Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo ??????????? Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo Organizado por Universidade Luterana do Brasil Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Canoas, RS 2016 Luana Soares de Souza Odiombar do Amaral Rodrigues Maria Alice da Silva Braga Conselho Editorial EAD Andréa de Azevedo Eick Ângela da Rocha Rolla Astomiro Romais Claudiane Ramos Furtado Dóris Gedrat Honor de Almeida Neto Maria Cleidia Klein Oliveira Maria Lizete Schneider Luiz Carlos Specht Filho Vinicius Martins Flores Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem prévia autorização da ULBRA. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº 9.610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal. Dados técnicos do livro Diagramação: Samanta Feldens Gerhardt Revisão: Ane Sefrin Arduim Este livro, Literatura Brasileira II, viabiliza ao leitor uma viagem através do tempo. Tempo esse que se caracterizou por uma ebulição social indicativa de que era hora de parar de sonhar, de deixar de lado o indivi- dualismo, o misticismo, a religião, o subjetivismo e a negação da realidade cotidiana. No contexto histórico passam, então, a existir olhares críticos sobre a célere industrialização, provocada pela Revolução Industrial que se seguiu; as mudanças sociais que emergiam com o surgimento do telefone, do te- légrafo, da locomotiva a vapor, de novas fontes de energia adaptadas ao petróleo e à eletricidade. O inexplicável começa a ser explicado cientifica- mente com base na observação e na experimentação, por meio de doutri- nas como socialismo científico, positivismo, evolucionismo, determinismo e experimentalismo. Todas essas turbulências socioculturais norteiam as artes em geral (na Europa e em Portugal) para a necessidade de vislumbrar o mundo e a vida cotidiana – não mais por meio de uma percepção emocional-afetiva, mas de uma percepção realista, isto é, mais próxima do real momento vivido, fazendo surgir, na literatura e em outras artes, um novo estilo, ou seja, um estilo mais objetivo, mais racional, preocupado em, a partir da observação, dar conta da análise e da denúncia das injustiças sociais, de um romance de análise e de uma aceitação do determinismo científico. No Brasil, esse acordar surge bem mais tarde, principalmente a partir das consequências da Guerra do Paraguai, do movimento abolicionista, da possibilidade de instalação da República e da expansão do comércio exportador de café que dá origem ao fortalecimento na economia, fato que Apresentação Apresentação v passa a exigir mais trabalho livre e a abertura de espaço para as primeiras imigrações. Esse contexto histórico sociocultural, contudo, não surge e cessa com a escola literária chamada de Realismo, mas avança e evolui por meio de autores e de obras de períodos subsequentes como o Naturalismo, o Par- nasianismo, o Simbolismo e o Modernismo. É o redesenho de alguns fatos e acontecimentos desses períodos que o leitor poderá acompanhar a partir dos capítulos deste livro, que se inicia com o capítulo Realismo, no qual se encontra um exame detalhado do con- texto histórico-social e cultural, os principais escritores, as características e as obras europeias e nacionais de maior destaque do Realismo. No segundo capítulo, O romance de Machado de Assis, o foco con- centra-se na narrativa romanesca machadiana produzida na sua segunda fase. Também apresenta um panorama das características da prosa de Ma- chado de Assis nas suas duas etapas de produção ficcional. O conto machadiano, terceiro capítulo, dá conta de um estudo sobre o conto na produção de Machado de Assis, apresentando as características marcantes de sua contística, chamando a atenção, ainda, para pontos a ser observados para um entendimento mais específico desse gênero. O quarto capítulo, O Naturalismo, preocupa-se em analisar o estilo em prosa vigente na segunda metade do século XIX e estudar as origens do movimento naturalista, bem como suas obras e autores mais representati- vos (europeus e nacionais). Em Parnasianismo e Simbolismo, tema do quinto capítulo, são estuda- das as origens, o contexto histórico e os principais autores do Parnasianis- mo e do Simbolismo, por meio da análise de exemplos de suas produções mais importantes. Traçar um panorama da literatura no contexto do Brasil das primeiras décadas do século XX, a chamada literatura pré-modernista, sua origem e vi Apresentação principais características, destacando os principais escritores e suas obras é o objetivo do capítulo sexto, intitulado Pré-modernismo. O sétimo capítulo, Modernismo, aborda esse movimento, além de suas origens na Europa e de sua formação no Brasil, assim como as van- -guardas modernistas com suas principais características e ilustrações, com trechos de obras e comentários. O principal tema do oitavo capítulo é a Semana de Arte Moderna, incluindo sua expressão no Brasil, os movimentos identitários, principais escritores e os princípios que fundamentaram as mudanças no Brasil do início do século XX. O nono capítulo, intitulado A poesia modernista, detém-se no estudo da poesia moderna brasileira consolidada a partir da década de 1930, trazendo, também, exemplos de autores e comentário de suas obras. O estudo da prosa modernista, contemplada pelo romance da década de 1930, seu contexto histórico e cultural, bem como ilustrações de trechos de obras representativas, comentários e destaque para alguns escritores são preocupações contidas no último capítulo, intitulado A prosa modernista. Deve-se frisar que essa releitura não tem a pretensão de esgotar as temáticas sobre os períodos estudados, mas sim indicar caminhos capazes de nos desafiar a buscar outras referências que possam somar- -se e produzir novos conhecimentos sobre a fortuna crítica da literatura brasileira dessa época. Luana Soares de Souza É graduada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS (1984), bem como mestre (1992) e doutora (1998) em Letras pela mesma instituição, tendo como produções conhecidas na área os trabalhos A intertextualidade em Memorial do Convento, de José Saramago e Narrando a nação portuguesa. Atualmente, é professora da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Odiombar do Amaral Rodrigues É formado em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, RS (1970). Possui mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS (1986) e doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFGRS (1998). É professor de Literatura Brasileira da Universidade Lutera- na do Brasil (ULBRA) e professor aposentado da UFSM. Orienta trabalhos de conclusão de curso, bem como monografias do curso de especializa- ção. É autor de vários artigos e de capítulos em obras como: O tempo e o vento: personagens (org. Cícero Galeno Lopes); Vertentes poéticas de Mário Quintana (org. José Édil de Lima Alves); Eta mundo velho sem portei- ra (org. José Édil de Lima Alves) e Eva Luna: a guerrilheira da palavra (org. Márcia Hoppe Navarro). Tem diversos trabalhos publicados em congressos nacionais e internacionais. Sobre o Autor viii Sobre o Autor Maria Alice da Silva Braga É formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS (1997), bem como mestre em Teoria da Literatura (2000) e doutora em Crítica Genética (2005), ambas na mesma instituição. É, atualmente, professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Nessa universidade, trabalhanos cursos a distância no campus de Canoas. Orienta trabalhos de conclusão de curso, bem como monografias do curso de especialização. É autora de vários artigos e de capítulos em obras como: Erico Veríssimo: provinciano e universal (org. José Édil de Lima Alves); Mário Quintana: ironia, cotidiano e lirismo (org. José Édil de Lima Alves) e Narrativa: novos rumos (org. Edgar Roberto Kirchof); e é coautora do livro Cem anos sem Machado de Assis. 1 O Realismo ...........................................................................1 2 O Romance de Machado de Assis .......................................31 3 O Conto Machadiano .........................................................53 4 O Naturalismo....................................................................68 5 Parnasianismo e Simbolismo ...............................................93 6 Pré-modernismo ...............................................................120 7 Modernismo .....................................................................145 8 Semana de Arte Moderna .................................................162 9 A Poesia Modernista .........................................................177 10 A Prosa Modernista ...........................................................194 Sumário Luana Soares de Souza Capítulo 1 O Realismo 2 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo A partir da segunda metade do século XIX, as formas como o mundo e a literatura eram até então concebidos modificou-se progressivamente - de uma visão idealista da vida e da arte, característica do romantismo, passou-se para uma concepção mais realista e condizente com o cotidiano. A esta tendência, oposta à perspectiva romântica anterior, chamou-se Realismo, estilo que defendia a objetividade na descrição da sociedade e a revelação de seus conflitos com isenção e agudeza. Nascia uma nova escola literária baseada em uma visão mais racional e prática do homem e do seu universo social. Nesse momento, a intelectualidade rebelou-se contra a pieguice, o exagero e o nacionalismo ufanista precedentes, defendendo uma postura mais crítica diante dos acontecimentos contemporâneos. Com o objetivo de oferecermos subsídios básicos