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293GUIA PR`TICO DE UROLOGIA Capítulo 50 Helio Begliomini Priapismo Introdução O priapismo foi descrito pela primeira vez em 1924 por Callaway, sendo considerado uma emergência urológica. Lozano e Castañeda descreveram em 1981 o priapismo de clitóris, associado a trombose dos corpos cavernosos por car- cinoma do colo do útero. Trata-se de uma ereção persistente (duração maior do que quatro horas), geralmente dolorosa, não acompanhada de de- sejo sexual, ainda que o paciente tenha tido orgasmo prévio. Caracteristicamente, a ereção é dos corpos cavernosos, sendo poupado o corpo esponjoso – incluindo a glande. Pode ocorrer em qualquer idade, tendo sido descrito até em recém-nascidos. Antes da puberdade, associa-se mais com a anemia falciforme e a leucemia. Dos 16 aos 45 anos, cresce a incidência do priapismo idiopático. Nos pacientes mais ido- sos, predomina a etiologia neoplásica. O priapismo era uma entidade rara na prática urológica. Hoje em dia, com a farmacoterapia intracavernosa para o diag- nóstico e/ou tratamento da disfunção erétil, tem assumido im- portância e freqüência crescentes. O nome priapismo deriva-se do deus Priapus da mitolo- gia grega. É conhecido como o filho de Afrodite, a deusa do amor sexual, da sedução e da fertilidade. Acredita-se que seu pai era Dionísio ou Baco, o deus da vegetação e do vinho. Priapus é caracterizado por possuir um longo falo em ereção. Classificação O priapismo poderá ser classificado quanto à etiologia em primário ou idiopático (sem causas evidentes) e secun- dário. Quanto ao fluxo sangüíneo arterial, poderá ser de bai- xo fluxo (isquêmico) ou de alto fluxo (não-isquêmico), que constitui-se modalidade de baixíssima freqüência. A cavernosografia com arteriografia pudenda demons- trou que no priapismo isquêmico a drenagem venosa leva até 15 minutos para ser feita, sendo que durante o exame somente a artéria dorsal e as bulbares são contrastadas (não as caver- nosas). Ao contrário, no priapismo não-isquêmico, a caverno- sografia mostrou rápida drenagem venosa quer por via caver- nosa, quer pelas veias dorsais. Causas Existem várias causas conhecidas que se relacionam ao priapismo (tabela 1). Entretanto, a freqüência poderá variar na dependência direta da população avaliada. O priapismo por anemia falciforme ocorre na infância em cerca de dois terços dos casos quando se compara com pacientes na fase adulta. Numa revisão de literatura envolvendo 230 casos, fo- ram encontradas as seguintes causas mais freqüentes: idio- páticas (35%); associação com abuso de álcool ou drogas (21%); trauma perineal (12%); anemia falciforme (11%) e doença inflamatória do trato genital (8%). De um modo geral, o priapismo idiopático representa quase a metade dos casos, os quais, em sua grande maioria, têm relatos de episó- dios prévios. As injeções intracavernosas para o tratamento da disfun- ção erétil não estão incluídas nessas casuísticas, uma vez que tornaram o priapismo muito mais freqüente. Os riscos de ere- ções prolongadas (entre quatro e seis horas) com a prosta- glandina são de 0,4% a 1,7%, e com a papaverina podem ser de até 15%, sendo mais prevalentes entre os pacientes neuro- gênicos ou psicogênicos. Fisiopatogenia Essencial Ocorre obstrução na drenagem venosa peniana acarre- tando intumescimento dos corpos cavernosos, hipoxia, hiper- capnia e aumento da viscosidade sangüínea. Com o passar do tempo, haverá trombose vascular e f ibrose tecidual. A dor começa a aparecer de seis a oito horas após a per- sistência da ereção. O grau de isquemia é proporcional ao nú- mero de veias emissárias envolvidas, o que, por sua vez, refle- te o grau de rigidez, bem como o tempo de venoclusão. A persistência de pressões intracavernosas de 80 a 120 mmHg leva a alterações microscópicas teciduais (edema, es- pessamento e f ibrose), podendo ocasionar impotência. À mi- croscopia eletrônica sabe-se que o edema intersticial das tra- béculas já se faz presente após 12 horas do quadro. A destruição do endotélio sinusoidal com exposição da Endereço para correspondência: Av. Maria Amália Lopes de Azevedo, 147 - Tremembé 02350-000 - São Paulo - SP Tel.: (0--11) 204-7000 294 GUIA PR`TICO DE UROLOGIA membrana basal e aderência trombocítica estabelece-se