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Justamente o contrário
10 enero 2014
(retirado do site: https://solsilvestre.wordpress.com/2014/01/10/de-este-lado-del-cristal/)
 
Tradução: Sidneia R. P. Burnik
Esta é a história do meu irmão. Ou melhor: esta é a história da minha escola. Ainda claro, no fundo, as duas histórias se parecem. Se parecem quase tanto como nos parecemos Javi e eu. E ao mesmo tempo, são também tão diferentes como nós dois somos.
É que Javi e eu somos gêmeos. Idênticos. Isto é porque nascemos de um mesmo óvulo.
E compartilhamos, além do mesmo quarto, o código de DNA. Mamãe disse que nesse código se guarda toda a informação de uma pessoa: qual é sua cor de cabelo, que estatura tem, como soa sua voz. E tudo isso, Javi e eu somos iguais. Idênticos.
Mas em muitas coisas não nos parecemos. Eu gosto de milanesas com purê e Javi detesta. Eu logo me aborreço com os legos e ele pode passar mil horas fazendo torres, helicópteros e tratores. Em troca sou bom em basquete e Javi nem sequer tenta quicar a bola.
Mas de longe, o mais diferente que temos é a nossa forma de pensar. Porque Javi pensa em imagens. E então custa-lhe comunicar-se porque algumas palavras são muito difíceis de pensar em imagens: ilusionar-se, sentir, conhecer, lá, aquele. Se tu disseres a Javi “corramos”, ele tem que projetar (como se fosse um filme em sua cabeça) todas as imagens e todos as lembranças que tem a ver com esta ação. E isto é algo que lhe custa tempo, claro; ainda que “correr” é uma das suas palavras favoritas.
Por sua forma de pensar, às vezes Javi não te responde o que perguntares, ou te interrompe, ou muda de tema porque seu cérebro todo o tempo está fazendo conexões. Pode ser que tu lhe digas “corramos” e ele só te responde “esquilo” porque uma vez no parque corríamos entre as árvores e nos topamos com um. Claro, para mim, que vivo com ele, é mais fácil entender suas conexões. E ainda assim, nem sempre o faço bem, porque eu penso em palavras e ocorre comigo exatamente o mesmo que a ele, mas ao contrário: Javi tem que me esperar. Tem que ter paciência comigo, para que eu possa compreender o quê é que está dizendo.
O caso é que este ano, a princípio, todos estávamos felizes. O doutor Mon sugeriu à mamãe que Javi fizesse as aulas extra-curriculares pela tarde e que pela manhã, trocasse e fosse à escola comigo. Assinou um monte de papéis que a mamãe apresentou à diretora e o anotaram no mesmo curso, ainda que somos irmãos e é antipedagógico, disseram. Como não entendi esta palavra (nem sequer quando a busquei no dicionário) perguntei a Javi, quem sabe ele, com sua forma de pensar tão diferente à minha, entendesse melhor. Mas ele tampouco sabia.
Mamãe me fez mil recomendações. Era importante que eu não deixasse ele só, que o ajudasse a entender como funcionava minha escola. Me falou da sirene do recreio, do pátio, dos banheiros, do cumprimento à bandeira. De todas as coisas que já me haviam falado com a diretora mas que não estaria mal lembrar-me, porque afinal de contas eu conheço o Javi melhor que ninguém e sei perfeitamente o quê é o melhor para ele.
Os primeiros dias foram fáceis. Com o Javi ficávamos na aula durante o recreio, igual que muitos de nossos companheiros que preferiam ler ou desenhar antes que meter-se na bagunça do pátio. Mas um dia desapareceu uma borracha de apagar e a diretora enfureceu-se tanto, mas tanto, que fez colocar um cartaz na porta da aula: “Proibido ficar durante o recreio”.
Não importou nada do que disse mamãe, nem as recomendações do doutor Mon, nem a promessa de que nunca, jamais tocaríamos nada que não fosse nosso.
