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PATRIOTA, Antonio de Aguiar O Brasil e a PolÍtica Externa dos Eua

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4. Um dos que defendem esta postura é Alfred Stepan:
«The New Professionalism of Internai Warfare and Mi-
litary Role Expansion» em Abrahatn F. Lowenthal y J.
Samuel Fitch (eds.): Armies and Politics in /.aí/n Ameri-
ca, Holmes & Meier, Nova York, 1986, p. 134-150.
5. Veja Michael C. Desch: Civilian Control of the Milita-
ry: the Changing Security Environment, Johns Hopkins
University Press, Baltimore, Maryland, 1999.
6. David Pion-Berlin e Craig Arceneaux: «Decision-
Makers or Decision-Takers? Military Missions and Civilian
Control in Democratic South America» em Armed Forces
& Socíety, v. 26, n. 3, primavera de 2000, p. 413-436.
7. Veja Claude Welch, Ir.: No Farewell to Arms? Military
Disengagement from Politics In África and Latin Ameri-
ca, Westview Press, Boulder, 1987.
8. David Pion-Berlin: «Political Management of the Mi-
litary in Latin America» em Military Review, v. 85, n. 1,
1-2/2005, p. 19-31.
9. Para mais informações sobre este tema, veja D. Pion-
Berlin e Harold Trinkunas: «Attention Defidts: Why
Politicians Ignore Defense Policy in Latin America» em
Latin American Research Review, v. 42, n. 3, 10/2007,
p. 76-100.
10. Scott Morgenstern: «Explaining Legislative Politics
in Latin America» em Scott Morgenstern e Benito Nacif
(eds.): Legislative Politics in Latin America, Cambridge
University Press, Cambridge, 2002, p. 413-444.
96 POLÍTICA EXTERNA
O Brasil e a política externa dos EUA
António de Aguiar Patriota
Although the United States remains as the sole superpower in the international system, we can no longer say that
the current world orderfitsrigorously into a "unipolar" model.The resources, both political and military, atthe
disposal of the American government and society, although virtually unmatched, do not guarantee the capacity
of defining results on a global scale. The appearance of new actors, as well as the operation, albeit imperfect,
of the multilateral mechanisms, prevent Washington from being equated to what Rome once was, as demons-
trated by the Journalist Cullen Murphy in his book Are We Rome?
O sistema internacional atravessa um perío-
do de mudanças como não se vê há várias
centenas de anos. Estamos no início de uma
longa fase de ajustes cujo ponto de chegada
não é claro e. em que nossa sabedoria, sofisti-
cação e compreensão serão fundamentais.
Henry Kissinger1
Embora os Estados Unidos permane-
çam a única superpotência do sistema in-
ternacional, já não se pode dizer, hoje, que
a ordem mundial se enquadre em um mo-
delo rigorosamente "unipolar". Os recur-
sos políticos e militares de que dispõem o
governo e a sociedade norte-americanos,
ainda que .virtualmente incontrastáveis,
não lhes asseguram a capacidade de defi-
nir resultados em escala global. O apareci-
mento de novos atores e o funcionamento,
ainda que imperfeito, de mecanismos
multílaterais impedem que Washington
possa ser equiparada ao que foi Roma,
como bem ilustra o jornalista Cullen Mur-
phy em seu recente livro Are We Rome?.2
Desde o fim da Guerra Fria e da estru-
tura bipolar, o modo de interação dos Esta-
dos Unidos com o mundo vem sofrendo
constantes acomodações. A política externa
norte-americana tem oscilado entre mo-
mentos de maior e menor engajamento in-
ternacional, maior e menor apego ao multi-
lateralismo, maior e menor inclinação pelo
uso da força militar ou da diplomacia.
Essas oscilações não deixam de exercer
influência sobre as relações do Brasil com
os EUA. O momento promissor por que
passa o relacionamento bilateral coincide
com o período de maior abertura à coope-
ração ao qual corresponde a política exter-
na do segundo mandato de George W.
Bush.
Neste artigo, busco descrever o proces-
so de adaptações por que passa o sistema
internacional ("O mundo hoje"), a evolu-
ção recente da política externa dos Estados
Unidos ("A política externa norte-ameri-
cana: evolução recente") e o atual momen-
to das relações Brasil-EUA ("A atual polí-
tica externa norte-americana").
O mundo hoje
O sistema internacional atravessa um
período de transformações profundas. Na
António de Aguiar Patriota é embaixador do Brasil nos
Estados Unidos.
97 VOL 17 N°l JUN/JUL/AGO 2008
ausência de termo que se aplique à atual
configuração de poder em escala global,
pode-se dizer que o mundo se caracteriza,
hoje, pela superposição de elementos de
unipolaridade, multipolaridade e bipola-
ridade.
Unipolaridade porque os Estados Uni-
dos seguem sendo a única superpotência.
