas concordam com ele. Primeiro, os cidadãos não repreendem os feios, os anões e os fracos, mas compadecem-se deles, porque não podem deixar de ser como são. Por outro lado, punem os injustos e acreditam que os indivíduos são responsáveis por não saberem algo que possa ser ensinado. Segundo eles, ensinam às pessoas que são injustas e não respeitam a religião, na esperança de incutir a bondade nelas. Os pais ensinam seus filhos desde a primeira infância, e os professores continuam a tarefa. Protágoras observa que nada disso é surpreendente, mas que o seria se assim não fosse. Ele termina abordando a questão de Sócrates: se a virtude pode ser ensinada, por que os filhos de homens virtuosos muitas vezes carecem de virtude? Protágoras sugere uma hipótese: imaginem uma cidade onde tocar flauta é uma atividade social muito importante e disso dependa sua sobrevivência. Todos os pais estariam ansiosos para que seus filhos tocassem flauta muito bem. Contudo, nem todos conseguiriam. Alguns teriam uma maior inclinação natural do que outros e, muitas vezes, o filho de um bom flautista seria mau flautista e vice-versa. Entretanto, todos eles seriam melhores flautistas do que uma pessoa comum que nunca aprendeu a tocar flauta. O mesmo valeria para a virtude. Ela é tão importante que todos aprendem até certo ponto. E isso faz com que pareça que a virtude é parte da natureza humana, mas de fato não é. Sócrates admite que Protágoras deu uma resposta excelente. Só há um pequeno detalhe, que ele tem certeza que o sofista vai esclarecer facilmente. Ele pergunta a Protágoras se os atributos 101 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA ANTIGA que formam a virtude, como a bravura, a bondade e a sabedoria, são uma ou várias coisas, como as partes de um rosto, que formam um todo mantendo sua substância individual. Protágoras responde que são várias coisas; evita o diálogo e as perguntas de Sócrates com um discurso retórico que não dá respostas evidentes, mas que entusiasma a plateia. Sócrates reclama que Protágoras parece um gongo falando, que não para de ressoar quando você faz uma pergunta, e que não vai parar até você colocar uma mão sobre ele. É uma atitude típica de Sócrates quando se opõe a um sofista, o qual usa um discurso eloquente para esconder os argumentos que não suportam um exame lógico. Ele prefere usar o seu sistema de perguntas e respostas para construir uma conclusão lógica. Ele não gosta de discursos longos como o de Protágoras porque são difíceis de acompanhar em seu raciocínio e, portanto, são logo esquecidos. Protágoras não gosta de ser confrontado com perguntas que parecem distrair sua retórica. Sócrates resolve ir embora, mas a plateia intervém e os dois homens concordam em adaptar suas formas de pensar para que a discussão continue. A discussão volta-se sobre a poesia de Pítaco e Simônides. Na interpretação de Sócrates, Pítaco afirma que é difícil ser um homem bom, mas que isso eventualmente é possível. Simônides, por outro lado, afirma que é impossível um homem viver sem nunca ter sido mau em algum momento em que ser bom seria difícil. Simônides elogia aqueles que pelo menos não gostam de fazer o mal. Para Sócrates, como Simônides era um homem sábio, devia saber que ninguém faz o mal de bom grado. Sócrates ainda argumenta que a autoridade de Simônides não contradiz a sua compreensão da virtude, mesmo quando alguém voluntariamente procede mal. Sócrates volta à questão inicial de saber se a virtude é uma ou muitas coisas, alegando que toda virtude está incluída no conhecimento. Ele argumenta que a razão pela qual as pessoas agem de forma prejudicial, para com os outros ou contra si mesmas, é porque elas apenas percebem as vantagens de curto prazo, ignorando que as perdas a longo prazo podem superá-las. Ele sugere que, se os homens aprendessem a estimar corretamente essas coisas com o auxílio de um conhecimento mais exato, não agiriam de maneira prejudicial. O mesmo vale para a coragem. Um nadador corajoso é aquele que sabe nadar melhor e, portanto,sua virtude é essencialmente um conhecimento, que pode ser considerado uma mesma coisa, como partes de um único objeto em vez de partes de um rosto. Sócrates aponta para o fato de que, se toda virtude é conhecimento, ela pode ser ensinada. Ele conclui que, para um observador, ele e Protágoras pareceriam loucos, que passaram um tempo grande falando apenas para conseguirem dizer um ao outro o que pensavam sobre a virtude. Protágoras reconhece que Sócrates é um adversário notável numa discussão e, por ser muito mais jovem do que ele, prevê que Sócrates poderia se tornar um dos homens mais sábios. Sócrates dá uma desculpa qualquer e vai embora. 102 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II Observação Protágoras foi um sofista da escola de Mileto, famoso por sua frase: ”O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são”. 5.3.1 Técnica (Prot., 321c) O sentido geral de técnica é o mesmo sentido geral de arte. Trata-se de um conjunto de regras que servem para organizar uma determinada atividade. Nesse sentido, técnica, arte e ciência são a mesma coisa. Todas são capazes de organizar processos ou operações que produzam um efeito específico nas atividades humanas. A técnica diz respeito ao comportamento dos seres humanos em relação à natureza e visa à produção de bens. Platão pensava que a técnica sempre acompanhou a vida do homem sobre a Terra (Prot., 321c). Para ele, o ser humano era o animal mais indefeso da criação. Portanto, para que qualquer grupo humano sobreviva, é indispensável certo grau de desenvolvimento da técnica, e a sobrevivência e o bem-estar de grupos humanos maiores são condicionados pelo desenvolvimento dos meios técnicos (ABBAGNANO, 2007, p. 939) 5.3.2 Respeito (Prot., 322e) Demócrito foi o primeiro a pensar o respeito como princípio da ética: Não deves ter para com os outros homens mais respeito que para contigo mesmo, nem agir mal quando ninguém o saiba mais do que quando todos o saibam; deves ter para contigo mesmo o máximo respeito e impor à tua alma a seguinte lei: não fazer o que não deve ser feito (DIELS, 1903, Fr. 264). No discurso de Protágoras, Platão narra a origem da sociedade humana: temendo que nossa estirpe se extinguisse, Zeus ordenou que Hermes trouxesse o respeito recíproco e a justiça para o meio dos homens, a fim de que esses fossem princípios ordenadores das cidades, criando entre os cidadãos vínculos de benevolência (Prot., 322e). O respeito recíproco e a justiça são entendidos por Platão como os dois princípios fundamentais da “arte política”, que é a técnica da vida em sociedade. Aristóteles, acreditava que o respeito era uma emoção e não uma virtude (Ét. Nic., II, 7, 1108a32), e o considerava o contrário do temor (Ét. Nic., 10, 9, 1179b11). Kant também pensou o respeito como uma emoção, mas uma emoção que era o único sentimento moral (ABBAGNANO, 2007, p. 854). 