─Sem exceções – disse a diretora . ─Sinto muito, mas tenho que ser justa. Se Javi realmente está preparado para frequentar esta escola, terá que tolerar o recreio.
O doutor Mon não voltou atrás, disse que numa destas seria bem e que, a final de contas, era um novo desafio para Javi e que, se superasse, estaríamos mil passos adiante em sua terapia.
E lá fomos. Javi aguentou seis semanas inteiras. Mamães durante estes dias passava o tempo todo cantando, papai não parava de fazer piadas e Javi começou a construir, com os legos, o edifício da minha escola. Todos estávamos felizes.
─ E quando toca a sirene, não fica nervoso?
─ E se o empurram não se assusta?
─Tolera bem os gritos?
Todos nossos familiares me enchiam de perguntas, contentes de que meu irmão estivesse superando assim bem seu enorme desafio. Porque Javi é hipersensível: todos seus sentidos funcionam à máxima potência. Se está falando comigo, seu super ouvido não escuta em primeiro plano somente a minha voz: também as buzinas da rua, os gritos do vizinho, o cano de espacamento de uma moto, o rádio que está escutando o rapaz da mercearia da esquina. As luzes da rua lhe cegam, os abraços às vezes pesam na sua pele e os recusa. Os cheiros mais imperceptíveis podem chegar a revirar-lhe o estômago.
Apesar disto, Javi tolerou os recreios seis semanas completas. Se sentava numa esquina, um pouco mais além do pátio, aonde estava a porta da biblioteca. Dali olhava o mastro e a bandeira flamejando. Não fazia outra coisa que ver para cima, durante todo o recreio, como se não houvesse nenhum outro aluno correndo no pátio, como que ninguém se amontoasse em frente à lanchonete do Miguel, nem sentisse o cheiro das mini pizzas gordurosas, nem as batidas da corda que sempre jogavam as meninas do quinto B. Javi somente olhava para cima, concentrado, mas seguramente desejando que o recreio terminasse de uma vez.
E se não fosse pela Feira de Ciências, tudo teria seguido bem assim. Mas colocaram uma tela gigante justo sobre a parede da biblioteca; justo no cantinho do Javi. E abaixaram a bandeira, para poder hasteá-la depois, durante a abertura. Oito fileiras de bancos foram colocadas na frente da tela. O pátio, assim, ficou dividido: os mesmos alunos fazendo as mesmas brincadeiras num espaço menor. E não sei como, exatamente, como aconteceu…
Só que havia uma corda. E um tropeção. E duas cabeças que chocaram e uma fileira de cadeiras desparramadas. E o pior, o pior de tudo, uma enorme tela que veio abaixo.
Se todo este barulho me assustou, que tenho meus sentidos dos mais ordinários, nem posso imaginar o que sentiu Javi! Para piorar, tudo o que ele tinha para manter sua calma já não estava no pátio: nem seu cantinho, nem a bandeira.
Nada do que eu disse o consolou. E começou a balançar-se. Enquanto as professoras tentavam fazer as filas, o porteiro tocou a sirene e todos perguntavam o que aconteceu, meu irmao se balançava. E pouco a pouco fomos ficando sós, ele e eu, nesta parte do pátio; e a diretora ficou nervosa e eu não sabia como dizer-lhe que não, não éramos desobedientes; que sim, que claro que eu a havia escutado, mas que não podíamos, não podíamos fazer a fila agora. E quisera avisá-la também que o deixasse, que Javi não tem que tocá-lo quando se coloca assim.
Mas tudo passou tão rápido! E o pior, o pior que não podia passar em minha escola, que Javi tivesse uma de suas crises, aconteceu. Quando Javi fica assim todos os sentidos se bloqueiam, os olhos deixam de olhar, seus ouvidos não escutam nada e se o tocares querendo acalmá-lo começa a gritar e a dar chutes. Não olha a quem. Não sabe quê é o que acontece. É como se ele mesmo não estivesse alí, como que sua mente houvesse desconectado para deixar de sentir e de ter medo.
