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4. Um dos que defendem esta postura é Alfred Stepan: «The New Professionalism of Internai Warfare and Mi- litary Role Expansion» em Abrahatn F. Lowenthal y J. Samuel Fitch (eds.): Armies and Politics in /.aí/n Ameri- ca, Holmes & Meier, Nova York, 1986, p. 134-150. 5. Veja Michael C. Desch: Civilian Control of the Milita- ry: the Changing Security Environment, Johns Hopkins University Press, Baltimore, Maryland, 1999. 6. David Pion-Berlin e Craig Arceneaux: «Decision- Makers or Decision-Takers? Military Missions and Civilian Control in Democratic South America» em Armed Forces & Socíety, v. 26, n. 3, primavera de 2000, p. 413-436. 7. Veja Claude Welch, Ir.: No Farewell to Arms? Military Disengagement from Politics In África and Latin Ameri- ca, Westview Press, Boulder, 1987. 8. David Pion-Berlin: «Political Management of the Mi- litary in Latin America» em Military Review, v. 85, n. 1, 1-2/2005, p. 19-31. 9. Para mais informações sobre este tema, veja D. Pion- Berlin e Harold Trinkunas: «Attention Defidts: Why Politicians Ignore Defense Policy in Latin America» em Latin American Research Review, v. 42, n. 3, 10/2007, p. 76-100. 10. Scott Morgenstern: «Explaining Legislative Politics in Latin America» em Scott Morgenstern e Benito Nacif (eds.): Legislative Politics in Latin America, Cambridge University Press, Cambridge, 2002, p. 413-444. 96 POLÍTICA EXTERNA O Brasil e a política externa dos EUA António de Aguiar Patriota Although the United States remains as the sole superpower in the international system, we can no longer say that the current world orderfitsrigorously into a "unipolar" model.The resources, both political and military, atthe disposal of the American government and society, although virtually unmatched, do not guarantee the capacity of defining results on a global scale. The appearance of new actors, as well as the operation, albeit imperfect, of the multilateral mechanisms, prevent Washington from being equated to what Rome once was, as demons- trated by the Journalist Cullen Murphy in his book Are We Rome? O sistema internacional atravessa um perío- do de mudanças como não se vê há várias centenas de anos. Estamos no início de uma longa fase de ajustes cujo ponto de chegada não é claro e. em que nossa sabedoria, sofisti- cação e compreensão serão fundamentais. Henry Kissinger1 Embora os Estados Unidos permane- çam a única superpotência do sistema in- ternacional, já não se pode dizer, hoje, que a ordem mundial se enquadre em um mo- delo rigorosamente "unipolar". Os recur- sos políticos e militares de que dispõem o governo e a sociedade norte-americanos, ainda que .virtualmente incontrastáveis, não lhes asseguram a capacidade de defi- nir resultados em escala global. O apareci- mento de novos atores e o funcionamento, ainda que imperfeito, de mecanismos multílaterais impedem que Washington possa ser equiparada ao que foi Roma, como bem ilustra o jornalista Cullen Mur- phy em seu recente livro Are We Rome?.2 Desde o fim da Guerra Fria e da estru- tura bipolar, o modo de interação dos Esta- dos Unidos com o mundo vem sofrendo constantes acomodações. A política externa norte-americana tem oscilado entre mo- mentos de maior e menor engajamento in- ternacional, maior e menor apego ao multi- lateralismo, maior e menor inclinação pelo uso da força militar ou da diplomacia. Essas oscilações não deixam de exercer influência sobre as relações do Brasil com os EUA. O momento promissor por que passa o relacionamento bilateral coincide com o período de maior abertura à coope- ração ao qual corresponde a política exter- na do segundo mandato de George W. Bush. Neste artigo, busco descrever o proces- so de adaptações por que passa o sistema internacional ("O mundo hoje"), a evolu- ção recente da política externa dos Estados Unidos ("A política externa norte-ameri- cana: evolução recente") e o atual momen- to das relações Brasil-EUA ("A atual polí- tica externa norte-americana"). O mundo hoje O sistema internacional atravessa um período de transformações profundas. Na António de Aguiar Patriota é embaixador do Brasil nos Estados Unidos. 97 VOL 17 N°l JUN/JUL/AGO 2008 ausência de termo que se aplique à atual configuração de poder em escala global, pode-se dizer que o mundo se caracteriza, hoje, pela superposição de elementos de unipolaridade, multipolaridade e bipola- ridade. Unipolaridade porque os Estados Uni- dos seguem sendo a única superpotência. Seus gastos militares no ano fiscal de 2009 (que começa em outubro de 2008) poderão ultrapassar os 700 bilhões de dólares, a julgar pela proposta enviada pela Casa Branca ao Congresso - quase 50% do total estimado de todos os outros Estados.3 Sal- ta aos olhos a diferença em relação ao se- gundo colocado, a China, que, pelas cifras oficiais, gastou com seu aparato de defesa, em 2007, 45 bilhões de dólares.4 No campo económico, a situação é análoga. O PIB norte-americano, em 2007, foi de mais de 13 trilhões e meio de dólares. O do Japão, segundo