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PUC DEPARTAMENTO DE DIREITO EFICÁCIA DO CRSFN COMO INSTÂNCIA REVISORA DO PROCESSO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR DA CVM Por VINÍCIUS DE VILHENA COTA MOURA ORIENTADORA: NORMA JONSSEN PARENTE 2017.1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO RUA MARQUÊS DE SÃO VICENTE, 225 - CEP 22451-900 RIO DE JANEIRO - BRASIL EFICÁCIA DO CRSFN COMO INSTÂNCIA REVISORA DO PROCESSO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR DA CVM por VINÍCIUS DE VILHENA COTA MOURA Monografia apresentada ao Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientadora: Norma Jonssen Parente 2017.1 Se, por um lado, o mercado é decorrência natural e espontânea do dinamismo social, por outro, é uma criação jurídica, vez que apenas pode se desenvolver caso existam os veículos e as garantias jurídicas necessárias. Alexandre Santos de Aragão RESUMO O presente trabalho tem como objeto analisar como funciona a atividade punitiva exercida na regulação do mercado de valores mobiliários. É apresentado todo o caminho percorrido pelos processos sancionadores instaurados pela Comissão de Valores Mobiliários desde a fase investigativa até a apreciação do seu recurso perante o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional. Esses dois órgãos que formam a base da regulação do mercado de capitais são estudados mais de perto através de um exame do processo histórico de evolução de ambos. A partir deste método são expostas as principais contradições do sistema regulatório desta área que contribuem para a ineficácia das punições decididas em primeira instância. Por fim são apresentadas críticas e alternativas ao sistema de duplo grau administrativo atualmente em vigor no Brasil. Palavras-Chave: Processo Administrativo Sancionador; Mercado de Valores Mobiliários; Mercado de Capitais; Comissão de Valores Mobiliários; Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional; Duplo Grau Administrativo. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................... 6 CAPÍTULO 1 - A COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS.......... 8 1.1. Criação da CVM ............................................................................... 8 1.2. A evolução da CVM .......................................................................... 9 1.3. O Mercado de Capitais e os Valores Mobiliários ........................ 13 1.4. As funções da CVM ........................................................................ 15 CAPÍTULO 2 - O PROCESSO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR NA CVM ..................................................................................................... 19 2.1. Histórico do PAS-CVM .................................................................. 20 2.2. O Rito Sumário ............................................................................... 23 2.3. O Rito Ordinário ............................................................................ 24 2.3.1. Fase Investigativa: Inquérito Administrativo ........................... 25 2.3.2. Fase Contraditória: PAS Stricto Sensu ...................................... 27 2.3.3. Termo de Compromisso .............................................................. 27 CAPÍTULO 3 – CRSFN: CONSELHO DE RECURSOS DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL ..................................................................... 31 3.1. Criação e evolução do CRSFN ...................................................... 31 3.2. Estrutura atual do Colegiado do CRSFN ..................................... 34 3.3. O Novo Regimento Interno do CRSFN ........................................ 35 CAPÍTULO 4 – A INEFICÁCIA DO CRSFN COMO INSTÂNCIA REVISORA ................................................................................................ 40 4.1. Composição dos Colegiados da CVM e do CRSFN..................... 40 4.2. A morosidade do CRSFN ............................................................... 45 4.3. O Duplo Grau Administrativo no PAS-CVM .............................. 47 CONCLUSÃO ............................................................................................ 53 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................... 57 LISTA DE ABREVIAÇÕES BACEN ou BC – Banco Central do Brasil CARF – Conselho Administrativo de Recursos Fiscais CF/88 – Constituição Federal de 1988 CMN – Conselho Monetário Nacional CRSFN – Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional CVM – Comissão de Valores Mobiliários IA – Inquérito Administrativo da CVM ICVM 545 – Instrução CVM nº 545/14 PAS-CVM – Processo Administrativo Sancionador da CVM PFE-CVM – Procuradoria Federal Especializada junto à CVM PGFN – Procuradoria Geral da Fazenda Nacional PTC – Proposta de Termo de Compromisso SEC – Securities and Exchange Comission SGE – Superintendente Geral da CVM SPS – Superintendência de Processos Sancionadores STJ – Supremo Tribunal de Justiça INTRODUÇÃO O presente trabalho partiu da ideia de investigar o verdadeiro grau de eficácia da atividade punitiva da Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) no exercício de sua função de xerife do mercado de capitais brasileiro. Sendo o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (“CRSFN” ou “Conselhinho”) o órgão responsável por rever as decisões proferidas pela CVM no exercício dessa função, esse órgão possui um papel fundamental no cumprimento delas. Como forma de introdução ao tema, foi apresentado um panorama geral da CVM, abordando sua criação, seu meio de atuação (o mercado de capitais), sua evolução e suas funções inerentes. Depois de demonstrado esse retrato histórico, procurou-se apresentar os procedimentos do Processo Administrativo Sancionador da CVM (“PAS-CVM”). Primeiramente todo seu histórico de regulação sob a égide da Constituição Federal de 1988 foi abordado, para em seguida serem abordadas suas espécies de rito. O Rito Sumário e o Ordinário são examinados desde a Fase Investigativa até a Decisão proferida pelo Colegiado da CVM, passando pela possibilidade de assinatura de Termo de Compromisso. Em seguida o que é abordado é a segunda instância administrativa do mercado de capitais, que se passa toda no CRSFN. Aqui a problemática central deste trabalho já começa a ser mais evidente, uma vez que se trata de órgão que sempre apresentou sérios problemas de morosidade em suas decisões, o que vem tentando ser resolvido mais recentemente com a adoção do Novo Regimento Interno em 2016. Com relação ao funcionamento desses dois órgãos, CVM e CRSFN em conjunto, foram apresentadas as opiniões contrastantes de diversos juristas e participantes do mercado com relação aos problemas envolvendo 7 morosidade, formação de jurisprudência e confiabilidade na regulação do mercado de capitais. A partir dessas reflexões foi levantada a questão sobre a real conveniência da existência de uma segunda instancia administrativa para rever as decisões da CVM. Diante disso surge a discussão sobre qual seria o melhor caminho para sanar o problema: (i) aguardar que o Novo Regimento do CRSFN resolva a questão; (ii) tornar a CVM uma instância administrativa única, passando todas suas decisões a serem contestáveis apenas perante o judiciário; ou (iii) reformar a organizaçãodo colegiado do Conselhinho. As três propostas foram analisadas criticamente na busca pela melhor solução. CAPÍTULO 1 – A COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS 1.1. Criação da CVM No fim da década de 1950 o Brasil vivia um cenário econômico de inflação crescente. Essa situação, somada com a chamada Lei da Usura (Decreto nº 22.626/33, em vigor na época), que limitava a taxa máxima de juros em 12% ao ano, limitava o desenvolvimento efetivo de um mercado de capitais ativo. Com a mudança de poder ocorrida em 1964, entrou em ação um programa de reformas na economia que envolvia a reestruturação do mercado financeiro, especialmente com a Lei nº 4.537/64, que criou a correção monetária, e a Lei 4.595/64, que criou o Conselho Monetário Nacional (“CMN”) e o Banco Central do Brasil (“BACEN” ou “BC”). Houve também a preocupação em disciplinar pela primeira vez o mercado de capitais, através da Lei nº 4.728/65, conhecida como primeira Lei de Mercado de Capitais. Nas palavras de Júlio Ramalho Dubeux, essa Lei “praticamente inaugurou a relação do mercado de capitais, estabelecendo medidas para seu desenvolvimento”1. Apesar de ser a primeira vez que o mercado de capitais era regulado separadamente do mercado financeiro, tal Lei manteve os mesmos órgãos responsáveis pela disciplina e fiscalização (CMN e BACEN, respectivamente) tanto de um mercado como do outro 2 . Toda essa legislação resultou em profundas reformas no mercado acionário, como a reformulação das Bolsas de Valores, a profissionalização das Sociedades Corretoras e a criação de Bancos de Investimento. Além disso, passaram a ser introduzidos incentivos do Governo para a aplicação no mercado acionário, como por exemplo o Decreto Lei nº 157/67, por 1 DUBEUX, Júlio Ramalho. A Comissão de Valores Mobiliários e os principais instrumentos regulatórios do Mercado de Capitais Brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006. Pg. 34. 