Quando isto acontece há que esperar-lhe. Estar atentos para que não se machuque, mas esperá-lo. Porque para Javi são importantes as pausas. Para Javi há que se esquecer do tempo e, quando por fim se acalma, esquecer também da crise que passou e da que virá. Para Javi sempre há que concentrar-se no aqui e agora. Por isto, porque a diretora nem as professoras souberam quê fazer, eu me sentei no chão, ao lado, para esperá-lo.
Quando estava pronto, me olhou. E a diretora, como viu que comigo se acalmava, me deixou entrar com ele na sala da direção. A escutei quando chamou a mamãe. Escutei quando disse que sentia muito, que Javi não estava pronto para a escola. Quando disse que era difícil falar comele porque não olhava, porque não escutava nada do que disseram. Que para discipliná-lo ela tinha que colocar pausas e que Javi não podia seguir nenhuma pauta. Que não podía fazer exceções, que sentia muitíssimo, de verdade, mas que estava segura de que Javi estaria muito bem em outra escola. Que há escolas para alunos assim, como Javi. Sem nem sequer parecia dar-se conta de onde estava, se não falava com ninguém, se estava claro que não tinha nenhum tipo de pertenência a esta escola. E que não, não duvidava de seu nível intelectual, que havia lido sobre as aptidões destes alunos para a matemática, sobre sua excepcional memória fotográfica, mas que é antipedagógico – antipedagógico, disse – obrigá-lo a estar num lugar ao que claramente não pertence. Porque Javi não estava pronto. Não estava pronto! E encerrou.
Quando saiu de sua sala, se aproximou de nós. A mim, acaricou a cabeça e por cima dos óculos viu o desenho que estava fazendo Javi.
Era o pátio. Com seu cantinho ao lado da bibliotea. Com a bandeira flamejando e a lanchonete do Miguel. Com as garotas do quinto ano pulando a corda e um monte de meninos no recreio e detalhes geniais como os rodapés e a cortina de bolinhas da sala dos profesores.
–Sabe aonde está? – lhe disse. Esta é sua escola.
E lhe aclarei também todos seus erros. Um por um. Porque Javi sim entende e sim olha nos olhos e sim segue as pautas das escola. Porque Javi não é tão bom em matemática e ainda que jogue muito bem o “memotest”, nem sempre ganha. Assim que lhe disse, também, que eu não sabia aonde ela havia lido “sobre crianças assim, como Javi” mas seguramente a informação estava mal, porque Javi não é igual a nenhum outro. Que é hipersensível, sim. Que tem gostos meio estranhos, também (nunca entendi essa mania rara dele de ficar olhando a máquina de lavar). Que sua forma de pensar é bastante peculiar, mas que disse o doutor Mon, que não é assim com todos. Que alguns não suportam os abraços, ou nunca sorriem ou nunca dizem nada. Que Javi, em troca, é carinhoso; que sorri todo o tempo e cada vez fala mais. Que alguns se balançam, ou se agitam os braços, ou fecham os olhos ou se jogam ao chão. Que Javi só o faz algumas vezes:
─ Só quando o mundo o machuca. Ou não o entende. Como hoje.
A diretora se esfregou os olhos, como se acabasse de terminar de ver um filme destes de fazer chorar. E acariciou a cabeça a Javi e ele, com um sorriso, lhe deu o desenho:
─Antipedagógico ─ lhe disse Javi.
 A diretora sorriu. E ainda que pareça incrível, fez uma longa pausa antes de responder:
─Não. Não é antipedagógico. É que as diretoras também nos equivocamos.
E então o que pensei que ia ser a história do meu irmão, passou a ser a história da minha escola. Porque Javi estava pronto para a escola. A ele não tive que explicar-lhe nada: nem da sirene, nem dos recreios, nem do cumprimento à bandeira. Com a escola passou justamente o contrário. À escola tive que explicar-lhe tudo. A escola teve de aprender um montão de coisas sobre meu irmão. E ainda levou tempo para estar pronta, com Javi sabemos fazer pausas. Assim que não tivemos problema: a aguardaremos que esteja pronta!