103 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA ANTIGA 5.4 Crátilo Figura 11 Nesse diálogo, Sócrates é convidado por Crátilo e Hermógenes a explicar se os nomes são convencionais ou naturais. Um idioma é um sistema de sinais arbitrários ou as palavras têm uma relação intrínseca com as coisas que significam? Ao discutir como um nome se relaciona com uma coisa, Sócrates compara a criação original de uma palavra com o trabalho de um artista. Um artista usa a cor para expressar a essência de uma coisa numa pintura. Da mesma forma, o criador de palavras usa letras contendo certos sons para expressar a essência do assunto de uma palavra. Há uma letra que representa melhor as coisas suaves, outra para coisas líquidas, e assim por diante. Ele comenta que a melhor maneira possível de falar consiste em usar a maioria dos nomes que significam as coisas que nomeiam, enquanto a pior maneira de falar é usar o tipo oposto de nomes. Hermógenes contrapõe essa hipótese dizendo que os nomes surgiram devido ao costume e à convenção. Eles não expressam a essência das coisas, de tal forma que podem se adaptar a outras coisas, dependendo das pessoas ou sociedades que as utilizam. Por mais da metade do diálogo, Sócrates faz suposições a respeito da questão de Hermógenes sobre a origem dos nomes e das palavras. Essas palavras incluem os nomes dos deuses olímpicos e muitas delas descrevem conceitos abstratos. Por exemplo, o termo grego ῥεῦμα pode referir-se ao fluxo de qualquer meio e não se restringe ao fluxo de água ou dos líquidos. Muitas das palavras que Sócrates usa como modelo podem ter vindo de uma ideia originalmente ligada ao nome, mas que foi modificada ao longo do tempo. Aquelas para as quais ele não consegue encontrar uma conexão com o grego, fazem-no assumir que são de origem estrangeira. Ou então que foram tão desvirtuadas que perderam qualquer semelhança com a palavra original. Platão escreve: “os nomes foram tão retorcidos de todas as formas, que não me surpreenderia se o antigo idioma comparado com o que está em uso pareça ser uma língua bárbara” (Crát., 421d). 104 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II A teoria final das relações entre nome e objetos é proposta por Crátilo, que acredita que os nomes têm origens divinas, tornando-os necessariamente corretos. Sócrates repreende essa ideia lembrando a Crátilo da imperfeição de certos nomes na percepção das coisas que significam. A partir daí, Sócrates rejeita o estudo da linguagem, acreditando que ele é filosoficamente inferior ao estudo das próprias coisas. 5.4.1 Nome (Crát., 388) Quando Platão define o nome como um “instrumento capaz de ensinar e fazer discernir a essência, do mesmo modo como a lançadeira é capaz de tecer a tela” (Crát., 388b), sua definição se adapta a qualquer termo ou expressão linguística. Aristóteles foi o primeiro a analisar o nome: “O nome é um som vocal significativo por convenção, que prescinde do tempo e cujas partes não são significativas se tomadas separadamente” (De Int., 2, 16a19). Por “prescindir do tempo”, o nome é diferente do verbo, que sempre oferece uma determinação do tempo. Como observa Aristóteles, a expressão infinitiva “não homem” não é um nome (ABBAGNANO, 2007, p. 714). 5.4.2 Verdade (Crát., 385b; Sof., 262e; Fil., 37c) Entende-se por verdade a qualidade de um procedimento cognoscente que obtém êxito (penso, logo existo). A verdade também pode ser entendida como a correspondência entre duas coisas ou como a conformidade a uma regra. Essas concepções de verdade não são nem mesmo alternativas entre si. Desde Platão que os filósofos usam o termo verdade em vários sentidos e com propósitos diferentes. O conceito de verdade como correspondência é o mais antigo. Desde os pré-socráticos a ideia de verdade é utilizada, mas Platão foi o primeiro a formulá-la explicitamente em Crátilo: “Verdadeiro é o discurso que diz as coisas como são; falso é aquele que as diz como não são” (Crát., 385b). Por sua vez, Aristóteles dizia: “Negar aquilo que é, e afirmar aquilo que não é, é falso, enquanto afirmar o que é, e negar o que não é, é a verdade” (Met., IV, 7, 1011b26 ss.; V, 29, 1024b25). Aristóteles enuncia também as duas teses fundamentais dessa concepção de verdade. A primeira é que a verdade está no pensamento ou na linguagem, não no ser ou na coisa (Met., VI, 4, 1027b25). A segunda é que a medida da verdade é o ser ou a coisa, não o pensamento ou o discurso, de modo que uma coisa não é branca porque se afirme com verdade que ela assim é, mas afirma-se de verdade que ela é branca porque é (Met., IX, 10, 1051b5). A concepção de verdade como conformidade a uma regra ou um conceito também foi elaborada por Platão. Ao tomar como fundamento o conceito que considero mais sólido, tudo o que me pareça estar de acordo comele será por mim posto como verdadeiro, quer se trate de causas, quer se trate de outras coisas existentes; o que não 105 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA ANTIGA me pareça de acordo com ele será por mim posto como não verdadeiro (Féd., 100a; ABBAGNANO, 2007, p. 994). 5.4.3 Herói (Crát., 398c) Segundo Platão, os heróis eram semideuses nascidos de uma mulher mortal que se apaixonou por um deus, ou de um homem mortal que se apaixonou por uma deusa (Crát., 398c). Com essa definição, Platão limitava a noção de herói à mitologia. Por isso a filosofia não considera os heróis. Aristóteles concorda com Platão e ainda observa: Se houvesse duas categorias de homens tais que a primeira diferisse da segunda tanto quanto se julgava que os deuses e os heróis diferiam dos homens, sobretudo pela valentia física e pelas qualidades da alma, então sem dúvida ficaria evidente a superioridade dos governantes sobre os governados (Pol., VII, 14, 1332b17; ABBAGNANO, 2007, p. 498). 