2 Artigo 1° Os mercados financeiros e de capitais serão disciplinados pelo Conselho Monetário Nacional e fiscalizados pelo Banco Central da República do Brasil 9 meio do qual os contribuintes podiam usar parte do imposto de renda devido para adquirir ações e debêntures através de instituições financeiras. Em decorrência dos incentivos fiscais e práticos criados pelo Governo Federal, houve um aumento na demanda dos investidores muito maior do que a emissão de ações pelas empresas, o que acabou por desencadear o “boom” na Bolsa do Rio de Janeiro, em 1971. Devido ao grande prejuízo que alguns acionistas tiveram nesse período, a reputação do mercado acionário brasileiro ficou manchada durante longo tempo. Como forma de tentar superar essa desconfiança no mercado, o Governo adotou vários outros incentivos, como a isenção fiscal dos ganhos obtidos em bolsa. Foi dentro desse quadro de tentativa de recuperação do mercado que, em 1976, foram criadas duas das principais normas societárias ainda em vigor atualmente: a Lei 6.404/76 que regula as Sociedades por Ações e a Lei 6.385/76, segunda Lei do Mercado de Capitais, conhecida como Lei do Mercado de Valores Mobiliários, que criou a Comissão de Valores Mobiliários, “instituição governamental destinada exclusivamente a regulamentar e desenvolver o mercado de capitais, fiscalizar as bolsas de valores e as companhias abertas”3. A Lei 6.385/76 (“Lei do Mercado de Valores Mobiliários”) transferiu para a CVM a competência de regular, fiscalizar e punir os ilícitos cometidos no mercado de capitais, antes exercida pelo BACEN, além de substituir a Lei nº 4.728/65 quanto às competências do CMN para disciplinar sobre esse mercado. 1.2. A evolução da CVM A partir da metade da década de 1990 houve uma aceleração na abertura econômica brasileira que trouxe como consequência um aumento do volume de investimentos estrangeiros no mercado de capitais brasileiro. 3 COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. O Mercado de Valores Mobiliários Brasileiro: Coletânea TOP. 3ª ed.. Rio de Janeiro: Comissão de Valores Mobiliários; 2014. Pg. 58 10 Tal fenômeno estimulou muitas empresas brasileiras a acessar o mercado externo, especialmente o americano, com o objetivo de receber investimentos através do lançamento de ativos em bolsas estrangeiras. Ao lançar seus ativos nas bolsas americanas, as Companhias brasileiras começaram a ser obrigadas a seguir as regras da Securities and Exchange Comission (“SEC”), órgão regulador do mercado de capitais dos Estados Unidos, com relação à divulgação de informações, transparência, relatórios contábeis, etc. Essas exigências passaram não só a reeducar esses administradores brasileiros quanto a suas responsabilidades como também a conscientizar os investidores brasileiros sobre seus direitos de acionista. Diante desse panorama, o mercado de capitais brasileiro passou a perder espaço para outros mercados mais protecionistas com relação aos seus investidores. Esse fato incentivou diversas mudanças na forma de atuação da CVM no exercício de suas funções. Em 1997, por exemplo, houve a publicação da Lei nº 9.457/97, que se preocupou com o aperfeiçoamento das normas e procedimentos previstos nas Leis 6.404/76 e 6.385/76. Com relação a esta última, houve o acréscimo, dentre outros, dos parágrafos 4º e 5º ao seu artigo 11, que instituíram a possibilidade de celebração de Termo de Compromisso 4 e de interposição de recurso perante o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional 5 , respectivamente. Além disso, também foi criada a figura do atenuante na aplicação de penalidades quando houver confissão espontânea ou prestação de informação relativa à materialidade do ilícito (art. 11, § 9º da Lei nº 6.385, alterado pela Lei 9.457/97). Já em 2001 houve uma importante reforma na CVM, implementada conjuntamente por meio da Lei nº 10.303/01, do Decreto nº 3.995/01 e da Medida Provisória nº 08/2001 6 (depois convertida na Lei nº 10.411/02). 4 Esse tema será abordado no item 2.3.3 deste trabalho. 5 Esse tema será abordado no Capítulo 3 deste trabalho. 6 Conforme as palavras do então Ministro de Estado da Fazenda, Pedro Sampaio Malan, constante na exposição de motivos da Medida Provisória nº 08/2001: “Todas as alterações ora propostas dizem respeito à inadiável necessidade de modernizar o órgão regulador do mercado de capitais, como medida de incentivo ao desenvolvimento da economia nacional”. 11 Essas normas vieram destacadamente para (i) aperfeiçoar os procedimentos utilizados nos processos administrativos, (ii) ampliar o conceito de valores mobiliários 7 , e (iii) alterar a estrutura e o status da CVM (Arts. 5º e 6º da Lei 6.385/76, alterados pela Lei 10.411/02). Antes dessas alterações, os Diretores e o Presidente da CVM eram nomeados diretamente pelo Presidente da República, sendo por ele “demissíveis ad nutum” (conforme redação original do art. 6º da Lei 6.385/76). Nas palavras de Fernando A. Albino Oliveira isso significava “Na realidade, sinteticamente, que, se o órgão tomar medidas que desagradem ao Presidente da República ou se desvie da orientação da política governamental, este pode, até por motivos caprichosos, demitir seus administradores. Entende-se por independência certa liberdade de ação, sem limitações de um poder superior. Nesse caso, claramente não há”8. Nesse sentido, a Lei 10.411/02 veio alterar essa situação, promovendo mudanças com relação ao mandato dos Diretores da CVM, que passaram a ser nomeadospor prazo determinado, restando vedada a exoneração ad nutum e a recondução e passando a ser necessária a aprovação prévia pelo Senado Federal, seguindo o exemplo da SEC nos Estados Unidos. Ainda com relação às alterações promovidas pela Lei 10.411/02 destaca-se a conversão da CVM em agência autônoma, com autoridade administrativa, ausência de subordinação e autonomia financeira, nos termos do art. 5º da referida Lei: Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Exm/2001/exm-214-mpv-08.pdf. Acesso em 24/05/2017. 7 Além de apresentar uma lista ainda mais detalhada do que seriam valores mobiliários, nos incisos I a VIII do art. 2º da Lei 6.385/76, a Lei 10.303/01 adicionou também o inciso IX como uma espécie de hipótese genérica para cobrir os casos não previstos nos incisos anteriores: “quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros”. 8 OLIVEIRA, Fernando A. Albino. Poder Regulamentar da Comissão de Valores Mobiliários. São Paulo.1989. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade do Estado de São Paulo – USP 12 Art. 5º É instituída a Comissão de Valores Mobiliários, entidade autárquica em regime especial, vinculada ao Ministério da Fazenda, com personalidade jurídica e patrimônio próprios, dotada de autoridade administrativa independente, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes, e autonomia financeira e orçamentária. 9 Diante disso, vale mencionar a lição de Marcos Juruena Villela Souto: “A regulação exercida por autoridade independente (denominação utilizada nas doutrinas francesa e italiana) atua com poderes típicos do Estado, limitando a atividade desenvolvida em regime de liberdade; daí a necessidade da personalidade jurídica de direito público, o que, aliado à autonomia para o desempenho dessa função justifica, no direito brasileiro, a adoção da forma autárquica como a ideal para a descentralização da regulação estatal”.10 Esse status de agência autônoma conquistado pela autarquia com a Lei 10.411/02, no entanto, é contestado por alguns autores como Alexandre Santos de Aragão: “Ao nosso ver, contudo, este importante reforço da autonomia orgânica da CVM não foi suficiente para transformá-la em agência reguladora independente, uma vez que a sua autonomia funcional continua comprometida pelo fato de contra as suas decisões sancionatórias permanecer cabível recurso administrativo externo para o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, órgão integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, (art. 11, § 4º, Lei nº 6.385/76 ) e (...) apenas a conjunção da autonomia orgânica com a funcional caracteriza a independência ou autonomia reforçada própria das agências reguladoras independentes”.11 No entanto, existem vários autores que corroboram com a tese de que a CVM possui todas as características inerentes às agências reguladoras, e por isso assim deve ser entendida. A título de exemplo destaca-se Arnold Wald, ex-presidente da CVM, que esclarece: “Um quarto de século após sua criação a Comissão de Valores Mobiliários – CVM passa a ter um novo status em virtude da recente Lei nº 10.303, da Medida Provisória nº 8 e do Decreto nº 3.995, todos de 31.10.2001. Trata-se de uma 9 Lei 6.385/76, art. 5º. 10 SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório. 2ª ed.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. Pg. 244-245. 11 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras e a Evolução do Direito Administrativo Econômico. 2ª ed.. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006. Pg. 303 e 304. 