Seus gastos militares no ano fiscal de 2009
(que começa em outubro de 2008) poderão
ultrapassar os 700 bilhões de dólares, a
julgar pela proposta enviada pela Casa
Branca ao Congresso - quase 50% do total
estimado de todos os outros Estados.3 Sal-
ta aos olhos a diferença em relação ao se-
gundo colocado, a China, que, pelas cifras
oficiais, gastou com seu aparato de defesa,
em 2007, 45 bilhões de dólares.4 No campo
económico, a situação é análoga. O PIB
norte-americano, em 2007, foi de mais de
13 trilhões e meio de dólares. O do Japão,
segundo colocado, não chegou a 4 trilhões
e meio5 (embora a União Europeia, toma-
da em seu conjunto, apresente PIB supe-
rior ao dos EUA). Quando se trata de ciên-
cia e tecnologia, o desempenho dos EUA
continua sendo o mais impressionante. Os
cinco mais bem classificados institutos de
pesquisa do mundo são norte-america-
nos.6 Dos vinte melhores, 12 estão nos Es-
tados Unidos, ficando os oito restantes
pulverizados entre outros seis atores.7 No
que se refere a produção académica, da-
quelas que seriam, de acordo com o Natio-
nal Research Council, as vinte mais bem
conceituadas universidades do mundo,
apenas uma não é norte-americana (a dé-
cima nona, que é a Universidade de Cam-
bridge, na Inglaterra).8
Mas mesmo com todo esse poderio os
Estados Unidos não logram, por si sós,
assegurar a consecução de objetivos no
plano internacional, como ilustram, entre
outras, as situações no Iraque e no Afega-
nistão. Constata-se também a existência
de vulnerabilidades internas à superpo-
tência, como evidenciam, por exemplo,
uma balança comercial deteriorada e, mais
recentemente, a crise desencadeada no
mercado imobiliário subprime.
Os elementos de multipolaridade de-
correm do papel desempenhado não ape-
nas pelas potências da segunda metade do
século XX, mas também por agentes que,
pela primeira vez, têm atuação mais efeti-
va nos processos decisórios internacionais
- caso de grandes democracias do mundo
em desenvolvimento como o Brasil, a ín-
dia e a África do Sul. É significativo que
esses'três países tenham sido convidados,
pelos EUA, para a Conferência de Anna-
polis sobre o Oriente Médio, em novem-
bro de 2007. Igualmente reveladora é a
participação dos mesmos três países, acres-
cidos da China e do México, nas delibera-
ções do G-8, sob a forma do G-8 + 5. E no
mesmo sentido apontam a mudança da
dinâmica negociadora da OMC, a partir
do surgimento do G-20, e a crescente dis-
seminação da ideia de que o Conselho de
Segurança das Nações Unidas precisa ser
ampliado para tornar-se mais representa-
tivo e eficaz.
Podem-se também discernir, no sistema
internacional contemporâneo, elementos
de uma incipiente bipolaridade associa-
dos à ascensão da China - é interessante
haver John Bolton, ex-embaixador dos
EUA junto à ONU, observado que os EUA
e a China seriam, a seu ver, os dois mais
importantes membros do Conselho de Se-
gurança.9 Não se trataria de bipolaridade
como a da Guerra Fria. Basta lembrar a
interdependência existente entre as econo-
mias norte-americana e chinesa. Ou o fato
de que Washington e Pequim não dispõem
de esferas claramente circunscritas de in-
fluência, como ocorria entre os Estados
Unidos e a União Soviética. Em certas
instâncias, as duas capitais chegam mes-
mo a se associar na preservação do status
quo - vide a oposição de ambos à proposta
de ampliação do Conselho de Segurançacirculada em 2005 por Brasil, Alemanha,
98 POLÍTICA EXTERNA
O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA
índia e Japão. Mas, para além dos desafios
de segurança relativos ao combate ao ter-
rorismo, um dos temas que mais preocupa
os formuladores e estudiosos da política
externa dos EUA é a administração do re-
lacionamento com uma China que cami-
nha para a condição de segunda maior
potência do planeta.
A política externa norte-
americana: evolução recente
A política externa norte-americana
vem-se ajustando ao processo de acomo-
dações por que passa o sistema internacio-
nal desde o fim da Guerra Fria.
No imediato pós-Guerra Fria, o mundo
terá vivido um "momento unipolar", para
usar a expressão de Charles Krautham-
mer.10 Prevalecia a sensação de que se
inauguraria uma era de consensos. Fran-
cis Fukuyama, com seu "fim da história",11
chegou a sustentar que, vencida a oposi-
ção entre o ideário comunista e o modelo
ocidental, não haveria alternativa para a
democracia e o livre mercado. A comuni-
dade das nações já contaria com sua "sín-
tese" histórica. Derrotado o "império
soviético", o sistema de Estados se organi-
zaria em torno da superpotência sobrevi-
vente. Como escreveu Zbigniew Brze-
zinski, "maio de 1945 já havia definido a
nova posição dos EUA como a principal
potência democrática do mundo; dezem-
bro de 1991 marcou sua ascensão como a
primeira potência verdadeiramente global
do mundo".12 Era a Pax Americana.