5.4.4 Alma (Crát., 399d; Fedro, 245d) Para Demócrito, a alma era formada por átomos redondos, que podem penetrar no corpo com grande rapidez e movê-lo (cf. ARISTÓTELES, De An., I, 2, 404, 1). Platão afirmou que a alma se move por si, e fez dessa suposição a sua definição: “Todo corpo cujo movimento é imprimido de fora é inanimado, todo corpo que se move de per si, do seu interior, é animado; e essa é, precisamente, a natureza da alma” (Fedro, 245d). Para Platão, a alma é a causa da vida (Crát., 399d) e por isso é imortal, já que a vida constitui a sua própria essência (Féd., 105d ss.). Platão fez distinção entre a realidade da alma, simples, incorpórea, que se move por si, que vive e dá vida, e a realidade corpórea, que tem as qualidades opostas. Isso determinou todas as noções de alma no Ocidente (ABBAGNANO, 2007, p. 27). 5.4.5 Retidão (Crát., 428e) Platão descreveu a retidão como um critério ou medida racional das coisas, que determina o princípio para julgá-las. Ele diz, por exemplo, que “a retidão do nome é mostrar o que a coisa é” (Crát., 428e), entendendo que este é o critério para julgar acerca da precisão de um nome. Com o mesmo sentido, Aristóteles usa a expressão reta razão, querendo dizer sabedoria (Ét. Nic., VI, 13, 1144b23; ABBAGNANO, 2007, p. 856). 5.4.6 Gramática (Crát., 431b) A gramática é definida por Platão no Crátilo quando faz a analogia entre a gramática e a arte figurativa. Assim como um artista procura reproduzir os traços dos objetos com o desenho e as cores, o gramático procura fazer a mesma coisa com as sílabas e as letras. 106 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II O objetivo é igual, “imitar a substância das coisas”. Se conseguir reproduzir tudo o que pertence a essa substância, a imagem será bela, mas, se deixar alguma coisa fora ou se acrescentar algo não pertinente, a imagem não será bela. Nesse sentido, o gramático é um “artífice de nomes, portanto um legislador que pode ser bom ou mau” (Crát., 431b ss.). Esse é o primeiro conceito de gramática formulado, que é normativo, porque o gramático não descreve, mas prescreve (ABBAGNANO, 2007, p. 490). 5.4.7 Linguagem (Crát., 433) Linguagem em geral é o uso de signos arbitrários intersubjetivos, que possibilitam a comunicação. A linguagem pode ser estabelecida como convenção, como originária da natureza ou pertencente a ela, ou como escolha de determinação significativa. Essas interpretações foram expostas por Platão. A linguagem como convenção e originária da natureza tem em comum a necessidade da relação entre o signo linguístico e seu objeto. Platão critica a teoria que afirma que as raízes linguísticas seriam imitações dos sons naturais: “neste caso, aqueles que imitam o balido das ovelhas, o canto dos galos e a voz dos demais animais dariam nome aos animais cuja voz imitam” (Crát., 423c). Essa objeção de Platão diz que uma coisa é a imitação de um som e outra coisa é a imposição de um nome. Contudo, o princípio da onomatopeia foi muitas vezes utilizado para explicar a formação das palavras originais nesta ou naquela língua. A ideia da linguagem como convenção nega que a linguagem possa admitir o erro, porque uma palavra formada por convenção deve ter o mesmo valor de qualquer outra. A ideia da naturalidade impede que a linguagem inclua o erro, porque a linguagem representa sempre aquilo que é, mantendo-se sempre como garantia da verdade. Essas percepções de linguagem não admitem que ela seja julgada como certa ou errada. Contudo, a ideia da linguagem como operação, uso ou escolha permite essa possibilidade. Quando escolhemos, podemos usar a linguagem como instrumento para designar as coisas, e eventualmente errar ao fazer escolhas. Para Platão, entender a linguagem como instrumento de escolha é perceber que “o discurso nasce da união recíproca das espécies” (Sof., 259d), e que as espécies não estão todas unidas nem todas desunidas, mas algumas podem juntar-se e outras não. As possibilidades da linguagem, portanto, são limitadas pelas possibilidades de combinação das espécies ou formas do ser (Sof., 262c). Platão evita adotar a convencionalidade ou a naturalidade, e no Crátilo afirma: Gostaria que, na medida do possível, os nomes fossem semelhantes às coisas, mas temo que — como diz Hermógenes — essa atração da semelhança nos leve para um terreno escorregadio e, assim, seja necessário lançar mão também de um meio mais grosseiro, que é a convenção, para certificar-nos da exatidão dos nomes (Crát., 435c). Para Platão, os nomes que damos aos números não podem ser considerados naturais, pois não são semelhantes ao que indicam. Ele explica dessa forma: “Se o uso não é uma convenção, seria melhor dizer que não é a semelhança a maneira como as palavras significam, mas antes o uso: este, ao que parece, pode significar tanto por meio da semelhança quanto da dessemelhança” (Crát., 435a-b). 107 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA ANTIGA Platão anunciou aqui uma tese que mais tarde foi recuperada pela linguística contemporânea. É o uso que constitui o significado das palavras. Desse ponto de vista, o uso é a escolha repetida ou convalidada que cria um instrumento linguístico. Como qualquer instrumento, os linguísticos também podem ser mais ou menos adequados à sua finalidade. Assim, Platão justifica que a linguagem é falível, pois tem a possibilidade de dizer o que não é (Sof., 261b). Platão escreveu no Crátilo: Será que preferes a maneira como Hermógenes e muitos outros falam quando dizem que os nomes são convenções e que são claros para aqueles que os estipularam e conhecem as coisas às quais correspondem, e que essa é a justeza dos nomes, de tal forma que não importa se a convenção é feita segundo o que já se tenha estabelecido ou o contrário, como chamar de grande o que hoje chamamos de pequeno ou de pequeno o que hoje chamamos de grande? (Crát., 433). Este convencionalismo puro, que afirma a pura arbitrariedade da referência linguística, desapareceu com Aristóteles e só voltou a aparecer no pensamento contemporâneo com Ferdinand Saussure e Charles Sanders Peirce (ABBAGNANO, 2007, p. 616). 