13 verdadeira revolução para o mercado de capitais, atribuindo-se finalmente à CVM, de modo claro e formal, o papel que sempre teve de agência reguladora à qual se reconhece a condição de autoridade administrativa independente, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e a estabilidade de seus dirigentes, e a autonomia financeira e orçamentária”.12 1.3. O Mercado de Capitais e os Valores Mobiliários Uma vez que o termo “mercado” possui várias acepções, convém aqui, portanto, para os fins deste trabalho, conceituá-lo, em especial o chamado Mercado de Capitais, também conhecido como Mercado de Valores Mobiliários, ramo de atuação da CVM. Conforme ensina Fabiano Del Masso: “Mercado financeiro em sentido amplo compreende as operações de fornecimento ou de captação de recursos financeiros pelos agentes econômicos. Dependendo da forma de intermediação realizada na transferência dos recursos, o mercado financeiro em sentido amplo pode ser chamado de: a) mercado financeiro em sentido estrito ou b) mercado de capitais. De forma bem simples, o mercado financeiro é o local que compreende uma série de trocas de ativos financeiros (negociação) e por consequência forma o preço de tais ativos. Mercado financeiro em sentido estrito considera a especialização das trocas de ordem financeira, por exemplo: o tipo de moeda negociada (nacional e externo), o grau de intervenção do Estado (livres e regulados), o grau de formalização das negociações (organizados e não organizados), o objeto financeiro específico (crédito, capitais, cambial etc). Em razão da sua crescente importância um dos mercados financeiros em sentido estrito é o chamado mercado de capitais, que envolve um espaço de negociação de valores mobiliários, principalmente ações, e que funciona como um eficiente fornecedor de recursos financeiros para as sociedades anônimas”.13 Já a CVM, com relação ao Mercado de Capitais, esclarece que: “Do ponto de vista dos investidores, o mercado de capitais surge como alternativa às aplicações tradicionais em produtos oferecidos pelos bancos ou pelo governo. É nesse mercado que os poupadores têm a oportunidade de participar de empreendimentos que consideram interessantes, desde que dispostos a assumir os riscos daí decorrentes. Espera-se, em especial nos títulos patrimoniais, uma rentabilidade superior aos investimentos tradicionais, embora com risco também superior. Isso porque, diferente do mercado de crédito, em que o risco das operações é centralizado nos bancos, no mercado de capitais o risco da operação em que os recursos são aplicados é assumido pelos próprios investidores. Conceitua-se o mercado de capitais, portanto, como o segmento do mercado financeiro em que são criadas as condições para que as empresas captem recursos 12 WALD, Arnold. Revista CVM: nº 35. Rio de Janeiro, abr. 2002. Pg. 38. 13 DEL MASSO, Fabiano. Direito econômico. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. Pg. 17. 14 diretamente dos investidores, através da emissão de instrumentos financeiros, com o objetivo principal de financiar suas atividades ou viabilizar projetos de investimentos. (...) O mercado de capitais tem uma grande importância no desenvolvimento do país, pois estimula a poupança e o investimento produtivo, o que é essencial para o crescimento de qualquer sociedade econômica moderna”.14 A Lei 6.385/76, em seu artigo 1º, dispõe que é competência da CVM disciplinar, fiscalizar e sancionar as diversas relações advindas da negociação de valores mobiliários. Dessa forma, uma vez definido o conceito de Mercado de Capitais, para o entendimento completodo ramo de atuação da CVM resta ainda definir o conceito de valores mobiliários, conforme ensina Nelson Eizirik: “O conceito de valor mobiliário é, portanto, o balizador de sua competência, daí decorrendo que as operações envolvendo esses tipos de títulos ou contratos serão reguladas e fiscalizadas por essa autarquia. Tal âmbito de atuação já foi ampliado em três oportunidades distintas, com a edição as Leis nº 9.457/1997, 10.198/2001 e 10.303/2001”.15 Ciente desse fenômeno e baseada no artigo 2º da Lei 6.385/76 16 , alterado pela Lei 10.303/01, a CVM apresenta o seguinte conceito de valores mobiliários: “São valores mobiliários, quando ofertados publicamente, quaisquer títulos ou contratos de investimentos coletivos que gerem direito de participação de parceria 14 COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. O Mercado de Valores Mobiliários Brasileiro: Coletânea TOP. 3ª ed.. Rio de Janeiro: Comissão de Valores Mobiliários; 2014. Pgs. 36-37. 15 EIZIRIK, Nelson et al.. Mercado de Capitais: Regime jurídico. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.. Pg. 245. 16 Art. 2º São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei: I - as ações, debêntures e bônus de subscrição; II - os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II; III - os certificados de depósito de valores mobiliários; IV - as cédulas de debêntures; V - as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos; VI - as notas comerciais; VII - os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários; VIII - outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e IX - quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros. § 1º Excluem-se do regime desta Lei: I - os títulos da dívida pública federal, estadual ou municipal; e II - os títulos cambiais de responsabilidade de instituição financeira, exceto as debêntures. 15 ou remuneração, inclusive resultante da prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros”.17 Em vista de tudo isso, com os conceitos de mercado de capitais e valores mobiliários já esclarecidos, nos próximos itens serão abordados de maneira mais detalhada as funções e os principais instrumentos regulatórios utilizados pela CVM no exercício de suas atividades. 1.4. As funções da CVM Atualmente, o fundamento constitucional para a atuação regulatória da CVM é o art. 174 da Constituição Federal de 1988 (“CF/88”), que estabelece que além de fiscalizar, o Estado também tem novas atribuições, como incentivar e zelar pelo desenvolvimento do mercado 18 . De acordo com o Portal do Investidor 19 a CVM “tem a finalidade de disciplinar e fiscalizar o mercado de valores mobiliários, aplicando punições àqueles que descumprem as regras estabelecidas”. Disso decorre que a CVM na prática possui quatro funções básicas: regulatória, consultiva, fiscalizatória e punitiva. Tendo a CVM natureza de entidade reguladora, aplicam-se a ela os ensinamentos de Alexandre Santos de Aragão quanto à liberdade normativa que ela possui: “As leis atributivas de poder normativo às entidades reguladoras independentes possuem baixa densidade normativa, a fim de – ao estabelecer finalidades e parâmetros genéricos – propiciar, em maior ou em menor escala, o desenvolvimento de normas setoriais aptas a, com autonomia e agilidade, regular a complexa e dinâmica realidade social subjacente.” 20 17 COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. O Mercado de Valores Mobiliários Brasileiro: Coletânea TOP. 3ª ed.. Rio de Janeiro: Comissão de Valores Mobiliários; 2014. Pg. 70. 18 Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. 19 http://www.portaldoinvestidor.gov.br/menu/primeiros_passos/papel_CVM.html. Acesso em 31/05/2017. 20 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras e a Evolução do Direito Administrativo Econômico. 2ª ed.. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, Pg. 406. 16 Além disso, é importante diferenciar também o poder exercido pelo Legislativo e o poder regulatório das agências reguladoras (entre elas a CVM): “O primeiro é primário, porque se origina diretamente da Constituição na escala hierárquica dos atos normativos; o segundo é secundário, porque tem como fonte os atos derivativos do poder legiferante. Portanto, como regra, afirma-se que o primeiro gera a lei (ou ato análogo com outra denominação) e o segundo o regulamento – caracterizado como ato administrativo e, frequentemente, revestido de denominações diversas (decretos, resoluções, portarias etc.). Sendo ato administrativo, o ato regulamentar é subjacente à lei e deve pautar-se pelos limites desta”.21 Dessa forma, apesar de ter seus valores e fins estabelecidos pela Lei 6.385/76, a CVM possui liberdade no exercício de sua função regulatória, de forma que pode desenvolver suas normas setoriais por conta própria, mais rapidamente, acompanhando o mercado que regula (dinâmico por natureza). Essa liberdade que propicia mais autonomia e agilidade tem por objetivo que não seja necessário aguardar pela edição de leis federais para regular o setor, por exemplo, muito mais custosas e de demorada elaboração. Assim, dentro de sua função disciplinar a CVM pode criar diversas espécies de norma, cada uma para um objetivo e para seu público específico, conforme disposto na Deliberação nº 01/1978: (i) Deliberação: Para consubstanciar todos os atos do Colegiado que constituam competência específica do mesmo nos termos do Regimento Interno; (ii) Instrução: Para consubstanciar os atos através dos quais a CVM regulamentará as matérias expressamente previstas nas Leis 6.385/76 e 6.404/76; (iii) Parecer de Orientação: através dos quais a CVM dará orientação aos agentes do mercado e aos investidores sobre matéria que cabe à CVM regular, além de servir também para veicular as opiniões da CVM sobre interpretação das Leis Nºs 6.385/76 e 6.404/76 no interesse do mercado de capitais; (iv) Parecer: - através dos quais a CVM responderá a consultas específicas que lhe vierem a ser formuladas por agentes do mercado e investidores sempre sobre matéria que cabe à CVM regular.; (v) Nota Explicativa: Para tornar público os motivos que levaram a CVM a propor ao Conselho Monetário Nacional matéria, objeto de sua decisão, e 21 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Agências Reguladoras e Poder Normativo. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de et al. O Poder Normativo das Agências Reguladoras. 2ª ed.. Rio de Janeiro: Forense, 2011. Pg. 60. 17 também, as razões pelas quais o Colegiado da CVM aprovou determinada Instrução; (vi) Portaria: Para consubstanciar os atos que envolvam os aspectos de administração de pessoal da CVM; e (vii) Ato Declaratório: Para consubstanciar os atos através dos quais a CVM declarará a existência de um direito, face ao seu poder de credenciar ou autorizar o exercício de atividades. 22 Conforme preceitua o artigo 13 da Lei 6.385/76 a CVM possui competênciapara “exercer atividade consultiva ou de orientação junto aos agentes do mercado de valores mobiliários ou a qualquer investidor”. Como Paulo Cezar Aragão bem coloca: “(...) agiganta-se o papel da CVM, especialmente em função de algumas características muito peculiares da Lei no. 6.385, que a instituiu: reconhecendo o grande desconhecimento prevalecente há 30 anos acerca do mercado de valores mobiliários, foi atribuída à CVM uma “atividade consultiva ou de orientação” que não é inerente aos órgãos reguladores. Recentemente, a reforma da lei societária tornou esta função ainda mais clara, permitindo que a CVM analise propostas de deliberação societária e comunique à companhia, antecipadamente, as “razões pelas quais entende que a deliberação proposta à assembléia viola dispositivos legais ou regulamentares”. (Lei no. 6.404/76, art. 124, § 5º, com a redação da Lei no. 10.303/01.) Esta atividade consultiva tem sido exercida com grande competência pela autarquia, mas gera um curioso paradoxo: a reclamação do investidor junto à CVM (ao contrário do que sucede com o socorro do Poder Judiciário) não exige defesa técnica, não envolve tampouco encargos de sucumbência, é extremamente rápida, altamente especializada e – por isto mesmo – tem inconteste autoridade. Isto tudo leva a um entendimento generalizado no mercado de que é melhor e mais eficiente postular perante a CVM do que junto ao Poder Judiciário: a decisão da CVM, expressando o que às vezes é identificado como a “manifestação de entendimento” da autarquia, poderá ser conhecida em poucas semanas, no máximo, e não em anos, com todas as outras vantagens acima referidas”.23 Assim, a partir principalmente da figura do “Parecer”, preceituado na Deliberação CVM nº 01 de 23 de fevereiro de 1978 e explicitado acima, a CVM cumpre sua função consultiva e se presta a responder a consultas do público em geral, conferindo assim maior segurança ao mercado e menor necessidade de um posterior controle repressivo por parte da autarquia. Com relação à função fiscalizatória, o renomado jurista Eros Grau dispõe que “a atuação normativa reclama fiscalização que assegure a 22 Deliberação CVM nº 01 de 23 de fevereiro de 1978. 23 ARAGÃO, Paulo Cezar. A CVM em juízo: Limites e possibilidades. Disponível em: <http://docplayer.com.br/9918283-A-cvm-em-juizo-limites-e-possibilidades.html>. Acesso em: 02 jun. 2017. Pg. 5-6. 18 efetividade e eficácia do quanto normativamente definido”24. Dessa forma, a CVM tem, além do dever de normatizar, também o de fiscalizar o cumprimento de suas normas, assumindo papel de polícia administrativa 25 . Importante ressaltar que “o exercício desse poder deve, entretanto, pautar-se pelos princípios de direito que regem os poderes administrativos: legalidade, moralidade, finalidade e publicidade”.26 No cumprimento dessa função a CVM exerce tanto um controle preventivo, através da exigência de registros prévios (como os dos artigos 19, 26 e 23 da Lei 6.385/76), como um controle em tempo real das condutas dos agentes do mercado (como na exigência de um fluxo permanente de informações aos investidores). Como decorrência natural desses dois poderes, depois de regular o mercado e fiscalizá-lo, a CVM por fim tem como função punir aqueles que desobedecerem suas normas 27 . As penalidades possíveis de serem aplicadas pelo Colegiado da CVM correspondem à “advertência, multa, suspensão ou inabilitação para o exercício do cargo e suspensão ou cassação da autorização ou do registro, além da proibição temporária por prazo determinado, não só para a prática de atividades ou operações por parte dos integrantes do sistema de distribuição, como também para atuar como investidor, direta e indiretamente, no mercado”28. A função punitiva, ou sancionadora, da CVM é exercida através do Processo Administrativo Sancionador (“PAS”), objeto de análise do Capítulo 2 deste trabalho. 24 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 9ª ed.. Malheiros Editores, 2004. Pg. 100. 25 Conforme reconhece inclusive o STJ: “Mandado de Segurança. Empresa de Auditoria. Registro. Exigência da Comissão de Valores Mobiliários. Legalidade. As condições para o registro, impostas pela Comissão, decorrem do exercício regular do Poder de Polícia, não se podendo falar em cerceamento da liberdade profissional” (grifos nossos). STJ, REsp 29714-3/RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Hélio Mosimann, julg. em 20.10.1993. 26 AMENDOLARA, Leslie. O Processo Administrativo Sancionador no Âmbito do Mercado de Capitais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 21. 27 Conforme prevê o art. 11 da Lei 6.385/76. 28 COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. O Mercado de Valores Mobiliários Brasileiro: Coletânea TOP. 3ª ed.. Rio de Janeiro: Comissão de Valores Mobiliários; 2014. Pg. 62. CAPÍTULO 2 - O PROCESSO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR NA CVM Conforme exposto, o mercado de capitais brasileiro atualmente é regulado pela CVM, que foi criada pela Lei 6.385/1976, “com o objetivo de fiscalizar, normatizar, disciplinar e desenvolver o mercado de valores mobiliários no Brasil”29. A CVM hoje é classificada como uma autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda que possui personalidade jurídica e patrimônio próprios, tendo também autoridade administrativa independente, o que a torna competente para processar e julgar infrações administrativas cometidas no âmbito do Mercado. É no exercício dessa competência que surgem o Processo Administrativo Ordinário (“Processo Administrativo”), e o Processo Administrativo Sancionador (“PAS”). Para os efeitos deste trabalho convém diferenciá-los, nas palavras da própria CVM: “O Processo Administrativo é uma série de atos preparatórios, sucessivos e coordenados, para a emissão de uma decisão final ou para a solução de uma controvérsia no âmbito administrativo. É instaurado com o intuito de tratar assuntos de interesse dos participantes do mercado de valores mobiliários, dos Poderes Públicos, da sociedade em geral ou de matéria de interesse da própria CVM e de seus servidores. O Processo Administrativo Sancionador é derivado de uma investigação realizada por meio de processo administrativo de caráter investigatório. É elaborado em uma das áreas técnicas da CVM, para o qual tenham sido encontrados indícios de autoria e materialidade, relativa a alguma irregularidade ocorrida no âmbito do mercado de capitais resultando em acusação. O processo que culminou em acusação (PAS) passa, então, pelo rito processual de intimação, recebimento das defesas e sorteio do relator para julgamento pelo Colegiado da CVM, quando, em caso de condenação, serão aplicadas as penalidades previstas no art. 11 da Lei 6.385/76.”30 É no PAS, portanto, que a CVM atua de forma semelhante ao judiciário, realizando investigação, processo e julgamento, tudo no seu próprio meio administrativo. Para melhor exposição do ponto central que este trabalho visa abordar, faz-se necessário analisar todo o procedimento 29 http://www.cvm.gov.br/menu/acesso_informacao/institucional/sobre/cvm.html. Acesso em 31/05/2017. 30 http://www.cvm.gov.br/processos/processos.html. Acesso em 31/05/2017. 20 sancionador na CVM, passo a passo, inclusive através da análise da sua evolução sob a égide da Constituição Federal de 1988. 