que au- xiliem na análise dos romances de leitura obrigatória na dis- ciplina Literatura Brasileira II, neste capítulo são examinados o contexto histórico-social e cultural da época e os principais escritores da escola literária do Realismo (europeu e nacional), com suas respectivas características e obras de maior destaque. Sem pretender esgotar o assunto, que é extenso, interessante e, por vezes, provocante, as ideias aqui arroladas enfatizam a necessidade de se conhecer o passado, em seus aspectos históricos, conjunturais e culturais, a fim de refletir sobre a sua participação no processo de produção do conhecimento e as subsequentes manifestações e transformações dos saberes ad- quiridos pela sociedade ao longo dos séculos. Capítulo 1 O Realismo 3 1.1 O surgimento do Realismo europeu Em um sentido restrito, o movimento literário do Realismo é caracterizado pela fiel representação artística da natureza e da sociedade. Num ponto de vista mais amplo, engloba toda manifestação estética que esteja baseada na reprodução da realidade, em contraposição à anterior arte inspirada na artifi- cialidade das estéticas do classicismo e a do romantismo. Essa composição literária e cultural foi predominante na França da segunda metade do século XIX, sendo, aos poucos, estendida a toda a Europa e a outros continentes. Para um me- lhor entendimento das suas formas de manifestação por meio dos textos, é importante, inicialmente, proceder-se a uma bre- ve contextualização das condições históricas, sociais, culturais, políticas e econômicas do período; a visão circunstanciada da época orientará o sequencial estudo da escola literária realista. Contexto histórico e sociocultural Desde a segunda metade do século XVIII, a economia mundial passou por profundas modificações com o início, na Inglater- ra, da Revolução Industrial. Esse foi um processo longo, lento e gradual, que muitos especialistas dividem em duas fases: a primeira, que vai de 1780 a 1850, denominada revolução do carvão e do ferro, e a segunda, de 1850 a 1914, a revolução do aço e da eletricidade. Intimamente relacionado à evolução do sistema capitalista, o desenvolvimento industrial se estendeu em várias e descon- tinuadas etapas ao centro-oeste europeu, aos Estados Unidos 4 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo e, posteriormente, a outras regiões. Apesar de sua não simul- taneidade, o processo de industrialização gerou forte impacto expansionista na economia e, em virtude dos mecanismos de acumulação de capital decorrentes, as novas nações industria- lizadas adquiriram evidente supremacia sobre outras que fica- ram à margem desse evento; criou-se, assim, um descompas- so crescente entre os países economicamente desenvolvidos e os demais, subdesenvolvidos e de economia dependente. Como resultado, houve o surgimento paulatino de novas for- mas de sociedade, de Estado e de pensamento que influíram, de modo diverso, em diferentes povos e culturas. As grandes alavancas para o desenvolvimento industrial foram a utilização da força hidráulica e do vapor, o maqui- nismo e uma nova divisão do trabalho, esta última respon- sável pelo incremento desmesurado da concentração urbana. Paralelamente a essas transformações econômicas, sociais e tecnológicas, houve a CONSOLIDAÇÃO DA BURGUESIA, cujos interesses estavam associados às mudanças e cuja base ideológica era ancorada no liberalismo político e econômico. Contudo, a Revolução Industrial, ao mesmo tempo em que promoveu a ascensão da classe burguesa, arregimentou os trabalhadores nos centros industriais em condições precárias de vida. Assim, se o processo de modernização decorrente das inovações políticas, sociais, econômicas e culturais trouxe grandes benefícios a um setor específico da sociedade, por outro lado não melhorou a vida da grande camada carente da população. Em consequência, a sociedade ficou dividida entre BURGUESES, donos dos meios de produção, e PROLE- Capítulo 1 O Realismo 5 TÁRIOS, que possuíam apenas sua força de trabalho. Essa acentuação da diferença entre pobres e ricos serviu para au- mentar as tensões político-sociais, já há tempos existentes em alguns países europeus. O uso de novos instrumentos e técnicas na lavoura oca- sionou a ruína dos pequenos proprietários de terra; parale- lamente, o ritmo veloz imposto à produção pelas novas tec- nologias resultou no gradativo desaparecimento do pequeno artesão, cujo trabalho era baseado na habilidade criativa e no sistema de corporações. Assim, a escassez de trabalho e a progressiva necessidade de trabalhadores para as no- vas indústrias resultaram no esvaziamento do meio rural e na expansão descontrolada dos aglomerados urbanos. Nes- tes, uma crescente mão de obra barata, faminta e doente, em busca de alternativas de sobrevi-vência, submetia-se a exaustivas e degradantes jornadas de trabalho e subsistiam em condições deploráveis. Tanto nas minas de carvão quan- to nas fábricas, o operário era submetido a uma disciplina de longas jornadas e à frequente possibilidade de demissão, mercê da flutuação do mercado de produtos industriais ou de matérias-primas. Esse contexto, no qual o trabalhador era tratado como mercadoria, sujeitando-se à máquina e à alie- nação, só aguçava os males sociais existentes. Para o empregador pertencente à burguesia, o novo sis- tema possibilitava um maior controle sobre os empregados e uma consequente exploração continuada e mais eficiente, cujo objetivo final era baratear ao máximo os custos da produção. Desse modo, o contingenteassalariado, composto em gran- de parte por mulheres e crianças de salário inferior ao dos 6 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo homens, expunha-se a extensas jornadas de trabalho, muitas vezes superiores a 14 horas diárias. Por sua vez, o ambiente de trabalho, via de regra, apresentava condições insalubres ou periculosas, o que facilitava a ocorrência de repetidos aciden- tes, como a mutilação ou a morte dos envolvidos. Consequentemente, o desenvolvimento da indústria, da forma como aconteceu, motivou o nascimento de uma classe operária que se organizava em associações não apenas de cooperação ou ajuda mútua, mas em incipientes sindicatos. Eles defendiam a condição social dos trabalhadores e reivindi- cavam melhores condições de vida, o que era possível a partir de maiores salários e menores jornadas de trabalho. Na luta contra a opressão imposta pela burguesia dominante, os sin- dicatos passaram a organizar greves que, muitas vezes, enve- redavam pelo caminho da violência, como ocorrido em Bristol, Inglaterra, em 1831, cujo movimento terminou em motim. Na mesma ocasião, os mineradores de carvão ingleses se uniram e, em protesto devido à redução salarial na renovação anual dos contratos de trabalho, deflagraram a greve de abril de 1831. Seguem-se várias outras ações grevistas, mas em geral fracassam e o movimento sindical entra numa fase de derrotas e de dificuldades. No decorrer da segunda metade do século XIX, o sindicalis- mo inglês passou a ser dirigido por trabalhadores qualificados, expandiu e se organizou em âmbito nacional. Também em ou- tras regiões da Europa os operários lutavam por melhores con- dições e propiciaram o surgimento de correntes políticas que se propunham a defender os direitos daqueles; dentre elas, a mais importante, por seus desdobramentos futuros, foi o movimento Capítulo 1 O Realismo 7 socialista alemão. Na França, em 1831 e 1834, aconteceram as insurreições do operariado de Lyon; em 15 de maio de 1848, trabalhadores franceses, julgando-se enganados por seus re- presentantes, invadiram a Assembleia em Paris, tentando dissol- vê-la em nome do povo. Em 1871, ocorreu a revolta popular conhecida como Comuna de Paris, considerada a primeira re- volução comunista da história, que instalou no país, de março a maio, um governo revolucionário de tipo socialista. Além das transformações sociais, o século XIX foi caracteri- zado pela luta pela emancipação política empreendida por vá- rios países europeus, cujas pretensões nacionais haviam sido frustradas pelos acordos do CONGRESSO DE VIENA (1814 a 1815). A restauração das monarquias por direito divino em quase todo o continente sufocou as aspirações dos movimen- tos nacionalistas e liberais que passaram a desafiar o sistema reinante. Povos de várias nações, notadamente da Alemanha, Bélgica, Itália, Suíça e países bálticos, tomados por forte senti- mento de nacionalidade, passaram a enfrentar o poder abso- luto das dinastias reinantes; como consequência, surgiram as novas nações europeias que, sob a égide do liberalismo, iriam desenvolver o continente e praticar uma política internacional de caráter colonialista. Lado a lado com as profundas mudanças políticas, econô- micas e sociais, as transformações se estenderam para outros campos da atividade humana e o homem, em contraponto ao pensamento preponderante dos séculos anteriores, começou a duvidar da existência de Deus. Essa mutação foi represen- tada por uma arte inovadora, revolucionária e imaginativa, por meio da qual o indivíduo revelou sua intimidade, sonhos 8 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo e fantasias. Em decorrência, houve o surgimento de correntes filosóficas e sociológicas baseadas no cientificismo, que iriam difundir seus postulados por todo o restante do século XIX e influenciariam futuras gerações e sua história. A concepção, de matriz positivista, propugnava que os saberes de cunho científico eram definitivos e, portanto, deveriam ser estendidos a todos os domínios do conhecimento, o que conferia às ciên- cias humanas um caráter materialista e empírico. As principais doutrinas desenvolvidas no período, de poder de atração per- durante, foram as seguintes1:  Socialismo utópico - baseado nas ideias de Robert Owen, Charles Fourier e do Conde de Saint-Simon so- bre reforma social, defende a administração coletiva dos meios de produção como condição para o igualitarismo. Seu maior teórico foi o filósofo e economista alemão Karl Marx (1818-1883). Contando com seu colabora- dor, Friedrich Engels (1820-1895), o pensador escreveu um livro em que estão esboçadas as proposições e pos- tulados dessa corrente: O manifesto comunista (1848). Os princípios desse texto seriam redimensionados em O capital - ensaio em três volumes, editados em 1867, 1885 e 1894, em que Marx enfatiza uma interpreta- ção socioeconômica da história, os conceitos de luta de classes, de igualdade social e de revolução socialista. Além disso, eles propunham a luta como sendo o único 1 Várias foram as correntes ideológicas surgidas ao longo do século XIX, das quais, pela importância que tiveram no desenvolvimento das modernas sociedades oci- dentais, merecem destaque as listadas, cuja apresentação está baseada em diver- sas fontes, principalmente nas obras de Salvatore D'Onofrio (1990) e de Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo (2001). Capítulo 1 O Realismo 9 caminho para a conquista de virtudes para os operários, dentro da convicção de que o capitalismo seria destruí- do por si próprio.  