6 PARMÊNIDES, FÉDON, FEDRO E O BANQUETE 6.1 Parmênides Figura 12 O Parmênides é um relato do encontro entre os dois grandes filósofos da escola eleática, Parmênides e Zenão de Eleia, e o jovem Sócrates. O motivo do evento era a leitura da tese de defesa do monismo de Parmênides, feita por Zenão. O cerne do diálogo é um desafio lançado por Sócrates aos dois. Usando seu método de redução ao absurdo, Zenão tinha argumentado que, se pensarmos que cada coisa não é uma e a mesma coisa, então qualquer coisa poderá ser muitas coisas ao mesmo tempo. O 108 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N ome do d ia gr am ad or - d at a Unidade II problema é que isso é impossível. Sócrates diz que essa é uma percepção errada, pois conseguimos fazer a distinção entre as coisas sensíveis que percebemos e suas ideias originais ou formas criadoras. Assim, uma coisa pode ser semelhante e diferente ao mesmo tempo, da mesma maneira que pode assumir formas de semelhança e desigualdade, da unidade e da pluralidade. Pense, por exemplo, na água: ela apresenta três estados, líquido, sólido e gasoso. Pode ser rio ou chuva. O que Sócrates afirmava é que, enquanto a água como coisa pode assumir várias qualidades diferentes, a ideia de água, a ideia de líquido, a ideia de chuva e todas as demais que dão forma às coisas significam sempre uma só coisa. Parmênides resolve então responder a Sócrates. Primeiro, verifica se entendeu o que Sócrates estava querendo dizer: que existem ideias ou formas, de um lado, e coisas ou objetos que podemos perceber com os sentidos, do outro. Então, Parmênides pergunta que tipo de forma Sócrates pode reconhecer, e ele responde que não tem dúvida sobre a existência das ideias matemáticas, éticas e estéticas, mas que não tem certeza se existe uma ideia do homem, do fogo ou da água. Entretanto, ele não acredita que exista uma ideia da lama, uma ideia dos cabelos ou mesmo uma ideia da sujeira. Parmênides responde que, quando ele for mais comprometido com a filosofia, vai considerar que em sua teoria há espaço até mesmo para as ideias dessas coisas de que hoje ele não tem certeza. Parmênides questiona certos aspectos da teoria das ideias ou formas, e apresenta cinco argumentos contra ela. Argumento 1. Se coisas particulares vierem a participar da forma (ou da ideia) da beleza, da semelhança ou da grandeza, elas se tornarão lindas ou parecidas ou grandes (Parm., 130e-131e). Parmênides quer saber de Sócrates quantos detalhes podem ser incluídos numa única forma ou ideia. Se uma ideia estiver presente em muitas formas, então, por simples pensamento aritmético, ela será muitas coisas e não uma só. Sócrates sugere que a ideia pode ser como o dia, que está presente em muitas coisas ao mesmo tempo. Parmênides refuta com o argumento de uma vela de navio recobrindo várias pessoas para mostrar que a ideia e sua forma consequente são múltiplas. Argumento 2. O motivo de Sócrates acreditar na existência de uma única ideia para cada caso é que, quando ele vê, por exemplo, um número de coisas grandes, parece haver uma única qualidade que todas compartilham, que é a grandeza (Parm., 132a-b). Todavia, examinando a série de coisas grandes (x, y, z) e a grandeza, esta mesma é, em certo sentido, considerada grande. Se todos os membros desta série participam de uma única ideia, então deve haver outra grandeza em que grandes coisas e a primeira forma de grandeza estejam incluídas. Entretanto, se essa segunda forma de grandeza também for grande, então deverá haver uma terceira forma de grandeza, que inclua as coisas grandes e mais essa também, e assim até o infinito. Esse mesmo argumento foi depois utilizado por Aristóteles. Argumento 3. (Parm., 132b-c) À sugestão de Sócrates de que cada ideia é um pensamento que existe na alma, mantendo assim a unidade da forma, Parmênides responde que um pensamento 109 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA ANTIGA deve ser de alguma coisa que é uma ideia. Portanto, é necessário explicar a relação de participação entre a ideia e sua forma. Além disso, se as coisas podem compartilhar as ideias que não são mais do que pensamentos, então elas consistem em pensamentos e pensam, ou então são pensamentos, mas não pensam. Argumento 4. Sócrates sugere que as ideias são padrões na natureza, paradigmas, dos quais as várias instâncias são cópias ou semelhanças (Parm., 132c-133a). Parmênides argumenta que, se as várias instâncias forem como as ideias, as formas serão como suas instâncias. No entanto, se as coisas são semelhantes, então elas participam da ideia de semelhança. Assim, a semelhança é como a semelhança nas coisas concretas, temos outra regressão ao infinito. Argumento 5. Parmênides denomina de “grande dificuldade” que a teoria das ideias surja como consequência da afirmação da existência separada das formas (Parm., 133a-134e). As formas não existem em nosso mundo, mas apenas em seu próprio mundo. Contudo, as coisas do nosso mundo estão relacionadas entre si, mas não com as formas. Nosso conhecimento tem uma relação com o nosso mundo, não com o mundo das ideias, enquanto para Sócrates o conhecimento ideal é o conhecimento não das coisas, não do nosso mundo, mas do mundo das ideias. Portanto, não conseguimos reconhecer no nosso mundo as ideias. Apesar da incapacidade de Sócrates em defender a teoria contra os argumentos de Parmênides, logo em seguida o próprio Parmênides parece defender a teoria. Parmênides diz que sem as ideias não há possibilidade da dialética. Afirma que Sócrates foi incapaz de defender a teoria porque ele não foi dialético o suficiente para sustentá-la. Então o diálogo é retomado com um desempenho real de exercício dialético, no qual outro jovem toma o lugar de Sócrates como interlocutor de Parmênides. Seguem-se argumentos sutis de difícil compreensão. A segunda parte do diálogo pode ser dividida em três partes: Hipótese nº 1: Se a coisa é una. Aquilo que é uno não pode ser composto de partes, porque então seria feito de um múltiplo. Nem pode ser um todo, porque o todo é um conjunto de partes. Uma coisa, por exemplo, que não tem partes e não é um todo. Não tem um começo, um meio nem um fim, porque estas são designações de partes, portanto, é ilimitado. Não tem forma, porque não é nem linear nem circular: um círculo tem partes e todas elas são equidistantes do centro, mas o uno não possui nem partes nem centro. O uno também não é uma linha, porque uma linha tem um meio e dois extremos, o que o uno