colocado, não chegou a 4 trilhões e meio5 (embora a União Europeia, toma- da em seu conjunto, apresente PIB supe- rior ao dos EUA). Quando se trata de ciên- cia e tecnologia, o desempenho dos EUA continua sendo o mais impressionante. Os cinco mais bem classificados institutos de pesquisa do mundo são norte-america- nos.6 Dos vinte melhores, 12 estão nos Es- tados Unidos, ficando os oito restantes pulverizados entre outros seis atores.7 No que se refere a produção académica, da- quelas que seriam, de acordo com o Natio- nal Research Council, as vinte mais bem conceituadas universidades do mundo, apenas uma não é norte-americana (a dé- cima nona, que é a Universidade de Cam- bridge, na Inglaterra).8 Mas mesmo com todo esse poderio os Estados Unidos não logram, por si sós, assegurar a consecução de objetivos no plano internacional, como ilustram, entre outras, as situações no Iraque e no Afega- nistão. Constata-se também a existência de vulnerabilidades internas à superpo- tência, como evidenciam, por exemplo, uma balança comercial deteriorada e, mais recentemente, a crise desencadeada no mercado imobiliário subprime. Os elementos de multipolaridade de- correm do papel desempenhado não ape- nas pelas potências da segunda metade do século XX, mas também por agentes que, pela primeira vez, têm atuação mais efeti- va nos processos decisórios internacionais - caso de grandes democracias do mundo em desenvolvimento como o Brasil, a ín- dia e a África do Sul. É significativo que esses'três países tenham sido convidados, pelos EUA, para a Conferência de Anna- polis sobre o Oriente Médio, em novem- bro de 2007. Igualmente reveladora é a participação dos mesmos três países, acres- cidos da China e do México, nas delibera- ções do G-8, sob a forma do G-8 + 5. E no mesmo sentido apontam a mudança da dinâmica negociadora da OMC, a partir do surgimento do G-20, e a crescente dis- seminação da ideia de que o Conselho de Segurança das Nações Unidas precisa ser ampliado para tornar-se mais representa- tivo e eficaz. Podem-se também discernir, no sistema internacional contemporâneo, elementos de uma incipiente bipolaridade associa- dos à ascensão da China - é interessante haver John Bolton, ex-embaixador dos EUA junto à ONU, observado que os EUA e a China seriam, a seu ver, os dois mais importantes membros do Conselho de Se- gurança.9 Não se trataria de bipolaridade como a da Guerra Fria. Basta lembrar a interdependência existente entre as econo- mias norte-americana e chinesa. Ou o fato de que Washington e Pequim não dispõem de esferas claramente circunscritas de in- fluência, como ocorria entre os Estados Unidos e a União Soviética. Em certas instâncias, as duas capitais chegam mes- mo a se associar na preservação do status quo - vide a oposição de ambos à proposta de ampliação do Conselho de Segurançacirculada em 2005 por Brasil, Alemanha, 98 POLÍTICA EXTERNA O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA índia e Japão. Mas, para além dos desafios de segurança relativos ao combate ao ter- rorismo, um dos temas que mais preocupa os formuladores e estudiosos da política externa dos EUA é a administração do re- lacionamento com uma China que cami- nha para a condição de segunda maior potência do planeta. A política externa norte- americana: evolução recente A política externa norte-americana vem-se ajustando ao processo de acomo- dações por que passa o sistema internacio- nal desde o fim da Guerra Fria. No imediato pós-Guerra Fria, o mundo terá vivido um "momento unipolar", para usar a expressão de Charles Krautham- mer.10 Prevalecia a sensação de que se inauguraria uma era de consensos. Fran- cis Fukuyama, com seu "fim da história",11 chegou a sustentar que, vencida a oposi- ção entre o ideário comunista e o modelo ocidental, não haveria alternativa para a democracia e o livre mercado. A comuni- dade das nações já contaria com sua "sín- tese" histórica. Derrotado o "império soviético", o sistema de Estados se organi- zaria em torno da superpotência sobrevi- vente. Como escreveu Zbigniew Brze- zinski, "maio de 1945 já havia definido a nova posição dos EUA como a principal potência democrática do mundo; dezem- bro de 1991 marcou sua ascensão como a primeira potência verdadeiramente global do mundo".12 Era a Pax Americana. É nesse ambiente que é eleito o presi- dente George H. W. Bush (também referi- do como "Bush 41", para distingui-lo de seu filho George W. Bush, o 43° presidente dos EUA). Sob a égide do "momento uni- polar", a predominância norte-americana coincidiu com um horizonte de oportuni- dades no cenário internacional. Moscou lidava com os escombros da União Sovié- tica. As perspectivas das relações de Wa- shington com o conjunto da Europa eram de crescentes convergências. A China ain- da não se delineava como potência de al- cance global, e o Japão permanecia aliado certo. Com a "Iniciativa para as Améri- cas", aquilo que nos EUA se costuma de- nominar "Hemisfério Ocidental" se con- vertia, no discurso de Bush 41, em espaço privilegiado