Evolucionismo - em 1859, o cientista inglês Charles Darwin revolucionou a ciência e escandalizou a Igreja ao lançar as ideias básicas de sua teoria no livro So- bre a origem das espécies2. O texto, de grande impacto no meio científico, evidencia o papel da seleção natu- ral no mecanismo da evolução. Segundo ele, o homem descende do macaco; portanto, não há nenhuma liga- ção entre o ser humano e a figura de Deus. Assim, o indivíduo passava a ser uma criatura sozinha em um mundo do qual não haveria transcendência para uma outra vida. Destinado a lutar para sobreviver, ele sofre- ria a influência do ambiente em que vive e da seleção natural; tal pressuposto acredita que os seres humanos mais fortes e mais adaptados ao seu meio são aqueles que subsistem na cadeia alimentar.  Positivismo - segundo Auguste Comte (1789-1857), o único conhecimento válido era o positivo, que pode ser comprovado praticamente; ou seja, aquele saber real, útil, preciso e orgânico, que se baseia na experiência e em fatos concretos. Para seu idealizador, todos os fe- nômenos humanos podem ser explicados pela ciência, devendo a compreensão ser buscada nas leis naturais, com base na observação e na comparação. A doutrina 2 On the origin of species by means of natural selection, or the Preservation of favoured races in the struggle for life (Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural ou A conservação das raças favorecidas na luta pela vida). 10 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo positivista, que exerceu importante influência no desen- volvimento da futura filosofia analítica, tem sua base te- órica nos tópicos seguintes: 1. O conhecimento decorre de dados "positivos" advin- dos da experiência, devendo o estudioso limitar-se à análise dos mesmos; 2. As ideias devem se relacionar em um campo formal, formado pela lógica pura e pela matemática; e 3. A informação transcendental fornecida, por exemplo, pela metafísica, pela Teologia ou pela especulação não crítica, deve ser rejeitada, uma vez que não é passível de verificação prática.  Determinismo - teoria filosófica oposta à do livre-ar- bítrio, considera que tudo no universo, inclusive o com- portamento pessoal, está submetido a regras imutáveisdecorrentes de causas anteriores; em consequência, o ser humano estaria limitado em suas opções, sendo pri- vado da liberdade de escolha e incapaz de influir nos acontecimentos de que participa. Formulada, em seu sentido moderno, durante o século XIX, considera que a conduta humana está vinculada a três fatores: a raça, o contexto histórico e o meio social. O primeiro, de cará- ter genético, diz respeito ao conjunto de disposições ina- tas e hereditárias do indivíduo; o segundo, relativo ao momento presente, afirma que ele representa o legado de uma herança secular; o último estabelece que, num determinado processo histórico, o momento presente está condicionado pelo que o precede e pelo elemento Capítulo 1 O Realismo 11 sucessor. De acordo com essa doutrina, qualquer fato decorre de uma causa; havendo esta, o resultado será invariável, sem ser afetado pelas contingências existen- tes. Como nos demais domínios do conhecimento, no campo das artes plásticas, o Realismo constitui um estilo oposto à visão idealista e à artificialidade do classicismo e do romantismo; ele defende a arte como a reprodutora fiel e meticulosa da nature- za e da sociedade. Essa nova perspectiva pictórica surgiu com os trabalhos de um grupo de pintores franceses estabelecidos no interior do país com o propósito de reproduzir a realidade local. Dentre eles se destaca a figura de Jean-François Millet (1814-1875), cujas telas representam os trabalhadores rurais, retratados de forma objetiva, sem sentimentalismos ou ideali- zações românticas. Entretanto, o primeiro artista a praticar e divulgar a plástica realista foi Gustave Courbet (1819-1877), que transpôs para a tela aspectos retirados do cotidiano do campesinato e do operariado francês. Quando a exibição de seus quadros foi vetada pela Exposição Universal, realizada em Paris em 1855, ele reagiu montando, em barracas, uma exposição paralela de um conjunto de quarenta e quatro obras, que denominou de Realismo Courbet. Assim, teve início, oficialmente, a corrente realista das artes plásticas, movimento com grande influência no século seguinte e com reflexos em movimentos artísticos importantes, como o alemão nova objetividade e o Realismo socialista, adotado como estética oficial na União Soviética. 12 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo Na literatura, a narrativa realista, em contraposição ao ide- alismo e subjetivismo anteriores, tem o cotidiano como tema, a caracterização precisa das personagens como meta e a obje- tividade descritiva como forma. Antítese das correntes român- ticas, exaltadoras dos sentimentos e das virtudes humanas, os textos do Realismo assumem as perspectivas deterministas e positivistas, defendem posições liberais e anti-religiosas e des- crevem a sociedade com todas as suas mazelas e contradições. Em um momento de mudanças tecnológicas e de contestações filosóficas, esses princípios simbolizam a arte literária europeia da segunda metade do século XIX. Escritores realistas3 No âmbito literário, não obstante a publicação anterior das primeiras edições do conjunto de textos que compõem A co- média humana, a nova estética teria sua formação efetiva, ins- pirada pela pintura de Gustave Courbet, apenas na década de 1850. Em 1857, o jornalista francês Jules-François-Félix- -Husson Champfleury divulgou o trabalho do pintor e, por meio de ensaios publicados na revista Le Réalisme, transpôs os conceitos pictóricos do artista para a literatura. Entre a série de orientações fundamentais divulgadas pelo novo movimento, a mais importante se refere ao confronto e superação do esta- 3 As fontes de consulta sobre a estética do Realismo e seus principais integrantes são incontáveis, com abordagens diversificadas e de qualidade variável. Dentre os textos em língua portuguesa, merecem destaque as obras de Salvatore D'Onofrio (1990), Alfredo Bosi (1994) e Sergius Gonzaga (2007), que serviram de base para o presente item. Capítulo 1 O Realismo 13 do de alienação representado pelas obras ultrarromânticas do período precedente. Assim, apesar da primitiva e incontestável proposta realista ser posterior, a estrutura da escrita romanesca do Realismo é iniciada com os textos de Honoré de Balzac (1799-1850) e de Stendhald4. Eles foram os precursores na descrição da vida real com os seus problemas, suas dificuldades e seus conflitos morais, ultrapassando, dessa forma, as barreiras irrealistas, místicas e mitificadoras do Romantismo. O primeiro autor re- presenta cenas do cotidiano de integrantes de todo o espec- tro social francês do século XIX, descrevendo minuciosamente as classes sociais, as profissões, as vivências e os modos de pensar e de agir dos trabalhadores. No prefácio de A comé- dia humana, Balzac expressou sua opinião de que a literatura deve ter representatividade histórica e descrever, com espírito analítico, os costumes, os vícios, as virtudes e as paixões, que caracterizam o comportamento humano na vida em socieda- de. Stendhal, por sua vez, escreveu textos de fundo histórico e político nos quais descreve uma época de promessas e expec- tativas insatisfeitas em um grupo social medíocre e hipócrita. Além desses aspectos, é importante ressaltar na obra do escri- tor de textos como O vermelho e o negro (1830) e A cartuxa de Parma (1840) a notável e penetrante descrição analítica e a complexidade psicológica das personagens que é revelada em detalhes. 4 Stendhal é um dos muitos pseudônimos usados por Marie-Henri Beyle (1783- 1842), mediante o qual o autor ficou posteriormente conhecido. 