após 24 horas. Com 48 horas de evolução, já se observam trombos nos espaços sinusoidais e as alterações nas células musculares lisas variam de necrose a transformação fibroblástica. Anemia falciforme A anemia falciforme acomete 8% dos negros nos EUA e a incidência de priapismo em crianças com esta hemoglobi- nopatia é de 6,4% a 12%, podendo ser indicativa de pior prog- nóstico. As crises noturnas de priapismo podem durar de duas a seis horas e afetam cerca de 42% dos adultos homozigotos para a anemia falciforme. A anemia falciforme é responsável por 10% a 20% dos casos de priapismo. A falcização das hemácias seguida de au- mento da viscosidade do sangue nos corpos cavernosos ocor- re, provavelmente, por causa de uma aderência endotelial anor- mal num ambiente relativamente ácido durante a ereção, ou devido a uma leve acidose acompanhando a hipoventilação durante o sono, ou em seguida a trauma, mesmo após mastur- bação ou coito. As crises iniciam-se após a puberdade e não se relacio- nam com outros fenômenos vasoclusivos. Podem recorrer du- rante semanas e um único episódio pode durar de três a cinco dias. A completa flacidez peniana poderá levar até duas sema- nas para ser obtida. Trauma perineal Ocorre interrupção da drenagem venosa ocasionando o tipo isquêmico. O quadro é agravado pela trombose, hemor- ragia e edema como fenômenos associados. Se o trauma favorecer a formação de fístula arteriovenosa pela lesão arterial, estabelecer-se-á o priapismo de alto fluxo, condição essa incidente em somente 5% dos casos. Geralmen- te as ereções são parciais, indolores e podem se tornar mais rígidas após estímulo sexual. Devido à grande presença de san- gue arterial, não há hipoxia nem lesões microscópicas teciduais. Drogas orais Medicamentos anti-hipertensivos, antipsicóticos e antide- pressivos podem favorecer o priapismo por relaxamento direto da musculatura lisa vascular ou por bloqueio alfaadrenérgico. Doença neoplásica Particularmente a leucemia pode infiltrar os corpos ca- vernosos bloqueando o retorno venoso. Nutrição parenteral Tem sido associada a administração de emulsão gordu- rosa a 20%, intravenosa, com episódios de recorrência em al- guns pacientes, horas mais tarde. Provavelmente, isso se deve ao aumento na coagulabilidade sangüínea, a alterações nos elementos figurados do sangue e a êmbolos gordurosos. Distúrbios neurogênicos O excesso de estimulação neural provocaria dilatação pro- longada dos sinusóides dos corpos cavernosos. Drogas intracavernosas Haveria predisposição ao relaxamento prolongado da musculatura lisa dos corpos cavernosos, assim como do blo- queio do sistema de venoclusão. Diagnóstico A anamnese e o exame físico estabelecem o diagnóstico até etiológico em boa parte dos casos quando houver causas predisponentes. Hoje em dia, dá-se muita ênfase à gasometria dos corpos cavernosos para a classif icação e o estabelecimento de dados prognósticos (tabela 2). A punção e a aspiração de 20 a 30 ml de sangue, por si próprias tornam-se medidas curativas em boa parte dos casos. Idiopático (primário) Secundário • Tromboembólico Anemia falciforme ou traço falciforme Doenças hematológicas, talassemia, trombocitopenia, policitemia, leucemia e linfomas Embolia gordurosa • Trauma Perineal Genital • Neurogênico Lesão da medula espinhal e do SNC Neuropatia autonômica Anestesia Hiperestimulação sexual • Drogas Álcool Cocaína Antidepressivos: trazodona Antipsicóticos fenotiazínicos: clorpromazina Anti-hipertensivos: hidralazina, prazosina, guanetidina Anticoagulantes Análogosdo Gn-Rh • Injeções Papaverina Intracavernosas Fentolamina (drogas isoladas Prostaglandina E1 ou combinadas) • Doenças Metástases penianas infiltrativas Neoplasias geniturinárias ou gastrin- testinais infiltrativas do pênis Doenças inflamatórias: vasculites, infecções • Diálise • Nutrição parenteral prolongada ETIOLOGIA DO PRIAPISMO Tabela 1 295GUIA PR`TICO DE UROLOGIA A medida da pressão intracavernosa, que pode ser feita pela conexão do “butterfly” a um manômetro de mercúrio, poderá ter importância como fator evolutivo de tratamento. Pressões intracavernosas (PIC) abaixo de 40 mmHg in- dicam boa resposta com as medidas realizadas. Ao contrário, PIC maiores que 50 mmHg exigem outras medidas terapêuti- cas, quer conservadoras