2.1. Histórico do PAS-CVM No exercício de suas funções, a CVM atua como um dos instrumentos do Estado para exercer as atividades previstas no artigo 174 da Constituição Federalde 1988, quais sejam normatizar, regular, fiscalizar, incentivar e planejar a atividade econômica no Brasil. Já a base legal do poder normativo da CVM se encontra no artigo 8º de sua legislação fundadora, a Lei 6.385/76. Antes de passar para a análise das regras atuais do PAS-CVM, faz-se necessário traçar um breve panorama histórico da evolução das mesmas sob a égide da CF/88, até mesmo para elucidar em que direção caminha a evolução do pensamento daqueles que regulam esta área. Importa ressaltar, porém, que os procedimentos descritos a seguir dizem respeito apenas ao histórico do Rito Ordinário, não estando incluído na análise, portanto, o Rito Sumário. Inicialmente, até meados da década de 1990 o Colegiado atuava tanto na função acusatória como na julgadora, concentrando, assim, toda a responsabilidade processual. O Procedimento era regulado conjuntamente pela Resolução nº 454/1977 do CMN, as Deliberações CVM nº 12/1981 e 16/1984 e pelo Parecer de Orientação CVM nº 6/1980. Por essa regulação, a instauração do Inquérito Administrativo (“IA”) que dá início ao PAS dependia da aprovação prévia, pelo Colegiado, de expediente redigido por qualquer de seus membros ou por qualquer Superintendente da qual deveria constar a individualização do(s) indiciado(s) e a descrição dos fatos que fundamentavam o pedido. Após instaurá-lo, o Colegiado designava o “Encarregado de Inquérito”, que seria o Superintendente incumbido pela instrução dos autos e o responsável por redigir Relatório a partir do qual o mesmo Colegiado decidiria se (i) 21 determinava diligências; (ii) arquivava o caso; ou (iii) dava prosseguimento ao feito, intimando os acusados para apresentar defesa. Depois do prazo para contraditório, o Colegiado procedia para o julgamento do Processo. A partir de 1994, com o disposto conjuntamente na Resolução CMN nº 1.141/1994 e na Deliberação CVM nº 175/1994, foram criadas as “Comissões de Inquérito”. Nomeadas por Portaria assinada pelo Presidente da CVM, essas Comissões nada mais eram do que substitutas à figura do “Encarregado do Inquérito”, ou seja, passaram a substituir os Superintendentes na instrução dos IAs. Em outras palavras, na prática o procedimento continuava o mesmo, com o Colegiado concentrando todas as decisões, apenas o que foi mudado foi o encarregado pela instrução dos autos. Nesta altura, é imperativo destacar, todos os ilícitos contra o mercado de capitais que estavam submetidos ao Rito Ordinário deveriam ser submetidos a esse procedimento acima narrado. Tal exigência tornava o PAS não apenas moroso como também muito oneroso, constantemente de maneira desproporcional quanto ao ilícito que se pretendia punir. Por esse motivo, a partir de 2000, com base na Resolução CMN nº 2.785/2000, foi dispensada a nomeação de Comissão de Inquérito em processos nos quais os elementos de autoria e materialidade fossem suficientes para o oferecimento de termo de acusação pelo Superintendente da respectiva área, o qual passou a submetê-lo sumariamente à aprovação do Colegiado. Contudo, apesar dessa mudança ter sido a primeira a tirar do Colegiado a necessidade de participação em todas as fases do procedimento, diante da facultatividade que a Comissão de Inquérito passou a ter, o procedimento sancionador ainda permanecia lento. Por isso que, em dezembro de 2002, com o objetivo de agilizar esse sistema, a Deliberação CVM nº 457/2002 determinou a segregação das funções acusatória e julgadora no âmbito do PAS-CVM, de forma que o Colegiado deixou de desempenhar controle prévio das peças acusatórias e as Superintendências e as Comissões de Inquérito passaram a ter autonomia para dar início aos 22 processos por conta própria. Dessa forma, na prática, tanto os Inquéritos Administrativos como os Termos de Acusação passaram a ser elaborados sem qualquer influência do Colegiado, que já os recebia em sua versão final, pronto para serem julgados. Além disso, determinou-se também passaria a ser de competência do Superintendente Geral da CVM (“SGE”) a nomeação dos membros das Comissões de Inquérito. Posteriormente, ainda em 2008, a partir das conclusões apresentadas por uma Consultoria contratada pelo Banco Mundial com o objetivo de otimizar o PAS-CVM, foi editado o Decreto nº. 6.382/2008 que criou a Superintendência de Processos Sancionadores (“SPS”), que passaria a ser responsável por conduzir o PAS em conjunto com a Procuradoria Federal Especializada junto à CVM (“PFE-CVM”). Ainda nessa esteira, foi também editada a Deliberação CVM nº 538/2008, dispondo sobre os procedimentos adotados na apuração de atos ilegais e práticas não equitativas. Essas foram as mais recentes modificações relevantes no procedimento sancionador da autarquia, que permanece o mesmo até o momento da elaboração deste trabalho. Considerando-se que o Colegiado é uma área da CVM formada por seu Presidente e mais quatro Diretores, é de fácil compreensão o motivo pelo qual optou-se por retirar dele grande parte de suas atribuições vigentes no início dos anos 90. Uma vez que a área já é sobrecarregada com a função de julgamento de todos os PAS de todas as diversas superintendências da autarquia, não é difícil pressupor que ela se encontraria atualmente em situação calamitosa caso ainda fosse responsável pela a atribuição originária de condução de todos os atos investigativos e diligenciais do PAS-CVM. Dessa forma, é possível observar que em toda a evolução histórica até o presente momento o intuito foi sempre alcançar a melhor celeridade possível nas decisões através da separação das demais fases processuais por diferentes áreas da autarquia. A seguir será exposto como essas mudanças vêm ou não funcionando na prática. 23 2.2. O Rito Sumário O Rito Sumário é uma espécie de PAS e se encontra atualmente regido pela Instrução CVM nº 545/2014 (“ICVM 545”), sendo cabível somente nos casos de infração administrativa de natureza objetiva, isto é, quando não há necessidade de dilação probatória dos fatos imputados. São exemplos de infração objetiva, dentre outros elencados na referida instrução: (i) deixarem os administradores de carteiras de valores mobiliários de observar os prazos de apresentação de informações periódicas previstos na norma correspondente; e (ii) deixar o auditor independente de observar os prazos, previstos na norma específica, de apresentação de informações periódicas e eventuais e de comunicação à CVM de irregularidade relevante. Conforme se verifica, tais infrações são meramente de ordem formal, constantes expressamente de normas societárias, motivo pelo qual não se faz necessária a produção de provas. Diante disso, o PAS é instaurado e julgado pela própria Superintendência a que corresponda o mérito do processo (art. 2º da ICVM 545), justamente o que torna essa espécie de rito excepcional. Adicionalmente, em caso de condenação, as penalidades dessa modalidade se limitam a advertência ou multa que não ultrapasse o limite de R$ 100.000,00 por acusado (art. 4º, parágrafo único da ICVM 545). Para efeito de comparação, no Rito Ordinário o limite do valor da multa é de R$ 500.000,00 (Lei 6.385/76, art. 11, §1º, inciso I), além de existirem outras punições cabíveis, o que permite concluir que o Rito Sumário trata de infrações de menor potencial ofensivo. Em caso de condenação, é admissível recurso com efeito suspensivo junto ao Colegiado (ICVM 545, art. 5º) e de sua decisão, assim como no Rito Ordinário, caberá recurso, também com efeito suspensivo, ao CRSFN (ICVM 545, art. 6º). 24 É nesse momento quetoda a filosofia de celeridade do Rito Sumário cai por terra, uma vez que “embora sumário, o rito processual ora comentado conta, na verdade, com três instâncias administrativas: decisão monocrática do Superintendente, possibilidade de recurso ao Colegiado da Autarquia e, em seguida, nova oportunidade de recurso, desta vez ao CRSFN”31. Tal anomalia não se justifica ainda mais quando se destaca que esses processos envolvem infrações de menor potencial ofensivo, aos quais a multa máxima é de cem mil reais. Adicionalmente, o dano se torna ainda maior uma vez que existe a figura do efeito suspensivo dos recursos, que impede que as decisões exaradas pela Superintendência sejam executadas até que o Colegiado as analise e, posteriormente, que o que for decidido pelo Colegiado seja executado até que o Conselhinho decida. É esse tipo de posicionamento controverso das normas administrativas que descaracterizam a natureza dos procedimentos administrativos e, consequentemente, suas punições, como nesse caso ocorre com o Rito “Sumário”. 2.3. O Rito Ordinário Diferente do Rito Sumário, o Rito Ordinário trata das infrações mais graves, que dizem respeito a atos ilegais e práticas não equitativas, previstas no inciso V do artigo 9º da Lei 6.385/76. Por este motivo seu procedimento é naturalmente mais longo e as penalidades máximas são maiores, podendo ser, além da advertência, (i) multa não podendo exceder R$ 500.000,00, 50% do valor da emissão ou operação irregular, ou três vezes o valor da vantagem auferida ou perda evitada com o ilícito, (ii) suspensão do cargo de administrador ou conselheiro, e (iii) inabilitação temporária, (iv) suspensão ou (v) cassação de registro para atuar no mercado de valores mobiliários. 31 SANTOS, Alexandre Pinheiro dos; OSÓRIO, Fábio Medina; WELLISCH, Julya Sotto Mayor. Mercado de Capitais: Regime Sancionador. Rio de Janeiro: Editora Saraiva, 2012. Pg. 217 25 Quando se trata de CVM, a expressão PAS engloba duas fases processuais distintas: a fase investigativa, conhecida como Inquérito Administrativo (IA), onde são reunidos “elementos de materialidade e indícios de autoria necessários à caracterização do fato”32, e a fase propriamente processual, instaurada a partir da intimação do acusado para defesa, conhecida como PAS stricto sensu. Além disso, a partir do momento da intimação e até o julgamento, fica aberta a possibilidade de o acusado propor a celebração de Termo de Compromisso, em procedimento próprio que será visto mais adiante. 