14 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo No mesmo ano da veiculação dos textos de Champfleury, a ficção realista em prosa é formalmente consolidada com a publicação do romance Madame Bovary (1857), de Gusta- ve Flaubert (1821-1880). Nele, o narrador tenta adotar uma posição de distanciamento para poder descrever, de maneira fria e minuciosa, os costumes, as relações sociais e familiares, os conflitos interiores e as crises das instituições. Ao buscar no mundo real a matéria útil para a preparação de sua história, o autor aproximou-se dos métodos de observação científica em voga na época, notadamente do positivismo. Nessa história, todos os temas apresentados são concretos, encarados de ma- neira objetiva e mostrados como momentos apreendidos no tempo e no espaço. A narrativa apresenta como enredo as experiências adúl- teras de uma jovem e infeliz mulher da classe média, Emma, casada com Charles Bovary, um médico tacanho da província. Entediada com sua vida conjugal, ela buscava um consolo para sua existência vazia na leitura de romances fugazes da literatura romântica. Angustiada frente a um destino repleto de insatisfações, a protagonista se depara com o fim de suas ilusões e com a aceitação penosa e irreversível de seu convívio junto ao marido, que se revelara tão diferente das histórias lidas. Segundo Flaubert e Nabuco1, Antes de casar, Emma julgara sentir amor; mas a felicida- de que deveria resultar desse amor não aparecera, pelo que se deveria ter enganado, pensava ela. Procurava agora saber o que se entendia, ao certo, nesta vida, pe- las palavras felicidade, paixão e êxtase, que, nos livros, lhe haviam parecido tão belas. Capítulo 1 O Realismo 15 No contato com uma realidade pouco gratificante, a per- sonagem se certifica de alguns aspectos da personalidade do marido que a incomodam e o narrador constata que a situa- ção existencial da jovem se torna cada vez mais desesperado- ra, pois suas expectativas interiores, calcadas na idealização e no sonho, são eliminadas pela vida exterior. Ao destroçar os sonhos de Emma, Flaubert caracteriza a impotência e a aliena- ção românticas diante dos princípios da realidade, representa- dos por situações grosseiras epouco gratificantes. Considerado um modelo de construção romanesca, a obra do escritor francês, na época de seu lançamento, causou gran- de impacto e gerou uma onda de indignação por todo o conti- nente europeu. Acusado de atentado ao pudor e imoralidade, o romancista foi processado e, mesmo sendo absolvido, foi censurado por diretores de grandes periódicos e por críticos. Entretanto, a importância do romance na literatura é tão signi- ficativa que, posteriormente, o termo bovarismo passou a ser usado para designar a tendência romântica que certas pessoas possuem de fuga da realidade cotidiana para uma vida irreal e imaginativa. Além da França, o movimento do Realismo também tem re- presentantes ilustres e influentes em outros países europeus. Na Rússia, destacam-se as figuras de Leo Tolstói5 (1828-1910) e Fyodor Dostoyevsky (1821-1881); o primeiro, sensível à injus- tiça na sociedade e à barbárie de seu tempo, escreveu os mo- numentais romances Guerra e paz (1865-1869) e Ana Karenina 5 Lev Nikolaievitch, conde de Tolstoi, também conhecido como Leo Tolstoy ou Leão Tolstoi. 16 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo (1875-1877). O segundo, autor de Crime e castigo (1866), é um escritor que analisou as tensões sociais e o destino do ho- mem e que ainda desperta fascínio pelos conflitos das perso- nagens e pela passionalidade de seus enredos. Na Inglaterra, William M. Thackeray (1811-1863), escritor de A feira das vai- dades (1847), destaca-se pela sua visão crítica das convenções sociais; Charles Dickens (1812-1870), autor de Tempos difíceis (1854), é responsável por uma obra repleta de mistério na qual narra os horrores das escolas, asilos e prisões inglesas. Em Por- tugal, Eça de Queirós (1845-1900), por meio de textos como O crime do Padre Amaro (1875), O primo Basílio (1878) e Os Maias (1888), enfatiza o universo burguês e faz uma crítica im- piedosa e ácida dos costumes da época. No conjunto das narrativas citadas, o movimento literário do Realismo está caracterizado por uma visão materialista da vida, usada para representar uma realidade concreta e veri- ficável empiricamente. É uma literatura livre e não religiosa, que visa a representação fiel da sociedade com suas virtu- des e defeitos, seus costumes e problemas. Os elementos do mundo real são colhidos por um narrador neutro que, a partir da observação e da experiência, analisa psicologicamente as personagens para poder enfocar, de forma isenta, o homem comum, vitimado por seus problemas cotidianos. Na esfera da atuação social, a narrativa literária realista busca permear as histórias de uma índole liberal e reformista para, por meio dos textos, agir sobre uma sociedade que pos- sui uma série de disfunções culturais, políticas e sociais. Decor- re daí a eleição dos seus temas dominantes: educação, adul- tério, agiotagem, corrupção, arrivismo, culto das aparências Capítulo 1 O Realismo 17 e a degradação do sentimento amoroso. Em consequência, o escritor focaliza a vida familiar e seus episódios domésticos e íntimos; a vida social, em seus atos e rituais públicos; a vida econômica, com suas diferenças de classes; e a vida cultural, com suas convenções e modismos. 1.2 O surgimento do Realismo no Brasil (1881-1893) A Independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, apesar de rom-per os laços políticos com Portugal, não superou os vín- culos culturais que nos mantinham ligados à Europa. Assim, o país procurou copiar o modelo político inglês, ao mesmo tempo em que continuava a receber grande influência francesa e por- tuguesa no campo literário, inspiração que alcançou as escolas do romantismo, Realismo, Naturalismo e Parnasianismo. O romantismo, como reação aos modelos clássicos an- teriores, foi um movimento de combate ao absolutismo e de defesa das liberdades política e econômica, no qual o foco era o triunfo da imaginação sobre a razão, e foi preponderante durante todo o Primeiro Reinado e o Período Regencial. Entre- tanto, enquanto a estética romântica europeia priorizava a he- roicidade da Idade Média, os ficcionistas e poetas brasileiros, em busca de uma temática nacional, recorreram à idealização indígena, movimento cujo apogeu ocorre entre 1840 e 1870. Porém, com as profundas convulsões políticas e sociais ocor- ridas no Segundo Reinado, no qual se destacam as revoltas internas, as intervenções no Prata e a Guerra do Paraguai, já 18 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo não havia mais espaço para os excessos do sentimentalismo romântico; assim, a partir da década de 70, outra perspectiva começa a se desenvolver no Brasil, influenciada pelas novas correntes literárias europeias. É o Realismo, movimento que teve na Escola de Direito de Recife seu centro de irradiação e em Tobias Barreto (1839-1889) e Sílvio Romero (1851-1914) seus principais divulgadores. Contexto histórico e sociocultural Durante o Segundo Reinado (1840-1889), apesar dos esfor- ços de modernização representados pelo universo urbano, pelo desenvolvimento do comércio e pelo início da industriali- zação, a disparidade entre o atraso e a modernidade persistia no Brasil. Por outro lado, a efervescência do quadro político provocada, entre outros fatores, pelos movimentos abolicio- nista e republicano, pela Questão Religiosa e pela Abolição – prenúncios da queda do Império – serviria para acentuar a disparidade, e não para superá-la. A supremacia da oligarquia agrária, segmento que "gover- nava" a economia e a política no país e que perdurou mesmo após a proibição do tráfico negreiro (1850), a Lei do Ven- tre Livre (1871) e a Lei dos Sexagenários (1885), constituíam um dos fundamentos da incoerência nacional do período. Do ponto de vista econômico, o Brasil mantinha uma estrutura baseada no latifúndio e na monocultura da produção de café voltada para a exportação; na política, senadores e deputados dos partidos Liberal e Conservador revezavam-se no poder, mas sempre obedecendo aos interesses da classe dominante. Capítulo 1 O Realismo 19 Em contraposição às estagnações econômica e política, aumenta a insatisfação da classe média urbana e, em janeiro de 1880, ocorreu no Rio de Janeiro a REVOLTA DO VINTÉM, reação popular contra a taxa que incidia sobre o transporte urbano e que havia sido repassada para o usuário. A conse- quência foi a destruição de bondes e uma repressão policial violenta que resultou em muitos mortos e feridos. O motim, apoiado pelos jornais abolicionistas, teve grande influência no período, uma vez que possibilitou o aparecimento de novos atores no cenário político; os debates políticos, antes restritos ao ambiente parlamentar, ganharam as ruas. Entretanto, na sua luta contra a desgastada monarquia, essa nova voz, sem representatividade política, apoia-se no Exército e na liderança dos cafeicultores paulistas, não dependentes do trabalho es- cravo, substituído pela atuação do imigrante europeu. Em 1889, a Proclamação da República aparenta ser a so- lução para os problemas políticos e econômicos do país; no entanto, as perspectivas e ambições da classe média e das For- ças Armadas foram frustradas. Por meio do sistema de alian- ças denominado política do café-com-leite, representantes das oligarquias paulistas e mineiras passaram a controlar o Estado brasileiro e a se alternar no poder. Configurava-se, dessa for- ma, um país que convivia com ideias modernas importadas da Europa e com a ultrapassada organização econômica corone- lista, latifundiária e conservadora que perdurou durante toda a República Velha (1889-1930). 