quer cirúrgicas (figura 1). A utilização do Duplex-Scan e da arteriografia está re- servada nos casos pós-traumáticos somente quando houver sus- peita de fístula (hiperfluxo). Tratamento A abordagem dos pacientes deverá ser tão rápida quanto possível por se tratar de uma emergência urológica cujo prog- nóstico com relação à potência está diretamente relacionado ao tempo de evolução do quadro. Sempre que possível, inicia-se por medidas mais conser- vadoras, reservando-se procedimentos cirúrgicos para casos não-responsivos ou que já tenham tido ereção por mais de 12 a 24 horas (figura 2). Medidas conservadoras No priapismo essencial ou associado a injeção de drogas intracavernosas, ou mesmo na anemia falciforme, os cuida- dos urológicos são os mesmos. Na inexistência de hipoxia dos corpos cavernosos, a aspiração de 20 a 30 ml de sangue resol- ve o quadro na maioria das vezes (figura 1). A persistência de ereção numa condição não-hipoxêmica poderá indicar a inje- ção intracavernosa de drogas vasoativas (tabela 3). Na não-resolução do quadro pode-se proceder a nova as- piração e a lavagem dos corpos cavernosos com epinefrina em solução a 1:1.000 (1 ml diluído em 1 litro de soro fisioló- gico). Esvaziam-se os corpos cavernosos e injetam-se 20 ml dessa solução removida por aspiração após intervalo de dois a cinco minutos. Se o priapismo for hipoxêmico, existe contra-indicação no uso de drogas simpaticomiméticas sob risco de se agravar a hipo- xia tecidual. Nesses casos, fazem-se punção, aspiração de san- gue e lavagem dos corpos cavernosos com soro fisiológico. Nos raros casos de priapismo por alto fluxo, o tratamen- to ideal é a embolização da fístula com gelatina ou coágulo autólogo após a sua localização na arteriografia pudenda. Às vezes, será requerida a repetição do procedimento para que haja completa resolução do quadro. Situações especiais Quando o priapismo for conseqüente a infiltração neo- plásica dos corpos cavernosos, o tratamento deve ser conside- rado paliativo, estando indicada rádio ou quimioterapia, na dependência do tipo histológico do tumor. O priapismo parcial é muito raro. O paciente apresenta impotência, pênis flácido, dor perineal com massa palpável que corresponde ao ingurgitamento da porção fixa dos corpos ca- vernosos. Relaciona-se com trauma na relação sexual. Poderá ocorrer dificuldade miccional e até retenção urinária. O trata- mento segue os mesmos princípios do priapismo idiopático. Drogas Doses usuais Epinefrina 10 a 20 µg Fenilefrina 100 a 500 µg Efedrina 50 a 100 mg Norepinefrina 10 a 20 µg DROGAS VASOATIVAS INTRACAVERNOSAS NO PRIAPISMO Tratamento cirúrgico Baseia-se na realização de fístulas que objetivam drenar os corpos cavernosos internamente para o corpo esponjoso (figura 2). As fístulas poderão ser: • Cavernoso-esponjosas - As fístulas cavernoso-espon- josas distais devem ter preferência entre as opções cirúrgicas. A técnica mais simples é a de Winter, que consiste na realiza- ção de comunicação por punção transglandar bilateralmente (f igura 3). Pela mesma punção mediana são abordados os dois corpos cavernosos e, usando-se uma agulha de biópsia, reali- zam-se duas fístulas de cada lado pela retirada de tecidos. A técnica de Al-Ghorab consiste na realização de uma incisão de 2 cm transversal e paralela em 1 cm à borda da glande com estabelecimento direto da comunicação entre o corpo espon- joso e os corpos cavernosos. O fechamento subseqüente é ape- nas da superfície glandar em sutura contínua com mononáilon fino (figura 4). Devem-se evitar curativos compressivos a f im de não correr o risco de necrose peniana. No pós-operatório deve ser realizado o esvaziamento dos corpos cavernosos pela ordenha do pênis. As técnicas de Winter e de Al-Ghorab podem ser feitas com anestesia local. A técnica de Quackels determina uma fístula proximal pela retirada de uma janela da túnica albugínea de um corpo cavernoso com anastomose pela abertura do corpo esponjoso. A localização preferida deve ser perineal. • Cavernoso-safena - São mais amplas, tecnicamente mais complexas e com alta incidência de trombose espontânea. A técnica de Quackels bem como a de Grayhack (fístula cavernoso-safena uni ou bilateral) poderá ser realizada quan- TIPOS DE PRIAPISMO pH pO2 pCO2(mmHg) (mmHg) Hipoxêmico < 7,25 < 30 > 60 Não-hipoxêmico ~7,4 > 80 < 45 Tabela 2 Tabela 3 296 GUIA PR`TICO DE UROLOGIA do os procedimentos de Winter ou de Al-Ghorab forem consi- derados insucessos. Enfatiza-se que a abordagem cirúrgica só deve ser realizada quando as medidas conservadoras forem ineficazes e quando o tempo de evolução do quadro for supe- rior a 12 - 24 horas, com ameaça da função erétil. Implante de próteses penianas A impotência pós-priapismo é na maioria dos casos con- seqüente à fibrose do tecido erétil, mas também poderá ser devida à persistência da fístula cavernoso-esponjosa. Na presença da fibrose, está indicada a colocação de pró- tese, o que por vezes é tecnicamente muito difícil. Se a causa da impotência for devida à fístula, está indicada a respectiva ligadura ou embolização. Prevenção Se o priapismo estiver associado a nutrição parenteral, recomenda-se administrar lentamente emulsões gordurosas a 10% associadas a soluções de aminoácidos-dextrose. ALGORITMO PROPOSTO PARA A ABORDAGEM DO PRIAPISMO No priapismo induzido na vigência de anestesia, reco- menda-se aprofundamento anestésico, uso de betabloqueado- res ou cetamina. Na farmacoereção diagnóstica, não é prudente liberar ou deixar o paciente com rigidez peniana por mais de duas horas. A fim de prevenir o priapismo, faz-se necessário puncionar e esvaziar os corpos cavernosos, reservando-se o uso de drogas alfaadrenérgicas quando esta medida não for ef iciente, fato este incomum. Em pacientes com anemia falciforme, as medidas ge- rais de tratamento e de prevenção consistem em manter o paciente hidratado, oxigenado, alcalinizado e realizar trans- fusão sangüínea a fim de manter a hemoglobina em mais do que 10 g% e de reduzir a hemoglobina S a níveis abaixo de 30%. No priapismo recorrente, geralmente associado a anemia falciforme, em que os pacientes apresentam crises repetidas de ereções prolongadas, pode-se tentar tratá-los temporaria- mente com agonistas LH-RH, pentoxifilina, ou auto-injeção de drogas vasoativas durante as crises. “Shunt” cirúrgico “Shunt” cirúrgico “Shunt” cirúrgico “Shunt” cirúrgico Pós-trauma Drogas vasoativas Idiopático Anemia falciforme Aspiração dos corpos cavernosos + gasometria Medidas gerais + aspiração PersistênciaCURAHipoxêmicoHipoxêmico Aspiração + lavagem PIC < 40 mmHg 10’ CURA PIC > 50 mmHg PIC < 40 mmHg 10’ CURA Embolização (conduta expectante?) PIC > 50 mmHg Drogas simpaticomi- méticas Aspiração + lavagem com solução Drogas simpaticomi- méticas PIC < 40 mmHg 10’ CURA PIC > 50 mmHg Aspiração + lavagem com solução Aspiração + lavagem com solução PIC < 40 mmHg 10’ CURA PIC > 50 mmHg Não- hipoxêmicoNão- hipoxêmico PRIAPISMO “Shunt” cirúrgico Duplex-scan/ angiografia Aspiração + gasometria Figura 1 297GUIA PR`TICO DE UROLOGIA Prognóstico Apesar da intervenção cirúrgica, a manutenção da potên- cia não é maior do que 20% a 55% dos casos. Por outro lado, o prognóstico das ereções prolongadas após o uso de drogas vasoativas é bom com relação à fun- ção erétil ulterior. Cerca de 98% dos pacientes que tiveram ereções fármaco-induzidas por um tempo médio de 17,5 horas, recuperaram a potência após o tratamento baseado na aspiração e injeção de drogas simpaticomiméticas nos corpos cavernosos. Winter (1976) Cavernoso-esponjosas Al-Ghorab (1973) Quackels (1964) Cavernoso-safenas Grayhack (1964) Impotência Fibrose do tecido erétil próteses embolização Persistência da fístula fechamento Fístulas ausente presente PRIAPISMO E ABORDAGENS CIRÚRGICAS Bibliografia recomendada 1. BORRELLI M, WROCLAWSKI ER, GLINA S, PECORARO G, NOVARETTI JTP. Priapismo. In: Urgên- cias em urologia. São Paulo, Livraria Atheneu, 1985; 67-71. 2. BUTERNE XH, FRERE AM, BAYLE J, RAMPAL P. Priapism in a patient treated with total parenteral nutrition. J. Parenter Enteral Nutr, 1992; 16:171-4. 3. CHAN PT, GIN LR, ARNOLD D, JACOBSON SA, CORCOS J, BROCK GB. Priapism secondary to penile metastasis: a report of two cases and a review of the literature. J Surg Oncol, 1998; 68:51-9. 4. GIMBERGUES P, RAYNAUD F, RAVEL A, PEREZ N, GUY L, BOITEUX JP, BOYER L. Traitement par embolisation arterielle percutane d’un priapisme post-traumatique chez un enfant. Prog Urol, 1998; 8:258-61. 5. GLINA S, FRAGOSO JB, MARTINS FG. 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