não pode ter. Assim, o uno é aquele que não tem forma. É aquele que não pode estar em nada nem mesmo em si. Se o uno estivesse no outro, estaria cercado pelo outro em que se encontrasse, e seria tocado em muitas partes pelo outro que o contém. Contudo, como o uno não tem partes, não pode estar dentro de outra coisa. Se fosse em si mesmo, ele se conteria, mas, se ele estiver contido, será diferente do que o contém e, portanto, o uno se apresentará como duas coisas. O uno não pode se mover porque o movimento é mudança da coisa ou mudança na posição. O uno não pode mudar porque não tem partes para mudar. Para se mover de posição, precisaria se mover de 110 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II forma circular ou linear. Se o uno gira em torno de si, sua parte externa gira em torno de seu meio, mas, como é uno, não existe diferença entre o centro e seus limites. Se o uno se move, faz isso através de outra coisa, na qual ele não pode estar dentro. Assim, o uno não se move. O uno deve ser ele próprio e não pode ser diferente disso. Então, o que é uno não participa do fluxo de tempo, e por isso é eterno. Hipótese nº 2: Se o uno existe. O uno é e deve ser parte de si mesmo. Uma parte do ser uno é o próprio ser. Se o ser é uma parte do uno, ele é um todo que também é um conjunto de partes. Se o uno não participa do ser, deve existir como uma única parte. Por outro lado, o ser é ilimitado e está contido em tudo que existe. Então, uma vez que o uno faz parte do ser, ele está dividido nas mesmas partes que o ser. Se pensarmos nas partes de uma forma, como um círculo, as partes, a circunferência e o centro, são elas próprias partes de um todo, e o conjunto está delimitado. Portanto, como o centro está na mesma distância de todas as outras partes, o uno deve apresentar uma forma linear, ou esférica, ou um misto das duas. Se a ideia do uno estiver em algumas das partes, será ao mesmo tempo igual e diferentede si mesmo. Portanto, o uno existe em outro lugar, onde é fixo e está em movimento ao mesmo tempo. Hipótese nº 3: Se o uno não existe. Se ele não existir, fará parte de tudo que é diferente dele. Então, tudo é parcialmente uno. Assim, a semelhança, a dissimilaridade, a igualdade e a pequenez pertencem à ideia de uno, uma vez que elas são ideias que espelham a si mesmas. Contudo, sendo parte de tudo, o uno pode ser grande ou pequeno, dependendo das coisas com que as comparamos. Então, pensado dessa maneira, o uno faz parte do ser, mas também do não ser. Portanto, se o uno participa de uma coisa, mas também de seu contrário, ele permanece eterno. Como o uno anula os contrários, ele não é nomeável, não pode ser discutido, não é cognoscível, sensível ou demonstrável. Todas as coisas aparecem como unidade ou seu múltiplo, limitadas e ilimitadas, semelhantes e diferentes, estão em movimento ou estão paradas, e não aparecem como o uno, são diferentes dele e das outras coisas. Eventualmente não existem. Mas, se o uno não existe, como ele faz parte de tudo, as coisas também não existem. Então, ser ou não ser? Se pensarmos na ideia como o uno das formas, a resposta fica evidente. 6.1.1 Instante (Parm., 156d) A noção de instante como limite ou condição do tempo, que representa uma espécie de compromisso entre o tempo e a eternidade, é de Platão: O instante parece indicar o que serve de transição entre duas mudanças inversas. A passagem do movimento ao repouso e vice-versa não ocorre a partir da imobilidade que ainda está imóvel nem do movimento que ainda se está movendo. A natureza um pouco estranha do instante está no fato de ser o ponto médio entre repouso e movimento, mesmo não estando ele no tempo, o que o torna ponto de chegada e de partida do que se está movendo em direção ao estar parado, e do que está parado em direção ao mover-se (Parm., 156d; ABBAGNANO, 2007, p. 566). 111 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA ANTIGA 6.1.2 Universal (Parm., 132a) Universal tem dois significados para a filosofia: o primeiro, objetivo, indica uma determinação qualquer, que pode ser atribuída a várias coisas; o outro, subjetivo, indica a possibilidade de um juízo, como o bem e o mal, ser válido para todos os seres racionais. O universal ontológico é a forma ou a ideia em Platão (Parm., 132a). Para Aristóteles, é a forma ou substância de alguma coisa, que contém tanto o aspecto ontológico quanto o lógico. Ontologicamente, o universal é a ideia ou a essência que pode ser partilhada por várias coisas, que confere às coisas a natureza ou o caráter que têm em comum (Met., XIII, 4, 1078b28). Essa definição de Aristóteles é quase universalmente aceita na história da Filosofia. Foi ao universal nesse sentido que os lógicos medievais atribuíram o caráter de signo e a função de suposição (ABBAGNANO, 2007, p. 982). 6.1.3 Terceiro homem (Parm., 132a) O argumento do terceiro homem é uma redução ao infinito como fez Parmênides em sua refutação primeira a Sócrates (Parm., 132a). Aristóteles utilizou várias vezes esse argumento contra as teorias das ideias de Platão (Met., I, 9, 990b17; VII, 13, 1039a2). O argumento é o seguinte: uma vez que um homem individual é semelhante ao homem ideal, deve existir também a ideia de um terceiro homem, do qual os dois participem. Como argumentavam os sofistas, quando dizemos que um homem está passeando na praia, não estamos falando nem da ideia de homem, que é imóvel, nem de um homem em particular. Portanto, devemos estar falando de uma terceira forma de pensar o homem. Na medida em que, na sua forma abstrata, a ideia de homem não significa nenhum homem em especial, quando pensamos que um homem qualquer está passeando, não pensamos em ninguém em particular; sabemos estar falando de alguém que existe, mas que não é ninguém que descrevemos. Então, para podermos entender que existe alguém que está passeando na praia e que essa pessoa tem a forma de homem, deverá existir uma terceira ideia de homem, que englobe tanto a ideia original quanto a pessoa que existe e está passeando. Isso é o que chamamos em filosofia de terceiro homem. Uma ideia que se reduz ao infinito, pois, se tentamos ser mais precisos, por exemplo, dizendo que o homem está passeando na praia devagar, precisamos novamente pensar que é uma característica do homem existir de acordo com a ideia de homem, andar de acordo com a ideia de homem que anda, passear de acordo com a ideia de homem que anda devagar, e isso parece uma boneca russa, daquelas que uma está dentro da outra. Só que nesse caso fazemos a operação ao contrário: ao invés de abrirmos as bonecas para encontrarmos outra, começamos com uma boneca pequena e vamos colocando-a dentro da boneca maior. Uma ideia engloba a anterior, de forma que todas elas se ajustem uma dentro da outra, até o infinito (ABBAGNANO, 2007, p. 955). 