de cooperação. A partir da intervenção no Iraque, em 1991, autoriza- da pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas e objeto de amplo apoio internacional, era possível imaginar um Oriente Médio menos instável. A Confe- rência de Madri representaria a contrapar- tida ao apoio oferecido pelo mundo árabe à ação militar para a desocupação do Kuwait, com os EUA na liderança do pro- cesso de paz que levaria, nos primeiros meses do governo do presidente Bill Clin- ton, aos Acordos de Oslo. Vivia-se a im- pressão de que todos aspiravam aos mes- mos objetivos. Bush 41, afeito à esfera internacional e com experiência diplomá- tica, parecia presidir também ao que ele próprio chamou de "nova ordem mun- dial", expressão que se tornou a marca de um político que, na Casa Branca, deu si- nais de haver-se dedicado mais à frente externa do que à agenda doméstica. Mas os consensos do imediato pós- Guerra Fria duraram pouco. Conflitos não tradicionais ganharam em importância, sem detrimento da persistência de confli- tos entre Estados: as crises da Somália e da ex-Iugoslávia, o genocídio em Ruanda e as tensões recorrentes no Oriente Médio pós- Oslo apontavam para um cenário de im- previsibilidade. Em 1993, Bill Clinton assume a presi- dência dos Estados Unidos. O fenómeno da globalização estruturou o modo como o novo presidente conceberia a inserção dos EUA no mundo. Zbigniew Brzezinski, que salienta a falta de experiência diplo- 99 VOL 17 N°l JUN/JUL/AGO 2008 mática de Clinton e sua preferência por política interna, comenta que a ênfase de Clinton na globalização "propiciava fór- mula conveniente para a junção do inter- no e do externo em um dado aparente- mente coerente, liberando-o da obrigação de definir uma estratégia disciplinada de política externa".13 Seja como for, a política externa de Bill Clinton adquire a marca do engajamento. Especialmente durante os últimos quatro anos de sua administração, com Madelei- ne Albright à frente do Departamento de Estado, os EUA assumiriam grande ativis- mo internacional. Albright promoveu o que chamaria de "multilateralismo asser- tivo" - mostrando-se talvez mais assertiva do que mulrilateral. Na vizinhança ime- diata, verificaram-se os esforços pela apro- vação do Nafta e, posteriormente, o desen- volvimento do projeto da Alça e o início do processo da Cúpula das Américas. Al- bright costumava afirmar serem os EUA "a nação indispensável",14 asseverando que, "do alto de nossa estatura, enxerga- mos mais longe do que outros países".15 O desejo de uma liderança que fosse percebida como "benigna" levou Bill Clin- ton a buscar comprometer os EUA com vários instrumentos multilaterais - o Pro- tocolo de Quioto, o CTBT (Tratado de Proscrição de Testes Nucleares), o TPI (Tri- bunal Penal Internacional). Em todos os casos, contudo, um Congresso de maioria republicana e avesso a compromissos in- ternacionais vinculantes inviabilizou o processo de ratificação dos textos assina- dos. O Senado rejeitou o CTBT; quanto a Quioto e ao TPI, o Executivo sequer consi- derou haver reunido as condições políti- cas necessárias para submetê-los a consi- deração parlamentar. Bill Clinton reagiu aos desafios especí- ficos que se apresentaram a seu governo alternando impulsos unilaterais com coor- denação diplomática. No caso das crises balcânicas da década de 1990, por exem- plo, exerceu pressão sobre o regime de Slobodan Milosevic, tendo procurado encaminhar o tema, sob formato plurilate- ral, nos Acordos de Dayton, assinados em dezembro de 1995. Em 1999, esteve por trás da ofensiva da Otan no Kosovo contra alvos sérvios, sem preocupar-se com auto- rização prévia do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Quanto aos esforços de desnuclearização da Coreia do Norte, negociou com Pyongyang, diplomatica- mente, em 1994, um acordo que seria rom- pido nos primeiros meses da administra- ção de seu sucessor. Ao mesmo tempo, não agiu, na avaliação de vários observa- dores, para que o Conselho de Segurança atuasse de maneira tempestiva frente ao genocídio de Ruanda.16 Tampouco teve êxito em seu esforço mediador para o Oriente Médio em Camp David. Em 1998, sucumbiria a impulsos unilaterais nos bombardeios ao Sudão e na operação "Ra- posa no Deserto", contra o Iraque. Meses após o fim da era Clinton, o ce- nário político global sofreu o impacto dos atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001, em Washington, Nova York e Pensil- vânia. George W. Bush chegara à Casa Branca, meses antes, sob forte influência neoconservadora. Em pouco tempo, o ter- rorismo seria elevado ao topo de sua agen- da internacional. A "luta contra o terror", em diferentes medidas, passou a envolver ou afetar a comunidade internacional co- mo um todo: ataques subsequentes em Madri, Londres e Bali contribuíram para a percepção de que nenhum país estava imune a ações terroristas. No imediato pós-11 de Setembro, o mundo emprestou forte solidariedade aos EUA. Washington interveio militarmente contra o Talibã no Afeganistão, com a au- torização