2.3.1. Fase Investigativa: Inquérito Administrativo Conforme mencionado, o IA é instaurado por ordem da SGE e conduzido conjuntamente pela SPS e PFE-CVM que, ao final devem apresentar relatório concluindo (i) pela inexistência de ato ilícito ou prescrição, pelo que recomendarão arquivamento, ou (ii) pela necessidade de instauração do processo, hipótese em que devem apresentar elementos base para a definição da autoria e materialidade dos ilícitos. Uma vez instaurado, o IA deverá ser concluído em regra num prazo de 90 dias, conforme o art. 4º da Deliberação CVM nº 538/2008, podendo, porém ser prorrogado mediante pedido motivado ao Superintendente da SGE “por período que este julgue adequado para a conclusão das investigações”. Inclusive, apesar de tal norma aparentar e efetivamente ser perigosamente subjetiva em sua permissividade, o STJ já se manifestou 33 no sentido de que mesmo uma eventual inobservância do prazo do inquérito não seria motivo para sua nulidade, uma vez que se trata de prazo de natureza dilatória. 32 PARENTE, Norma Jonssen. Tratado de Direito Empresarial - Mercado de Capitais vol. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. Pg. 661. 33 STJ: MS 9.807/DF, Relator Min. Paulo Galotti, 3ª Sessão, DJ 11-10-2007; e MS 7.962/DF, Relator Min. Vicente Leal, 3ª Seção, DJ 1º-7-2002 26 É nesse momento que se apresenta a primeira falha pela demasiada permissividade da norma administrativa. Não é difícil, àqueles que são acostumados a manusear autos de PAS-CVM, encontrar casos em que esse mesmo prazo foi estendido por mais de dez ou quinze vezes. Certamente que existem casos em que o volume de material a ser examinado é de tal ordem que tais dilações fazem-se necessárias, entretanto o que se critica aqui é a falta de critério para que se conceda tal exceção. Destaca-se que, inclusive, esse é um dos argumentos utilizados pela defesa dos acusados quando pedem por suas próprias dilações, que inevitavelmente, pela falta de critério, acabam sendo sempre deferidas pela CVM. Importa notar também, ainda, que no caso de haver necessidade de etapa investigativa, será assegurado o sigilo “necessário à elucidação dos fatos ou exigido pelo interesse público”, que também poderá justificar a divulgação da instauração do procedimento administrativo, termos dos parágrafos 2º e 3º do art. 9º da Lei 6.385/76. Além disso, conforme visto, desde a edição da Resolução CMN nº 2.785/2000, o Inquérito Administrativo tornou-se dispensável em hipóteses em que existam suficientes elementos de autoria e materialidade. Nesse caso, conforme o art. 8º da Deliberação CVM nº 538/2008, cabe ao Superintendente da área o oferecimento de Termo de Acusação diretamente ao Colegiado. Uma vez concluída a etapa investigativa, chega o momento da elaboração da peça acusatória, denominada Relatório de Acusação, da qual devem constar a qualificação do acusado, narrativa e materialidade dos fatos, análise de autoria com a individualização das condutas, dispositivos infringidos e proposta de comunicação do delito a outros órgãos, quando for o caso. Após formulada, o acusado é intimado a apresentar defesa no prazo de 30 dias. 27 2.3.2. Fase Contraditória: PAS Stricto Sensu Após a apresentação das defesas, os autos vão para o Colegiado e um Diretor Relator é sorteado. Ao recebê-los, caberá ao Diretor decidir pela procedência ou não do pedido de provas da defesa, assim como determinar a realização de diligências adicionais, se necessário. Não há prazo positivado para o julgamento, apesar de ser necessário respeitar o princípio da eficiência da administração pública, previsto no art. 37 da Constituição Federal, e o prazo prescricional. Quando pronta a decisão, o processo será julgado em sessão pública do Colegiado convocada com pelo menos quinze dias de antecedência, havendo a possibilidade de restrição do acesso de terceiros em caso de assunto cujo conteúdo possa prejudicar o interesse público. 2.3.3. Termo de Compromisso O Termo de Compromisso é previsto na própria Lei 6.385/76 em seu artigo 11, parágrafos 5º a 8º: “§5º A Comissão de Valores Mobiliários poderá, a seu exclusivo critério, se o interesse público permitir, suspender, em qualquer fase, o procedimento administrativo instaurado para a apuração de infrações da legislação do mercado de valores mobiliários, se o investigado ou acusado assinar termo de compromisso, obrigando-se a: I - cessar a prática de atividades ou atos considerados ilícitos pela Comissão de Valores Mobiliários; e II - corrigir as irregularidades apontadas, inclusive indenizando os prejuízos. §6º O compromisso a que se refere o parágrafo anterior não importará confissão quanto à matéria de fato, nem reconhecimento de ilicitude da conduta analisada. §7º O termo de compromisso deverá ser publicado no Diário Oficial da União, discriminando o prazo para cumprimento das obrigações eventualmente assumidas, e constituirá título executivo extrajudicial.§8º Não cumpridas as obrigações no prazo, a Comissão de Valores Mobiliários dará continuidade ao procedimento administrativo anteriormente suspenso, para a aplicação das penalidades cabíveis.” Inspirado no modelo de “consent decree” estadunidense, o Termo de Compromisso tem por objetivo procurar soluções que atendam ao mesmo tempo os interesses (i) da CVM, que poderá assim liberar recursos para 28 outras demandas, (ii) do acusado, que fica livre da mácula de eventual condenação, e (iii) de terceiros prejudicados, que passam a ter oportunidade de ressarcimento de maneira mais célere e segura. Desse modo, mais uma vez, ao disponibilizar essa alternativa procedimental ao acusado, o legislador deixa transparecer em seu trabalho uma aspiração pela celeridade. Isso se explica, na prática, uma vez que, assinado, esse Termo de Compromisso produz título executivo que pode ser executado já de imediato, diferente do que ocorre no procedimento normal em que os recursos com efeitos suspensivos demoram anos para serem julgados. Esse fenômeno produz em tese, como dito, uma maior segurança também para os lesados, que passam a ter uma maior garantia de que serão ressarcidos, sem ter que depender de longas esperas por julgamento. Com relação ao procedimento do Termo de Compromisso, bem lecionam Alexandre Pinheiro dos Santos, Fábio Medina Osório e Julya Sotto Mayor Wellisch: “A criação, no ano de 2005, do Comitê de Termo de Compromisso – órgão opinativo interno integrado pelo Superintendente Geral, por diversos outros Superintendentes da CVM e pelo Procurador-Chefe da PFE-CVM –, o qual é responsável pela análise prévia das propostas de ajustamento apresentadas pelos administrados sob o prisma da oportunidade e da conveniência, redundou em um sensível incremento da qualidade e da quantidade dos termos de compromisso celebrados. Com efeito, depois de ouvida a PFE-CVM a respeito da legalidade das propostas, os autos são encaminhados ao referido Comitê, que elabora um parecer pela aceitação ou rejeição do proposto e o submete ao Colegiado da Autarquia. Previamente à emissão do seu parecer, o Comitê pode, inclusive, na forma do §4º do art. 8º da Deliberação CVM n. 390/2001, negociar com o administrado interessado. Ou seja, muito embora a decisão final a respeito da aceitação ou não do termo de compromisso proposto compita ao Colegiado, existe todo um trabalho anterior de análise e preparação que, além de facilitar o trâmite da matéria e agregar-lhe valor, busca imprimir mais uniformidade e previsibilidade, sob as perspectivas de todos os envolvidos, com a emissão de opiniões coerentes, aderentes e precedentes do Colegiado e cada vez mais técnicas e apuradas.”34 Essa análise prévia executada pelo Comitê de Termo de Compromisso deve levar em conta, conforme o art. 9º da Deliberação CVM 34 SANTOS, Alexandre Pinheiro dos; OSÓRIO, Fábio Medina; WELLISCH, Julya Sotto Mayor. Mercado de Capitais: Regime Sancionador. Rio de Janeiro: Editora Saraiva, 2012. Pg. 249 29 390/01 “a oportunidade e a conveniência na celebração do compromisso, a natureza e a gravidade das infrações objeto do processo, os antecedentes dos acusados e a efetiva possibilidade de punição, no caso concreto”. Disso se conclui que, apesar de a decisão acerca da celebração do termo ser discricionária, esta deve ser devidamente fundamentada e justificada. A esse respeito, Norma Jonssen Parente, ex-diretora da CVM, leciona: “O juízo de conveniência e oportunidade deve ser exercido com cautela, a fim de não deixar casos relevantes sem julgamento e, assim, sem uma posição orientadora e educativa para o mercado do entendimento da CVM sobre o tema. Evidentemente, em casos relevantes, não se pode considerar nem oportuno nem conveniente o encerramento do processo por Termo de Compromisso”.35 [...] “No cumprimento do inc. II [do § 5º do art. 11 da Lei 6.385/76], devem ser calculados os prejuízos causados. Para fins de proteção do