20 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo Origens do Realismo no Brasil Similarmente ao romantismo, em que a temática nacional diferia da de outros países, também no caso do Realismo o movimento brasileiro nãoseguiu o forte padrão ideológico que caracterizou o europeu; aqui, de forma mais abrangente, foi considerada realista a tendência anti-romântica surgida em meados do sé- culo XIX. No caso da literatura, sua origem pode ser buscada nas produções de escritores e dramaturgos românticos urbanos e de sertanistas que escreveram textos entremeados de alguns dos pressupostos ideológicos e estéticos do Realismo. Mesmo atrelados à questão da identidade nacional, esses romances, a exemplo da poesia social dos últimos poetas românticos como Castro Alves e Sousândrade, ocupam a posição de anunciado- res da nova estética que se configurava nas letras brasileiras. Ao lado do texto narrativo, a dramaturgia romântica tem em Juiz de paz na roça (1838), de Martins Pena, uma sátira em torno dos tipos e situações das províncias afastadas da Corte, um exemplo de concretização de um dos principais objetivos do Realismo: mostrar as múltiplas facetas da sociedade da época. Nessa história, que é considerada a primeira comédia de cos- tumes do teatro nacional, os hábitos das pessoas simples eram revelados e seus problemas vistos através da lente da ironia. Em suas peças teatrais, o dramaturgo tem como temas predo- minantes o autoritarismo, a corrupção, a exploração e a as- censão social; na obra Os dois ou o inglês maquinista (1871), por exemplo, ridicularizam a hipocrisia, a corrupção e o opor- -tunismo, sempre presentes na vida social brasileira. Na prosa de caráter urbano, o romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, publi- Capítulo 1 O Realismo 21 cado em forma de folhetim em A pacotilha (1852-1853), su- plemento semanal do Correio Mercantil, é uma crônica de costumes populares, que registra a vida da classe média ca- rioca na época de D. João VI. Para alguns críticos, o conteúdo humorístico, a troça aos princípios românticos e a descrição dos hábitos familiares permitem definir o texto como sendo a inauguração do Realismo brasileiro. Contudo, algumas carac- terísticas dessa estética não estão presentes na obra, como a busca da perfeição formal, a análise psicológica em profundi- dade das personagens e a objetividade narrativa. Em sua maior parte, as narrativas e os dramas românticos publicados no início do século XIX procuraram traduzir, mesmo que de uma forma tímida, o Brasil arcaico, citadino e rural, colocando-o como matéria de ficção. Assim, começavam a ser conteúdo da prosa as questões sociais que exibiam as con- tradições, a complexidade e os problemas da implantação da modernidade no país. Era o prenúncio da ruptura artística com os ideais do romantismo e a consequente emergência de novos temas a serem representados. O meio cultural, frente às mu- danças que transcorriam, buscava desenvolver e divulgar uma nova consciência social que espelhasse a progressista maneira de pensar. As transformações começariam a acontecer, a partir de 1870, com a Escola de Direito de Recife, liderada por To- bias Barreto e seus seguidores. Sua proposta veria o contexto e os processos desencadeados como "um bando de ideias novas que esvoaçou sobre nós de todos os pontos do horizonte2. Por sua vez, o conto regional brasileiro do final do período romântico descreve o cotidiano do homem campesino numa linguagem mais simples e mais próxima da popular, forma 22 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo nunca antes utilizada. Ao contrário das narrativas idealistas anteriores, que enfatizavam a cor local e o pitoresco de cada região, o texto pós-romântico regionalista tinha uma função documental sobre os gritantes contrastes existentes entre a vida na cidade e no campo. Neste último espaço, dentro de uma perspectiva determinista, as personagens eram apresentadas como sendo produtos do meio em que viviam, das raças a que pertenciam e do contexto histórico local. Nesse período de transição, dois escritores merecem desta- que: Alfredo d'Escragnolle Taunay, visconde de Taunay (1843- 1899), e Franklin Távora (1842-1888). O primeiro, político, escritor e membro fundador da Academia Brasileira de Letras, situa-se no romantismo pela sua visão de mundo e, na estéti- ca realista, por sua capacidade de observação e análise dos aspectos integrantes da narrativa. Sua obra mais conhecida, escrita em língua portuguesa, é o romance Inocência (1872), na qual uma história de amor no interior do Brasil se une à descrição realista dos costumes, tipos e cenários da vida ser- taneja6. O segundo, defensor de um regionalismo extremado, buscou os temas e cenários de sua obra no sertão nordestino. Em O cabeleira (1876), seu mais conhecido romance, escrito em tom de manifesto, apresenta o regime de latifúndio e a seca como responsáveis pela miséria e migrações locais, con- dições que favorecem o cangaço. A materialização dos pressupostos da estética realista se estendeu aos diferentes campos do conhecimento e promoveu 6 Outra obra famosa do autor é A retirada da Laguna (1871), em que relata o cé- lebre episódio da Guerra do Paraguai. Esta, contudo, foi escrita em língua francesa, sendo traduzida para o português por seu filho Capítulo 1 O Realismo 23 uma conscientização da comunidade intelectual que intensifi- cou sua crítica à sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, mui- tos de seus integrantes, dotados de interesse real e objetivo pe- los problemas nacionais, buscavam ampliar sua participação na vida política nacional como forma de encontrar soluções para nosso atraso sociocultural. Entretanto, apesar de tantas e profundas mudanças no pensamento da vanguarda intelectual brasileira, o escritor mais importante do período, Machado de Assis, zombava das novidades literárias e, em muitas de suas obras, adota a intertextualidade para, assim, poder utilizar al- gumas das técnicas narrativas românticas para ironizar o de- clínio de valores da sociedade oitocentista. 1.3 Características da literatura realista A historiografia literária denominou de Realismo a doutrina estética baseada na reprodução da realidade, que, como já apresentamos, teve como precursores os romances de Honoré de Balzac e Stendhal, mas cujo desenvolvimento efetivo se deu na segunda metade do século XIX. Durante seu apogeu, pre- dominou no pensamento ficcional uma concepção de mundo singular, narrada através de uma linguagem coloquial e não artificiosa que tinha como meta a objetividade crítica na des- crição da história das personagens. Para o autor realista, os universos físicos e sociais deveriam ser analisados em si mes- mos, sem a idealização, o sentimentalismo ou o tom confessio- nal encontrados nas histórias do romantismo. 24 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo No entanto, o interesse literário pela realidade não é pri- vilégio da nova manifestação artística; desde muito que au- tores pertencentes a outros movimentos já se utilizavam dela para descreverem episódios históricos e exaltarem os feitos das personagens envolvidas. Seus relatos, porém, não seguiam os princípios do cientificismo e não se subordinavam à necessida- de, defendida pelos realistas, de conferirem verdade e contem- poraneidade ao seu trabalho. Dessa forma, a obra era reves- tida de artificialidade e subjetividade, com o intuito de permitir ao receptor a liberação de suas emoções e fantasias. Quanto à estética do Realismo, a análise das suas caracte- rísticas, bem como do tempo e do espaço em que a mesma se desenvolveu, permite constatar que esses fatores influenciaram, de forma marcante, a nova forma de perceber e representar a vida e o universo. O contexto histórico-social do período era tenso, propiciado pelo aparecimento de indivíduos engajados na luta contra o capitalismo crescente e em defesa da classe operária, explorada por uma burguesia insensível e cada vez mais instalada no poder. Diantedesses fatos, era difícil para o autor preocupado com a situação vigente produzir romances de temática leve ou descompromissada com a realidade diá- ria. Era preciso alertar o leitor sobre o panorama social e sobre a luta reformista que começava a ser empreendida. Ao lado do contexto econômico e social, no período tam- bém se verifica a ascensão do método científico como ins- trumento de análise para o conhecimento do real; é a vitória do pensamento racionalista e crítico sobre o idealismo e a tradição romântica. Em consequência, a literatura começa a derivar seus critérios para a construção de uma prosa ficcional Capítulo 1 O Realismo 25 regida pela realidade e pelo rigor cientificista. Influenciados pelas novas teorias científicas e sociológicas, os escritores pas- sam a adotar uma visão mais materialista do mundo, usada para descrever fatos concretos de forma precisa, rejeitando, assim, a escrita metafísica e suprassensível anterior. A verdade psicológica das personagens passa a se ater ao princípio de causalidade; a criação do ambiente, ao cotidiano; a história, à correta observação da sociedade em seus pormenores. Para a representação dessa efervescente atmosfera social, o romance se sobressai aos demais gêneros literários na aborda- gem dos costumes regionais e urbanos, na descrição dos cos- tumes da burguesia, na denúncia das péssimas condições de trabalho do operariado e na análise crítica da coletividade e de seus integrantes. As narrativas desses acontecimentos e ca- racteres seriam projetadas no chamado romance de tese, que pretende defender uma ideia e ser um retrato de época; é a arte engajada, usada como meio de conscientização do leitor. No Realismo, o romancista, inspirado no positivismo e no determinismo científico, tem como projeto a reprodução fiel do mundo real e dos acontecimentos contemporâneos, que permite a criação de uma história passível de