do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Por breve período, che- gou-se a imaginar que a ameaça terrorista 100 POLÍTICA EXTERNA O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA poderia criar espaços de cooperação e for- talecimento do multilateralismo. Como escreveu Anne-Marie Slaughter, da Uni- versidade de Princeton, em seu The Idea That Is America, o mundo inteiro, logo após os ataques de 11 de Setembro, "pôs- se a nosso lado, chocado e com tristeza; é comum esquecermos aquele momento de- masiado breve de solidariedade global, aquela oportunidade de unir quase todos os países na luta contra o terrorismo e su- as causas profundas".17O espírito de união e cooperação do imediato pós-11 de Setembro duraria pou- co, menos ainda do que o verificado no imediato pós-Guerra Fria. Em março de 2003, teve início a operação militar contra o Iraque de Saddam Hussein, "guerra preemptiva" que desafiou os preceitos da Carta da ONU. Começou a configurar-se, na administração de George W. Bush, um padrão de conduta internacional que po- deria ser qualificado como de "engaja- mento unilateralista". Ganhou espaço a noção de que seria papel dos Estados Uni- dos combater o terrorismo e a proliferação de armas de destruição em massa, e di- fundir a democracia e o livre comércio em escala global - se necessário, ao amparo da doutrina da preemptive action, a custo de ações militares e "mudanças de regi- me". Impulsionaram essa noção não ape- nas o universo dos neoconservadores, mas os "falcões" de toda ordem, que coin- cidiam, na prática, com as prescrições unilateralistas e belicosas do neoconser- vadorismo. A "Segunda Guerra do Golfo" repercu- tiu sobre os frágeis equilíbrios do Oriente Médio. Polarizaram-se as relações entre sunitas e xiitas. O Ira ampliou seu raio de influência regional. Uma guerra - cuja justificativa primeira, a presença de armas de destruição em massa no Iraque, pro- vou-se sem fundamento - provocou, na leitura de analistas de diferentes tendên- cias, danos consideráveis à imagem in- ternacional da superpotência. Outros as- pectos rela'tivos à política dos EUA de combate ao terrorismo, como aqueles liga- dos à prisão de Guantânamo e a seu siste- ma jurídico próprio, além dos abusos co- metidos por militares norte-americanos em Abu Ghraib, afetaram negativamente o soft power de Washington. Com o tempo, os obstáculos que se impunham - e ainda se impõem - à re- construção do Iraque pós-Saddam Hus- sein, assim como à própria liderança dos EUA no Oriente Médio, ganharam em vi- sibilidade junto à opinião pública interna- cional e também junto à sociedade norte- americana. Fizeram-se sentir, então, as implicações domésticas da política ira- quiana do governo de George W. Bush. O desgaste do unilateralismo tornou-se evi- dente e o neoconservadorismo esgotou-se como ideário político. A cidadania norte- americana acusou o golpe: depois de mais de uma década de preponderância repu- blicana no Capitólio, as eleições de meio- mandato de novembro de 2006 devolve- ram aos democratas o controle da Casa dos Representantes e do Senado. A mensa- gem era claramente de mudança. Especia- listas em política externa norte-americana passavam a defender um novo tipo de engajamento internacional, baseado na cooperação e no diálogo. Brent Scowcroft, em debate com Hertry Kissinger e Zbig- niew Brzezinski, assim resume, em junho de 2007, o que parece ser, nos Estados Unidos, o consenso emergente: "Creio que nós [os EUA] somos parte do mundo, que queremos cooperar com o mundo. Afinal, fomos nós que pusemos de pé a Liga das Nações, a ONU, a Otan. Essa é a maneira como fazemos as coisas. Essa é a maneira como queremos fazer as coisas. Desejamos trabalhar com amigos, com aliados, com pessoas de boa vontade para fazer deste um mundo melhor".18 101 VOL 17 N°l JUN/JUL/AGO 20C A atual política externa norte-americana As eleições legislativas de novembro de 2006 fizeram soar um "alarme" ao qual se podem associar inflexões importantes na ação externa norte-americana. A verda- de, porém, é que, mais acentuadamente em algumas áreas do que em outras, essas inflexões já se ensaiavam desde os primei- ros meses do segundo mandato de George W. Bush. Para fins de análise, pode-se es- tabelecer, como marco inicial do ajuste de rumo da política externa de Bush 43, o momento anterior às eleições de 2006, em que Condoleezza Rice assume o Departa- mento de Estado. Já naquela altura, postu- ras como a recusa ao diálogo com governos considerados hostis e a tomada de decisões sem preocupação com seu grau de aceita- bilidade internacional começaram a ser substituídas por um renovado "realismo", orientação que os conhecedores da trajetó- ria de Condoleezza Rice nunca deixaram de lhe atribuir. Na prática, constata-se que, a partir de 2005, tendências neocon- servadoras são gradualmente substituídas por uma visão mais pragmática, ou "rea- lista", das relações internacionais. Exemplo significativo é a renovada aposta na diplomacia, em 2005, no tocante ao processo de desnuclearização