É nesse ambiente que é eleito o presi-
dente George H. W. Bush (também referi-
do como "Bush 41", para distingui-lo de
seu filho George W. Bush, o 43° presidente
dos EUA). Sob a égide do "momento uni-
polar", a predominância norte-americana
coincidiu com um horizonte de oportuni-
dades no cenário internacional. Moscou
lidava com os escombros da União Sovié-
tica. As perspectivas das relações de Wa-
shington com o conjunto da Europa eram
de crescentes convergências. A China ain-
da não se delineava como potência de al-
cance global, e o Japão permanecia aliado
certo. Com a "Iniciativa para as Améri-
cas", aquilo que nos EUA se costuma de-
nominar "Hemisfério Ocidental" se con-
vertia, no discurso de Bush 41, em espaço
privilegiado de cooperação. A partir da
intervenção no Iraque, em 1991, autoriza-
da pelo Conselho de Segurança das
Nações Unidas e objeto de amplo apoio
internacional, era possível imaginar um
Oriente Médio menos instável. A Confe-
rência de Madri representaria a contrapar-
tida ao apoio oferecido pelo mundo árabe
à ação militar para a desocupação do
Kuwait, com os EUA na liderança do pro-
cesso de paz que levaria, nos primeiros
meses do governo do presidente Bill Clin-
ton, aos Acordos de Oslo. Vivia-se a im-
pressão de que todos aspiravam aos mes-
mos objetivos. Bush 41, afeito à esfera
internacional e com experiência diplomá-
tica, parecia presidir também ao que ele
próprio chamou de "nova ordem mun-
dial", expressão que se tornou a marca de
um político que, na Casa Branca, deu si-
nais de haver-se dedicado mais à frente
externa do que à agenda doméstica.
Mas os consensos do imediato pós-
Guerra Fria duraram pouco. Conflitos não
tradicionais ganharam em importância,
sem detrimento da persistência de confli-
tos entre Estados: as crises da Somália e da
ex-Iugoslávia, o genocídio em Ruanda e as
tensões recorrentes no Oriente Médio pós-
Oslo apontavam para um cenário de im-
previsibilidade.
Em 1993, Bill Clinton assume a presi-
dência dos Estados Unidos. O fenómeno
da globalização estruturou o modo como
o novo presidente conceberia a inserção
dos EUA no mundo. Zbigniew Brzezinski,
que salienta a falta de experiência diplo-
99 VOL 17 N°l JUN/JUL/AGO 2008
mática de Clinton e sua preferência por
política interna, comenta que a ênfase de
Clinton na globalização "propiciava fór-
mula conveniente para a junção do inter-
no e do externo em um dado aparente-
mente coerente, liberando-o da obrigação
de definir uma estratégia disciplinada de
política externa".13
Seja como for, a política externa de Bill
Clinton adquire a marca do engajamento.
Especialmente durante os últimos quatro
anos de sua administração, com Madelei-
ne Albright à frente do Departamento de
Estado, os EUA assumiriam grande ativis-
mo internacional. Albright promoveu o
que chamaria de "multilateralismo asser-
tivo" - mostrando-se talvez mais assertiva
do que mulrilateral. Na vizinhança ime-
diata, verificaram-se os esforços pela apro-
vação do Nafta e, posteriormente, o desen-
volvimento do projeto da Alça e o início
do processo da Cúpula das Américas. Al-
bright costumava afirmar serem os EUA
"a nação indispensável",14 asseverando
que, "do alto de nossa estatura, enxerga-
mos mais longe do que outros países".15
O desejo de uma liderança que fosse
percebida como "benigna" levou Bill Clin-
ton a buscar comprometer os EUA com
vários instrumentos multilaterais - o Pro-
tocolo de Quioto, o CTBT (Tratado de
Proscrição de Testes Nucleares), o TPI (Tri-
bunal Penal Internacional). Em todos os
casos, contudo, um Congresso de maioria
republicana e avesso a compromissos in-
ternacionais vinculantes inviabilizou o
processo de ratificação dos textos assina-
dos. O Senado rejeitou o CTBT; quanto a
Quioto e ao TPI, o Executivo sequer consi-
derou haver reunido as condições políti-
cas necessárias para submetê-los a consi-
deração parlamentar.
Bill Clinton reagiu aos desafios especí-
ficos que se apresentaram a seu governo
alternando impulsos unilaterais com coor-
denação diplomática. No caso das crises
balcânicas da década de 1990, por exem-
plo, exerceu pressão sobre o regime de
Slobodan Milosevic, tendo procurado
encaminhar o tema, sob formato plurilate-
ral, nos Acordos de Dayton, assinados em
dezembro de 1995. Em 1999, esteve por
trás da ofensiva da Otan no Kosovo contra
alvos sérvios, sem preocupar-se com auto-
rização prévia do Conselho de Segurança
das Nações Unidas. Quanto aos esforços
de desnuclearização da Coreia do Norte,
negociou com Pyongyang, diplomatica-
mente, em 1994, um acordo que seria rom-
pido nos primeiros meses da administra-
ção de seu sucessor. Ao mesmo tempo,
não agiu, na avaliação de vários observa-
dores, para que o Conselho de Segurança
atuasse de maneira tempestiva frente ao
genocídio de Ruanda.16 Tampouco teve
êxito em seu esforço mediador para o
Oriente Médio em Camp David. Em 1998,
sucumbiria a impulsos unilaterais nos
bombardeios ao Sudão e na operação "Ra-
posa no Deserto", contra o Iraque.
Meses após o fim da era Clinton, o ce-
nário político global sofreu o impacto dos
atentados terroristas de 11 de Setembro de
2001, em Washington, Nova York e Pensil-
vânia. George W. Bush chegara à Casa
Branca, meses antes, sob forte influência
neoconservadora. Em pouco tempo, o ter-
rorismo seria elevado ao topo de sua agen-
da internacional. A "luta contra o terror",
em diferentes medidas, passou a envolver
ou afetar a comunidade internacional co-
mo um todo: ataques subsequentes em
Madri, Londres e Bali contribuíram para a
percepção de que nenhum país estava
imune a ações terroristas.