acontecer. Para isso, ele lança mão da observação, da experiência e da do- cumentação conseguidas por meio de registros, informações, pesquisas e entrevistas que forneçam um panorama da vida em seus mais diversos fenômenos sociais, com suas respecti- vas causas e consequências. Acrescenta-se a essa característica as de objetividade e im- parcialidade, em que o escritor deve manter-se afastado da 26 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo narrativa e neutro em relação às ideias e visões das persona- gens. Assim, ele adota um ângulo de visão impessoal, desli- gando-se de referências íntimas e juízos de valor. Destarte, nos textos predomina o emprego da terceira pessoa – tal técnica transmite ao receptor a impressão de que os elementos da história não recebem interferências do narrador. E, como o leitor deve ser capaz de montar uma ideia que seja a mais exa- ta possível do universo observado, cabe ao autor fornecer ao mesmo descrições carregadas de apelos sensoriais que permi- tam configurar a cena apresentada, revelando, dessa forma, um verdadeiro culto aos sentidos. Na observação das ações humanas, o movimento estético do Realismo se vale dos preceitos racionalistas, segundo os quais só a razão pode assegurar o conhecimento verdadeiro, para proceder à investigação objetiva das personagens como agentes de grupos da sociedade, resultando na análise psico- lógica e na tipificação social. Por meio da primeira, chega-se ao entendimento das motivações pessoais em suas relações com o meio e o momento histórico; pela caracterização social, seus gestos, falas e conflitos são interpretados como represen- tações do grupo ao qual pertencem. Impelidos pela necessidade de fornecer verossimilhança ao texto, os autores realistas escrevem sobre fatos, situações e figuras do dia a dia e, ainda que os elementos imaginosos constituam a essência da obra, procuram estabelecer nexo e harmonia aos fatos e atos. Assim sendo, e premidos pelo imperativo da descrição detalhada do espaço, do tempo e das personagens, sua narrativa torna-se lenta, sendo a histó- ria constantemente interrompida por informações analíticas e Capítulo 1 O Realismo 27 descritivas. Além desses aspectos, a forma de expressão possui outros elementos, como a clareza, equilíbrio e harmonia na composição; a preocupação com a perfeição formal e uma linguagem natural e sem requintes linguísticos. Quanto ao conteúdo, a obra dessa estética é caracterizada pela:  Representação do amor como um sentimento subordi- nado a interesses sociais e a instituição do casamento como um arranjo de conveniência;  Composição do protagonista como um herói problemá- tico que vive em um mundo em crise de valores. E, em- bora ele possa vir a atingir seus objetivos, será mostrado ao leitor como um indivíduo derrotado;  Apresentação das características, conflitos e sentimentos internos das personagens por meio da introspecção psi- cológica; e  Crítica aos valores e às instituições predominantes na sociedade burguesa. Em suma, a segunda metade do século XIX é marcada por grandes mudanças sociais advindas das transformações eco- nômicas e das técnicas resultantes da Revolução Industrial. Com a industrialização, o trabalho humano artesanal e ma- nufatureiro começa a ser substituído pela máquina e, cada vez mais, o homem se distancia do produto de seu esforço. O período também é marcado pela divulgação de novas teorias científicas e pelo surgimento de teorias filosóficas que defen- dem o método experimental em oposição ao argumento me- 28 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo tafísico. Em consequência, novas formas de pensamento flo- rescem e repercutem nas estruturas da sociedade e do estado. Nesse contexto de cientificismo, de desenvolvimento in- dustrial e econômico, as obras artísticas produzidas represen- tam o cotidiano do homem real, em tudo semelhante ao do seu público-alvo. Com a produção de textos com temática compreensível pelo leitor comum, a ficção realista, de forma objetiva, divulga a uma parcela significativa da população a preocupação sociopolítica de seus autores. Decorreria, daí, a função social dessa arte literária engajada que era a de cons- cientização dos problemas existentes, muito embora os textos não apontassem para suas possíveis soluções. No Brasil, a escola assumiu importância relevante para a cultura nacional, na qual se destacam a nacionalização defi- nitiva da língua portuguesa e a sistematização do trabalho do crítico literário, que passa a ser influenciado pelos métodos rígidos da ciência determinista. Como legados do Realismo transmitidos às artes dos períodos posteriores, destacam-se a preocupação social, com ênfase na abordagem dos proble- mas urbanos contemporâneos, e a visão regional, que per- mitiu desvendar sutilezas pouco conhecidas das diversidades étnica e cultural que caracterizam a sociedade brasileira. Essa herança influenciaria, de forma decisiva e direta, os artistas participantes da SEMANA DE ARTE MODERNA, em sua luta pela nacionalização de nossos costumes e conhecimentos. Capítulo 1 O Realismo 29 Atividades 1) São algumas características do Realismo: a) Observação, sentimentalismo, linguagem exaltada b) Idealismo, lirismo, subjetivismo c) Observação, objetividade, crítica à sociedade d) Arte pela arte, procura do "eu", musicalidade 2) As personagens realistas têm seus destinos marcados pelo determinismo, identificado: a) Ela preocupação dos autores em criar personagens perfeitos, sem defeito algum. b) Pelas forças atávicas e/ou sociais que condicionam a conduta dessas criaturas. c) Por ser fruto, especificamente, da imaginação e da fantasia dos autores. d) Por reabilitar o senso do mistério, faculdade perdida do homem. 3) A literatura do Realismo europeu apresenta romances que: a) Representam fatos e personagens descritosde forma objetiva. b) Exploram as relações pessoais da burguesia. 30 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo c) Retratam o materialismo e o patriarcalismo franceses. d) Apresentam o sistema religioso e educacional. 4) O Realismo possui características peculiares como: a) A narrativa caracteriza-se pela subjetividade. b) A descrição é rica em detalhes e linguagem exaltada. c) Os aspectos psicológicos das personagens são revelados. d) Idealização de personagens. 5) Assinale a alternativa INCORRETA quanto ao Realismo: a) Finalidade subjetiva da emoção na prosa. b) Causa e efeito são preocupações do autor. c) Atitude mais contida que a do Romantismo. d) Empenho na defesa de opiniões. Luana Soares de Souza Capítulo 2 O Romance de Machado de Assis 32 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo No ano de 2008, foi grande a movimentação nos ambien- tes literários brasileiros; muitas foram as atividades programa- das e livros lançados para relembrar os 100 anos da morte daquele que é reverenciado como sendo o maior expoente da prosa do país – Joaquim Maria Machado de Assis (1839- 1908). Considerado por muitos críticos como o pai da nossa verdadeira literatura, o conjunto da obra do hedonista atra- vessa as fronteiras das correntes literárias de seu tempo. Em seus romances, as personagens são concebidas muito além das características locais; sua construção não segue critérios de representação vinculados à questão da geografia. Para o autor, o importante é a ALMA NACIONAL; este é um elemento característico e representativo do íntimo do homem brasileiro de todas as regiões. Cético observador da alma humana, o escritor carioca, apesar de descrever o contexto espaço-temporal do século XIX, tem uma percepção da realidade que foge aos critérios cronológicos; sua temática ainda se faz presente nas ques- tões da nossa sociedade contemporânea. Machado narra os aspectos da sociedade de seu tempo com maestria, preferin- do, em vez do ataque direto e objetivo, tecer uma crítica sutil, na qual adota um olhar distante (mas não menos observador) para expor as mazelas e incongruências de sua época, em que velhos costumes e antigos problemas coexistem com as mu- danças sociopolíticas do fim do Império e início da República no Brasil. Não obstante seja responsável por uma obra múltipla, composta por poesias, peças teatrais, crônicas e ensaios, além dos romances e contos, foi com estes últimos gêneros que o Capítulo 2 O Romance de Machado de Assis 33 "mestre do Cosme Velho" se afirmou e se consagrou. Assim, neste capítulo serão enfocadas suas realizações como con- tista e prosador. O estudo se inicia pela síntese das principais características da prosa do escritor em suas duas etapas de produção ficcional, a de APRENDIZAGEM e a da MATURI- DADE. Em sequência, o texto focaliza a narrativa romanesca da segunda fase e apresenta uma breve análise das principais histórias escritas pelo autor no período. O conto machadiano será objeto do próximo capítulo. 