da Co- reia do Norte. Essa atitude ficou paten- te na abordagem mais construtiva de Washington no âmbito das "conversações hexapartites", que envolvem também a China, a Rússia, o Japão e as Coreias. No caso do Ira, os EUA passaram a apoiar, também em 2005, os esforços negociado- res do Reino Unido, da França e da Ale- manha (o "UE-3"). A retomada, pelos Estados Unidos, dos esforços de paz no Oriente Médio, em 2007, é mostra de que, em Washington, a problemática do terrorismo aponta hoje para a necessidade de um engajamento internacional maior e qualitativamente di- ferente. A Conferência de Annapolis, de novembro de 2007, ilustra esse ponto. A iniciativa poderá ter sido motivada em parte por um desejo de isolar o Ira, hipó- tese sobre a qual muito se especulou. Mas representa uma retomada, por Washing- ton, da mobilização internacional no trata- mento do conflito israelo-palestino. Em Annapolis, o chanceler Celso Amo- rim recordou que, na sessão de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas de 2006, o presidente Lula realçara a ne- cessidade de que mais países se engajas- sem nos esforços de paz no Oriente Mé- dio, inclusive países em desenvolvimento que mantivessem boas relações com ára- bes e israelenses. A lista de convidados para Annapolis respondeu a essa visão. Talvez tal lógica já esteja sendo vista como elemento relevante não somente para o êxito do processo de paz no Oriente Mé- dio, mas também para a promoção da paz em sentido mais amplo. O momento atual das relações Brasil-EUA Não foram poucos os que imagina- ram um desgaste nas relações Brasil-EUA quando da eleição do presidente Lula. Em um primeiro momento, as negociações da Alça esbarraram em uma incompatibilida- de de pontos de vista quanto à própria fi- nalidade do exercício: o Brasil, com seus parceiros do Mercosul, interessava-se por maior acesso ao mercado norte-america-. no; os Estados Unidos desejavam promo- ver harmonização regulatória em temas como investimentos, compras governa- mentais e propriedade intelectual, com padrões mais rígidos que os da OMC. Mas a dificuldade de ratificação, pelo Congres- so norte-americano, do Cafta, aprovado em julho de 2005 por margem de apenas um voto, sinalizou mudança significati- 102 POLÍTICA EXTERNA O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA va no ambiente político norte-americano quanto a acordos de livre comércio - e o novo ambiente, ao esvaziar em Washing- ton o processo da Alça, contribuiu indire- tamente para uma aproximação pragmáti- ca entre o Brasil e os Estados Unidos. É verdade que o presidente Lula começara a construir uma relação de franqueza e con- fiança com seu homólogo norte-americano a partir das visitas que fez aos Estados Unidos em 2002, ainda como presidente eleito e, no ano seguinte, já no primeiro ano de seu governo. Mas o cenário em que ocorreria uma mudança qualitativa nas relações bilaterais configurou-se mais cla- ramente no segundo mandato de George W. Bush. Sob Condoleezza Rice, o Departamen- to de Estado passou a dedicar mais aten- ção, em sua política para a América Lati- na, aos países maiores e ao Brasil em particular - em contraste com períodos anteriores, em que a prioridade parecia ser a América Central e o Caribe. Com as sucessivas eleições de governos "rotula- dos" como de "esquerda" e de "centro- esquerda" na região, os EUA matizaram o prisma ideológico através do qual ten- diam a conceber as relações com a Améri- ca Latina comoum todo, passando a reco- nhecer a importância da agenda do combate à pobreza e do desenvolvimento social. O Brasil passou a ser mais clara- mente identificado, em Washington, como ator de influência regional e global. As afinidades multiétnicas e democráticas fo- ram revalorizadas e surgiram novas áreas de convergência. No Brasil, em paralelo à ênfase na inte- gração sul-americana e ao estabelecimento de parcerias com as demais regiões em desenvolvimento, o caráter universal da política externa do governo Lula permitiu que um movimento de aproximação com os países do Sul se realizasse sem prejuízo do relacionamento com parceiros do mun- do desenvolvido. Foi nesse contexto que a União Europeia conferiu ao Brasil status de parceiro estratégico. Foi também nesse contexto que começou a ser escrito um capítulo de renovação e amadurecimento da relação bilateral entre o Brasil e os Esta- dos Unidos. É possível afirmar que uma promisso- ra fase das relações bilaterais se consolida a partir do encontro que os presidentes Lula e Bush mantiveram na Granja do Torto, em novembro de 2005. Na véspera, haviam fracassado os esforços norte-ame- ricanos para obter, na IV Cúpula das Amé- ricas, em Mar dei Plata, uma declaração a favor da Alça - assessor próximo ao presi- dente Bush chegou a comentar que, em Mar dei Plata, os EUA haviam-se resigna- do a evitar o "enterro definitivo" daquele exercício negociador. Ficava subentendido que a Alça fora posta entre parênteses. No comunicado conjunto que emanou do encontro presidencial da Granja do Torto, foram feitas