No imediato pós-11 de Setembro, o
mundo emprestou forte solidariedade aos
EUA. Washington interveio militarmente
contra o Talibã no Afeganistão, com a au-
torização do Conselho de Segurança das
Nações Unidas. Por breve período, che-
gou-se a imaginar que a ameaça terrorista
100 POLÍTICA EXTERNA
O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA
poderia criar espaços de cooperação e for-
talecimento do multilateralismo. Como
escreveu Anne-Marie Slaughter, da Uni-
versidade de Princeton, em seu The Idea
That Is America, o mundo inteiro, logo
após os ataques de 11 de Setembro, "pôs-
se a nosso lado, chocado e com tristeza; é
comum esquecermos aquele momento de-
masiado breve de solidariedade global,
aquela oportunidade de unir quase todos
os países na luta contra o terrorismo e su-
as causas profundas".17O espírito de união e cooperação do
imediato pós-11 de Setembro duraria pou-
co, menos ainda do que o verificado no
imediato pós-Guerra Fria. Em março de
2003, teve início a operação militar contra
o Iraque de Saddam Hussein, "guerra
preemptiva" que desafiou os preceitos da
Carta da ONU. Começou a configurar-se,
na administração de George W. Bush, um
padrão de conduta internacional que po-
deria ser qualificado como de "engaja-
mento unilateralista". Ganhou espaço a
noção de que seria papel dos Estados Uni-
dos combater o terrorismo e a proliferação
de armas de destruição em massa, e di-
fundir a democracia e o livre comércio em
escala global - se necessário, ao amparo
da doutrina da preemptive action, a custo
de ações militares e "mudanças de regi-
me". Impulsionaram essa noção não ape-
nas o universo dos neoconservadores,
mas os "falcões" de toda ordem, que coin-
cidiam, na prática, com as prescrições
unilateralistas e belicosas do neoconser-
vadorismo.
A "Segunda Guerra do Golfo" repercu-
tiu sobre os frágeis equilíbrios do Oriente
Médio. Polarizaram-se as relações entre
sunitas e xiitas. O Ira ampliou seu raio de
influência regional. Uma guerra - cuja
justificativa primeira, a presença de armas
de destruição em massa no Iraque, pro-
vou-se sem fundamento - provocou, na
leitura de analistas de diferentes tendên-
cias, danos consideráveis à imagem in-
ternacional da superpotência. Outros as-
pectos rela'tivos à política dos EUA de
combate ao terrorismo, como aqueles liga-
dos à prisão de Guantânamo e a seu siste-
ma jurídico próprio, além dos abusos co-
metidos por militares norte-americanos
em Abu Ghraib, afetaram negativamente
o soft power de Washington.
Com o tempo, os obstáculos que se
impunham - e ainda se impõem - à re-
construção do Iraque pós-Saddam Hus-
sein, assim como à própria liderança dos
EUA no Oriente Médio, ganharam em vi-
sibilidade junto à opinião pública interna-
cional e também junto à sociedade norte-
americana. Fizeram-se sentir, então, as
implicações domésticas da política ira-
quiana do governo de George W. Bush. O
desgaste do unilateralismo tornou-se evi-
dente e o neoconservadorismo esgotou-se
como ideário político. A cidadania norte-
americana acusou o golpe: depois de mais
de uma década de preponderância repu-
blicana no Capitólio, as eleições de meio-
mandato de novembro de 2006 devolve-
ram aos democratas o controle da Casa
dos Representantes e do Senado. A mensa-
gem era claramente de mudança. Especia-
listas em política externa norte-americana
passavam a defender um novo tipo de
engajamento internacional, baseado na
cooperação e no diálogo. Brent Scowcroft,
em debate com Hertry Kissinger e Zbig-
niew Brzezinski, assim resume, em junho
de 2007, o que parece ser, nos Estados
Unidos, o consenso emergente: "Creio que
nós [os EUA] somos parte do mundo, que
queremos cooperar com o mundo. Afinal,
fomos nós que pusemos de pé a Liga das
Nações, a ONU, a Otan. Essa é a maneira
como fazemos as coisas. Essa é a maneira
como queremos fazer as coisas. Desejamos
trabalhar com amigos, com aliados, com
pessoas de boa vontade para fazer deste
um mundo melhor".18
101 VOL 17 N°l JUN/JUL/AGO 20C
A atual política externa
norte-americana
As eleições legislativas de novembro
de 2006 fizeram soar um "alarme" ao qual
se podem associar inflexões importantes
na ação externa norte-americana. A verda-
de, porém, é que, mais acentuadamente
em algumas áreas do que em outras, essas
inflexões já se ensaiavam desde os primei-
ros meses do segundo mandato de George
W. Bush. Para fins de análise, pode-se es-
tabelecer, como marco inicial do ajuste de
rumo da política externa de Bush 43, o
momento anterior às eleições de 2006, em
que Condoleezza Rice assume o Departa-
mento de Estado. Já naquela altura, postu-
ras como a recusa ao diálogo com governos
considerados hostis e a tomada de decisões
sem preocupação com seu grau de aceita-
bilidade internacional começaram a ser
substituídas por um renovado "realismo",
orientação que os conhecedores da trajetó-
ria de Condoleezza Rice nunca deixaram
de lhe atribuir. Na prática, constata-se
que, a partir de 2005, tendências neocon-
servadoras são gradualmente substituídas
por uma visão mais pragmática, ou "rea-
lista", das relações internacionais.