2.1 A prosa machadiana Ícone inconteste da literatura brasileira, Machado de Assis sou- be como nenhum outro escritor representar a sociedade bur- guesa da segunda metade do século XIX e dos primeiros anos do XX. Ele analisa os indivíduos e as estruturas de seu tempo por meio de uma refinada descrição realista, na qual o mo- mento histórico do final do Império e da transição para a Re- pública afeta o universo moral das personagens; estas são as eleitas para serem o foco de sua análise. Nas suas narrativas, ele examina o detalhe íntimo e escondido, o olhar dissimula- do, as intenções secretas e o riso ambivalente, enfim, os traços exteriores que mostram os labirintos internos. Dotado de uma personalidade sarcástica, crítica e cética, o romancista inclui em seus textos duas das visões filosóficas predominantes na época acerca do homem e do mundo: o pessimismo e o niilismo. A primeira, surgida com o pensador alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), baseia-se na ideia 34 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo de que a vida está necessariamente ligada ao sofrimento e à dor. Em consequência, o adepto da corrente é desiludido com a existência e descrente dos seus semelhantes; para ele, o ódio, o egoísmo, a incompreensão, o mal e o interesse são as causas das atitudes humanas. Ele se considera um indivíduo sem alternativas, cuja atitude é de "estar no mundo", o qual ele observa com uma "visão desencantada". A segunda, ou mais propriamente, o niilismo nietzschiano1, é uma doutrina filosófica e política cuja essência está na nega- ção do mundo suprassensível e dos valores morais e estéticos que o constituem; seus seguidores não creem em Deus, na vida após a morte, no Céu ou no Inferno. Para eles, viver na Terra significa estar num processo passageiro, à espera do mundo novo, feito à imagem e semelhança do homem. O indivíduo cético não crê nas mudanças concretas pelas quais passam o ser humano porque acredita que a permanência é a maior prova do caos universal, já que tudo e todos nascem, mudam e morrem. Essa concepção niilista da vida é exemplificada no capítulo O delírio, em Memórias póstumas de Brás Cubas. Estilo machadiano – fase de maturidade A obra machadiana, repleta de pormenores e de sutilezas, pos- sui na correção, na sobriedade e na concisão as qualidades distintivas que as transformaram em verdadeiras obras-primas. Esses traços estilísticos, contudo, apesar de sintetizarem sua escrita, convivem com uma variedade de processos linguísticos 1 Niilismo, na concepção dada por Friedrich Nietzsche (1844-1900). Capítulo 2 O Romance de Machado de Assis 35 e narrativos que caracterizam a forma de expressão do escri- tor. De acordo com Ivan Teixeira1, dentre as peculiaridades formais, conteudísticas e estéticas que distinguem a fase de maturidade do autor estão:  Quebra da estrutura linear e fragmentação da nar- rativa: não há linearidade nos romances; os capítulos são curtos e fragmentados, com diversos episódios in- cluídos na trama.  Digressões do narrador: a voz narrativa se faz pre- sente por meio de interrupções, digressões, comentários metaliterários e falas dirigidas ao leitor.  Análise psicológica: as histórias narram situações em que o mundo interior das personagens é desvendado; a partir das descobertas sobre os mistérios que cercam o homem e seus relacionamentos, são descritas mudanças na alma e nas atitudes humanas.  Análise dos valores sociais: o conhecimento profundo da estrutura social e política vigentes possibilitou que o autor construísse personagens que simbolizam as ca- racterísticas negativas da classe média contemporânea, tais como a inércia, a mesquinharia, a mediocridade, a perversidade cotidiana e o egoísmo.  Humor: a temática é tratada em tom de brincadeira, de forma a permitir o distanciamento e uma relativa neu- tralidade por parte do leitor. Esse recurso se constrói a partir da análise psicológica e social, os quais levam o 36 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo narrador a concluir que tudo e todos se arrastam para um grande vazio.  Ironia: consiste em dizer o contrário do que se afirma; o procedimento é usado pelo escritor para destruir postu- lados científicos, filosóficos, religiosos e ideológicos. Por meio desse relativismo radical, o narrador mostra que essas ideias são ilusórias, sem um sentido verdadeiro, existindo apenas para enganar a existência humana.  Intertextualidade: as narrativas machadianas busca- ram inspirações não apenas na vida real; elas estão ba- seadas, também, em modelos literários ou filosóficos de outros tempos ou autores como Esquilo, William Shakes- peare, Rabelais, Miguel de Cervantes, Jonathan Swift, Henry Fielding,Laurence Sterne, entre outros.  Carnavalização: essa teoria crítica postulada por Mi- khail Bakhtin (1895-1975) é uma representação artísti- ca em que há uma mistura de diversos elementos e na qual estão presentes vários gêneros e registros de lin- guagem, além de composições verbais cômicas, como o riso e a paródia, e de apelos visuais, como o grafite, o desenho, o cartaz etc. Nos textos de Machado de Assis há a convivência de diferentes vozes, de capítulos mar- cados pelo grafismo e de situações em que acontece a inversão da ordem natural dos fatos, provocando o deboche e o escárnio. As características apresentadas, juntamente à forma clara, elegante, equilibrada e correta que distinguem o processo com- positivo de Machado de Assis, tornam única a sua obra. Os Capítulo 2 O Romance de Machado de Assis 37 traços estilísticos que configuram as narrativas machadianas são múltiplos e, por vezes, complexos, exigindo, em consequência, um leitor atento e sensível à estrutura verbal dos textos. Fases da produção literária: a narrativa romanesca A crítica literária, via de regra, divide a obra machadiana em dois momentos característicos e, ao mesmo tempo, comple- mentares: as fases ditas de aprendizagem e de maturidade. Na primeira, contemporânea da segunda geração românti- ca, o escritor apresenta elementos do romantismo, entretanto, sem o calor e a emoção dos poetas do movimento. Nessa etapa estão, entre outros textos, os poemas românticos Crisá- lidas (1864) e Falenas (1870), além de Americanas (1875), de clima indianista. Representam ainda esse estágio inicial os romances Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878); além de ensaios, crônicas e pe- ças de teatro, área em que ele se limitou às comédias ligeiras, sendo a maior parte de um único ato; entre elas figuram Tu, só tu, puro amor..., Desencantos, Quase ministro, Lição de bo- tânica, entre outras. Os romances da primeira fase machadiana apresentam en- redo sentimental do romantismo clássico; são de histórias de afeição contrariada entre jovens envolvidos com tramas de he- rança e dramas familiares. Difundida em forma de folhetim, a temática do amor entre indivíduos de classes sociais diferentes objetivava emocionar, surpreender e moralizar. Mesmo conce- bendo os textos no estilo romântico convencional, Machado não pecou em pintar um sentimentalismo exagerado, pois pre- 38 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo feriu, na forma e na trama, empregar a moderação. Neles estão presentes o conformismo com os valores da época, o aspecto psicológico das personagens, que não apresentam qualquer traço de complexidade, e a linguagem convencional carregada de lugares-comuns e de frases feitas; são elementos que estarão ausentes na perfeição expressiva da segunda fase do escritor. Nessas narrativas, já é possível perceber certa preocupa- ção com a análise psicológica dos seres ficcionais e com o estudo das razões de seu comportamento em detrimento da descrição do espaço. Além disso, exceto em Ressurreição, as histórias colocam o casamento como um ideal a ser alcan- çado, enfocam o problema da ascensão social e expõem os valores das famílias e das instituições. Os temas são tecidos por um narrador onisciente que procura manter contato com o leitor – são os indicativos da nova fase machadiana e já reve- lam as indiscutíveis qualidades do grande prosador. Em oposição à inclinação chamada alencariana de figurar o país de forma pitoresca e ufanista, Machado situou suas his- tórias no espaço urbano, lugar em que as camadas sociais dis- putam um complexo e, por vezes, ambíguo jogo do poder em busca da manutenção ou da modificação da situação vigente. A identidade do Brasil cosmopolita encontrava-se na luta das forças e contradições sociais. Todas essas características serão aperfeiçoadas nas principais narrativas da etapa seguinte de sua escrita romanesca. Capítulo 2 O Romance de Machado de Assis 39 2.2 Os principais romances da segunda fase Desde os romances da fase de aprendizagem que Machado de Assis demonstra os atributos que o iriam transformar em ícone da literatura brasileira. Mas é a partir dos textos Memó- rias póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1900) que desponta a genialidade que levou Manuel Bandeira, citado na Enciclopédia Barsa, a afirmar que, "nenhum escritor o sobrepuja na harmonia de todas as quali- dades, que faz dele nosso clássico por excelência"2. A primeira publicação, que discorre sobre as recordações de um defun- to a respeito da vida passada, representa um divisor na obra machadiana, pois marca o início do estágio de maturidade do autor. Nela há o abandono da influência romântica anterior e as contradições da sociedade da época passam a serem vistas dentro da ótica realista. A troca de perspectiva pode ser percebida já na nota Ao leitor, postada no início do livro; nela, o narrador-protagonista, Brás Cubas, declara que se trata "de uma obra difusa, [...] [escrita] com a pena da galhofa e a tinta da melancolia"3. Em Quincas Borba, é contada a história de um ingênuo ex- -professor primário que, após tornar-se herdeiro improvisado, cai nas mãos de um casal jovem e ambicioso que lhe explora. Dom Casmurro retorna ao estilo das memórias pretéritas re- memoradas pela personagem – nessas, ele se crê traído pela mulher e pelo melhor amigo, ambos já falecidos. Nesses ro- mances que assinalam o novo ciclo do autor, a ingenuidade romântica cede espaço à paródia, ao humor irônico, ao riso 40 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo sarcástico, ao escárnio geral dos costumes e ao questiona- mento das convenções sociais. Tais elementos continuam presentes em Esaú e Jacó (1904) e em Memorial de Aires (1908), e