as primeiras referên- cias ao estabelecimento de um "diálogo estratégico"19 entre o Brasil e os Estados Unidos. O texto incluía também menção à importância do Mercosul e da Comunida- de Sul-Americana de Nações para a inte- gração das Américas e para a promoção da estabilidade e da democracia na região, no que terá sido a primeira manifestação formal, da parte dos EUA, de reconheci- mento da especial relevância das iniciati- vas sul-americanas de integração. Igual- mente, Bush comentaria em ocasiões subsequentes que, naquele encontro, o presidente Lula o entusiasmara com res- peito à experiência brasileira em matéria de biocumbustíveis. O estabelecimento do diálogo estraté- gico tinha sido articulado alguns meses antes do encontro da Granja do Torto à margem da abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, por sugestão do então subsecretário de Estado para Assuntos Po- líticos, Nicholas Burns. A caracterização do diálogo bilateral sobre temas políticos 103 VOL17 N°l JUN/JUL/AGO 2008 como "estratégico" já era aplicada pelos Estados Unidos a suas consultas com paí- ses como China, índia, Japão e Rússia. De certa forma, o estabelecimento de tal diá- logo anteciparia o reconhecimento do Bra- sil como ator de influência não apenas re- gional, mas também global. Em abril de 2007, a secretária de Estado Condoleezza Rice assim o declarou, em Washington, ao apresentar balanço da viagem do presi- dente Bush à região no mês anterior. Diálogo estratégico não se confunde com parceria estratégica ou alinhamento. A ampliação do diálogo político fornece elementos para o amadurecimento das re- lações entre os dois países, mas persistem divergências, como aquelas associadas às negociações sobre as regras que se apli- cam, na OMC, ao comércio de bens agríco- las; à forma como foi concebida a invasão do Iraque; e, em certa medida, à democra- tização das instâncias decisórias multilate- rais, que vem sendo ativamente promovi- da pelo Brasil. Sobre este último ponto, se, por um lado, os dois países convergem, em teoria, quanto ao objetivo de fortalecer o multilateralismo, por outro, obstáculos foram levantados a iniciativas lideradas pelo Brasil no plano multilateral, como o G-20, na Conferência Ministerial da OMC em Cancún (2003), e a çroposta que, em 2005, Brasil, Alemanha, índia e Japão cir- cularam para a ampliação do Conselho de Segurança. Assim, com o diálogo estratégico sur- gia uma maior faixa de sintonia. A atual convergência em relação à estabilização do Haiti, por exemplo, contrasta com pe- ríodo ainda recente, em meados da década de 1990, em que o Brasil e os EUA não chegaram a uma visão comum sobre o tratamento a ser dado à questão haitiana. São frequentes as manifestações de apreço de autoridades norte-americanas, inclusi- ve do secretário de Defesa Robert Gates, em relação à liderança demonstrada pelo Brasil na Minustah. Quanto à África, o Brasil e os EUA, por meio de iniciativas de cooperação "trilateral", estão conferindo contorno concreto ao desejo comum de trabalhar pela promoção da paz, da demo- cracia e da prosperidade no continente africano, uma sinalização inovadora em si mesma. Ao longo de 2006, a intensa interlocu- ção entre os ministros de Relações Exterio- res e entre os subsecretários do Itamaraty e do Departamento de Estado prepararia o terreno para a sequência de encontros en- tre os dois presidentes em 2007. Em março de 2007, a segunda visita do presidente George W. Bush ao Brasil se organizou em torno de agenda essencial- mente positiva, com a discussão de ternas como cooperação energética, paz no Haiti, promoção do desenvolvimento e comércio internacional. Foi assinado, na ocasião, o Memorando de Entendimento para o Avan- ço da Cooperação em Biocombustíveis. A cooperação no campo energético, com ênfase em biocombustíveis, passou a desempenhar papel indutor da diversifi- cação da agenda entre Brasil e Estados Unidos. Como afirmou a secretária Rice, "o acordo de etanol com o Brasil é apenas o começo de uma relação transformada, apropriada ao tamanho e importância do Brasil, regional e globalmente". O Brasil e os EUA, como detentores de cerca de 70% da produção mundial de etanol, associa- ram-se na promoção de novas fontes alter- nativas de energia. A assinatura do memo- rando de entendimento representaria um marco de repercussão internacional. Além da vertente de cooperação bilateral, o do- cumento anunciava a possibilidade de co- operação em terceiros países e consignava um esforço plurilateral - em parceria com a União Europeia, China, índia e África do Sul - voltado para o desenvolvimento de padrões técnicos universalmente aceitos para o etanol. No mesmo mês de março de 2007, os presidentes Lula e Bush se reencontraram 104 POLÍTICA EXTERNA em Camp David, onde o presidente do Brasil foi recebido para reunião de traba- lho em localidade reservada a líderes de países considerados influentes e amigos. Além de discussão aprofundada sobre energia, Rodada Doha, América do Sul, África e apoio consular a cidadãos brasi- leiros