6.1.4 Eleatismo O eleatismo era a filosofia de Parmênides e de Zelão. Platão e Aristóteles assumiram o seu princípio de que só o ser é e não pode não ser. Isso significa que o ser tem uma unidade, uma imutabilidade e uma necessidade para poder existir. O ser humano só reconhece o ser através do pensamento racional, 112 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II pois o mundo sensível e o conhecimento que obtemos com os sentidos só nos informam as aparências do ser (ABBAGNANO, 2007, p. 308). 6.1.5 Platonismo O platonismo é a adoção de elementos da doutrina de Platão, que desde Aristóteles podem ser organizados como a teoria das ideias ou formas, segundo a qual elas são objeto do conhecimento e têm características diferentes das coisas naturais, pois demonstram uma unidade e são imutáveis. O conhecimento através dos sentidos, chamado de conhecimento sensível, não tem valor de verdade. O propósito da filosofia é a realização da justiça nas relações humanas, e o caminho é a dialética como procedimento científico. Essas são as três grandes diferenças entre Aristóteles e Platão, e marcam a distinção entre o platonismo e o aristotelismo. 6.2 Fédon Figura 13 Neste diálogo, Sócrates discute a natureza da vida após a morte, no último dia antes de tomar cicuta. Sócrates foi preso e condenado à morte por um júri ateniense por não acreditar nos deuses oficiais e por corromper a juventude da cidade. O diálogo é contado da perspectiva de um dos alunos de Sócrates, Fédon de Élis. Ao manter uma conversa dialética com um grupo de amigos, incluindo os tebanos Cebes e Símias, Sócrates fornece argumentos para a imortalidade da alma. Ele quer afirmar que há uma vida após a morte. Portanto, o tema principal desse diálogo é a ideia de que a alma é imortal. Sócrates oferece quatro argumentos para a imortalidade da alma. O argumento cíclico explica que as ideias são eternas e imutáveis e, como a alma sempre traz vida, não deve morrer e é necessariamente imperecível. Como o corpo está sujeito à morte física, a alma deve 113 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA ANTIGA ser seu oposto, portanto indestrutível. A lei geral da natureza mostra que todo contrário surge do seu contrário: o feio do belo, o pequeno do grande. A teoria da reminiscência explica que possuímos algum conhecimento não empírico desde o nascimento. Isto implica que a alma existe desde antes do nascimento, para poder conter esse conhecimento. Com os sentidos percebemos a existência das coisas, mas essa percepção nunca é tão perfeita como a ideia que fazemos delas. Para que isso seja assim, a alma deve ter conhecido a essência das coisas, sua ideia ou forma ideal numa outra vida. Depois que a alma se liga ao corpo, é necessário recordar o que se encontra num estado latente. Dessa forma, conhecer é recordar o que a alma já conhece. O argumento de afinidade explica queas coisas invisíveis, imortais e incorpóreas são diferentes das coisas visíveis, mortais e corporais. A ideia é anterior e não deriva do objeto. A percepção sensível de um objeto nunca coincide com a ideia pura; apenas a desperta, mas não a gera. A teoria das ideias explica que as formas são entidades incorpóreas e estáticas, e são a causa de todas as coisas no mundo. Por exemplo, coisas bonitas contêm a ideia da beleza; o número cinco participa da ideia de 5 etc. Por sua natureza própria, a alma participa da forma da vida, o que significa que a alma é imortal. 6.2.1 Morte (Féd., 64c) As religiões e filosofias que admitem a imortalidade da alma acreditam como Platão que a morte é a “separação entre a alma e o corpo” (Féd., 64c). Depois da separação começa um novo ciclo de vida da alma. Alguns entendem como reencarnação da alma em novo corpo (ABBAGNANO, 2007, p. 683). 6.2.2 Em si (Féd., 65d, 75c) Em si é o que se considera sem referência a outra coisa. Platão e Aristóteles utilizam essa expressão dessa maneira. Platão fala do “belo mesmo”, da “semelhança mesma”, expressões traduzidas nas línguas modernas como “belo em si” e “semelhança em si”. Isto indica o belo ou a semelhança sem relação com as coisas que deles participam (Féd., 65d, 75c; Parm., 130b, 150e etc.). Aristóteles emprega ainda essa expressão para indicar uma qualidade ou uma substância de um animal que seja examinado independentemente das relações com sua espécie (cf. Met. VII, 14, 1039b9; ABBAGNANO, 2007, p. 329). 6.2.3 Corpo (Féd., 66b) Platão em Fédon (66b ss.) oferece a concepção mais antiga e difundida do corpo, que é ser um instrumento da alma. Como qualquer instrumento, o corpo pode ser elogiado pela função que exerce ou pode ser criticado por não corresponder a seu objetivo. De qualquer forma, o corpo contém a alma (ABBAGNANO, 2007, p. 211). 114 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II 6.2.4 Catarse (Féd., 67a, 69) Para Platão, a catarse tem um sentido moral e metafísico. Significa a libertação em relação aos prazeres (Féd., 67a, 69c). Mas também significa a libertação da alma em relação ao corpo, no sentido de que a alma se separa ou se retira das atividades físicas e surge a morte (Féd., 67c). Platão também define a catarse como “a discriminação que conserva o melhor e rejeita o pior” (Sof., 226d). Aristóteles utilizou muito o termo catarse com seu significado médico de purificação ou purgação. Também foi o primeiro que o usou para descrever um fenômeno estético, que é uma espécie de libertação ou serenidade que o drama e a música provocam no ser humano: A tragédia é imitação elevada e completa da ação, que tem certa extensão, pela linguagem e diversas espécies de adorno distribuídas em suas várias partes; imitação realizada por atores e não em forma narrativa e que, suscitando o terror e a piedade, chega à purificação de tais afetos (Poét., 1449b24 ss.). As emoções também podem sofrer “purificação e agradável alívio”. E “as músicas mais aptas a produzir purificação transmitem uma alegria inocente aos homens” (Pol., VIII, 7, 1342a17; ABBAGNANO, 2007, p. 120). 