embasam o maneirismo do escritor, cuja fonte de inspiração são as ações rotineiras do homem comum. Machado, ao entrar na consciência dos seres ficcionais, mostra-nos enredos entremeados de temas ligados à dúvida, à indecisão e à loucura – são figuras recorrentes a inclinação ao adultério, à futilidade, à hipocrisia, à vaidade e à ambição, que são objeto de uma observação psicológi- ca crítica. Além desses tópicos conteudísticos, fazem parte da constelação machadiana a irreversibilidade do tempo, subor- dinada às leis da natureza e à contingência da morte, e a exis- tência do mal em todas as suas concretizações. Não obstante, os indivíduos que povoam o universo de seus textos não são classificados como bons ou maus – ao autor importa registrar os impulsos contraditórios existentes no ser humano. Nos textos escritos em seu estágio de maturidade, o autor assume papel de dissecador social com o intuito de acabar com o disfarce, deixando o verdadeiro "eu" das personagens vir à tona. Assim, é desmascarado o jogo das relações da burguesia e revelado o contraste existente entre a essência, ou a alma in- terior do indivíduo, e a aparência, ou o comportamento conven- cional representado pelos gestos exteriores exigidos, mas igual- mente criticados pela opinião pública. A partir dessa análise da conduta íntima e social das personagens, é possível delinear-se a perspectiva de análise externa e interna dos indivíduos e do mundo que o escritor quer transmitir. De acordo com Sergius Gonzaga4, essa contraposição permite ao escritor, por meio das Capítulo 2 O Romance de Machado de Assis 41 ações de suas personagens, desvendar as atitudes sociais do ser humano. Vejamos o quadro a seguir: Quadro 1 — Visão machadiana do ser humano Fonte: GONZAGA, 2007 APARÊNCIA ESSÊNCIA Afeto; entrega; ternura Descaso; desinteresse; indiferença Altruísmo; bondade; generosidade Avidez; egoísmo; inveja Autenticidade; legitimidade; sinceridade Disfarce; hipocrisia; simulação Cordialidade;desprendimento; fraternidade Ambição; cobiça; interesse Critério; disciplina; organização Anarquia; conflito; confusão Decência; pudor; virtude Cinismo; corrupção; imoralidade Racionalidade; racionalismo Impulso; intuição O quadro mostra a descontinuidade existente entre aqui- lo que é revelado pelas personagens e aquilo que de fato é percebido ou sentido por elas intimamente. Essa dualidade de viés realista, sugerida pela obra de Machado de Assis, pode ser percebida nas narrativas de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memo- rial de Aires. Com o objetivo de permitir uma visão genérica sobre a obra do autor, os romances citados na sequência estão comentados de forma breve e sucinta. A apresentação, no en- tanto, não exime o estudante da leitura integral dos mesmos; somente assim ele poderá tirar suas próprias conclusões sobre o assunto. 42 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo Memórias Póstumas de Brás Cubas O primeiro grande romance de Machado de Assis marca o início da nova fase e traduz sua grande vocação de narrar, de contar a essência do homem em sua precariedade exis- tencial. As personagens do livro apresentam-se divididas con- sigo mesmas; elas são joguetes de forças desconhecidas e imprevisíveis, tendo seu livre arbítrio limitado por obstáculos naturais e por suas perplexidades e contradições internas. Os seres ficcionais são sutil e minuciosamente analisados em seus pormenores por meio da dissecação de parcelas mínimas de sua intimidade que, reunidas, formam o todo de sua persona- lidade. O protagonista, Brás Cubas, em seu relato post-mortem, relembra e reconstrói sua existência anterior como um enorme pesadelo no qual o ser humano procura o prazer dos sentidos e a ventura do coração. O "defunto-autor" conta seu passado de baixezas e de parasitismo em uma história na qual o nar- rador está interessado apenas em recordar a vida pretérita, buscando um sentido para ela. E, ao final de seu relato, realiza um balanço de perdas e ganhos de sua vivência de homem inútil e entediado, concluindo que terminou com "um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria"5. Na descrição de sua jornada, a voz narrativa se utiliza da digressão, recurso característico dos textos machadianos da fase madura. Por meio dessa estratégia, ela não segue line- armente a história; ao contrário, ela para, comenta outros as- suntos, discute, levanta hipóteses, interpela o leitor, discorre Capítulo 2 O Romance de Machado de Assis 43 sobre o ato de escrever. Essas paradas e mudanças repentinas marcam o texto pela descontinuidade e permitem ao narra- dor dar um tom desabusado ao mesmo. Nesse estilo difuso, o enredo perde a importância. Em seu lugar surgem episódios desconectados e pontuados por digressões, citações descon- textualizadas e racionalizações cínicas ou banais, que têm o objetivo de caçoar da tradição histórico-cultural. O estilo em zigue-zague proporciona uma escrita que associa humor e ironia ao deboche sobre a vida da sociedade carioca, assim como permite ao narrador refletir sobre a ambivalência moral das personagens, suas intenções, desejos secretos e atitudes marcadas pela falta de perspectivas existenciais. Quincas Borba Considerado um romance de enredo regular, ritmo narrativo equilibrado e contínuo, Quincas Borba é a obra machadia- na que mais se aproxima da tradição realista europeia do sé- culo XIX. Contudo, ao contrário dos textos daquela corrente, a personagem Pedro Rubião é um ex-professor primário que ascende socialmente não por um ato escuso, mas sim pelo recebimento da herança do filósofo Quincas Borba, de quem se tornara discípulo e enfermeiro. Joaquim Borba dos Santos, mais conhecido como Quincas Borba, é o criador de um espantoso sistema que "retifica o espírito humano, suprime a dor, assegura a felicidade, e enche de imensa glória o nosso país." Ele o denomina de "Humanitis- mo, de Humanitas, princípio das cousas"6. A teoria, divulgada desde o romance anterior, não excluía nada e estava destina- da a arruinar com os demais sistemas. De acordo com ela, 44 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo a guerra tem uma natureza benéfica e é um fator necessário para quebrar com a monotonia universal e permitir a seleção dos seres mais aptos à sobrevivência. A ideia fundamental da filosofia pode ser resumida na máxima "Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas"7. Esse axioma é uma ne- gação de tudo o que é considerado verdadeiro pelas crenças existentes e representa a crítica de Machado de Assis às doutri- nas consagradas do período. Dom Casmurro Um dos mais conhecidos romances do autor, Dom Casmurro inicia-se focalizando a solidão da personagem Bento Santiago. Indivíduo calado, que vive quase recluso com um único criado no subúrbio do Engenho Novo, bairro do Rio de Janeiro, ele se torna conhecido pelo apelido que dá nome à narrativa. Nesta, após explicar as razões do título escolhido, passa a reescrever a sua história; estando na maturidade, procura, com as lem- branças, entender o sentido de fatos passados, ocorridos na juventude e na vida adulta. No registro de suas memórias con- centra seu objetivo em "atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência"8. O reviver dos eventos é contado em primeira pessoa, dan- do, assim, uma perspectiva pessoal e íntima aos acontecimen- tos. Nesse nível de foco narrativo, a trama é conduzida em estilo de zigue-zague, com constantes digressões, por vezes irônicas, e mudanças na perspectiva temporal. Seguindo essa abordagem de divagação, o narrador, com frequência, sus- pende a descrição da história principal para refletir sobre as- Capítulo 2 O Romance de Machado de Assis 45 suntos relacionados à arte ou para discorrer metalinguistica- mente sobre a escrita. Em relação às personagens, elas simbolizam figuras da so- ciedade carioca do período. Assim, o advogado Bento San- tiago é o homem culto e autoritário. Capitolina, a Capitu, é a mulher que incorpora a luta contra os tabus e os preconceitos morais; alegre, inteligente e decidida, provoca no marido sen- timentos dúbios. Além das figuras principais, destacam-se a mãe do narrador, Dona Glória, como a viúva que assume os valores do patriarcalismo da época, e José Dias, agregado pedante que representa o parasita explorador de terceiros. Considerada a obra-prima de Machado de Assis, Dom Casmurro é um romance complexo e indeterminado, que pos- sibilita diversas interpretações por parte do leitor. Essa natu- reza da escrita é caracterizada pela dualidade existente entre a aparência e a essência. E, em alguns momentos, o que é dado como verdadeiro pode ser apenas uma ilusão, alimenta- da pelas ambiguidades textuais. Sendo uma obra aberta, não existem soluções para os enigmas apresentados; desse modo, nos elementos do texto não há informações claras e suficientes que permitam uma conclusão definitiva para o pressuposto de que Capitu teria traído o marido com Escobar, o melhor amigo daquele. Esaú e Jacó O romance, publicado em 1904, é a penúltima obra de Ma- chado de Assis. Nele, a história dos gêmeos Pedro e Paulo que, desde antes do nascimento, disputaram a tudo e a todos 46 Literatura Brasileira II: do Realismo ao Modernismo é contada, na terceira pessoa, pelo Conselheiro Aires. Eles são dois irmãos idênticos na aparência, mas diferentes na essên- cia, que mantêm um conflito permanente, o qual, ao longo da vida, é acentuado em diversos planos. Entre eles, o amoroso, em que ambos se apaixonam pela mesma jovem, Flora Batis- ta, e passam a competir por sua atenção e seu amor. Outro campo é o político, no qual um é republicano
Compartilhar