Exemplo significativo é a renovada
aposta na diplomacia, em 2005, no tocante
ao processo de desnuclearização da Co-
reia do Norte. Essa atitude ficou paten-
te na abordagem mais construtiva de
Washington no âmbito das "conversações
hexapartites", que envolvem também a
China, a Rússia, o Japão e as Coreias. No
caso do Ira, os EUA passaram a apoiar,
também em 2005, os esforços negociado-
res do Reino Unido, da França e da Ale-
manha (o "UE-3").
A retomada, pelos Estados Unidos, dos
esforços de paz no Oriente Médio, em
2007, é mostra de que, em Washington, a
problemática do terrorismo aponta hoje
para a necessidade de um engajamento
internacional maior e qualitativamente di-
ferente. A Conferência de Annapolis, de
novembro de 2007, ilustra esse ponto. A
iniciativa poderá ter sido motivada em
parte por um desejo de isolar o Ira, hipó-
tese sobre a qual muito se especulou. Mas
representa uma retomada, por Washing-
ton, da mobilização internacional no trata-
mento do conflito israelo-palestino.
Em Annapolis, o chanceler Celso Amo-
rim recordou que, na sessão de abertura
da Assembleia Geral das Nações Unidas
de 2006, o presidente Lula realçara a ne-
cessidade de que mais países se engajas-
sem nos esforços de paz no Oriente Mé-
dio, inclusive países em desenvolvimento
que mantivessem boas relações com ára-
bes e israelenses. A lista de convidados
para Annapolis respondeu a essa visão.
Talvez tal lógica já esteja sendo vista como
elemento relevante não somente para o
êxito do processo de paz no Oriente Mé-
dio, mas também para a promoção da paz
em sentido mais amplo.
O momento atual das
relações Brasil-EUA
Não foram poucos os que imagina-
ram um desgaste nas relações Brasil-EUA
quando da eleição do presidente Lula. Em
um primeiro momento, as negociações da
Alça esbarraram em uma incompatibilida-
de de pontos de vista quanto à própria fi-
nalidade do exercício: o Brasil, com seus
parceiros do Mercosul, interessava-se por
maior acesso ao mercado norte-america-.
no; os Estados Unidos desejavam promo-
ver harmonização regulatória em temas
como investimentos, compras governa-
mentais e propriedade intelectual, com
padrões mais rígidos que os da OMC. Mas
a dificuldade de ratificação, pelo Congres-
so norte-americano, do Cafta, aprovado
em julho de 2005 por margem de apenas
um voto, sinalizou mudança significati-
102 POLÍTICA EXTERNA
O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA
va no ambiente político norte-americano
quanto a acordos de livre comércio - e o
novo ambiente, ao esvaziar em Washing-
ton o processo da Alça, contribuiu indire-
tamente para uma aproximação pragmáti-
ca entre o Brasil e os Estados Unidos. É
verdade que o presidente Lula começara a
construir uma relação de franqueza e con-
fiança com seu homólogo norte-americano
a partir das visitas que fez aos Estados
Unidos em 2002, ainda como presidente
eleito e, no ano seguinte, já no primeiro
ano de seu governo. Mas o cenário em que
ocorreria uma mudança qualitativa nas
relações bilaterais configurou-se mais cla-
ramente no segundo mandato de George
W. Bush.
Sob Condoleezza Rice, o Departamen-
to de Estado passou a dedicar mais aten-
ção, em sua política para a América Lati-
na, aos países maiores e ao Brasil em
particular - em contraste com períodos
anteriores, em que a prioridade parecia
ser a América Central e o Caribe. Com as
sucessivas eleições de governos "rotula-
dos" como de "esquerda" e de "centro-
esquerda" na região, os EUA matizaram o
prisma ideológico através do qual ten-
diam a conceber as relações com a Améri-
ca Latina comoum todo, passando a reco-
nhecer a importância da agenda do
combate à pobreza e do desenvolvimento
social. O Brasil passou a ser mais clara-
mente identificado, em Washington, como
ator de influência regional e global. As
afinidades multiétnicas e democráticas fo-
ram revalorizadas e surgiram novas áreas
de convergência.
No Brasil, em paralelo à ênfase na inte-
gração sul-americana e ao estabelecimento
de parcerias com as demais regiões em
desenvolvimento, o caráter universal da
política externa do governo Lula permitiu
que um movimento de aproximação com
os países do Sul se realizasse sem prejuízo
do relacionamento com parceiros do mun-
do desenvolvido. Foi nesse contexto que a
União Europeia conferiu ao Brasil status
de parceiro estratégico. Foi também nesse
contexto que começou a ser escrito um
capítulo de renovação e amadurecimento
da relação bilateral entre o Brasil e os Esta-
dos Unidos.
É possível afirmar que uma promisso-
ra fase das relações bilaterais se consolida
a partir do encontro que os presidentes
Lula e Bush mantiveram na Granja do
Torto, em novembro de 2005. Na véspera,
haviam fracassado os esforços norte-ame-
ricanos para obter, na IV Cúpula das Amé-
ricas, em Mar dei Plata, uma declaração a
favor da Alça - assessor próximo ao presi-
dente Bush chegou a comentar que, em
Mar dei Plata, os EUA haviam-se resigna-
do a evitar o "enterro definitivo" daquele
exercício negociador. Ficava subentendido
que a Alça fora posta entre parênteses.