investidor, devem constar da proposta valores precisos de indenização para poderem ser cotejados com os valores dos prejuízos. Em casos de prejuízos financeiros causados à própria companhia, as demonstrações financeiras serão de grande valia para a apuração dos danos causados. Na impossibilidade de se identificar os prejudicados, tem-se a situação de danos difusos. Com indenização de danos difusos, a CVM deve dar efetividade ao Termo de Compromisso só aceitando valores que efetivamente sejam capazes de desestimular práticas futuras semelhantes pelo requerente ou por outros participantes do mercado. Nesse caso, e apenas nesse caso, o valor dos prejuízos poderá ser fundamentadamente estimado e destinado ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos, criado pela Lei 7.347/85, cuja finalidade é a compensação de danos causados à ordem econômica e a outros interesses difusos e coletivos”.36 Não obstante, a CVM com certa frequência toma medidas contraditórias no momento do juízo de conveniência dos Termos de Compromisso a ela apresentados, muitas vezes aceitando o acordo mesmo em casos relevantes e direcionando os valores pagos para o Fundo de Direitos Difusos mesmo em casos de prejuízo da companhia. Um exemplo dessa contradição está na comparação entre os casos da Aracruz (PAS 16/2008) e Sadia (PAS 18/2008), ambos versando sobre a responsabilidade de administradores das Companhias quanto ao descumprimento do dever de diligência (art. 153 da Lei 6.404/76). 35 PARENTE, Norma Jonssen. Tratado de Direito Empresarial - Mercado de Capitais vol. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. Pg. 686. 36 Ibid., Pg. 682. 30 Em ambos os casos o Comitê de Termo de Compromisso emitiu Parecer 37 recomendando a rejeição da Proposta de Termo de Compromisso (“PTC”) devido, principalmente, às “características que permeavam os casos”, ao “volume financeiro envolvido”, ao “contexto em que se verificaram as infrações imputadas aos proponentes” e à “especial gravidade das condutas consideradas ilícitas”. O Colegiado da autarquia, porém, ao deliberar sobre o Termo de Compromisso, decidiu de forma diferente em ambos os casos: No caso da PTC da Sadia, apreciada primeiro (25/08/2010), decidiu pela sua rejeição, acompanhando o entendimento do Comitê; Já no caso das PTCs da Aracruz (apreciadas em 28/08/2012), o Colegiado não acatou o parecer do Comitê, decidindo pela aceitação das propostas. O Caso Aracruz se mostra ainda mais surpreendente pela seguinte sequência de motivos: (i) a celebração de Termo de Compromisso com todos os dezessete acusados somou uma quantia de R$ 14,7 milhões 38 ; (ii) Conforme as demonstrações financeiras da Aracruz 39 , seu prejuízo financeiro em 2008 foi da ordem de R$ 4,2 bilhões; e (iii) O Colegiado determinou a destinação do valor recolhido ao Fundo de Direitos Difusos, embora, como dito, a situação do “dano difuso” só se afigure na impossibilidade de se identificar os prejudicados pelo suposto ilícito. Esse caso ora destacado infelizmente representa somente um entre os diversos exemplos de flagrante contradição da CVM no exercício do seu poder sancionador. Esse lapso ocasional acarreta uma perigosa insegurança jurídica que, como não é difícil de imaginar, se coloca como uma das principais barreiras na busca de uma maior eficácia do PAS-CVM no âmbito da proteção do mercado de capitais. 37 Parecer do Comitê de Termo de Compromisso no: (i) Caso Aracruz, apreciado em 28/08/2012: http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/decisoes/anexos/0007/7207-1.pdf,acessado em 25/05/2017; e (ii) Caso Sadia, apreciado em 25/08/2010: http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/decisoes/anexos/0006/7058-1.pdf, acessado em 25/05/2017. 38 Fonte: http://www.cvm.gov.br/termos_compromisso/index.html. Acesso em 31/05/2017. 39 Fonte: http://sistemas.cvm.gov.br/. Acesso em 31/05/2017. CAPÍTULO 3 – CRSFN: CONSELHO DE RECURSOS DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL 3.1. Criação e evolução do CRSFN O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional é um órgão especializado, de deliberação coletiva e integrante da estrutura do Ministério da Fazenda que foi criado em 15/03/1985, pelo Decreto nº. 91.152. Quando criado, possuía competência para analisar os recursos das decisões, “em processo administrativo sancionadores, do Banco Central do Brasil, da Comissão de Valores Mobiliários, do Banco Nacional de Habitação 40 , da Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil e, no caso de ´trading companies´, da Secretaria da Receita Federal”41. Classificado em seu Decreto fundador como “órgão de deliberação colegiada de segundo grau”42, o Conselhinho passou a integrar a segunda instância administrativa do Sistema Financeiro Nacional. Essa segunda instância já existia desde 1964, quando era exercida pelo CMN. Na época, o BACEN era o responsável por regular, fiscalizar e punir os ilícitos do mercado de valores mobiliários. Com a criação da CVM em 1976, o CMN passou a ser competente para rever também as decisões dessa autarquia. Conforme consta da Exposição de Motivos do Decreto 91.152/85 43 , a criação do CRSFN deu-se em razão (i) da falta de especialização dos membros do CMN, uma vez que o julgamento desses recursos exigiria um “meticuloso exame dos autos processuais, com a apreciação de matérias fática e probatória”, (ii) do número elevado de processos que “têm sobrecarregado, enormemente, a pauta de reuniões do Conselho Monetário Nacional, em prejuízo das atribuições, mais relevantes, relacionadas para 40 O BNH foi extinto em 1986 pelo Decreto-Lei 2.291/86 41 Fonte: http://fazenda.gov.br/orgaos/colegiados/crsfn/institucional/historico-e-competencia. Acesso em 25/05/2017. 42 Art. 1º do Decreto nº. 91.152/85 43 Cf. Exposição de Motivos do Decreto 91.152/85, criador do CRSFN. 32 a formulação da política de moeda e crédito”, e (iii) de uma tentativa de evitar que essas questões fossem parar no judiciário. Nesse sentido, durante o discurso de instalação do Conselho, destacou o então Ministro de Estado da Fazenda Francisco Dornelles: “A criação do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional responde assim à demanda do próprio mercado e do poder público por uma maior eficácia administrativa no trato de questões tão sensíveis e especializadas como são os recursos a penalidades aplicáveis no âmbito do mercado financeiro e de capitais [...] com a finalidade de julgar, em segunda e última instância, os recursos administrativos interpostos das decisões já mencionadas. Por outro lado, o órgão técnico paritário, congregando representantes do próprio mercado e do poder público regulador, será certamente o fórum adequado para a solução, a nível administrativo, de conflitos e litígios de interesse do mercado, podendo assim auxiliar na tarefa que, de outra forma, desaguaria necessariamente no poder judiciário (Arquivo CRSFN).”44 Além disso, ainda na Exposição de Motivos do Decreto 91.152/85, Dornelles afirma que a multiplicidade de atribuições do CMN estava prejudicando os interessados que buscavam rápida revisão das sanções administrativas a eles aplicadas, pelo que o CRSFN viria para proporcionar “maior eficácia administrativa no trato de questões tão sensíveis e especializadas como são os recursos a penalidades aplicáveis no âmbito do mercado financeiro e de capitais”. Com o tempo, o número de atribuições do CRSFN foi sendo aumentado, como no caso da Lei 9.069/95, que lhe deu competência para apreciar os recursos apresentados contra penalidades por "infrações à legislação cambial, de capitais estrangeiros, de crédito rural e industrial", e da Lei 9.447/97, que lhe incumbiu de julgar recursos interpostos contra medidas cautelares de processos administrativos do BACEN no caso de afastamento de administradores de instituição financeira e auditores independentes. Essas novas atribuições foram sobrecarregando cada vez 44 Fonte: http://fazenda.gov.br/orgaos/colegiados/crsfn/institucional/historico-e-competencia. Acessado em 25/05/2017 33 mais o órgão, que passou a ser extremamente moroso 45 e levou à recente edição de um Novo Regimento Interno, conforme será visto no item 3.3. Atualmente a competência do Conselhinho é determinada pelo Decreto 8.652/16 que lhe atribui como competência julgar os recursos referentes a decisões: “a) do Banco Central do Brasil relativas à aplicação de penalidade de cassação ou suspensão às sociedades de crédito imobiliário do Sistema Financeiro de Habitação (§2º do art. 43 da Lei n. 4.380 de 21 de agosto de 1964); b) que apliquem às empresas comerciais exportadoras a penalidade de cancelamento do Registro Especial na Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil (CACEX) e na Secretaria da Receita Federal; c) da Comissão de Valores Mobiliários em processo administrativo sancionador por infrações no mercado de valores mobiliários (§4º do art. 11 da Lei n. 6.385 de 7 de dezembro de 1976); d) do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), do Banco Central do Brasil, da Comissão de Valores Mobiliários e das demais autoridades administrativas competentes, no que tange a lei de prevenção à lavagem de bens e valores; e) do Banco Central