6.2.5 Associação de ideias (Féd., 76a) Platão usou essa expressão para indicar a conexão recíproca dos elementos da consciência, que permitem que sejam evocados uns pelos outros, de acordo com algum princípio uniforme ou através das leis fundamentais (Féd., 76a). Aristóteles usava a expressão da mesma forma (De Memoria et Reminiscentia, II, 451b18-20; ABBAGNANO, 2007, p. 85). 6.2.6 Misologia (Féd., 89d-90b) Em Platão, a misologia é análoga à misantropia. A misantropia acontece quando se confia em alguém sem discernimento, e a misologia quando se acredita em raciocínios que depois se mostram falsos (Féd., 89d-90b; ABBAGNANO, 2007, p. 671). 6.2.7 Finalismo (Féd., 97c) Segundo Platão e Aristóteles, Anaxágoras foi o primeiro pré-socrático a admitir a causalidade do fim (Féd., 97c; Met., I, 3, 984b18). Platão descreve sua forma de pensar como consequência do princípio de Anaxágoras de que a inteligência é a causa ordenadora do mundo. “Se a inteligência ordena todas as coisas e dispõe cada coisa do modo melhor, achar a causa graças à qual cada coisa é gerada, destruída ou existe significa descobrir qual é a sua melhor maneira de existir, modificar-se ou agir” (Féd., 97c). Entretanto, a ideia na qual prevaleceu a concepção finalista na metafísica é a aristotélica. Aristóteles afirma que “tudo aquilo que é por natureza existe para um fim” (De An., III, 12, 434a) e identifica o fim com a mesma substância, “forma ou razão de ser da coisa” (Met., VIII, 4, 1044a31). 115 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA ANTIGA Por outro lado, julga que o universo inteiro está subordinado a um único fim, que é Deus, do qual dependem a ordem e o movimento do universo (Met., XII, 7, 1072b). Por isso Aristóteles defende a causalidade do fim, dizendo que as coisas não acontecem com vistas ao seu melhor resultado; às vezes o melhor resultado é o efeito acidental da necessidade. Aristóteles observa que aquilo que acontece geralmente não pode ser explicado com o acaso, mas supõe a necessidade da ação do fim (Fís., II, 9, 200a5; ABBAGNANO, 2007, p. 457). 6.2.8 Causalidade (Féd., 97c, 101c) A noção de causa surge com Platão, que a considera como o princípio pelo qual uma coisa é ou torna-se o que é. Ele afirma que a verdadeira causa de uma coisa é aquilo que, para a coisa, é o melhor, isto é, a ideia que garante o estado perfeito da própria coisa. De modo geral, o bem é a causa daquilo que existe de bom nas coisas e das próprias coisas (Féd., 97c, 101c; ABBAGNANO, 2007, p. 124). Ao lado dessas causas primeiras, Platão admitiu também aquilo que chamou de concausas, que são as limitações encontradas pela obra criadora do demiurgo e que constituem os elementos de necessidade do próprio mundo (Tim., 69a). A primeira análise da causa foi feita por Aristóteles. Foi ele quem pela primeira vez afirmou que o papel do conhecimento e da ciência é conhecer a causa das coisas (Fís., I, 1, 184a10). Entretanto, notou ao mesmo tempo que há várias espécies de causa. A causa material, a causa formal, a causa eficiente e a causa final são causas possíveis, segundo Aristóteles (ABBAGNANO, 2007, p. 125). 6.2.9 Dever-ser (Féd., 99c) Platão escreveu que, se a doutrina de Anaxágoras, de que existe uma inteligência que ordena o mundo do melhor modo, é verdadeira, então o bem e o dever-ser sustentam e agregam todas as coisas (Féd., 99c). Assim, o que deve ser é aquilo que é bom que aconteça, desde que esteja previsto por uma norma (ABBAGNANO, 2007, p. 267). 6.2.10 Participação (Féd., 100) Participação foi um dos dois conceitos que Platão usou para definir a relação entre as coisas e as ideias: “Nada torna bela uma coisa a não ser a presença ou a participação do belo em si mesmo, seja qual for o caminho ou o modo como a presença ou a participação se realizam’’ (Féd., 100d). Posteriormente Platão entendeu a participação como imitação: “Parece-me que as ideias estão como exemplares na natureza, que os outros objetos se assemelhem a elas e sejam suas cópias, e que essa participação das coisas nas ideias consiste em serem imagem delas” (Parm., 132d; ABBAGNANO, 2007, p. 745). 116 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II 6.2.11 Vida (Féd., 105c) Platão identificava a alma com a vida (Féd., 105c), porque considerava propriedade da alma a capacidade de “mover-se por si” (Fedro, 245c). Aristóteles entendia por vida “a nutrição, o crescimento e a destruição que se originam por si mesmos” (De An., II, 1, 412a13) e considerava que a vida é própria dos seres animais, pois estes “possuem em si mesmos uma potência ou um princípio tal que sofrem aumento ou diminuição nas direções opostas”(De An., II, 413a27; ABBAGNANO, 2007, p. 1000). 6.3 Fedro Figura 14 Antes de ler o resumo de Fedro, você precisa saber que a cultura da cidade de Atenas era preponderantemente homossexual: homens amavam homens, desde o momento em que entravam no ginásio de esportes, onde aprendiam a ser guerreiros. Os atenienses se casavam e formavam família, o que era importante, mas o amor era uma coisa nobre que devia ser reservada somente aos homens. Também precisa entender que, nesse diálogo, Platão estabelece a existência da alma na forma que posteriormente foi aceita por várias religiões diferentes. Sócrates encontra-se com Fedro nos arredores de Atenas. Fedro acaba de vir da casa de Epícrates, onde Lísias, filho de Céfalo, fez um discurso sobre o amor. Sócrates acompanha Fedro esperando que ele repita o discurso que ouviu. É um diálogo apenas entre os dois, em fala direta. Eles se sentam na beira de um rio, embaixo de uma árvore, e conversam. Fedro começa a repetir o discurso de Lísias: “Você entende, então, minha situação: eu disse a ele que bom teria sido para nós se tivesse dado certo”, e o discurso prossegue explicando as razões pelas quais é melhor ter um amante que não se ama do que amar de verdade. O relacionamento 117 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a FILOSOFIA ANTIGA com alguém que não se ama demonstra objetividade e prudência. Não gera fofoca quando são vistos juntos, não gera ciúmes e permite uma possibilidade maior de ter outros parceiros. Você não estará com alguém que está inebriado pelo amor