nos Estados Unidos - entre outros assuntos -, ocorreu pormenorizada e pro- dutiva conversa sobre a reforma do Conse- lho de Segurança da ONU. A Embaixada em Washington receberia instruções para intensificar o diálogo sobre esse tema. Também do ponto de vista econômico- comercial o encontro de Camp David gerou resultados importantes. Os dois presidentes registraram a constituição do Fórum de Inovação e criaram o Fórum de Altos Executivos de Empresas Brasil-EUA (CEO Fórum), voltado para o intercâmbio direto de informações e a identificação de novos caminhos para a intensificação dos contatos entre os setores privados de am- bos os países. Os presidentes Lula e Bush anunciaram programa de cooperação tri- lateral em biocombustíveis com o Haiti, República Dominicana, El Salvador e São Cristóvão e Nevis. Comprometeram-se a dar seguimento à conclusão de acordo bi- lateral sobre bitributação, além de terem renovado o memorando de entendimento no campo educacional e a parceria em ciên- cia e tecnologia. Esses avanços em Camp David. vieram somar-se a uma relação econômico-comer- cial que já é robusta e apresenta grande potencial de crescimento. Os Estados Uni- dos permanecem o maior parceiro comer- cial individualdo Brasil e maior investi- dor estrangeiro no país. Os investimentos e o comércio bilateral entre o Brasil e os Estados Unidos vêm crescendo continua- mente nos últimos anos. Das quinhentas maiores empresas norte-americanas, pelo menos trezentas realizam negócios com o Brasil. Destas, 60% possuem investimen- tos no setor industrial. Empresas brasilei- ras também têm-se destacado no mercado norte-americano. Merece registro nossa participação nos setores aeronáutico, de agronegócios, de serviços de engenharia e construção e siderurgia. Em 2007, os EUA responderam por 15,6% das exportações brasileiras e 15,5% de nossas importações globais. Entre 2004 e 2007, o comércio total entre os dois países passou de 32 bilhões para 44 bilhões de dólares. O exame da pauta bilateral revela que houve cresci- mento nas exportações de cerca de cin- quenta dos cem principais produtos ex- portados para os EUA em 2007.20 Individualmente, os Estados Unidos são os maiores investidores diretos no Brasil. O total de recursos investidos por empresas norte-americanas no país mais que dobrou nos últimos dez anos. Em 2007, o fluxo líquido de investimento dire- to estrangeiro para o Brasil totalizou o valor de US$ 34,6 bilhões, dos quais os EUA contribuíram com US$ 6,1 bilhões.21 O Brasil também se apresenta como inves- tidor cada vez mais ativo na economia norte-americana. Em 2007, o estoque de investimento brasileiro nos EUA superou os 6 bilhões de dólares.22 Interessante notar que a ampliação da agenda política está contribuindo para que divergências no campo comercial não sejam superdimensionadas, como nas questões do licenciamento compulsório de patentes para medicamentos ou de di- ferendos levados ao sistema de solução de controvérsias da OMC. Interpelado, em visita ao Brasil em 2007, sobre pedido brasileiro de consultas aos Estados Uni- dos relativo a subsídios agrícolas, o então subsecretário de Estado para Assuntos Políticos, Nicholas Burns, afirmou consi- derar "normal" o fato de o Brasil e o Ca- nadá terem ingressado na OMC com aquela queixa. Declarou Burns: "Canadá, EUA e Brasil são os melhores sócios do mundo, e as disputas não vão interferir nas relações". 105 VOL 17 N"l JUN/JUL/AGO 2008 As relações do Brasil com os Estados Unidos atravessam momento positivo, com crescente confiança recíproca e res- peito mútuo. No caso do Brasil, não se justifica o sentimento por vezes expresso em análises da política externa norte-ame- ricana de que Washington não dedica atenção suficiente à América Latina. É re- veladora da atenção diferenciada que vem sendo dispensada ao Brasil a iniciativa da Comissão de Relações Exteriores da Casa dos Representantes dos EUA de elaborar e aprovar resolução específica sobre as rela- ções bilaterais. Na resolução, de 9 de outu- bro de 2007, o Legislativo Norte-america- no "reconhece que os Estados Unidos e o Brasil atingiram um ponto de confluência estratégica de interesses" e cita frase da secretária Condoleezza Rice, para quem "os EUA vêem o Brasil como um líder re- gional e um parceiro global". Sem dúvida, contribuem para essa per- cepção positiva elementos intrínsecos à rea- lidade brasileira atual, como a estabilidade macroeconômica, o crescimento da econo- mia com redução de desigualdade, o enrai- zamento democrático e o perfil mais atuan- te e criativo de nossa política externa. Ao olharmos para o futuro,-é possível afirmar que, nas grandes linhas, as mu- danças que os críticos do neoconservado- rismo esperavam dos Estados Unidos em matéria de política externa já estão sendo operadas pela própria Casa Branca de Bush 43. Apesar de que se assiste a uma campanha eleitoral em que a palavra de ordem é "mudança", o mais provável é que o próximo ocupante da Casa Branca tenda a não se afastar em demasia daquilo que a administração Bush