do Brasil e da Comissão de Valores Mobiliários, relativas a infração às normas legais e regulamentares que regem o sistema de pagamentos brasileiro (parágrafo único do art. 9º da Lei nº 10.214, de 27 de março de 2001); f) do Banco Central do Brasil que apliquem penalidade de multa, suspensão ou inabilitação temporária para o exercício de cargos de direção na administração ou gerência em instituições financeiras, pelo descumprimento de normas legais ou regulamentares que contribuam para gerar indisciplina ou para afetar a normalidade do mercado financeiro e de capitais; g) do Banco Central do Brasil relacionadas à retificação de informações, à aplicação de multas e custos financeiros associados a recolhimento compulsório, ao encaixe obrigatório e ao direcionamento obrigatório de recursos; bem como as referentes à desclassificação e à descaracterização de operações de crédito rural; e h) do Banco Central do Brasil referentes à adoção de medidas cautelares que: (i) determinem o afastamento dos indiciados da administração dos negócios da instituição financeira, enquanto perdurar a apuração de suas responsabilidades; (ii) impeçam que os indiciados assumam quaisquer cargos de direção ou administração de instituições financeiras ou atuem como mandatários ou prepostos de diretores ou administradores dessas; (iii) imponham restrições às atividades da instituição financeira ou (iv) determinem à instituição financeira a substituição da empresa de auditoria contábil ou do auditor contábil independente (Decreto n. 7.277 de 26 de agosto de 2010)”.46 45 Vide item 4.2 do presente trabalho. 46 Fonte: http://fazenda.gov.br/orgaos/colegiados/crsfn/institucional/historico-e-competencia. Acessado em 25/05/2017. 34 3.2. Estrutura atual do Colegiadodo CRSFN O Conselhinho é classificado como um órgão paritário, uma vez que a composição do seu colegiado divide-se em representantes de instituições tanto governamentais como privadas. São dezesseis conselheiros, sendo oito titulares e oito suplentes. Entre as instituições governamentais o Ministério da Fazenda indica dois titulares e dois suplentes e a CVM e o BACEN indicam um titular e um suplente cada. A Portaria do Ministério da Fazenda nº 246/11 (alterada pela Portaria nº 423/11), estabelece as entidades do setor privado que indicam seus oito conselheiros, quatro titulares e quatro suplentes, de acordo com a seguinte distribuição: “I - titular: Federação Brasileira dos Bancos - FEBRABAN. Suplente: Conselho Consultivo do Ramo Crédito da Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB/CECO; II - titular: Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais - ANBIMA. Suplente: Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança - ABECIP; III - titular: Associação Nacional das Corretoras e Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários, Câmbio e Mercadorias - ANCORD. Suplente: Associação de Investidores no Mercado de Capitais - AMEC; e IV- titular: Associação Brasileira das Empresas de Capital Aberto - ABRASCA. Suplente: Instituto dos Auditores Independentes do Brasil - IBRACON”.47 Cabe aqui destacar que um dos pontos mais polêmicos com relação à credibilidade do CRSFN diz respeito justamente à atuação dos seus Conselheiros. Conforme destacam Cardinali e Covas a atividade desses conselheiros é voluntária, sem remuneração, podendo os membros oriundos do setor público continuar ou não a exercer cumulativamente as suas atividades em sua repartição de origem 48 . Disso decorre que as pessoas que têm a função de rever todas as decisões dos mercados financeiro e de 47 Art. 1º da Portaria do Ministério da Fazenda nº 246/11. 48 COVAS, Silvânio; CARDINALI, Adriana Laporta. O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional: Atribuições e Jurisprudência. São Paulo: Quartier Latin, 2008. Pg. 67. 35 capitais não têm dedicação exclusiva, visto que a ausência de contrapartida financeira obriga a acumulação de funções 49 . Junto ao CRSFN atuam procuradores da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (“PGFN”) designados pelo Procurador-Geral. Entre suas incumbências estão opinar sobre recursos, comparecer às sessões de julgamento e reuniões técnicas, bem como assessorar juridicamente a presidência do Conselho. A presidência do Conselhinho é ocupada por um dos conselheiros indicados pelo Ministério da Fazenda, enquanto a vice presidência é desempenhada por um conselheiro designado pelo Ministro de Estado da Fazenda dentre aqueles indicados pelas entidades privadas. 3.3. O Novo Regimento Interno do CRSFN Recentemente, em 29/02/2016, foi publicado o Novo Regimento Interno do CRSFN, aprovado pela Portaria MF nº 68, de 2016. As mudanças, segundo informações do próprio Ministério da Fazenda, se devem a acentuada morosidade do órgão no processo de análise dos seus recursos que, até a edição do novo regimento, demorava em média três anos e meio para ser concluído. Tais mudanças, então, vieram na tentativa de dar maior celeridade aos julgamentos, a partir de um novo procedimento que prevê um tempo máximo de um ano e três meses para a análise 50 . Essa redução foi possível graças às observações feitas especialmente no “Relatório de Atividades 2014”51, no qual o Ministério da Fazenda diagnosticou os principais defeitos do procedimento e sugeriu mudanças, muitas das quais foram incluídas no Novo Regimento Interno do CRSFN. 49 Este ponto será melhor abordado no item 4.1. 50 Segundo o Art. 48 do Novo Regimento Interno, nos 12 primeiros meses de sua vigência os prazos deveriam ser contados em dobro. Portanto apenas a partir de fevereiro de 2017 esses prazos entraram em vigor. 51 Relatório de Atividades do CRSFN de 2014, último divulgado pelo Ministério da Fazenda. 36 Uma das mudanças mais expressivas foi com relação ao parecer da PGFN 52 . Nos termos do referido relatório, notadamente o gargalo mais expressivo do Conselhinho referia-se ao “represamento de processos na PGFN aguardando parecer opinativo para seguir para sorteio e apreciação do relator”. Segundo comunicado53 do Ministério da Fazenda datado de 29/02/2016, dos 580 processos que o conselho possuía na época, 492 aguardavam o parecer da PGFN. Tal fenômeno, segundo o relatório, ocorria devido à obrigatoriedade do parecer da Procuradoria, o que não acontecia em outros órgãos, como no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”), onde esse parecer era facultativo, somente sendo produzido quando solicitado. Assim, o Novo Regimento, em seu artigo 15, passou a determinar que o relatório da PGFN somente seja elaborado em caso de requisição do Relator ou dos demais Conselheiros, devendo ser concluído em 180 dias. Essa modificação foi importantíssima pois, antes dela, o Diretor Relator do recurso somente era sorteado após o parecer da PGFN, que muitas vezes demorava muito mais de três anos, deixando o recurso completamente estagnado nesse ínterim. Com o Novo Regimento, sendo o parecer facultativo, o recurso é, assim que autuado no CRSFN, sorteado para um dos Conselheiros que já deve, desde já, iniciar sua análise, podendo posteriormente solicitar o parecer da PGFN desde que motivado, “com especificação da controvérsia jurídica a ser apreciada”54. Além dessa expressiva modificação, houve também a determinação da tramitação prioritária dos processos que envolvem aplicação de penalidade de inabilitação, hipótese em que os prazos serão cortados pela 52 Alexandre Pinheiro dos Santos et al. a respeito da tramitação dos recursos antes das mudanças impostas pelo Novo Regimento: “(...) uma vez autuado, o Recurso será encaminhado à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) que, por sua vez, emitirá parecer a respeito do caso, opinando, conforme o seu convencimento, pela manutenção ou reforma da decisão proferida pela CVM. Em seguida, e em sorteio público, o processo será distribuído a um Conselheiro, que funcionará como Relator do caso.” (SANTOS, Alexandre Pinheiro dos; OSÓRIO, Fábio Medina; WELLISCH, Julya Sotto Mayor. Mercado de Capitais: Regime Sancionador. Rio de Janeiro: Editora Saraiva, 2012. Pg. 211). 53 Disponível em http://www.fazenda.gov.br/noticias/2016/fevereiro/novo-regimento-do- 2018conselhinho2019-busca-maior-celeridade-nos-julgamentos. Acesso em 26/05/2017. 54 Caput do art. 15 do Novo Regimento Interno do CRSFN. 37 metade. Tal medida demonstra uma tentativa de solução para uma das principais críticas ao efeito suspensivo do recurso ao CRSFN: o caso em que um atuante do mercado é declarado inabilitado pela CVM e, ao ajuizar o recurso acaba ficando livre para atuar no mercado durante todo o período de apreciação, que muitas vezes é maior inclusive do que o tempo de inabilitação. Outra importante modificação, esta mais polêmica, foi o fim da figura dos recursos de ofício 55 , ou seja, aqueles recursos que eram impetrados automaticamente em caso de absolvição pela CVM. A polêmica reside no fato de que existem autores que defendem que esta espécie de recurso se trataria de um tipo de “reexame necessário”, sendo portanto um requisito de validade para que a decisão administrativa pudesse ser executada. Por outro lado, também há os que criticam
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