e, portanto, não pensa direito. Ele explica que é melhor estar com alguém que queira retribuir os favores carnais do que com alguém que necessite do seu amor. Lísias conclui dizendo que o discurso já foi longe o suficiente, e os ouvintes são então convidados a fazer perguntas. Sócrates, tentando conquistar Fedro, diz que está em êxtase com tudo que Fedro contou. Sócrates diz que, como o discurso parecia tornar Fedro radiante, ele tem certeza de que Fedro entende dessas coisas melhor do que ele e que não saberia como sentir o mesmo êxtase com essas palavras. Fedro percebe o sarcasmo de Sócrates e pede a Sócrates que pare de brincar com ele. Sócrates responde que Fedro ainda está admirado com o discurso de Lísias, mas que consegue fazer um discurso ainda melhor do que o que ele ouviu. Fedro e Sócrates observam que ali, no campo, Sócrates parece um peixe fora da água, e Sócrates atribui essa falha ao seu amor em aprender, mas que as árvores e o campo aberto não ensinam, enquanto os homens na cidade permitem que ele aprenda muito. Sócrates diz que ele, Fedro, conseguiu tirá-lo da cidade da mesma forma que fazemos um animal com fome andar se mostramos uma cenoura para ele. No caso de Sócrates, ele persegue bons discursos e conhecimento e, se oferecerem isso a ele, ele andará por toda a Grécia buscando-os. Sócrates finalmente inicia seu discurso sobre o amor. Em vez de enumerar os motivos como Lísias tinha feito, começa explicando que mesmo que todos os homens desejem beleza, alguns estão apaixonados e outros não. Ele diz que todos nós somos governados por dois princípios: um é o desejo inato de prazer, e o outro é o nosso juízo adquirido que busca o que é melhor (Fedro, III, 237d). Quando seguimos nosso juízo, pensamos corretamente, mas quando seguimos o desejo atrás do prazer é arrogância. Perseguir os desejos leva a coisas diferentes. Aquele que segue seu desejo por comida é um glutão, e quem persegue seus desejos encontra um fim tosco. O desejo de apreciar a beleza, reforçado pela beleza dos corpos humanos, é chamado Eros. O problema, ele explica, é que alguém inebriado de desejo quer transformar seu jovem amante naquilo que seja mais agradável para si mesmo, e não no que é melhor para o menino. O progresso intelectual do jovem será sufocado, sua condição física vai se perder e o amante não vai desejar que o menino cresça, amadureça e forme uma família. Tudo isso vai acontecer porque o amante o está moldando pelo desejo de prazer e não pelo que é melhor. Em algum momento, a razão tomará o lugar da loucura do amor, e os juramentos do amante e as promessas ao seu jovem serão quebrados. Fedro acreditava que um dos maiores bens é a relação entre um amante e seu jovem. Essa relação traz orientação e amor para a vida do jovem. O jovem tem no amante um modelo valioso. Ele exibe seu melhor comportamento para não praticar algo vergonhoso; portanto, o jovem está sempre agindo melhor. 118 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or - d at a Unidade II A ausência da vergonha abre espaço para o sentimento de orgulho, para impressionar o próprio amante. Impressionar seu amante traz mais aprendizado e orientação para a vida do jovem. Aquele que não ama não fará nada disso, sempre governado pelo julgamento e não pelo desejo de prazer. Sócrates está prestes a ir embora e desistir do diálogo, quando ele percebe um “sinal divino familiar”, seu daemon (entidade divina em que os gregos acreditavam, semelhante aos anjos da guarda católicos), o que sempre ocorria quando estava prestes a fazer algo que não devia. Ele precisava fazer a expiação por alguma ofensa contra os deuses. Sócrates percebe qual foi a sua ofensa: se o amor é um deus ou algo divino, como ele e Fedro concordam que é, ele não pode ser algo ruim, como ele disse. Sócrates começa discutindo a loucura. Se a loucura é ruim, então os discursos anteriores teriam sido corretos, mas, na realidade, a loucura dada como um presente dos deuses nos fornece algumas das melhores coisas que temos. Há, de fato, vários tipos de loucura divina: de Apolo recebemos o dom da profecia, de Dionísio os rituais místicos e a embriaguez como alívio das nossas dificuldades, das Musas a poesia e de Afrodite o amor. Sócrates resolve provar a origem divina da loucura do amor. Primeiro ele prova a imortalidade da alma: a alma está sempre em movimento e é motor de si própria. Ela é fonte de tudo que se move, pois as coisas que precisam ser movidas por forças externas não têm alma. É necessário que a alma seja imortal. Para Sócrates, uma alma é como a “união natural de uma parelha de cavalos alados e seu carro”. Enquanto os deuses têm dois bons cavalos, todos os outros têm uma mistura: um é belo e bom, enquanto o outro não o é. Como as almas são imortais, aquelas fora dos corpos patrulham o céu, desde que suas asas estejam em perfeitas condições. Quando uma alma perde suas asas, ela cai na Terra e assume um corpo humano, que então parece se mover. As asas crescem com a sabedoria, a bondade e a beleza do divino. No entanto, a malícia e a feiura fazem as asas encolher e desaparecer. No céu há uma procissão da carros liderada por Zeus, que cuida de tudo e coloca as coisas em ordem. Todos os deuses seguem Zeus nesta procissão. Enquanto os carros dos deuses são equilibrados e fáceis de controlar, aqueles que estão no céu devem domar o seu cavalo ruim, pois este os arrastará de volta para a Terra. À medida que a procissão alcança o alto do céu, os deuses são levados, em um movimento circular, a contemplar tudo o que está além do paraíso. Sócrates diz que as coisas que não fazem parte do céu não tem cor, forma ou matéria, e só podemos conhecê-las com a inteligência. Nessa jornada eles são capazes de ver a justiça, o autocontrole, o conhecimento e todas as coisas que são em si mesmas, imutáveis. Depois da procissão circular, os deuses recuam para dentro do céu. As almas imortais que seguem os deuses de perto conseguem conduzir seus carros até a borda do paraíso e olhar para a realidade. Como têm dificuldade em lidar com seus cavalos, elas percebem algumas coisas da realidade, outras não. Outras almas, que são incapazes de conduzir seus carros, nem sequer 119 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : N om e do d ia gr am ad or -
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