procura articu- lar em seus derradeiros esforços interna- cionais. É verdade que o humor, em determina- dos segmentos da sociedade norte-ameri- cana, parece favorecer uma retração do papel internacional dos EUA, dada a fadi- ga de uma ação externa profundamente controvertida. Mas os desdobramentos dos últimos anos, sobretudo as dificulda- des enfrentadas no Iraque e, mais ampla- mente, a ineficácia do unilateralismo, ten- dem a apontar, em Washington, para a busca de um engajamento pela coopera- ção. É amplamente difundido, entre os assessores de política externa dos pré-can- didatos à presidência - os senadores John McCain, Barack Obama e Hillary Clinton -, o sentimento de que um desengajamen- to internacional dos Estados Unidos sim- plesmente não é viável. Ao mesmo tempo em que o consenso parece apontar para a premência do diálo- go e da cooperação, persiste, no âmbito dos que pensam a política externa norte- americana, a crença no "excepcionalismo norte-americano" - os EUA seriam uma nação "escolhida", diferente de todas as demais. Mesmo entre personalidades con- sideradas mais "progressistas", advoga-se maior engajamento internacional, defen- de-se a necessidade de alianças abrangen- tes, rejeita-se o unilateralismo, mas não necessariamente se abre mão do "excep- cionalismo". O "excepcionalismo", em sua manifes- tação internacional, leva à noção de que seria "natural" não se submeterem os EUA às normas que, no mais, se aplicam ao conjunto dos atores do sistema internacio- nal - por exemplo, as Convenções de Ge- nebra sobre o Direito Internacional Huma- nitário. É como se, por força de sua própria natureza, os Estados Unidos constituís- sem uma "exceção legítima" ao direito internacional.23 Francis Fukuyama, em seu America at the Crossroads, examina os motivos pelos quais a ação do governo de George W. Bush no Iraque teria despertado tamanha onda de antiamericanismo no mundo. O autor salienta o reconhecimento implícito, 106 POLÍTICA EXTERNA O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA DOS EUA no documento "Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos", emitido pela Casa Branca em setembro de 2002, do "excepcionalismo norte-americano". Es- creve Fukuyama: "Claramente, a doutrina da guerra preventiva não pode ser genera- lizada de forma segura para todo o siste- ma internacional. Vários países enfrentam ameaças terroristas e poderiam inclinar-se a lidar com essas ameaças por meio de intervenções 'preemptivas' ou da derru- bada de regimes que supostamente abri- gam terroristas. A Rússia, a China e a índia se encaixam nessa categoria. Entre- tanto, se qualquer dos três países anun- ciasse uma estratégia geral de guerras preventivas/'preemptivas' como meio pa- ra lidar com o terrorismo, os EUA seriam, sem dúvida, os primeiros a objetar. O fato de que os norte-americanos se dão um direito que negariam a outros países se baseia, na 'Estratégia de Segurança Nacio- nal', em um julgamento implícito de que os Estados Unidos são diferentes de ou- tros países e de que se pode confiar que utilizarão seu poder militar de maneira justa e sábia, como outras potências não necessariamente fariam".24 Há vozes nos Estados Unidos que con- testam o "excepcionalismo", apesar de tratar-se de conceito de raízes históricas fortemente arraigadas. A aceitação de que o "excepcionalismo" é essencialmente in- compatível com o multilateralismo - tal como consolidado ao longo de vários sé- culos25 - é pressuposto que aparece na re- flexão de influentes intelectuais norte- americanos, como Anne-Marie Slaughter. A professora de Princeton assinala, em The Idea That Is America: "A rejeição a que se imponham quaisquer limites à nossa so- berania, em áreas como teste de armas nucleares e uso preventivo da força, pode nos impedir de impor limites sobre tercei- ros, tornando o mundo um lugar mais perigoso. Se pensamos em nós como uma cidade auto-suficiente na colina, sugeri- mos ao resto do mundo que nós somos o farol que espalha luz para outros países. Mas se pensamos menosem nós e mais nos nossos ideais, nos unimos a outros países e nossos ideais é que passam a ser a luz que brilha sobre todos".26 Apesar de argumentações como a de Slaughter27 pa- rece pouco provável, porém, que, no futu- ro próximo, os EUA evoluam na direção por ela imaginada. Em um mundo mais multipolar, cabe- rá a atores como o Brasil demonstrar que somente com a sedimentação de um mul- tilateralismo revigorado, sem "excepcio- nalismos", será possível reproduzir, no plano internacional, o ambiente propício à realização humana que é garantido, no interior dos países, pelo Estado de Direi- to e pela democracia representativa. Pa- ralelamente, à medida que ampliamos nossas convergências com os Estados Unidos, com base em valores comparti- lhados, como duas grandes democracias multiétnicas, aumentarão as oportunida- des para ações conjuntas inovadoras em benefício dos dois países, das Américas e do mundo. 107 VOL 17 N"l JUK/JUL/AGO 2008
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