No comunicado conjunto que emanou
do encontro presidencial da Granja do
Torto, foram feitas as primeiras referên-
cias ao estabelecimento de um "diálogo
estratégico"19 entre o Brasil e os Estados
Unidos. O texto incluía também menção à
importância do Mercosul e da Comunida-
de Sul-Americana de Nações para a inte-
gração das Américas e para a promoção
da estabilidade e da democracia na região,
no que terá sido a primeira manifestação
formal, da parte dos EUA, de reconheci-
mento da especial relevância das iniciati-
vas sul-americanas de integração. Igual-
mente, Bush comentaria em ocasiões
subsequentes que, naquele encontro, o
presidente Lula o entusiasmara com res-
peito à experiência brasileira em matéria
de biocumbustíveis.
O estabelecimento do diálogo estraté-
gico tinha sido articulado alguns meses
antes do encontro da Granja do Torto à
margem da abertura da Assembleia Geral
das Nações Unidas, por sugestão do então
subsecretário de Estado para Assuntos Po-
líticos, Nicholas Burns. A caracterização
do diálogo bilateral sobre temas políticos
103 VOL17 N°l JUN/JUL/AGO 2008
como "estratégico" já era aplicada pelos
Estados Unidos a suas consultas com paí-
ses como China, índia, Japão e Rússia. De
certa forma, o estabelecimento de tal diá-
logo anteciparia o reconhecimento do Bra-
sil como ator de influência não apenas re-
gional, mas também global. Em abril de
2007, a secretária de Estado Condoleezza
Rice assim o declarou, em Washington, ao
apresentar balanço da viagem do presi-
dente Bush à região no mês anterior.
Diálogo estratégico não se confunde
com parceria estratégica ou alinhamento.
A ampliação do diálogo político fornece
elementos para o amadurecimento das re-
lações entre os dois países, mas persistem
divergências, como aquelas associadas às
negociações sobre as regras que se apli-
cam, na OMC, ao comércio de bens agríco-
las; à forma como foi concebida a invasão
do Iraque; e, em certa medida, à democra-
tização das instâncias decisórias multilate-
rais, que vem sendo ativamente promovi-
da pelo Brasil. Sobre este último ponto, se,
por um lado, os dois países convergem,
em teoria, quanto ao objetivo de fortalecer
o multilateralismo, por outro, obstáculos
foram levantados a iniciativas lideradas
pelo Brasil no plano multilateral, como o
G-20, na Conferência Ministerial da OMC
em Cancún (2003), e a çroposta que, em
2005, Brasil, Alemanha, índia e Japão cir-
cularam para a ampliação do Conselho de
Segurança.
Assim, com o diálogo estratégico sur-
gia uma maior faixa de sintonia. A atual
convergência em relação à estabilização
do Haiti, por exemplo, contrasta com pe-
ríodo ainda recente, em meados da década
de 1990, em que o Brasil e os EUA não
chegaram a uma visão comum sobre o
tratamento a ser dado à questão haitiana.
São frequentes as manifestações de apreço
de autoridades norte-americanas, inclusi-
ve do secretário de Defesa Robert Gates,
em relação à liderança demonstrada pelo
Brasil na Minustah. Quanto à África, o
Brasil e os EUA, por meio de iniciativas de
cooperação "trilateral", estão conferindo
contorno concreto ao desejo comum de
trabalhar pela promoção da paz, da demo-
cracia e da prosperidade no continente
africano, uma sinalização inovadora em si
mesma.
Ao longo de 2006, a intensa interlocu-
ção entre os ministros de Relações Exterio-
res e entre os subsecretários do Itamaraty
e do Departamento de Estado prepararia o
terreno para a sequência de encontros en-
tre os dois presidentes em 2007.
Em março de 2007, a segunda visita do
presidente George W. Bush ao Brasil se
organizou em torno de agenda essencial-
mente positiva, com a discussão de ternas
como cooperação energética, paz no Haiti,
promoção do desenvolvimento e comércio
internacional. Foi assinado, na ocasião, o
Memorando de Entendimento para o Avan-
ço da Cooperação em Biocombustíveis.
A cooperação no campo energético,
com ênfase em biocombustíveis, passou a
desempenhar papel indutor da diversifi-
cação da agenda entre Brasil e Estados
Unidos. Como afirmou a secretária Rice,
"o acordo de etanol com o Brasil é apenas
o começo de uma relação transformada,
apropriada ao tamanho e importância do
Brasil, regional e globalmente". O Brasil e
os EUA, como detentores de cerca de 70%
da produção mundial de etanol, associa-
ram-se na promoção de novas fontes alter-
nativas de energia. A assinatura do memo-
rando de entendimento representaria um
marco de repercussão internacional. Além
da vertente de cooperação bilateral, o do-
cumento anunciava a possibilidade de co-
operação em terceiros países e consignava
um esforço plurilateral - em parceria com
a União Europeia, China, índia e África do
Sul - voltado para o desenvolvimento de
padrões técnicos universalmente aceitos
para o etanol.
No mesmo mês de março de 2007, os
presidentes Lula e Bush se reencontraram
104 POLÍTICA EXTERNA
em Camp David, onde o presidente do
Brasil foi recebido para reunião de traba-
lho em localidade reservada a líderes de
países considerados influentes e amigos.
Além de discussão aprofundada sobre
energia, Rodada Doha, América do Sul,
África e apoio consular a cidadãos brasi-
leiros nos Estados Unidos - entre outros
assuntos -, ocorreu pormenorizada e pro-
dutiva conversa sobre a reforma do Conse-
lho de Segurança da ONU. A Embaixada
em Washington receberia instruções para
intensificar o diálogo sobre esse tema.
Também do ponto de vista econômico-
comercial o encontro de Camp David
gerou resultados importantes. Os dois
presidentes registraram a constituição do
Fórum de Inovação e criaram o Fórum de
Altos Executivos de Empresas Brasil-EUA
(CEO Fórum), voltado para o intercâmbio
direto de informações e a identificação de
novos caminhos para a intensificação dos
contatos entre os setores privados de am-
bos os países. Os presidentes Lula e Bush
anunciaram programa de cooperação tri-
lateral em biocombustíveis com o Haiti,
República Dominicana, El Salvador e São
Cristóvão e Nevis. Comprometeram-se a
dar seguimento à conclusão de acordo bi-
lateral sobre bitributação, além de terem
renovado o memorando de entendimento
no campo educacional e a parceria em ciên-
cia e tecnologia.
Esses avanços em Camp David. vieram
somar-se a uma relação econômico-comer-
cial que já é robusta e apresenta grande
potencial de crescimento. Os Estados Uni-
dos permanecem o maior parceiro comer-
cial individualdo Brasil e maior investi-
dor estrangeiro no país. Os investimentos
e o comércio bilateral entre o Brasil e os
Estados Unidos vêm crescendo continua-
mente nos últimos anos. Das quinhentas
maiores empresas norte-americanas, pelo
menos trezentas realizam negócios com o
Brasil. Destas, 60% possuem investimen-
tos no setor industrial. Empresas brasilei-
ras também têm-se destacado no mercado
norte-americano. Merece registro nossa
participação nos setores aeronáutico, de
agronegócios, de serviços de engenharia e
construção e siderurgia. Em 2007, os EUA
responderam por 15,6% das exportações
brasileiras e 15,5% de nossas importações
globais. Entre 2004 e 2007, o comércio total
entre os dois países passou de 32 bilhões
para 44 bilhões de dólares. O exame da
pauta bilateral revela que houve cresci-
mento nas exportações de cerca de cin-
quenta dos cem principais produtos ex-
portados para os EUA em 2007.20
Individualmente, os Estados Unidos
são os maiores investidores diretos no
Brasil. O total de recursos investidos por
empresas norte-americanas no país mais
que dobrou nos últimos dez anos. Em
2007, o fluxo líquido de investimento dire-
to estrangeiro para o Brasil totalizou o
valor de US$ 34,6 bilhões, dos quais os
EUA contribuíram com US$ 6,1 bilhões.21
O Brasil também se apresenta como inves-
tidor cada vez mais ativo na economia
norte-americana. Em 2007, o estoque de
investimento brasileiro nos EUA superou
os 6 bilhões de dólares.22
Interessante notar que a ampliação da
agenda política está contribuindo para
que divergências no campo comercial não
sejam superdimensionadas, como nas
questões do licenciamento compulsório
de patentes para medicamentos ou de di-
ferendos levados ao sistema de solução de
controvérsias da OMC. Interpelado, em
visita ao Brasil em 2007, sobre pedido
brasileiro de consultas aos Estados Uni-
dos relativo a subsídios agrícolas, o então
subsecretário de Estado para Assuntos
Políticos, Nicholas Burns, afirmou consi-
derar "normal" o fato de o Brasil e o Ca-
nadá terem ingressado na OMC com
aquela queixa. Declarou Burns: "Canadá,
EUA e Brasil são os melhores sócios do
mundo, e as disputas não vão interferir
nas relações".
105 VOL 17 N"l JUN/JUL/AGO 2008
As relações do Brasil com os Estados
Unidos atravessam momento positivo,
com crescente confiança recíproca e res-
peito mútuo. No caso do Brasil, não se
justifica o sentimento por vezes expresso
em análises da política externa norte-ame-
ricana de que Washington não dedica
atenção suficiente à América Latina. É re-
veladora da atenção diferenciada que vem
sendo dispensada ao Brasil a iniciativa da
Comissão de Relações Exteriores da Casa
dos Representantes dos EUA de elaborar e
aprovar resolução específica sobre as rela-
ções bilaterais. Na resolução, de 9 de outu-
bro de 2007, o Legislativo Norte-america-
no "reconhece que os Estados Unidos e o
Brasil atingiram um ponto de confluência
estratégica de interesses" e cita frase da
secretária Condoleezza Rice, para quem
"os EUA vêem o Brasil como um líder re-
gional e um parceiro global".
Sem dúvida, contribuem para essa per-
cepção positiva elementos intrínsecos à rea-
lidade brasileira atual, como a estabilidade
macroeconômica, o crescimento da econo-
mia com redução de desigualdade, o enrai-
zamento democrático e o perfil mais atuan-
te e criativo de nossa política externa.
Ao olharmos para o futuro,-é possível
afirmar que, nas grandes linhas, as mu-
danças que os críticos do neoconservado-
rismo esperavam dos Estados Unidos em
matéria de política externa já estão sendo
operadas pela própria Casa Branca de
Bush 43. Apesar de que se assiste a uma
campanha eleitoral em que a palavra de
ordem é "mudança", o mais provável é
que o próximo ocupante da Casa Branca
tenda a não se afastar em demasia daquilo
que a administração Bush procura articu-
lar em seus derradeiros esforços interna-
cionais.
É verdade que o humor, em determina-
dos segmentos da sociedade norte-ameri-
cana, parece favorecer uma retração do
papel internacional dos EUA, dada a fadi-
ga de uma ação externa profundamente
controvertida. Mas os desdobramentos
dos últimos anos, sobretudo as dificulda-
des enfrentadas no Iraque e, mais ampla-
mente, a ineficácia do unilateralismo, ten-
dem a apontar, em Washington, para a
busca de um engajamento pela coopera-
ção. É amplamente difundido, entre os
assessores de política externa dos pré-can-
didatos à presidência - os senadores John
McCain, Barack Obama e Hillary Clinton
-, o sentimento de que um desengajamen-
to internacional dos Estados Unidos sim-
plesmente não é viável.
Ao mesmo tempo em que o consenso
parece apontar para a premência do diálo-
go e da cooperação, persiste, no âmbito
dos que pensam a política externa norte-
americana, a crença no "excepcionalismo
norte-americano" - os EUA seriam uma
nação "escolhida", diferente de todas as
demais. Mesmo entre personalidades con-
sideradas mais "progressistas", advoga-se
maior engajamento internacional, defen-
de-se a necessidade de alianças abrangen-
tes, rejeita-se o unilateralismo, mas não
necessariamente se abre mão do "excep-
cionalismo".
O "excepcionalismo", em sua manifes-
tação internacional, leva à noção de que
seria "natural" não se submeterem os EUA
às normas que, no mais, se aplicam ao
conjunto dos atores do sistema internacio-
nal - por exemplo, as Convenções de Ge-
nebra sobre o Direito Internacional Huma-
nitário. É como se, por força de sua própria
natureza, os Estados Unidos constituís-
sem uma "exceção legítima" ao direito
internacional.23
Francis Fukuyama, em seu America at
the Crossroads, examina os motivos pelos
quais a ação do governo de George W.
Bush no Iraque teria despertado tamanha
onda de antiamericanismo no mundo. O
autor salienta o reconhecimento implícito,
106 POLÍTICA EXTERNA
O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA
no documento "Estratégia de Segurança
Nacional dos Estados Unidos", emitido
pela Casa Branca em setembro de 2002, do
"excepcionalismo norte-americano". Es-
creve Fukuyama: "Claramente, a doutrina
da guerra preventiva não pode ser genera-
lizada de forma segura para todo o siste-
ma internacional. Vários países enfrentam
ameaças terroristas e poderiam inclinar-se
a lidar com essas ameaças por meio de
intervenções 'preemptivas' ou da derru-
bada de regimes que supostamente abri-
gam terroristas. A Rússia, a China e a
índia se encaixam nessa categoria. Entre-
tanto, se qualquer dos três países anun-
ciasse uma estratégia geral de guerras
preventivas/'preemptivas' como meio pa-
ra lidar com o terrorismo, os EUA seriam,
sem dúvida, os primeiros a objetar. O fato
de que os norte-americanos se dão um
direito que negariam a outros países se
baseia, na 'Estratégia de Segurança Nacio-
nal', em um julgamento implícito de que
os Estados Unidos são diferentes de ou-
tros países e de que se pode confiar que
utilizarão seu poder militar de maneira
justa e sábia, como outras potências não
necessariamente fariam".24
Há vozes nos Estados Unidos que con-
testam o "excepcionalismo", apesar de
tratar-se de conceito de raízes históricas
fortemente arraigadas. A aceitação de que
o "excepcionalismo" é essencialmente in-
compatível com o multilateralismo - tal
como consolidado ao longo de vários sé-
culos25 - é pressuposto que aparece na re-
flexão de influentes intelectuais norte-
americanos, como Anne-Marie Slaughter.
A professora de Princeton assinala, em The
Idea That Is America: "A rejeição a que se
imponham quaisquer limites à nossa so-
berania, em áreas como teste de armas
nucleares e uso preventivo da força, pode
nos impedir de impor limites sobre tercei-
ros, tornando o mundo um lugar mais
perigoso. Se pensamos em nós como uma
cidade auto-suficiente na colina, sugeri-
mos ao resto do mundo que nós somos o
farol que espalha luz para outros países.
Mas se pensamos menosem nós e mais
nos nossos ideais, nos unimos a outros
países e nossos ideais é que passam a ser a
luz que brilha sobre todos".26 Apesar de
argumentações como a de Slaughter27 pa-
rece pouco provável, porém, que, no futu-
ro próximo, os EUA evoluam na direção
por ela imaginada.
Em um mundo mais multipolar, cabe-
rá a atores como o Brasil demonstrar que
somente com a sedimentação de um mul-
tilateralismo revigorado, sem "excepcio-
nalismos", será possível reproduzir, no
plano internacional, o ambiente propício
à realização humana que é garantido, no
interior dos países, pelo Estado de Direi-
to e pela democracia representativa. Pa-
ralelamente, à medida que ampliamos
nossas convergências com os Estados
Unidos, com base em valores comparti-
lhados, como duas grandes democracias
multiétnicas, aumentarão as oportunida-
des para ações conjuntas inovadoras em
benefício dos dois países, das Américas e
do mundo.
107 VOL 17 N"l JUK/JUL/AGO 2008

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